“Acima d’Ele havia um letreiro: ‘Este é o Rei dos judeus’” (Lc 23,38).
A
reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro,
sacerdote jesuíta, comentando o evangelho da Solenidade de Cristo Rei (20/11/2016) que corresponde ao texto
de Lucas 23,35-43.
Pode
nos causar espanto o fato da liturgia escolher, para a festa de Cristo Rei, a cena da morte de Jesus na Cruz. Para Lucas, o Reino de Jesus é essencialmente o Reino da
reconciliação do ser humano com Deus. Em outras palavras, a reconciliação tem
como centro a Cruz, ato
supremo de amor e expressão visível da Misericórdia de Deus. Podemos, então,
afirmar que a “A CRUZ é o lugar por excelência da revelação visível da
Misericórdia de Deus”.
No mistério da Paixão do Filho se manifestou
radicalmente a Misericórdia do Pai. Na
Paixão encontramos a Misericórdia de um Deus que desceu e chegou até o extremo da
fragilidade para manifestar a força reconstrutora de seu Amor. Se Deus “sofre”,
é por seu excesso de Amor, desde o princípio.
A Cruz de Jesus expressa de maneira
penetrante o Amor Misericordioso do Pai. Ela é revelação do Amor levado até às
últimas consequências. Ela nos fala daquilo que Deussente por nós.
“Deus é capaz de sofrer porque é capaz de
amar. Sua essência é a MISERICÓRDIA” (Moltmann).
A Misericórdia torna o próprio Deus vulnerável e passível de um sofrimento
livre, ativo, fecundo.
Se Deus fosse impassível (incapaz de sofrer)
seria também incapaz de amar.
De fato, o mistério do “amor em excesso” de
Deus, revelado no silêncio junto ao sofrimento inocente, chama-se misericórdia
compassiva. Só o amor é capaz desse sofrimento compassivo. Porque é Amor puro, Deus usa de paciência, de presença
silenciosa, de misericórdia ativa e, assim, salva de forma compassiva toda
criatura em seu seio regenerador. Só Ele é capaz de assumir para si o
sofrimento e a fragilidade humana, abrindo um novo horizonte de vida.
No Novo
Testamento, o mistério da Misericórdia do Pai atravessa toda a experiência de Jesus, de sua missão, mas também de
sua própria paixão e de sua Páscoa. No sofrimento e morte do Filho há a dor de dilaceração,
fragilidade e silêncio do Deus
Pai/Mãe, como em dores de parto por uma criação que ainda precisa da
compaixão e da misericórdia maternal do Criador. Se o Criador sofre
em dores de parto por sua criação, nosso sofrimento está em suas mãos, em seu
seio. É a maternidade divina regeneradora de sofrimentos.
Sem a Cruz seria muito difícil
convencer o ser humano do amor misericordioso de Deus, e mais ainda de seu apaixonado interesse por nos salvar.
Mas, a partir dela, será sempre possível dizer ao ser humano que a Cruz de Jesus tem um sentido, e
que a última palavra é “salvação”.
No Jesus crucificado se encontram e
se reconhecem todos os sofredores inocentes e crucificados da história; n’Ele
se condensam todos os gritos da humanidade sofrida e excluída.
A “kénosis” de Jesus nos ensina, portanto,
a encontrar Deus nos
lugares onde a vida se acha bloqueada.
Deus “desceu” às
zonas mais escuras da humanidade – sofrimentos, fracassos, amarguras,
pecados... – para sentir como Seu nosso sofrimento e ali falar ao nosso
coração. No silêncio, Deus não apenas se solidariza, mas sofre “em sua pele”,
identificado com os sofredores, aqueles que sobram...
A primeira coisa
que descobrimos ao contemplar o Crucificado do Gólgota, torturado injustamente até à
morte pelo poder político-religioso, é a força destruidora do mal, a crueldade
do ódio e o fanatismo da mentira. Precisamente aí, nessa vítima inocente, nós
seguidores de Jesus, vemos
o Deus identificado
com todas as vítimas de todos os tempos. Está na Cruz do Calvário e está em
todas as cruzes onde sofrem e morrem os mais inocentes.
Jesus foi condenado como herege e subversivo, por
elevar a voz contra os abusos do templo e do palácio, por colocar-se do lado
dos perdedores, por ser amigo dos últimos, de todos os caídos.
“Jesus morreu de vida”: de bondade
e de esperança lúcida, de solidariedade alegre, de compaixão ousada, de
liberdade arriscada, de proximidade curadora...
“Morreu de vida”:
isso foi a Cruz, e isso é a Páscoa. E é por isso que tem
sentido recordar Jesus,
olhando as chagas de seu corpo e as pegadas de sua vida.
O Crucificado nos
revela que não existe, nem existirá nunca um Deus frio, insensível e indiferente, mas um Deus que padece conosco, sofre
nossos sofrimentos e morre nossa morte.
A partir da Cruz, Deus não responde o mal com o mal; Ele não é o Deus justiceiro, ressentido e
vingativo, pois prefere ser vítima de suas criaturas antes que verdugo.
Despojado de todo
poder dominador, de toda beleza estética, de todo êxito político e de toda
auréola religiosa, Deus se
revela a nós, no mais puro e insondável de seu mistério, como amor
misericordioso.
Nós cristãos
contemplamos o Crucificado para
não esquecer nunca o “amor louco” de Deus para com a humanidade e para manter sempre viva a
memória de todos os crucificados da história.
Mais uma vez, no
alto da Cruz, a Misericórdia visível em Jesus revela-se expansiva, envolvente e salvífica.
Lucas, no evangelho de hoje, destaca diferentes reações
das diferentes pessoas que estavam junto à Cruz. Elas representam toda a
humanidade frente à Misericórdia solidária de Jesus. Por um lado, estão aquelas pessoas que não viram no rosto
de Jesuso olhar
misericordioso do Pai;
parece não terem entendido a proposta de vida de Jesus. Por isso zombam, desprezam, pedem sinais...
Mas, por outro
lado, do meio das zombarias e escárnios, alguém, tocado pelo silêncio e
inocência de Jesus, deixa
escapar uma surpreendente súplica: “Jesus,
lembra-te de mim, quando entrares no teu reinado”. Não se trata de um discípulo
nem um seguidor de Jesus,
mas um dos ladrões crucificados junto a Ele. Ele só pede que Jesus não se esqueça dele. E Jesus responde prontamente:
“Ainda hoje estarás comigo no paraíso”. Revela-se impactante que, dos lábios de
homem derrotado e moribundo, brote uma palavra de vida, acompanhada de uma
certeza que a torna eterna, em um presente sempre atual: “hoje”.
Esta cena nos
indica até onde pode chegar a Misericórdia: do meio da morte ela se revela,
mais uma vez, geradora de vida, e vida eterna.
Agora, na Cruz, estão os dois unidos no suplício e na impotência, mas Jesus, com sua presença
misericordiosa, o acolhe como companheiro inseparável. Morrerão crucificados,
mas entrarão juntos no mistério de Deus.
Estamos encerrando
o “Jubileu extraordinário da Misericórdia”; e a vivência da Misericórdia é a
que impulsiona a Igreja para fora de si mesma, para as margens, onde acontece o
sofrimento humano. Uma Igreja configurada pelo “Princípio Misericórdia” tem força e coragem para denunciar os
geradores de sofrimento e morte, para desmascarar a mentira daqueles que
oprimem, para animar e despertar a esperança daqueles que são as vítimas.
Quando isso
ocorre, a Igreja é ameaçada, atacada e perseguida; mas isso mostra que ela se
deixou conduzir pelo “Princípio
Misericórdia”. A ausência de tais ameaças, ataques e perseguições
significa, por sua vez, que a Igreja não está sendo fiel a esta misericórdia
reconstrutora que se fez visível na Paixão
e Cruz de Jesus Cristo. Se ela leva a sério a misericórdia e deixa
transparecer no seu modo de se fazer presente no mundo, então ela se torna
conflitiva.
Diante do supremo
indicador do amor misericordioso de Jesus e do amor do Pai, abre-se para a Igreja uma inesgotável inspiração e uma
referência única para ser, também ela, presença misericordiosa.
Para meditar na
oração
- Recordar
momentos significativos vividos neste Jubileu de Misericórdia que ora se encerra.
- Mas a
Misericórdia não se restringe a um jubileu, não é um evento; ela é habito de
vida, pois é a marca distintiva de todo seguidor de Jesus: “Sede misericordiosos como o Pai”.
- Como deixar
transparecer a Misericórdia do
Deus Pai/Mãe no cotidiano de sua vida?