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sábado, 5 de outubro de 2013

COISAS DE FRANCISCO: Papa almoça com os Pobres.

A PALAVRADO FREI PETRÔNIO, Nº 432. Fé e Fidelidade

A PALAVRA DO FREI PETRÔNIO. Nº 431. São Benedito.

27º Domingo do Tempo Comum: Fé e fidelidade

Dom Paulo Mendes Peixoto, Arcebispo de Ubereaba-MG.
Estas duas palavras estão em crise de identidade. Passam por um processo de esvaziamento e perda de sentido. Fé é adesão firme em Deus, que é fiel. É um fato que supera toda nossa compreensão humana, mas não afeta a liberdade ao tomar decisão. Pelo contrário, livremente a pessoa age com atitude de fidelidade.
Fidelidade é a prática de quem é fiel ao que faz e tem compromisso sério no cumprimento do que assume e é confiável, é constante. Há um texto bíblico que diz que “o justo viverá por sua fidelidade” (Hab 2, 4). A infidelidade é descumprimento de um compromisso de fidelidade e ruptura com consequências desastrosas.
Fé e fidelidade são dons de Deus, mas também frutos de decisão consciente e responsável. Ambas fazem parte da estrutura natural das pessoas, mas precisam ser trabalhadas com sinceridade para que sejam um bem para a sociedade. A falta de fidelidade, em determinadas circunstâncias da vida, pode ser também ameaça à fé.
Não podemos agir apenas por fantasia, sem profundidade, despidos de responsabilidade. A fé e a fidelidade do outro depende do testemunho que lhe for proporcionado. Não ter uma fé como fundo de garantia, sem fidelidade, mas como firmeza na adesão aos princípios que contam e que nos levam à realização de vida com dignidade.
Toda pessoa deve estar a serviço do Reino de Deus. É um caminho de construção, que supõe desapego, desprendimento e atenção ao que é mais importante para o bem comum. Em vez de ser servido, a fé e a fidelidade, como condição de vida digna, fazem de nós servidores da comunidade com determinação e coragem.
Estamos numa mentalidade que busca compensação para tudo que se faz numa mentalidade totalmente calculista e muito marcada pelo materialismo, onde o ter passa a ser mais importante do que o ser. Para ser diferente, devemos ter dedicação total no servir, mas com o coração aberto e sem interesses puramente vazios. Não é saudável a ambição de poder, de aparecer e de compensação.

SENHORA APARECIDA-2013: Convite.


sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Testemunho ad gentes em Moçambique: CNBB.

27º Domingo do Tempo Comum - Ano C: Reflexão. (Lc 17, 5-10)

Na Palavra de Deus que hoje nos é proposta, cruzam-se vários temas (a fé, a salvação, a radicalidade do “caminho do Reino”, etc.); mas sobressai a reflexão sobre a atitude correta que o homem deve assumir face a Deus. As leituras convidam-nos a reconhecer, com humildade, a nossa pequenez e finitude, a comprometer-nos com o “Reino” sem cálculos nem exigências, a acolher com gratidão os dons de Deus e a entregar-nos confiantes nas suas mãos.

Na primeira leitura, o profeta Habacuc interpela Deus, convoca-o para intervir no mundo e para pôr fim à violência, à injustiça, ao pecado… Deus, em resposta, confirma a sua intenção de atuar no mundo, no sentido de destruir a morte e a opressão; mas dá a entender que só o fará quando for o momento oportuno, de acordo com o seu projecto; ao homem, resta confiar e esperar pacientemente o “tempo de Deus”.

O Evangelho convida os discípulos a aderir, com coragem e radicalidade, a esse projeto de vida que, em Jesus, Deus veio oferecer ao homem… A essa adesão chama-se “fé”; e dela depende a instauração do “Reino” no mundo. Os discípulos, comprometidos com a construção do “Reino” devem, no entanto, ter consciência de que não agem por si próprios; eles são, apenas, instrumentos através dos quais Deus realiza a salvação. Resta-lhes cumprir o seu papel com humildade e gratuidade, como “servos que apenas fizeram o que deviam fazer”.

A segunda leitura convida os discípulos a renovar cada dia o seu compromisso com Jesus Cristo e com o “Reino”. De forma especial, o autor exorta os animadores cristãos a que conduzam com fortaleza, com equilíbrio e com amor as comunidades que lhes foram confiadas e a que defendam sempre a verdade do Evangelho.

ATUALIZAÇÃO

A reflexão pode fazer-se a partir das seguintes coordenadas:

 

A “fé” é, antes de mais, a adesão à pessoa de Jesus Cristo e ao seu projeto. Posso dizer, de facto, que é a “fé” que conduz e que anima a minha vida? Jesus é o eixo central à volta do qual se constrói a minha existência? É Jesus que marca o ritmo e a cor das minhas opções e dos meus projetos?

O “Reino” é uma realidade sempre “a fazer-se”; mas apresentam-se, com frequência, situações de injustiça, de violência, de egoísmo, de sofrimento, de morte, que impedem a concretização do “Reino”. Como é que eu – homem ou mulher de fé – ajo, nessas circunstâncias? A minha “fé” em Jesus conduz-me a um empenho concreto pelo “Reino” e entusiasma-me a lutar contra tudo o que impede a concretização do “Reino”? A minha “fé” nota-se nos meus gestos? Há algo de novo à minha volta pelo facto de eu ter aderido a Jesus e pelo facto de eu estar a percorrer o “caminho do Reino”? Quais são os “milagres” que a minha “fé” pode fazer?

Nós, homens, somos, com frequência, muito ciosos dos nossos direitos, dos nossos créditos, daquilo que nos devem pelas nossas boas ações. Quando transportamos isto para a relação com Deus, construímos um deus que não é mais do que um contabilista, que escreve nos seus livros os nossos créditos e os nossos débitos, a fim de nos pagar religiosamente, de acordo com os nossos merecimentos… Na realidade – diz-nos o Evangelho de hoje – não podemos exigir nada de Deus: existimos para cumprir, humildemente, o papel que Ele nos confia, para acolher os seus dons e para O louvar pelo seu amor. É nesta atitude que o discípulo de Jesus deve estar sempre.

De certas pessoas diz-se que “não dão ponto sem nó”, para descrever o seu egoísmo e as suas atitudes interesseiras. Porque é que fazemos as coisas? O que é que motiva as nossas ações e gestos: o amor desinteressado, ou o interesse pela retribuição?

Pastor pede R$ 21 milhões aos fiéis para pagar dívida de TV

Com voz chorosa, desesperançoso e cabisbaixo, o apóstolo Valdemiro Santiago, líder da Igreja Mundial do Poder de Deus, iniciou nesta semana uma campanha para a arrecadar ao menos R$ 21 milhões para pagar dívidas da igreja, especialmente as referentes ao aluguel de horário do canal 21, do Grupo Bandeirantes.
A igreja arrendou a emissora praticamente por 24 horas por dia e agora está com dificuldades em cumprir a obrigação...
ALÉM DISSO...
Valdemiro afirma que há vários templos com aluguéis atrasados, além de atrasos no pagamento de outros horários locados em rádios e TVs Brasil afora. Um especialista em igrejas, ouvido por esta coluna, que pede para não ser identificado, afirma que dois fatores prejudicaram substancialmente a Igreja Mundial, e que esses fatores ameaçam até a existência da linha evangélica:
Motivo- 1
A tentativa de crescer rápido demais e sem controle algum sobre a contabilidade; ou seja, a igreja contou que podia crescer mais rapidamente até que a Igreja Universal, mas confiou demais na generosidade dos fiéis; acontece que os fiéis (classes C e D, principalmente) já estão com outras dívidas e pararam de colaborar tanto. A Igreja Mundial quis crescer mais e mais rapidamente do que o possível.
Motivo- 2
A guerra deflagrada pela Igreja Universal contra a Mundial, no ano passado. Por meio da Record, a Universal exibiu reportagens que acabaram com a saúde contábil da Mundial, que acabou investigada pelo Ministério Público e, principalmente, pela Receita Federal. A Igreja teve de vender propriedades, gado, se desfazer de templos... Enfim, entrou num verdadeiro gargalo financeiro. Esse gargalo está agora se apertando ainda mais.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

A PALAVRA DO FREI PETRÔNIO. Nº 430. Os dois Franciscos.

Em memória de Frei Caneca

Pedro Pomar - 1974
A 13 de janeiro de 1825 - faz exatamente 150 anos - morria fuzilado em Recife, por ordem terminante de Pedro I, Frei Joaquim do Amor Divino Caneca, grande herói da luta do povo brasileiro pela independência do jugo colonial português, eminente figura de nossa intelectualidade revolucionária, nacionalista.

As classes dominantes relegaram-no ao esquecimento. Chegaram mesmo a escarnecê-lo como fez o ditador Médici, em 1972, ao mandar passear pelas ruas das capitais dos Estados os ossos de Pedro I. Nossos pseudo-liberais temem falar sobre ele. Em contraste, o proletariado revolucionário exalta a sua memória como um dos mais admiráveis exemplos de combatente da causa da libertação nacional e da soberania popular. São raras as pessoas que, como ele, revelaram tal grau de rebeldia militante contra os opressores do país e do povo, tanta intransigência em face dos inimigos, tamanho destemor perante a morte. As lições de sua vida e de sua luta são fontes perenes de inspiração para todos os patriotas e democratas, conservam bastante atualidade.
Frei Caneca nasceu na capital pernambucana, em 1774, quando no mundo feudal surgiam e se desenvolviam as idéias burguesas de emancipação política, os conceitos de pátria e de nação e, quando em terras brasileiras, sob o domínio de Portugal, brotavam os fermentos da autonomia. Era de origem humilde. O apelido que o honrava adveio do fato de, na infância, ter ajudado o pai, um tanoeiro, vendendo canecas. Certamente, por vocação religiosa e pelo desejo de estudar, ingressou na Ordem dos Carmelitas.
Naquele tempo, e durante dezenas de anos depois, a Igreja Católica monopolizava a cultura na Colônia. Para instruir-se e ascender socialmente, os moços das camadas mais pobres da oprimida e acanhada sociedade colonial deviam ordenar-se frades ou padres. Outro recurso era ir estudar em Coimbra, o que só os filhos dos grandes proprietários e senhores de escravos podiam fazer. No entanto, não foi a confissão religiosa que converteu, desde os albores do século XIX, o jovem Frei Caneca num ardoroso partidário da independência do Brasil e dos direitos do povo. Ao contrário, a Igreja, como instituição reacionária, além de possuir muitas propriedades e riquezas, sempre esteve umbilicalmente ligada às classes dominantes, sustentou-as por todos os meios.
A verdade histórica é que, nas jornadas de 1817 e 1824 - as primeiras gloriosas tentativas de nossa revolução nacional e democrática - Frei Caneca e a brilhante falange de seus companheiros, a maioria de procedência igualmente humilde, não representavam na revolução, de maneira alguma, o clero, e sim as forças radicais da sociedade brasileira.
Pertenciam à intelectualidade revolucionária, camada mais avançada da luta libertadora. Eles sentiram, como ninguém, o quanto era intolerável o domínio da metrópole portuguesa, o quanto pioravam as condições de vida do povo. Simultaneamente, recebiam a influência das novas idéias revolucionárias e tomavam conhecimento da vitória da Revolução Francesa de 1789, dos movimentos emancipadores dos Estados Unidos, da América espanhola, do Haiti. Daí a decisão de empunhar com valentia a bandeira da autonomia nacional e das reivindicações liberais burguesas. De modo coerente, passaram a integrar a ala radical do "Partido Brasileiro", da união das correntes patrióticas favoráveis à independência, ala que pregava a liquidação da dinastia dos Bragança, sem regateios nem conciliações prejudiciais à nação.
Em 1822, depois do famoso grito do Ipiranga e do acordo que permitiu a Pedro I aparecer à frente do novo Estado Nacional, a linha da intelectualidade nacionalista, oriunda do clero pobre, chocava-se com a da Igreja oficial. Enquanto esta, já aderida à situação criada, acusava Frei Caneca de indisciplina e sustentava que a autoridade de Pedro I tinha origem divina, ele respondia, denunciando as manobras traidoras do régulo, seu absolutismo e proclamando que a única e verdadeira fonte do poder é o povo.
Não apenas como pensador, mas também por suas qualidades políticas e organizativas, Frei Caneca destacou-se dentre todos os seus companheiros e contemporâneos. Junto com os padres João Ribeiro, Roma, Miguelinho, Mororó e dezenas de outros, foi um dos dirigentes da Revolução de 1817, quando pela primeira vez esteve em mãos de patriotas brasileiros o poder no país.
 
Ao sobrevir a derrota, se bem que não tivesse sido enforcado ou arcabuzado, como alguns daqueles dirigentes, padeceu inomináveis torturas e ficou encarcerado na Bahia até 1821, sob a acusação de ter conclamado o povo à guerra revolucionária e organizado guerrilhas. Efetivamente, assim procedeu, expressando opiniões como as que seguem: "Quando a pátria está em perigo, todo cidadão é soldado, todos devem se adestrar nas armas para rebater o agressor. Não é bastante, que na ocasião do aperto maior, saiam de suas casas com algumas pistolas ou facas, ou outras quaisquer armas, sem disciplina, sem ordem, sem chefe hábil nos negócios da guerra; tal estado de coisas só pode causar a confusão e a desordem. O tempo é de atropelo, devem vosmecês atropelar também a economia de suas ações?" Não sem motivo, tornou-se conhecido, desde então, como o "frade guerrilheiro".
As posições combativas, revolucionárias, nortearam toda a sua vida. Libertado, voltou logo a Pernambuco para participar da deposição das autoridades coloniais e da instauração de um governo provisório provincial até que, no plano nacional, a Assembléia Constituinte, já convocada, indicasse os verdadeiros rumos do novo Estado e da nação.
 
Ao saber que Pedro de Bragança se entronizava como Imperador do Brasil, condicionou seu apoio a esse governante à exigência de que prevalecesse, na Constituição que se elaborava, a vontade soberana do povo. Com tal objetivo, fundou, em fins de 1823, o jornal Tifnis Pernambucano. Defendia a instituição de um regime constitucional, representativo, capaz, segundo ele, de assegurar a independência recém-conquistada. Afirmava que a unidade nacional devia ser baseada na autonomia das províncias, de acordo com as tradições brasileiras e como demonstrava a experiência positiva dos Estados Unidos da América do Norte. Considerava indispensável que o Brasil se constituísse numa federação, unida pelos interesses e pelos sentimentos do povo de todo o país. Percebia que a nação, apesar de jovem, já possuía fortes laços de solidariedade e condições para sobreviver e progredir, percepção que, ainda hoje, certos elementos ditos progressistas não alcançaram. Embora jamais tivesse acreditado no liberalismo de Pedro I, mostrou-se disposto a aceitar o regime monárquico, contanto que a autonomia das províncias fosse preservada, assim como respeitada a soberania popular. Por isso, a dissolução pela força da Assembléia Constituinte encontrou de sua parte firme repulsa. E ao ser informado da imposição da Carta Constitucional, elaborada nos corrilhos palacianos, conferindo todos os poderes a Pedro I, escreveu, indignado, a um amigo: "Não admitimos mais imposturas, conhecemos o despotismo, vamos decepá-lo".
 
A Confederação do Equador, de 2 de julho de 1824, teve em Frei Caneca seu principal cérebro, seu autêntico fundador. A República sonhada englobaria as províncias do Norte, as quais ficariam unidas por uma Constituição, cujas bases ele publicara em seu jornal, na véspera da Revolução. Nesse projeto de Lei Magna, propôs enfaticamente a liberdade política, a igualdade civil, todos os direitos inalienáveis do homem. Estabeleceu itens relativos à liberdade de imprensa e de opinião. Destacou, especialmente, a abolição da escravatura nos seguintes termos: "Todo homem pode entrar a serviço de outro pelo tempo que quiser, porém não pode vender-se, nem ser vendido".
O conteúdo de seu ideário era nitidamente burguês, democrático. Não obstante, pareceu muito radical, bastante avançado para aquele período.
Mas a Confederação do Equador só conseguiu o apoio das províncias da Paraíba e do Rio Grande do Norte. Sem a adesão das demais, sobretudo da Bahia, cujo movimento popular revelara pujança e combatividade na luta contra as tropas do general português Madeira, a nova República duraria pouquíssimos meses. De seu lado, o governo imperial tomara incontinenti medidas para debelar a revolução a ferro e fogo. Cercado por terra e por mar, o governo confederado não pôde manter-se. A derrota deveu-se, fundamentalmente, a certas condições internas adversas da época, ao profundo atraso do país. Diferentemente dos Estados Unidos, onde vencera a Revolução da Independência com sentido democrático, no Brasil existia ainda um forte sistema feudal-escravista, que não deixou surgir nem florescer um núcleo numeroso de colonos livres. Os centros urbanos brasileiros eram então bastante débeis, distantes e dispersos. Além disso, a revolução não interessou direta e profundamente ao grosso da massa de escravos.
Posto que condenasse formalmente a escravidão, não pretendia aboli-la imediata e radicalmente, mas sim de modo gradual. Em suma, por não terem compreendido a importância da participação da grande maioria da população escrava na luta pela independência, os líderes do movimento emancipador de 1817 e 1824 fatalmente seriam esmagados pela reação feudal e escravocrata.
 Frei Caneca não cedeu facilmente. Julgou encontrar no interior de Pernambuco condições políticas e topográficas propícias à continuação da luta. Como não podia deixar de ser, enveredou pelo caminho da resistência armada, recorrendo ao método da guerra de guerrilhas. Mas quase tudo lhe foi hostil. Até uma tremenda seca contribuiu para obstar-lhe os planos. Suas colunas rarearam cada vez mais diante das dificuldades. Havia defecções dos que não tinham igual confiança na vitória. Mesmo sem recursos, passando fome, rompeu diversos cercos, travou alguns combates com vantagens e penetrou no sertão do Ceará, em busca de apoio. Só a 29 de novembro, em decorrência da situação insustentável em que se achava, aceitou a proposta de rendição formulada pelo comandante das tropas imperiais, em troca do respeito pela vida dos guerrilheiros e do compromisso de que o governo não faria vinditas.
 Dessa forma, veio a cair nas mãos de Pedro I o mais intrépido defensor da causa emancipadora e democrática, o patriota que a reação mais temia e odiava.
A Justiça Militar, nomeada a propósito pelo Imperador, empreendeu de imediato seu julgamento sumário. Frei Caneca não procurou justificar-se, pessoalmente; sustentou com bravura suas idéias, seu direito à promover a revolução; não claudicou nem se prestou a qualquer compromisso com os inimigos da pátria e do povo. Compreendia que Pedro I queria vê-lo rápida e severamente castigado para exemplo dos que se atrevessem a levantar-se contra a tirania. Seu comportamento altivo e digno, contribuiu para desmascarar o não cumprimento da promessa de que os prisioneiros teriam suas vidas poupadas. O desassombrado lutador deveria morrer na forca - tal a decisão dos juízes militares, antecipadamente tomada.
Longe de ficar abatido, Frei Caneca, em virtude de sua fibra moral e de suas profundas convicções, revelou-se mais animoso do que nunca. O desprezo pela morte, a consciência de cumprir em qualquer circunstância seu dever de patriota, de sacrificar a vida pelo bem comum, forjaram nele um dos mais belos e íntegros caracteres de homens públicos populares que registra a história brasileira. Cantou tais sentimentos em versos como estes:
"O Patriota não morre:
Vive além da eternidade;
Sua glória, sem renome.
São troféus da humanidade."
Pouco antes de ser fuzilado, ainda compôs outro poema que diz:
"Tem fim a vida daquele
Que a pátria não soube amar;
A vida do patriota
Não pode o tempo acabar"
O episódio final do seu suplício mostra até que ponto ia a sanha da repressão. A agonia arrastou-se praticamente por três dias, nos quais sua figura se agigantou pela coragem, ao passo que a dos seus verdugos se amesquinhou pela crueldade. Desde o dia 10 de janeiro se haviam iniciado os preparativos para o enforcamento. Mas, nesse instante, a Igreja resolveu interceder junto a Pedro I em favor da vida do condenado, solicitando que a pena capital fosse comutada em prisão. O Imperador, além de recusar, ameaçou.
A Igreja desistiu. Dia 13, pela manhã, já no patíbulo, ele foi submetido à degradação canônica, isto é, despido de seus hábitos religiosos e da condição de frade. Entretanto, o preso comum destinado a colocar-lhe o laço no pescoço, negou-se a fazê-lo. Ali mesmo foi pisoteado, surrado. Outros dois presos comuns convocados para a mesma bárbara função, também não a aceitaram. Diante disso, o representante de Pedro I, brigadeiro (como então se chamava ao general) Lima e Silva, optou pelo fuzilamento. Entrementes, Frei Caneca, que fora despertado do sono em que estava mergulhado para subir ao patíbulo, continuava sereno, procurando falar ao povo e auxiliar os carrascos a terminarem com a execução. Até que o ato infame se consumou.
Há 150 anos do holocausto do grande herói popular, cumpre às forças revolucionárias não apenas homenageá-lo como compreender o sentido de suas idéias e de sua luta, assim como continuá-la nas novas condições históricas. Nesse período, ocorreram enormes transformações no mundo e em nosso país. O socialismo venceu em alguns países e avança vitorioso, enquanto o capitalismo está apodrecendo. As contradições sociais e políticas se aguçaram. No Brasil, as forças que se opõem ao progresso, à democracia e à independência nacional já não são senhores de terras e escravistas junto com o colonialismo português, mas sim os latifundiários e a grande burguesia associada ao imperialismo, sobretudo ao norte-americano. Por outro lado, as forças interessadas na revolução são outras, muito mais poderosas. O papel que representam é também diverso do daquele tempo. Agora, apenas uma parte da burguesia, a não-ligada aos interesses estrangeiros e à reação, pode participar da revolução, mas não encabeçá-la. Tampouco a intelectualidade progressista, inclusive a provinda do clero, tem condições de ser a vanguarda revolucionária.
 
A direção da revolução cabe ao proletariado, através de seu Partido marxista-leninista. Nessas circunstâncias, o caráter nacional e democrático da revolução, embora permaneça formalmente o mesmo, ganhou um novo conteúdo. Sob a liderança da classe operária e na base da aliança operário-camponesa, ela será inevitavelmente vitoriosa e abrirá caminho para o socialismo.
Todavia, muitas das idéias e das medidas expostas e propugnadas por Frei Caneca têm atualidade, estão na ordem-do-dia. Igualmente, o caminho revolucionário, a luta armada, e a intransigência que preconizou e revelou são fundamentalmente os mesmos que hoje devemos trilhar e praticar no combate para pôr abaixo a ditadura militar e varrer com a dominação do imperialismo estadunidense.
Honra e glória eternas ao grande precursor da luta do povo brasileiro pela independência e pela democracia!
(Artigo de Pedro Pomar publicado no jornal A Classe Operária, 1974.)

Shalôm!

Frei Ildo Perondi 

             Quando eu estava em Roma escrevendo a minha tese, devia fazer uma análise do termo hebraico “Shalôm”. Não estava contente com as explicações dadas pelos dicionários, que em geral traduziam o termo por “Paz”. Por isso, fui procurar um rabino hebreu, que muito carinhosamente me recebeu.
            - Falar de Shalôm é algo muito importante... – disse-me ele. Talvez seja um dos termos hebraicos mais carregados de sentido e força que temos em nossa língua. É certo que traduzir simplesmente por “Paz” empobrece muito o sentido da palavra original.
            Enquanto ele falava, calmamente, pegou um copo e tomando uma jarra de água, foi colocando no copo muito devagar, deixando soar o borbulhar da água. O copo foi enchendo, e quando mais chegava perto da borda ele ia cuidadosamente derramando ainda água...
            - Veja bem, não cabe mais nada. Nem uma gota de água neste copo. Se eu colocar mais, vai derramar, vai transbordar. Está me entendendo?
            Balancei a cabeça em sentido negativo, olhando para o copo cheio de tal modo que não coubesse mais nada.
            - O Shalôm é isso, irmão meu. É o máximo que pode caber. Quando eu desejo um Shalôm a alguém, eu desejo todo o bem, tudo de bom, tanto bem que mais do que isso é impossível desejar. Estás entendendo?
            - Sim, agora entendi o que é o Shalôm!
            - Não ainda, irmão meu. Para entender bem o sentido do Shalôm é preciso receber o Shalôm; é preciso ter o Shalôm... Posso ver em você perturbações, conflitos internos... Para você ter o Shalôm é preciso que você tenha a harmonia interna, que você equilibre dentro de você as forças, que se sinta bem, que você esteja em harmonia consigo mesmo, que esteja em paz...
            - Agora entendi...
            - Ainda não... Você não está sozinho neste mundo. Você convive com pessoas. As pessoas são importantes na nossa vida. E devemos estar em relação de harmonia com elas. Harmonizar-se com as pessoas que estão perto de nós; harmonizar-se com as pessoas que amamos e queremos bem; harmonizar-se com as pessoas que não gostamos e que às vezes nos fazem mesmo o mal; harmonizar-se com as pessoas que estão longe; harmonizar-se com as pessoas que necessitam de paz, de ajuda, que vivem em dificuldades, que são excluídas, que passam fome, dor, solidão... Quando nos harmonizamos com as pessoas então sim temos o Shalôm.
            - Entendi...
            - Mais um pouco... Não estamos sozinhos no mundo. Vivemos rodeados pelas criaturas de Deus. Você está sentindo a cadeira onde está sentado? Sente o chão onde firma os seus pés? Sente o ar que está respirando? Escute! Aposto que não está ouvindo a beleza do canto do passarinho, o cachorro que late, o grito da vida e da natureza, a suavidade do vento... Estar em harmonia com a Criação, com as criaturas, com a vida... Isso é também ter o Shalôm.
            - Agora estou entendendo...
            - Tenha ainda um pouco de paciência. Irmão meu, você é uma criatura, não o Criador. Como um ser criado, você deve estar em harmonia constante com Deus. O Deus que te amou, e que pensou em ti no momento da Criação. Para ter o verdadeiro Shalôm, você deve estar em sintonia e em plena harmonia com Deus, nosso Criador... Harmonize a tua vida com Ele, deixe que Ele guie os teus passos. E então terás o Shalôm.
            - Acho que nunca vou entender o que é o Shalôm...
            - Não, agora você começou a entender o verdadeiro sentido desta expressão hebraica. Nenhuma palavra das línguas modernas pode traduzir toda a força e o conteúdo do Shalôm da nossa língua mãe. Mas só quando conseguirmos harmonizar dentro de nós estas quatro dimensões é que poderemos dizer que temos o Shalôm; só então é que poderemos desejar verdadeiramente um Shalôm. Estar como um copo cheio onde não cabe mais nada; deixar o outro como um copo repleto.
            E me abraçando, olhando-me nos olhos, e então me desejou Shalôm...
Para Meditação
            Depois de ter retornado ao Brasil, continuei refletindo muito sobre esta conversa com o rabino. Nas minhas reflexões pessoais, na oração meditada, superando a depressão, procurei levar a sério esta questão. E por isso, aos poucos, fui trabalhando dentro de mim estes quatro pontos que aprendi com toda a beleza da mística e da espiritualidade hebraica. Tentei incorporar alguns elementos importantes da espiritualidade cristã e também da experiência de São Francisco de Assis.
            Quando vou à Capela, quando me deito na cama ou quando estou na natureza, procuro criar estas harmonias necessárias. Importante estar em uma posição confortável. Respirar profundamente, deixar o ar entrar dentro de nós, sentir a respiração, sentir a vida dentro de vós, ao nosso redor.
            Buscar primeiro a harmonia interna, comigo mesmo... Talvez o mais difícil dos quatro passos. Dentro de nós temos esses nossos conflitos, essa bipolaridade, marcadas por aquilo que fomos e que somos. Medos e tensões provocadas pelo cansaço, pelo stress da vida moderna... Mas pouco a pouco, recomeçando sempre, no fim se chega a criar essa harmonia, esta paz interior.
            Harmonizar-se com as pessoas com as quais convivemos. Perdoar falhas nossas, aquilo que fazemos contra nós mesmos, contra a harmonia da nossa vida. Perdoar os outros a quem fizemos mal ou sem querer magoamos. Perdoar aqueles que pensamos que nos fizeram o mal. Manter sintonia com as pessoas que queremos bem. Recordar as pessoas que precisam de nossa ajuda, aquelas que sofrem, que estão doentes, nos cárceres, quem está na luta, pessoas perseguidas e maltratadas. Manter a solidariedade, enviar às pessoas mensagens de energia positiva, de Shalôm....
            A harmonização com o mundo ao nosso redor é fundamental. Sentir o que nos cerca, o chão onde pisamos, sentir nossos apoios, o canto da vida, os sons da natureza. Perceber a grandeza do universo criado, olhar para o infinito, sentir a luz e a energia dos astros... sentir-se parte deste grande universo, onde somos tão pequenos e tão importantes.
            E harmonizar a nossa relação com o Deus Criador, do qual recebemos tudo, sobretudo o dom precioso da Vida. Reatar a relação com o Deus Comunidade, com o Deus Trindade: com o Pai, com Jesus nosso Salvador, com o Espírito nosso Consolador e que nos guia e conduz... Rezar, louvar, agradecer... Serenar diante de Deus, reconciliar-se, abrir-se ao seu projeto, deixar-se conduzir por Ele, colocar-se a serviço da Vida e daqueles que mais precisam de nós. Enfim, deixar que seja feita a sua vontade, como nos lembrou Jesus (Mt 6,10; 26,42).
            (OBS. Não é necessário seguir esta ordem, ou seja os quatro momentos. Às vezes pode ser melhor criar paz e harmonia primeiro com a Criação; ou com as pessoas; ou então começar pelo nosso relacionamento com Deus Criador).
            Depois é importante recordar passagens bíblicas que falam de Shalôm, como:
            - “O Shalôm é fruto da justiça” (Is 32,17);
            - “Justiça e Shalôm se abraçarão...” (Sl 85,11)
            - “O Shalôm esteja convosco!” (Jo 20,19.21.26)
            - “Graça e Shalôm da parte de Deus nosso Pai e de Jesus Cristo” (cf. Rm 1,7 e no início da maioria das Cartas paulinas).
            - “Deixo-vos o Shalôm; o meu Shalôm eu vos dou...” (Jo 14,27).
            É certo que esta proposta não exclui a oração comunitária, antes necessita dela, e também da vida em comunidade, pois é só na comunidade que podemos viver e sentir o verdadeiro Shalôm. Mas se estivermos em paz e se pudermos transmitir paz aos outros, com certeza seremos instrumentos de libertação para o nosso povo. Quando estamos com paz e em paz, com o Shalôm, seguramente seremos mais solidários e faremos muito mais e ajudaremos melhor na luta para a construção de uma sociedade mais fraterna e mais justa que tanto sonhamos e buscamos. Uma sociedade nova, sinal do Reino, bela e cheia de paz, cheia do Shalôm de Deus!

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

A PALAVRA DO FREI PETRÔNIO, Nº 426. Sta. Teresinha e o Carmelo.

01 de outubro, dia de Santa Teresinha do Menino Jesus: "A Minha vocação é o amor".

Por Frei Gianfranco Maria Tuveri O.Carm.
 
            Durante este ano muito se há de falar sobre Santa Teresinha do Menino Jesus. Um pouco por toda parte preparam-se celebrações numerosas, pelo mundo afora, para festejar o Centenário da sua morte acontecida no dia 30 de setembro de 1897. Teresa do Menino Jesus, na história deste século, mas sobretudo no coração de tantas pessoas de todas as classes, é tão importante que seria injusto não celebrar esta Centenário. Tais celebrações e iniciativas procurarão pesquisar toda a riqueza da personalidade e da mensagem da Santa de Lisieux.
            Com muita simplicidade apresento aqui um apanhado da sua vida e da sua mensagem, recorrendo à leitura de um texto redigido há cem anos e que conserva intactas toda a sua força e sua luz, um cimo culminante da literatura cristã de todos os tempos, cuja ponta é a expressão: "A minha vocação é o Amor!"
 
1. Uma vida sob o signo do Amor
             "A minha vocação é o amor!" Não é o clarão rápido de uma estrela, que desliza pela noite, mas o final lúcido de uma vida inteira, profundamente marcada pelo selo do amor. Com toques rápidos iremos relembrar algumas passagens da vida de Teresa, como a "Subida da Montanha do Amor".
            Desde a sua chegada a este mundo, Teresa foi cercada de um amor assinalado pela maior ternura. Ela própria o reconhece: "Toda a minha vida o Bom Deus teve o prazer de cercar-me de amor: as minhas primeiras lembranças estão repletas de sorrisos e das mais ternas carícias! Mas se colocou junto a mim muito amor, Ele pôs também no meu coração muito amor, fazendo-o amoroso e sensível e, por isso, eu amava demais a Papai e Mamãe e lhes testemunhava a minha ternura de mil maneiras, pois eu era muito expansiva".
            O dia da sua Primeira Comunhão é um dia de inesquecível amor. Sobre este dia escreverá: "Oh! Como foi doce o primeiro beijo de Jesus à minha alma! Foi um beijo de amor: sentia-me amada e dizia por minha vez: «Amo-vos e entrego-me a vós para sempre». Não houve pedidos, não houve lutas, não houve sacrifícios. Há muito tempo Jesus e a pobre Teresa haviam-se entreolhado e se haviam entendido... Naquele dia já não era mais um entreolhar-se e sim uma fusão, não eram mais dois: Teresa desaparecera como a gota d' água que se perde no seio do oceano".
            Pelo Natal de 1886, Teresa experimentou a força transformante do Amor divino. Eis como ela fala a respeito desta graça: "Num instante o trabalho, que não consegui fazer durante dez anos, Jesus o fez, contentando-se com a minha boa vontade, que nunca me faltou. Como os seus Apóstolos eu podia dizer-lhe: «Senhor, pesquei durante toda a noite e não peguei nada». Mostrando-se mais misericordioso para comigo do que para com os seus discípulos, Jesus mesmo apanhou a rede, lançou-a e a retirou cheia de peixes. Ele fez de mim «pescador de almas», senti um grande desejo de trabalhar na conversão dos pecadores, desejo que não tinha sentido antes tão vivamente. Senti, numa palavra, a caridade entrar no meu coração, a necessidade de esquecer-me de mim mesma para dar prazer, e desde esta hora fui feliz!..."
            No Carmelo, é sobretudo ao pé da cruz que Teresa prossegue na "Subida da Montanha do Amor". A sua correspondência com Celina durante o seu tempo de noviciado traz ressonâncias da dolorosa provação da doença do seu pai e, ao mesmo tempo, ressonâncias do crescimento da sua sede de amor. Qualquer uma das passagens das suas cartas estão inflamadas de amor. Citemos um texto apenas, uma passagem da carta de 15 de outubro de 1889: "Façamos da nossa vida um sacrifício contínuo, um martírio de amor, para consolar Jesus; ele não quer senão um olhar, um suspiro, mas um olhar, um suspiro, que sejam somente para ele! Que todos os instantes da nossa vida sejam somente para ele, que as criaturas não toquem em nós a não ser de passagem... Durante a noite não há nada a fazer senão uma só coisa, na única noite da vida que não virá a não ser uma só vez: e é amar, amar Jesus com todas as forças do nosso coração e salvar almas para ele, para que ele seja amado".
            No seu último retiro, de 7 a 18 de setembro de 1896, Teresa escreve o Manuscrito B. A 8 de setembro, ela comemora na solidão o sexto aniversário do dia em que professou. Parece-me importante ler uma passagem da oração que ela compôs no dia da sua profissão  e foi escrita num bilhete que ela trazia sempre sobre o coração: "Ó Jesus, meu Divino Esposo! Que nunca eu perca a segunda veste do meu batismo. Arrebata-me antes que eu cometa a mais leve falta voluntária. Que não procure e não encontre nunca senão a ti somente; que as criaturas não sejam nada para mim e eu não seja nada para elas, mas tu, Jesus, sejas tudo!... Que as coisas da terra nunca possam perturbar a minha alma, nada perturbe a minha paz; Jesus, eu não te peço senão a paz, e também o amor, o amor infinito, sem outro limite além de ti, o amor que já não seja mais eu mesma e sim tu, meu Jesus!"
            Os anos, em que Paulina foi Priora, foram um período de desabrochamento espiritual e humano para Teresa. "Ó minha Mãe! Foi sobretudo desde o dia abençoado da vossa eleição que eu voei pelos caminhos do amor!"
            Em 1893, Teresa escreveu novamente cartas ardentes de amor à sua irmã Celina: "O meu Diretor, que é Jesus, não me ensina a contabilizar os meus atos; ele me ensina a fazer tudo por amor, a não lhe recusar nada, a estar satisfeita quando me oferece uma ocasião de provar-lhe que eu o amo; mas é na paz, no abandono que isto acontece: é Jesus quem faz tudo e por mim eu não faço nada".
            E em 1895, no Manuscrito A, é assim que Teresa fala dos seus desejos: "Agora não tenho mais nenhum desejo, a não ser o de amar Jesus até à loucura..." Foi no Priorato da sua irmã Paulina e com a permissão dela que Teresa pronunciou o "Ato de Consagração ao Amor Misericordioso". É nos seguintes termos que ela fala a respeito, alguns meses mais tarde: "Este ano, no dia 9 de junho, Festa da Santíssima Trindade, recebi a graça de compreender mais do que nuca quanto Jesus deseja ser amado. Eu pensava nas almas, que se oferecem como vítimas à Justiça de Deus, a fim de desviar, atraindo sobre si, os castigos reservados aos culpados; esta oferta parecia-me grande e generosa, mas eu estava longe de me sentir levada a fazê-la. «Ó meu Deus!» - clamei do fundo do meu coração - «não existirá nada mais do que a vossa Justiça para receber almas que se imolem como vítimas? O vosso Amor Misericordioso não tem ele também necessidade delas?... Por todas as partes ele é desconhecido, rejeitado; os corações, dentro dos quais vós quereis derramá-lo prodigamente, voltam-se para as criaturas, mendigando-lhes a felicidade com a sua mísera afeição, em lugar de se lançarem nos vossos braços e aceitarem o vosso Amor infinito... Oh! Meu Deus! O vosso Amor desprezado vai permanecer só no vosso Coração? Acho que se encontrásseis almas que se oferecessem a vós como Vítimas de holocausto ao vosso Amor, haveríeis de consumi-las rapidamente, acho que ficaríeis feliz a ponto de não poderdes absolutamente reprimir as ondas de ternuras infinitas que em vós se encontram. Se a vossa Justiça gosta de descarregar-se, ela que não se estende a não ser sobre a terra, quanto mais o vosso Amor Misericordioso está desejoso de abrasar as almas, visto que a vossa Misericórdia se eleva até os Céus. Oh! Meu Jesus! Seja eu esta vítima feliz, consumi o vosso holocausto com o fogo do vosso Divino Amor!».
            Minha Mãe querida, vós que me haveis concedido a licença de assim oferecer-me ao Bom Deus, sabeis dos rios, ou antes, dos oceanos de graças que vieram inundar a minha alma... Ah! Depois daquele dia feliz, parece-me que o Amor me penetra e me envolve, parece-me que a cada instante este Amor Misericordioso me renova, purifica a minha alma e nela não deixa traço nenhum de pecado de tal modo que não posso ter medo do purgatório. Sei que por mim mesma não mereceria nem sequer entrar neste lugar de expiação, visto que somente as almas santas podem ter acesso a ele, mas também sei que o Fogo do Amor é mais santificador que o do purgatório, sei que Jesus não pode desejar para nós sofrimentos inúteis e me não inspiraria os desejos que sinto, se não quisesse realizá-los".
            O Ato de Consagração ao Amor Misericordioso é uma forma diversa, implícita ainda, mas não menos expressiva, da descoberta do mês de setembro de 1896: "A minha vocação é o Amor". Aí encontramos, de um lado, os mesmos desejos infinitos; de outro lado, o reconhecimento da pequenez e da impotência, o ato de se apropriar de todos os merecimentos de todos os santos do céu e da terra, o ato de esperança em Deus, que o suscita e lhe dá a segurança de que será atendida. Encontramos aí também a coexistência da possibilidade da experiência do pecado junto à confiança de que bastará um só Olhar do Bem-Amado para que seja transformada em Deus.
            Podemos repassar brevemente o itinerário deste Ato. Teresa começa por falar dos seus desejos infinitos, que não são eliminados pela experiência dos seus limites, mas confirmados pela certeza de que é o próprio Deus quem os suscitou. Então já não fala mais de desejos; baseando-se sobre a ação de Deus, ela daí em diante vai falar de esperança. O amor infinito de Deus não é mais um desejo, mas uma esperança: o que é uma virtude teologal, sinal da ação de Deus na alma, antes de ser movimentação da alma para Deus. Da esperança ela passa enfim para o ato de oferecimento, para a ação, para a expressão de uma vontade que se faz inteiro acolhimento da vontade de Amor de Deus, vontade que a ela se manifestou: "«Quero revestir-me de Jesus Cristo», de sua Justiça e de seu Amor. Não quero nada mais além de vós". E enfim o quer para sempre. É a conclusão do seu Ato de Oferecimento: "Quero renovar este Oferecimento um número infinito de vezes", por toda a extensão do tempo e pelo depois do tempo, pela eternidade. Teresa não quer sair mais deste Amor. É verdade que o Ato, ainda que repetido, é limitado no tempo e no espaço. Mas o Amor que ele encerra é eterno; como Oferecimento ao Amor Infinito este Ato é prelúdio e posse da Eternidade.
 
2-O Manuscrito B
             O Manuscrito B compõe-se de 5 fólios recobertos, na frente e no verso, por uma escrita fina, muito apertada. É à sua irmã Maria do Sagrado Coração que devemos este escrito, como por outro lado o Manuscrito A, coletânea das recordações da infância, foi dedicado à sua irmã Paulina. A Irmã Maria deve muitas vezes ter pedido oralmente a sua irmã (Teresa) para deixar-lhe por escrito algo da seu "pequenino caminho" de confiança e de amor. Quando Teresa está fazendo o seu retiro pessoal, a Irmã Maria lembra-lhe este pedido por meio de um bilhete, que lhe envia no dia 13 de setembro. Nele a Irmã Maria transmite-lhe que alcançou da Madre Priora não somente a licença de lhe escrever, mas também a de Teresa mandar-lhe a resposta. Teresa redige rapidamente o que será chamado Manuscrito B, composto de duas partes: a primeira traz a data de setembro de 1896 (sem o dia), e a segunda foi (pós-) datada de 8 de setembro do mesmo ano (data da profissão).
            Associadas estreitamente a este "tesouro", duas cartas datadas de 17 de setembro seguinte iluminam o Manuscrito B. A primeira apresenta a reação maravilhada de Maria diante da leitura destas páginas, exprimindo a sua alegria, mas também o seu pesar. Do mesmo dia é a resposta de Teresa.
 
2.1 A Carta de introdução
             Teresa acolhe com alegria este pedido que lhe permite falar sobre o Amor, a Ciência do Amor. Tal expressão, palavra de Nosso Senhor a Santa Margarida Maria, encontra-se num livro da época conservado no Carmelo, do qual Teresa se serviu.
            Esta ciência não se encontra nos livros, encontra-se na sua fonte que é Deus. Somente Jesus comunicou-a à sua esposa. Esta ciência não se adquire por meio de grandes obras, mas unicamente pelo abandono e pela gratidão. Está aí a misteriosa escolha da Misericórdia de Deus, que faz o Coração de Jesus exultar de alegria: "Eu vos bendigo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondestes isto aos sábios e entendidos e o revelastes aos pequeninos" (Mt 11,25//Lc 10,21). É neste desígnio divino que Teresa reconhece a sua graça: "Porque eu era pequena e fraca, ele se inclinava sobre mim, instruía-me em segredo sobre coisas do seu amor. Ah! Se os sábios, tendo passado a vida nos estudos, viessem interrogar-me, sem dúvida teriam ficado admirados ao ver uma  criança  de  quatorze  anos  compreender  os  segredos  da perfeição, segredos que toda a ciência deles não lhes foi capaz de  revelar, pois  para  possuí-los  é  necessário ser  pobre de espírito!"
            Teresa vai então responder à pergunta de Maria,  concretamente, falando sobre dois assuntos: o sonho, que Maria já deve conhecer, e a pequena doutrina, da qual Teresa vivia e que, em particular, comunicava às suas noviças, há mais de três anos, estando encarregada do acompanhamento delas.
            Teresa fala do profundo do seu coração estabelecido numa calma e paz profundas, apesar das trevas densas que a rodeiam, às quais faz alusão no início da sua carta: "Não creiais que eu esteja nadando em consolações, - oh não! - a minha consolação é a de não ter nenhuma sobre a terra". Sem dúvida, ela usa de expressões que a Maria poderão parecer exageradas: que Maria não se engane; elas não são exageradas, exprimem a realidade do Amor infinito, que está nela, Amor infinito como o fogo do Espírito Santo.
            Para melhor se expressar sobre estas coisas, Teresa não se dirigirá mais a Maria, vai dirigir-se diretamente a Jesus numa oração ardente. Trata-se de um movimento natural, pois Teresa não vai fazer um discurso abstrato, vai lembrar a Jesus com gratidão o louco amor, do qual pela sua parte é ela o objeto, este amor que arde dentro dela: esta labareda de amor não pode ser nem considerada nem atingida a não ser na oração, que em Teresa nada mais é do que amor. Não há nenhum outro caminho para se chegar ao Amor senão o Amor: é para este caminho que Teresa quer arrastar Maria, sua irmã, e todos nós.
 
2.2 A oração de 8 de setembro
             Esta longa oração, que é o facho de luz do Manuscrito B, é a obra-prima de Teresa, uma das jóias mais belas da literatura cristã. Compõe-se de duas partes, o sonho de 10 de maio e a doutrina da pequenina via. A passagem de uma para a outra é também a passagem do "vós" para o "tu". Passagem que marca uma intensificação de comunhão com Jesus, um crescendo do amor, que se traduz na materialidade da escrita. Na leitura do autógrafo de Teresa podemos constatar a transformação da escrita, em particular, quanto às letras, que evidentemente se engrandecem quando chegamos ao coração desta prece, onde fala sobre a descoberta da sua vocação: "A minha vocação é o Amor".
            Esta passagem do "vós" para o "tu" é o sinal de que Teresa, mais do que nunca, se sente dona de si nesta oração. O "vós" era obrigatório segundo o uso da época. Mas nas suas poesias e nos seus textos mais pessoais, como o bilhete de sua profissão, é o "tu" que prevalece. De um modo espontâneo Teresa tratava a Jesus de "tu" na sua oração. O uso de "tu" neste texto o diferencia claramente dos outros, onde ela sempre usa o "vós".
            É caracterizada pelo amor esta oração do Manuscrito B, um amor cheio de audácia, um amor que não tem outro objeto senão a Pessoa de Jesus, pois é dele que ela recebe o amor. "Duma parte ela sempre pede a Jesus o dom do seu amor, mas ao mesmo tempo este amor é por ela recebido, por ela possuído, ela o diz muitas vezes apaixonadamente... Ousa declarar seu amor a todo instante, dizendo a Jesus "Eu te amo", "Meu Bem-Amado", "Meu único Amor", "Tu a quem amo unicamente" etc. Este ato de amor, este "Eu te amo" é profundeza de toda a prece de Teresa".
            No seu "Porque te amo, ó Maria" Teresa dirá as razões do seu amor por Maria. "Na sua oração a Jesus, a teologia de Teresa vai além: tudo se detém num puro e simples "Eu te amo", sem que seja necessário descer ao "Porque te amo" nem ao expor as razões do amor".
 
2.3 O sonho
             Teresa, em sonho, vê três carmelitas. Numa delas Teresa reconhece a Venerável Madre Ana de Jesus, que a toma debaixo do seu véu e lhe mostra o seu rosto celestial iluminado por uma luz inefável. "Vendo-me tão ternamente amada, tive a coragem de pronunciar estas palavras: «Ó minha Mãe! Eu vos suplico, dizei-me se o Bom Deus me deixará por muito tempo na terra!... Ele virá buscar-me logo?...» Sorrindo com ternura, a Santa murmurou: «Sim! logo, logo... Eu vo-lo prometo» - «Minha Mãe - acrescentei eu - dizei-me ainda se o Bom Deus não me está pedindo algo mais do que as minhas pobres açõezinhas e os meus desejos. Ele está contente comigo?» As feições da Santa tomou um expressão incomparavelmente mais carinhosa do que da primeira vez que me havia falado. O seu olhar e as suas carícias eram a mais doce das respostas. Contudo me disse: «o Bom Deus não exige de vós nenhuma outra coisa. Ele está contente, muito contente!...» Após ter-me acariciado com muito amor mais do que o tenha feito alguma vez ao seu filhinho a mais terna das mães, eu a vi afastar-se..."
            No sorriso e no gesto da Madre Ana de Jesus há uma superposição teologicamente exata entre o sorriso de Maria e o sorriso da Igreja do Céu. Nos dias da infância de Teresa, Maria tinha vindo sorrir-lhe e curou-a da sua misteriosa doença. Nos dias da sua paixão, da sua noite na provação de uma nova doença associada às tentações contra a fé, a Igreja do Céu vem sorrir-lhe e encorajá-la na sua caminhada, dando-lhe a consoladora segurança de que Deus está muito contente com ela.
            O Céu, objeto das tenebrosas tentações contra a fé, ilumina-se de amor. Teresa compreende assim que o amor dos habitantes do Céu é muito grande, compreende que é amada mais do que poderia pensar;  a  revelação  deste amor  faz  com que o seu coração se derreta de amor. Vem a conclusão desta primeira parte: "Oh Jesus! A tempestade não trovejava ainda, o céu estava calmo e sereno... Eu cria, sentia que existe um Céu e que este Céu está povoado de almas que me querem bem, que olham para mim como sua filhinha..."
 
2.4 A pequena doutrina: Os desejos infinitos
             A segunda parte desta oração introduz-nos na exposição da sua pequena doutrina, sob o tema dos seus grandes desejos: "Oh meu  Bem-Amado!  Esta graça não era mais do que o prelúdio da graças maiores, com que tu querias cumular-me: deixa-me, meu Amor único, relembrá-las a ti hoje... hoje o sexto aniversário da nossa união. Ah! Perdoa-me, Jesus, se falo desarrazoadamente ao querer redizer os meus desejos, as minhas esperanças, que tocam ao infinito; perdoa-me e cura a minha alma, concedendo-lhe o que ela está esperando!"
            A palavra "infinito", censurada pelo teólogo, no seu Ato de Consagração ao Amor Misericordioso, retorna aqui com toda força. No que vem depois Teresa ainda se esforçará por utilizar outras expressões, como "desejos maiores que o universo"; consideramos como um esforço para exprimir com outras palavras as realidades do seu coração, que somente a palavra "infinito" podia satisfazer.
            O outro termo que Teresa utiliza para exprimir o caráter extremo destas realidades é a palavra "loucura", loucura de Teresa e loucura de Jesus: "Ó meu Jesus! a todas estas minhas loucuras que é que tu vais responder?... Haverá uma alma menor, mais impotente que a minha!... Contudo, por causa mesmo da minha fraqueza, tu te comprouveste, Senhor, em realizar os meus desejinhos infantis, e hoje queres satisfazer a outros desejos maiores do que o universo..." E mais adiante: "Ó Jesus, deixa-me dizer-te que o teu amor vai até à loucura..."
            "Assim os desejos infinitos de Teresa, fundamentalmente, não são nada mais do que o multiforme desejo de amar Jesus totalmente, infinitamente. Nós o vimos, era a oração de Teresa no dia 8 de setembro de 1890, dia da sua Profissão. Seis anos mais tarde, esta louca oração foi atendida ao pé da letra; para darmos conta disto é preciso considerar agora a extraordinária descrição que Teresa faz deste desejo de amar Jesus de todas as maneiras possíveis".
            Leiamos agora este texto admirável que todo mundo conhece: "Ser tua esposa, ó Jesus, ser carmelita, ser pela minha união contigo, mãe das almas, deveria ser suficiente para mim... não é assim, porém... Sem dúvida, estes três privilégios bem que são a minha vocação, Carmelita, Esposa e Mãe, contudo sinto em mim outras vocações, sinto-me a vocação de Guerreiro, de Padre, de Apóstolo, de Doutor, de Mártir, enfim, sinto a necessidade, o desejo de executar por ti, Jesus, todas as obras mais heróicas... Sinto na minha alma a coragem de um Cruzado, de um Zuavo Pontifício, quereria morrer no campo de batalha pela defesa da Igreja. Sinto em mim a vocação de Sacerdote: com que amor, ó Jesus, eu te carregaria nas minhas mãos, quando, à minha voz, tu descesses do Céu. Com que amor dar-te-ia às almas!... Mas - pobre de mim! - por mais que deseje ser Padre, admiro e invejo a humildade de São Francisco de Assis e sinto em mim a vocação de imitá-lo, recusando a sublime dignidade do Sacerdócio.
            Oh!  Jesus!  Meu amor,  minha vida...  como aliar estes contrastes? Como realizar os desejos da minha pobre pequenina alma? Ah! Apesar da minha pequenez, eu gostaria de iluminar as almas como os Profetas, os Doutores, tenho a vocação de ser Apóstolo... gostaria de percorrer a terra, pregar o teu nome e plantar no chão infiel a tua Cruz gloriosa, mas, ó meu Bem-Amado, uma missão sozinha não me seria suficiente, eu quereria num mesmo tempo anunciar o Evangelho nas cinco partes do mundo e até às ilhas mais afastadas. Eu quereria ser missionária não apenas durante alguns anos, mas quereria tê-lo sido desde a criação do mundo e o ser até à consumação dos séculos... Mas eu quereria acima de tudo, ó meu Bem-Amado Salvador, quereria derramar o meu sangue por ti até à última gota... O Martírio, eis o sonho da minha juventude, sonho que veio crescendo comigo sob os claustros do Carmelo...  Mas  ainda    eu  sinto  que  o  meu sonho é uma loucura, pois não conseguiria limitar-me a desejar um gênero único de martírio. Para satisfazer-me precisaria de todos... Como tu, meu Esposo Adorado, eu quereria ser flagelada e crucificada. Quereria morrer esfolada como São Bartolomeu. Como São João (Evangelista) eu quereria ser mergulhada no óleo fervendo, eu quereria sofrer todos os martírios infligidos aos mártires... Com Santa Inês e Santa Cecília eu quereria apresentar o meu pescoço à espada e como Joana d' Arc, minha irmã querida, eu quereria em cima da fogueira murmurar o teu nome, ó Jesus. Ao imaginar os tormentos que serão a sorte dos cristãos no tempo do Anticristo, sinto estremecer o meu coração e eu quereria que estes tormentos fossem reservados para mim... Jesus, Jesus, se eu quisesse escrever todos os meus desejos, seria necessário tomar emprestado o teu Livro da Vida: nele estão relatados todos os atos de todos os Santos e estes atos quereria eu tê-los praticado todos por ti".
            "Os desejos infinitos de Teresa, rigorosamente falando, são impossíveis: como mulher é impossível que ela seja padre; como carmelita enclausurada, é impossível que ela seja missionária no exterior. Mas há também uma impossibilidade metafísica naquilo que ela deseja: é o seu desejo de transcender os limites do espaço e do tempo, de transcender a distinção entre o um e o múltiplo. Teresa não deveria contentar-se com um lugarzinho bem pequenino na História da Salvação, no espaço e no tempo? Estar contente por não ter senão uma parte pequena na santidade de todos os outros Santos? Desejando ser missionária «nas cinco partes do mundo» ao mesmo tempo, tê-lo sido «desde a criação do mundo» até «a consumação dos séculos», Teresa deseja propriamente o infinito tal como se exprime através dos divinos atributos de imensidão e eternidade. Os seus desejos são literalmente «maiores do que o universo», posto que abarcam na dimensão de Deus, para lá do espaço e do tempo, a totalidade do universo, a totalidade do universo da santidade".
            "Ó meu Jesus, que é que vais responder a todas as minhas loucuras? Haverá uma alma mais pequenina, mais impotente do que a minha?!...  Contudo,  por  causa  mesmo  da  minha  fraqueza  te comprouveste, Senhor, em cumprir os meus desejinhos infantis e queres hoje realizar outros desejos maiores do que o universo... Durante a minha oração, quando os meus desejos me faziam sofrer um verdadeiro martírio, abri as epístolas de São Paulo a fim de procurar alguma resposta. Os Capítulos 12 e 13 da primeira Carta aos Coríntios caíram debaixo dos meus olhos. Li aí, no primeiro, que não podem todos ser apóstolos, profetas, doutores etc... que a Igreja se compõe de membros diferentes e que o olho não poderia ser ao mesmo tempo a mão".
            "Se Teresa não tivesse sido animada pela força do seu amor, ter-se-ia contentado com esta primeira resposta da fé; a sua busca não teria ido mais longe. Ora o amor a obriga a continuar na sua busca...  A tensão  extrema  da  busca  é  admiravelmente evocada quando Teresa se compara a Maria Madalena na manhã da Páscoa; Teresa não procura a não ser o próprio Jesus e, nesta primeira fase da sua procura, nada encontrou ainda a não ser o túmulo vazio. Mas, por amor, como Madalena, Teresa insiste na sua procura. Assim como Madalena se inclinava junto ao túmulo, é preciso que Teresa se abaixe totalmente num derradeiro ato de humildade, que é ato supremo de amor, pois «o Amor, para que seja plenamente satisfeito, é necessário que se abaixe, que se abaixe até o nada»".
            "A resposta era clara, mas não satisfazia aos meu desejos, não me dava a paz. Como Madalena, inclinando-se sempre junto ao túmulo vazio, acabou por encontrar aquele que procurava, assim, abaixando-me até às profundezas do meu nada, elevei-me tão alto que consegui alcançar a minha meta... Sem perder a coragem, continuei a minha leitura, e esta frase me deu alívio: «Procurai ardorosamente os dons mais perfeitos, mas vou mostrar-vos ainda um caminho mais excelente». E o Apóstolo explica de que modo  todos os dons, mesmo os mais perfeitos, nada são sem o Amor. Que a Caridade é o caminho excelente que conduz até Deus com segurança. Enfim havia eu encontrado o repouso...
            Contemplando o Corpo Místico da Igreja, não me reconhecera em nenhum dos membros descritos por São Paulo, ou antes, pretendi reconhecer-me em todos... A Caridade entregou-me a chave da minha vocação. Compreendi que, se a Igreja tinha um corpo composto de membros diferentes, o mais necessário, o mais nobre de todos não lhe faltaria, compreendi que a Igreja tinha um Coração e que este Coração era ardente de Amor. Compreendi que somente o Amor fazia agir os membros da Igreja, que se o Amor viesse a se extinguir, os Apóstolos não anunciariam mais o Evangelho, os Mártires se recusariam a derramar o seu sangue. Compreendi que o Amor encerrava todas as Vocações, que o Amor era tudo, que ele abraçava todos os tempos e todos os lugares... numa palavra, que o Amor é eterno!...
            Então, no excesso da minha alegria delirante exclamei dentro de mim mesma: «Ó Jesus, meu Amor, a minha vocação encontrei-a enfim, a minha vocação é o Amor!... Sim, encontrei o meu lugar; ó meu Deus, fostes vós que o destes a mim... no Coração da Igreja, minha Mãe, serei o amor... assim serei tudo... assim o meu sonho será realizado!!!...»"
            Podemos entender agora a profundidade desta expressão de Teresa: "A minha Vocação é o Amor!" Não se trata de um vago sentimento ou de uma atitude de benevolência universal. Este Amor é a Caridade Teologal, como, aliás, no texto de São Paulo, onde Teresa foi haurir. Este Amor é o próprio Deus em nosso coração. Este Amor, que é o próprio Deus em nosso coração, é a vocação de Teresa. É nele que Teresa pode aspirar ao Infinito, ultrapassar todos os limites para deixar transbordar o Amor por todos os tempos e por todos os lugares.
 
2.5 As duas parábolas da pequenez
             Este amor propriamente infinito está no coração, não apenas da finitude, mas da pequenez e do nada. Teresa serve-se de duas parábolas para enunciar esta pequenez. A primeira apresenta-nos uma criança que vai lançando flores, expandindo os seus perfumes e com voz argentina cantando o cântico do Amor. Este Amor, que tem um valor infinito, dará valor infinito a todas as coisas pequeninas. É desta maneira que ela pode visualizar que o Amor é a alegria dos eleitos, a consolação dos sofredores, a força dos combatentes.
            A segunda parábola sobre esta desproporçãao entre aquela imensidão do Amor e a pequenez da criatura humana é a imagem da avezinha débil, que tem em si os olhos e o coração da águia, mas não tem as suas asas poderosas. Não consegue impelir o seu vôo até às alturas, mas os seus olhos e o seu coração nem por isso deixam de permanecer fixos no Sol Divino. E se por um instante se esquece de exercer o seu "ofício de amor", pouco depois o retoma e se apressa em contar a sua miséria, pois, graças ao seu abandono e confiança, acha que pode atrair plenamente o Amor daquele, que não veio para os justos e sim para os pecadores. A avezinha sabe que sozinha nunca poderá elevar-se até às regiões das águias, contudo não cessa de esperar por isso. Apaixonada de um louco amor, encontra o meio de chegar até lá: "A minha loucura  consiste em suplicar às Águias, minhas irmãs, que me alcancem o favor de voar até o Sol do Amor com as próprias asas da Águia Divina".
            "Detenhamo-nos nesta última frase: (...) a perfeição do amor que Teresa deseja atingir, a caridade teologal no seu ponto culminante, não será ela quem vai realizá-la, Teresa vai deixar agir as próprias asas da Águia Divina, isto é, as forças, o poder, o amor do próprio Deus. O amor que está em Deus, que é Deus, coloca-se no lugar do amor de Teresa, toma o seu lugar, ama no seu lugar". Mais tarde Teresa usará de uma imagem menos poética, a imagem do elevador, para enunciar a mesma realidade: a poderosa  ação  de  Deus  em  nós.  "As duas imagens concordam no essencial: tentam fazer-nos compreender o que Teresa quer dizer, e que constitui a sua vida: o seu louco amor por Deus, a caridade que deve ser uma amizade entre ela e Jesus, não é Teresa quem a gera, é Deus! Para voar rumo ao Sol do Amor, são as asas da Águia que agem. Teresa não é apenas ajudada; ela, por assim dizer, é substituída, nada mais faz do que deixar-se levar, ela deixa a grande ave agir em seu lugar. Para subir a escada, o elevador não faz mais do que ajudar Teresa a subir os degraus, como outrora pôde fazê-lo a sua mãezinha: o elevador sobe no lugar dela ou, se o quisermos, ela toma lugar nele.
            Em linguagem teológica - se é permitido traduzir os textos de Teresa para ver neles uma "doutrina" - pode-se dizer: "Quando a caridade atinge o seu ponto culminante de perfeição, já não é mais o coração humano que age para amar, é Deus mesmo, e como é Deus mesmo quem é amado, pode-se concluir que numa alma humana, que pratica um ato de caridade perfeita, Deus está amando a Deus. A alma então deixa Deus agir, como se Deus lhe dissesse: «deixa-te agir» ou «deixa-me agir". O ato de caridade não é mais unicamente um ato criado por Deus assim como todos os outros nossos atos, é um ato que participa da divina atividade, é um ato que é Deus quem faz.
            Que pode então a alma fazer? O caminho que permite o amor infinito é o caminho da pequenez. Por isto, "é preciso que eu permaneça pequena, que me torne pequena cada vez mais", escreverá Teresa no Manuscrito C. Mas não nos enganemos!... A pequenina via nada tem de um tranqüilo passeio. "Deixar-se fazer por Deus não se parece em nada com o «deixar ir» dos preguiçosos. Deixar o lugar todo para Deus numa vida representa um «trabalho», de que poucos são capazes. O esforço interior, que se deve fazer para deixar Deus agir, para abandonar-se totalmente em vez de se enrijecer, muitos sabem que não é fácil. Só o amor, com a fé, pode acabar com o orgulho. E só um amor grande pode levar a consentir afinal na pequenez. Teresa um dia confessa: «Não me recordo de lhe ter recusado nada de tudo quanto ele me pediu»".
            A expressão extrema desta pequenez é o holocausto, a hóstia sacrificada e reduzida ao nada: "Sim, para que o Amor se satisfaça inteiramente, é necessário que se rebaixe até o nada e que transforme em fogo este nada". Esta pequenez extrema atrai irresistivelmente o Coração de Jesus, visto que ela reside em criaturas que se abandonam com inteira confiança à infinita misericórdia.
            Teresa termina estas páginas com uma derradeira intercessão; solicita a Jesus uma legião de pequeninas almas, vítimas de amor, com a mesma vocação universal igual à sua. Sendo o Amor a vocação delas, essas pequeninas almas terão elas também de amar o Coração de Jesus sedento de Amor. E assim como Teresa, elas podem encher de alegria as almas do Céu, aliviar o sofrimento das almas do Purgatório e reconfortar no seu combate as almas da terra.
             Entregar-se como vítima de amor é fazer um ato de perfeito amor, pois é um ato de amor a Deus e de amor ao próximo ao mesmo tempo, segundo a medida do Coração de Deus, que nos concede desejar e poder pôr em prática estas diligências sobre o amor. "Suplico-te inclinar os teus olhos divinos sobre um número enorme de pequeninas almas... Eu te suplico que escolhas uma legião de pequeninas vítimas dignas do teu AMOR!..."
 
3. A objeção da sua irmã Maria e a resposta de Teresa
             Irmã Maria do Sagrado Coração devora admirada estas páginas da sua irmãzinha. Fica seduzida por um tal amor, mas também ainda  distante de compreender e aceitar o seu dinamismo. Sente-se atraída por este fogo, que arde no coração de Teresa. É envolta nestes sentimentos que escreve outra carta à sua irmã, contando-lhe a sua alegria, mas também a sua pena de se ver muito distante destes "desejos infinitos", que habitam no coração de Teresa.
            "Irmãzinha querida, li as vossas páginas ardentes de amor por Jesus; a vossa madrinhazinha está muito feliz por ser dona deste tesouro e muito agradecida à sua filhinha querida, que lhe abriu assim os segredos da sua alma. Oh! Bem que eu teria muito a vos dizer a respeito destas linhas marcadas com o selo do amor. - Uma  palavra  apenas  no  que  me  diz respeito. Como do jovem do Evangelho, um certo sentimento de tristeza apoderou-se de mim diante dos vossos desejos extraordinários de martírio. Eis aí bem clara a prova do vosso amor; sim, vós o possuís, o amor, mas eu! Nunca, de maneira nenhuma; vós não me fareis crer que eu possa atingir a esta meta desejada. Pois eu temo tudo isto que vós amais.
            Eis que está aí uma boa prova de que não amo Jesus como vós. Ah! Vós dizeis que não fazeis nada, que sois uma pobre avezinha mirrada, mas os vossos desejos por que coisa os calculais? O Bom Deus os olha como obras.
            Não posso falar disto convosco mais prolongadamente: comecei estas palavrinhas esta manhã e não tive um minuto para terminá-las; são cinco horas. Gostaria muito que dissésseis por escrito a vossa madrinhazinha se ela pode amar a Jesus como vós. Mas duas palavras somente, pois o que tenho comigo é bastante para a minha felicidade e meu tormento. Para minha felicidade, ao ver a que ponto sois amada e privilegiada; para meu tormento, ao pressentir o desejo que tem Jesus de colher a sua florzinha querida! Oh! Bem que eu tinha vontade de chorar quando li estas linhas que não são da terra, mas um eco do Coração de Deus... Quereis que vos diga? Pois bem! Vós estais possuída pelo Bom Deus, mas possuída como se diz... não absolutamente como os maus são possuídos pelo vilão. Gostaria muito de ser possuída eu também pelo Bom Jesus. Mas eu vos amo tanto que me alegro mais do que tudo vendo-vos mais privilegiada do que eu. Uma pequena palavrinha para a sua madrinhazinha".
            No mesmo dia Teresa responde à sua irmã. Faz-lhe o convite para ler com mais atenção "a história da sua avezinha". Esta carta de Teresa é um dos textos mais potentes sobre a pequenez como pobreza espiritual.
            "Minha Irmã querida, não me sinto embaraçada em vos responder... Como podeis perguntar-me se é possível amar o Bom Deus como eu o amo?... Se tivésseis compreendido a história da minha avezinha, vós não me faríeis esta pergunta. Os meus desejos de martírio não são nada, não são eles que me dão a confiança ilimitada que sinto no meu coração. São as riquezas espirituais, para dizer a verdade, que fazem alguém injusto, quando nelas se repousa complacentemente e quando se crê que elas são alguma coisa de grande... Estes desejos são uma consolação, que Jesus às vezes concede às almas fracas como a minha (e tais almas são numerosas), mas quando ele não dá esta consolação é uma graça de privilégio - lembrai-vos destas palavras do Padre (Pichon): «Os Mártires sofreram com alegria, mas o Rei dos Mártires sofreu com tristeza». Sim! Jesus disse: «Meu Pai, afastai de mim este cálice!» Irmã querida, como podeis falar depois disto que os meus desejos são a marca do meu amor?... Ah! Bem sinto que não é nada disto que na minha alma agrada ao Bom Deus: o que lhe agrada é me ver amar a minha pequenez e a minha pobreza, é a esperança cega que deposito na sua misericórdia... Eis aí o meu único tesouro. Madrinha querida, por que não seria vosso também este tesouro?...
            Vós  não  estais  pronta  a  sofrer  tudo  quanto o Bom Deus quiser?  Sei  bem  que  sim: então, se  desejais  sentir  alguma alegria, ter atração pelo sofrimento, é a vossa consolação que estais procurando, pois quando se ama alguma coisa o sofrimento desaparece. Asseguro-vos que se caminhássemos juntas para o martírio com as disposições em que nos encontramos, vós teríeis um grande merecimento e eu não teria nenhum, a menos que praza a Jesus mudar as minhas disposições.
            Ó minha irmã querida, eu vos rogo isto: «Compreendei a vossa filhinha, compreendei que para amar Jesus, ser a sua vítima de amor, quanto mais alguém for fraco, sem desejos nem virtudes, tanto mais estará preparado para as operações deste Amor Devorador e Transformante»... Um único desejo de ser vítima basta, mas é preciso consentir em permanecer sempre pobre e sem forças e aqui está o difícil, pois «O verdadeiro pobre de espírito onde encontrá-lo? É preciso procurá-lo bem longe», disse o salmista... Não disse ser preciso procurá-lo entre as grandes almas, mas «bem longe», quer dizer, na baixeza, no nada... Ah! Fiquemos bem longe de tudo o que brilha, amemos a nossa pequenez, gostemos de não sentir nada, então seremos pobres de espírito e Jesus virá buscar-nos: por mais longe que estejamos transformar-nos-á em chamas de amor... Oh! Como gostaria de poder fazer-vos compreender o que eu sinto!... É a confiança e nada mais do que a confiança que nos deve levar até o Amor..."
            A resposta de Teresa é de uma clareza surpreendente. Não é o desejo do Martírio que faz a grandeza do Amor de Teresa, isto não é senão uma consolação que Jesus concede às almas fracas como a sua. O que faz ser grande o amor é unicamente o abandono, é a confiança cega em Jesus e nada mais, é isto que nos leva ao Amor. Por isso os grandes desejos podem tornar-nos injustos, podem ser um obstáculo, pois próprio do amor é humilhar-se.
            É importante nada ter: quanto mais formos fracos, sem desejos nem virtudes, tanto mais estaremos preparados para as operações do Amor. Tenhamos gosto de permanecer pequenos. Jesus virá buscar-nos e transformar-nos em chamas de amor, por mais distantes que estejamos. Cheios de confiança, não teremos mais do que expor-nos aos seus raios benéficos, deixar-nos dourar pelo seu fogo divino, firmes na confiança, quando não o estamos vendo, quando o sentimos arder e quando em qualquer lugar nos acontece o mal.
 
Conclusão
             No mês de fevereiro de 1895, Teresa havia escrito uma poesia, que brotou de um só jacto durante os longos momentos de adoração diante do Santíssimo Sacramento, antes da sua entrada na Quaresma. Trata-se de uma declaração de amor, que preludia o seu Ato de Consagração ao Amor Misericordioso, mas contém ainda o anúncio da sua morte próxima. A palavra "Amor" retorna aí 35 vezes, é o estribilho dos 120 versos da poesia. Encontramos aí a sua convicção de ser chamada para o amor e reconhecer no Amor a vocação que Deus lhe deu para a vida como para a morte e, ouso dizer, para depois da morte. Teresa recebeu de Deus a missão de Amar e de fazer amar o Amor, de ensinar isto aos outros por meio do seu pequenino caminho. Devemos-lhe o título de "Doutor do Amor". Desejamos que este título de Doutor lhe seja enfim reconhecido pelo magistério da Igreja, no ano centenário da sua morte. Gostaria de terminar este encontro convosco, lendo os últimos versos da poesia "Viver de Amor". Nela, não somente a vida, mas a morte também é um ato de amor. A morte não escapa à sua Vocação de Amor, a morte é o seu feliz coroamento.
 
                        "Morrer de Amor, eis a minha esperança:
                        Quando vir quebrados os laços meus
                        Será meu Deus a Grande Recompensa.
                        Outros bens não quero possuir,
                        No seu Amor abrasada quero estar,
                        Quero vê-lo, a ele sempre unir-me.
                        Eis o meu Céu... Eis o meu destino:
                        Viver de Amor!!!..."
 
 
Artigo publicado em Près de la Source  Les Grands Carmes en France  Bourges  Janvier - Février - Mars   1997  /  nº 4