Familiares de quem morreu costumam crer
em algum tipo de transcendência, e que a pessoa continua existindo em algum
lugar. Por isso, cultivam a individualidade de quem se foi, assinala Fábio
Augusto Steyer
Por: Márcia Junges
De
acordo com o historiador e jornalista Fábio Augusto Steyer, “as relações do
homem com a morte (ou as atitudes humanas diante dela) presentes nos cemitérios
das cidades gaúchas Santo Antônio da Patrulha e Caraá, podem ser observadas e
analisadas a partir dos epitáfios, objetos colocados nos túmulos, arquitetura
tumular, estatuária, disposição espacial dos cemitérios, entre muitas outras
coisas”. Ele destaca que, em larga medida, existe uma postura de negar a morte
“como fim último da existência, a partir da necessidade de crença em algum tipo
de transcendência”. Acontece, também, “a afirmação da individualidade do morto.
As pessoas querem acreditar que o morto continua existindo em algum lugar,
depois da morte, e mantendo a mesma individualidade que tinha na terra”. As
afirmações fazem parte da entrevista exclusiva concedida por Steyer à IHU
On-Line, por e-mail.
Steyer
é graduado em Jornalismo, Letras e História, pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Pela mesma instituição, é especialista
em Produção Cinematográfica e mestre em História. Em seu doutorado em Letras,
na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), defendeu a tese A estrada
perdida de Telmo Vergara. De sua produção bibliográfica, citamos: Cinema,
imprensa e sociedade em Porto Alegre - 1896-1930 (Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001)
e Ser disperso (Porto Alegre: WS Editor, 2003). Na obra Cemitérios do Rio
Grande do Sul: arte, sociedade, ideologia (2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS,
2008), organizada por Harry Rodrigues Bellomo, colaborou com o capítulo
“Manifestações antropológicas da morte em alguns cemitérios do Rio Grande do
Sul”.
IHU On-Line - Quais são as
representações e manifestações antropológicas da morte que você detectou com
sua pesquisa em cemitérios gaúchos?
Fábio
Steyer - As manifestações são as mais variadas, e muitas diferenças e
semelhanças podem ser encontradas nas diferentes regiões do estado. Para sua
análise, se deve levar em conta principalmente as características culturais de
cada região, que envolvem questões de imigração (alemã, italiana, polonesa
etc.), religiosas, entre outras. De qualquer forma, as relações do homem com a
morte (ou as atitudes humanas diante dela) presentes nos cemitérios podem ser
observadas e analisadas a partir dos epitáfios, objetos colocados nos túmulos,
arquitetura tumular, estatuária, disposição espacial dos cemitérios, entre
muitas outras coisas.
HU On-Line – O que as inscrições
tumulares revelam sobre as concepções de morte do homem contemporâneo?
Fábio
Steyer - A postura predominante é de negação da morte como fim último da existência,
a partir da necessidade de crença em algum tipo de transcendência
(especialmente a religião cristã, com seus preceitos) e da afirmação da
individualidade do morto. As pessoas querem acreditar que o morto continua
existindo em algum lugar, depois da morte, e mantendo a mesma individualidade
que tinha na terra. Como já disse Edgar Morin,
existe uma necessidade antropológica da parte do homem em acreditar que
a morte não é o fim de tudo. Mesmo que não exista consenso sobre seu real
significado. Dessa forma, vemos inscrições que supervalorizam a biografia do
morto, destacando apenas suas qualidades, e nunca seus defeitos, além de
aspectos marcantes de sua vida, como a profissão, por exemplo. Você nunca vai
encontrar uma inscrição que diga que fulano traía a mulher, batia nos filhos.
Mas sempre que foi bom marido, pai zeloso. Além disso, os epitáfios normalmente
têm a função antropológica de “tranqüilizar” a família, dizendo que o morto
está bem, em algum lugar da eternidade. É muito comum um tipo de epitáfio em
primeira pessoa, como se o próprio morto estivesse falando com a família e a
tranqüilizando. Também há epitáfios em que a família se dirige ao morto, como
que estabelecendo algum tipo de “comunicação” com ele. Faz parte dessa nossa
necessidade antropológica para lidar com a morte, manipulando nossos mecanismos
de memória.
IHU On-Line – Como essas inscrições
tumulares se relacionam com a preservação da memória do falecido?
IHU On-Line – Quais são as diferenças
entre os túmulos de crianças de Santo Antônio da Patrulha, no Rio Grande do
Sul, e os de adultos? Há peculiaridades
entre as formas de marcar a memória do falecido se ele é adulto ou criança?
IHU On-Line – Nesse sentido, como a
morte é interpretada por determinadas culturas, como, por exemplo, a gaúcha?
Fábio
Steyer - Seja numa concepção cristã mais tradicional ou mais frouxa, temos essa
necessidade antropológica de negar a morte e crer em algum tipo de
transcendência, mantendo a individualidade do morto. Isso é a base de tudo. O
afrouxamento de que falo diz respeito a um certo desligamento dos valores cristãos
mais tradicionais. Assim, quanto mais recentes os túmulos, mais comum é vermos
menos epitáfios com textos bíblicos ou referências aos preceitos cristãos, e
mais epitáfios que valorizam a individualidade do morto, a sua biografia, ou
formas mais individuais de ligação com o lado religioso e espiritual. Além
disso, os símbolos cristãos (estátuas de santos e anjos, símbolos como a palma,
a pomba e tantos outros) têm seu significado original esvaziado, sendo para as
famílias muito mais apenas adornos para os túmulos do que símbolos ligados ao
cristianismo e sua visão de vida e morte.
HU On-Line - Alguns estudiosos afirmam
que o homem contemporâneo posterga e nega a morte ao recorrer a expedientes que
o mantém sempre jovem. Há uma fuga da morte em nossos tempos?
Fábio
Steyer - Vou citar mais um exemplo que evidencia isso. É muito comum que
pessoas que morrem bastante idosas coloquem no túmulo fotografias de quando
eram bem mais jovens. Sem dúvida, isso é a negação da morte.