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sábado, 27 de abril de 2013

5º DOMINGO DA PÁSCOA: Amem-se uns aos outros (Jo 13,31-35)


Frei Carlos Mesters e Tomaz Hughes

O texto situa-se no contexto do último Discurso de Jesus, na Ceia Pascal. Começa logo após a saída de Judas para trair Jesus, depois que Jesus lhe disse "o que você pretende fazer, faça-o logo" (Jo 13, 27). Com a licença oficial dada ao agente de Satanás para iniciar o processo que iria matá-lo, Jesus começa o processo da sua glorificação.
A sua fidelidade ao projeto do Pai vai levá-lo à Cruz, que, no Quarto Evangelho, não é um sinal de derrota, mas da vitória última e permanente de Deus. Por isso, a morte de Jesus, aparente vitória do mal, será a glorificação de Jesus, e nele, do Pai. O anúncio da sua partida, para os judeus uma ameaça (v 33), é para a comunidade dos seus discípulos um momento de emoção e carinho. A sua última dádiva a eles é um novo mandamento: "eu dou a vocês um novo mandamento: amem-se uns aos outros. Assim como eu amei vocês, vocês devem se amar uns aos outros."(v 34).

O que há de novo neste mandamento?

O que diferencia a proposta de amor de Jesus e dos seus seguidores de outras propostas já conhecidas? O mundo do tempo de Jesus, tanto na sociedade pagã como judaica, conhecia propostas de amor mútuo. O mandamento de Jesus é novo em primeiro lugar porque ele se impõe como exigência essencial para entrar na comunidade "escatológica".
Essa é a comunidade que já experimenta a presença do Reino de Deus, mesmo que ainda espere a sua plena realização, ou seja, uma comunidade que experimenta a salvação já realizada em Jesus, enquanto ainda experimenta a sua situação permanente de fraqueza. Também é novo, porque não se fundamenta nas leis sobre o amor, da tradição judaica (p. ex. Lv 19, 18, ou os documentos do Qumrã), mas na entrega de si, de Jesus.
O modelo deste amor é o exemplo do próprio Jesus "assim como eu vos amei!". E como ele nos amou? Entregando-se até a morte, para que todos pudessem "ter a vida e a vida plenamente" (Jo 10,10). Este amor não é sinônimo de simpatia ou sentimento de atração. Exige humildade e a disposição para o serviço que leva a morrer pelos outros.
Este "morrer" normalmente não se expressa através duma morte literal, mas morrendo diariamente ao egoísmo e à busca do poder dominador, para que sejamos servidores, especialmente dos mais humildes, ao exemplo do Mestre que "não veio para ser servido, mas para servir" (cf. Mc 10,45).
Este amor e tão fundamental para a comunidade dos discípulos de Jesus que deve ser tornar o seu sinal característico: "assim todos reconhecerão que vocês são meus discípulos" (v. 35). Mais do que uma lista de doutrinas, mais do que práticas litúrgicas ou rituais, embora essas tenham o seu lugar e a sua importância, é o amor mútuo e concreto que deve distinguir os discípulos de Jesus.
Atos dos Apóstolos nos lembra que "foi em Antioquia que os discípulos receberam, pela primeira vez, o nome de "cristãos". (At 11,26). Receberam uma nova designação, da parte dos outros, porque a sua maneira de viver era marcadamente diferente das outras comunidades religiosas da cidade - era marcada pelo amor mútuo.
O Evangelho de hoje nos convida para que honestamente nos examinemos a nós mesmos, para verificar se este amor-serviço ainda é a marca característica de nós, discípulos/as de Jesus, na nossa vida individual e comunitária!

O Livro da Glorificação e a hora de Jesus*

O Livro da Glorificação e a hora de Jesus (Jo 13,1 a 20,31) é chamado assim porque mostra a realização plena de tudo que Jesus vinha prometendo enquanto fazia os sete sinais nos capítulos anteriores. O Livro da Glorificação começa com esta frase: "Sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo para o Pai, tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim" (Jo 13,1). Finalmente. checou a hora de Jesus ser glorificado pelo Pai (Jo 12,23.27-28; 13.31; 17,1) e de de nos revelar o verdadeiro rosto do Pai, que é o Amor (Jo 4,8.16). A frase mostra que Jesus está disposto a levar até o fim sua obra de revelar o amor do Pai. A hora de Jesus é a hora do seu retorno para o Pai.
Como esta hora foi fixada pelo próprio Pai, ninguém sabe o momento exato em que ela acontecerá. Por isso, no Evangelho de João, na medida em que vamos acompanhando a caminhada de Jesus cresce o suspense com relação à chegada da hora de Jesus. Este suspense atinge seu ponto máximo em Jo 7,1: "Pai, chegou a hora: glorifica teu Filho para que teu Filho te glorifique!"
A dinâmica do texto do Quarto Evangelho vai preparando o leitor para que ele mesmo possa descobrir o momento certo da chegada desta hora. O suspense começa nas bodas de Cana. Diante do pedido de sua mãe. Jesus diz que sua hora ainda não chegou (Jo 2,4). Mas a atuação de Maria mostra que a caminhada em direção à hora já foi iniciada e os sinais começam a surgir. Diante da samaritana Jesus diz que "virá a hora - e é agora - em que surgirão os verdadeiros adoradores do Pai" (Jo 4,23). Os sinais de Jesus aumentam o suspense. Por duas vezes, os inimigos querem prendê-lo, mas ainda não tinha "chegado a sua hora", e a prisão não acontece (Jo 7,30 e 8,20). Para o evangelista não são os inimigos, mas sim o Pai quem determina a hora de Jesus. Quando chegar a hora da eles ação do Filho do Homem, acontecerá, ao mesmo tempo. a glorificação de Jesus e a derrota de seus adversários (Jo 12,31-32).
Os sinais feitos por Jesus levam seus inimigos a planejar sua morte (Jo 11.45-54). Jesus sabe então que sua hora está chegando (Jo 12,23.27; 13,1:16,32). A tensão entre ele e seus adversários culmina na sexta hora,no momento em que se sacrificavam os cordeiros para a Páscoa (Jo 19,14). Nesta hora Jesus, o novo Cordeiro de Deus, inaugura a nova Páscoa. Este exato momento entre a hora de Jesus como o novo Cordeiro e sua gloriosa subida para o mundo do alto é descrito com belas imagens em Ap 5.5-14.
Para as comunidades do Discípulo Amado também chegará a hora, Para cada discípulo ou discípula o encontro com Jesus acontece numa hora marcante e inesquecível (Jo 1.39). Mas o suspense que existiu entre Jesus e o mundo também continuará a existir entre a comunidade e o inundo. Para a comunidade chegará uma hora semelhante à de Jesus (Jo 16.2. Esta hora significa perseguições e morte (Jo 16,4). Diante do exemplo deixado por Jesus. as comunidades chegarão. através desta hora, à alegria que vem de Deus (Jo 16.21-22).

sexta-feira, 26 de abril de 2013

*JESUS NA ESPIRITUALIDADE CARMELITANA.


Frei Donald W. Buggert O.Carm.

                   (Em "The Land of Carmel" por VV.AA.)  Homenagem ao Pe. Joaquim Smet O.Carm.  Institutum  Carmelitanum - Roma 1991

              A Ordem do Carmo tem sua origem num grupo de eremitas ocidentais que peregrinaram para a Terra Santa e se estabeleceram perto da Fonte do Profeta Elias, no Monte Carmelo. Entre os anos de 1206 e 1214 estes eremitas dirigiram-se a Alberto, Patriarca de Jerusalém e Legado do Papa para a Província de Jerusalém, com o pedido de uma "forma de vida", que viria a ser conhecida como a Regra de Alberto. Esta Regra, como desejo mostrar, é totalmente CRISTOCÊNTRICA. Este cristocentrismo informou continuamente a herança espiritual do Carmelo, como se vê, por exemplo, nos escritos de Teresa de Ávila e de João da Cruz.
              Pretendo articular este cristocentrismo no Carmelo hoje, sob a luz do pensamento cristológico contemporâneo. O meu artigo consta, portanto, de três partes:
a) O cristocentrismo da Regra de Alberto;
b) A reflexão cristológica contemporânea;
c) A rearticulação do cristocentrismo da Regra.

O CRISTOCENTRISMO DA REGRA DE ALBERTO

              A regra de Alberto é conhecida pela sua brevidade. Mesmo assim contém doze referências diretas a Cristo e, pelo menos, oito indiretas. Várias teorias, ao refletirem sobre o centro ou coração da Regra, propuseram, por exemplo, a sua dimensão eremítico-contemplativa ou a comunitária. Sem querer entrar neste debate, proporia que anterior a qualquer outra interpretação da Regra está a centralidade da Pessoa de Jesus Cristo e o caminhar pelas suas pegadas como discípulos.
              Em resposta ao pedido de uma forma de vida feito pelos eremitas do Carmelo, Alberto no próprio Prólogo, como uma grande meta, determinou o projeto fundamental do verdadeiro Carmelita, a saber, "caminhar pelos passos de Cristo". Na Regra, ele delineia o modo específico como estes eremitas tinham de viver a vocação Cristã universal de "uma vida de vassalagem a Jesus Cristo". Este projeto cristocêntrico não é, certamente, só para aqueles primeiros Carmelitas e seus seguidores. No entanto, é este projeto que deve informar aquela maneira de vida cristã proclamada nos dezoito capítulos e ainda no Epílogo da Regra. Em todos os aspectos das suas vidas os eremitas devem "in obsequio Jesu Christi vivere".
Este obsequium torna-se para eles "a norma suprema e fundamental".
Neste ponto concordo plenamente com a posição de Valabek:
              "Santo Alberto toca imediatamente no essencial: os religiosos não estão em primeiro lugar atados a um bem escrito e bem redigido e planejado modo de vida, mas estão sim atados a uma Pessoa: Jesus Cristo. A regra de fato está penetrada por esta Pessoa de Cristo tanto como Palavra quanto como Sacramento".
              Qualquer outra coisa que os Carmelitas sejam ou não sejam, devem em primeiro lugar ser Cristãos, seguidores de Cristo. Seguir pelas pegadas de Cristo torna-se, portanto, a subjacente hermenêutica da Regra e não apenas um acréscimo casual. Como  hermenêutica não somente informa o conjunto da Regra, mas também fornece a sua chave de interpretação. Além disto, precisamente como chave de interpretação, o seguir pelos passos de Cristo deve funcionar através das linhas de uma hermenêutica de indícios, uma hermenêutica que se coloca em atitude de julgar e corrigir toda interpretação passada e presente da Regra e fornecer orientação para a sua rearticulação progressiva.
              Acentuei que o projeto subjacente e, portanto hermenêutico, da Regra de Alberto está expresso no Prólogo, isto é, caminhar no seguimento de Jesus Cristo: in obsequio Jesu Christi vivere. Sendo hermenêutica subjacente, cada um há de esperar que este projeto cristocêntrico informe a Regra totalmente. Realmente é assim. Para apreciar o cristocentrismo da Regra deve-se primeiramente retornar ao texto e chegar ao seu autor e ao seu contexto eclesial.
              Antes da sua nomeação para bispo de Bobbio em 1184, Alberto foi Cônego Regular da Santa Cruz de Mortara. Esta formação como Cônego Regular proporcionou-lhe a leitura constante das Sagradas Escrituras e a devoção à Cruz de Cristo. Além disto, como Patriarca de Jerusalém e Legado Pontifício para a Terra Santa, Patrimônio de Cristo, tinha ele um compromisso especial com o obsequium da Cruz de Cristo. Diante destes antecedentes a cristocentricidade da Regra viria sem surpresa.
              No contexto eclesial do fim do século XII, surgiram na Europa  novos movimentos espirituais, que criticavam a opulência do Clero; os monjes voltavam às Escrituras e conseqüentemente à centralidade da imitação de Cristo e ao estilo apostólico de vida da Comunidade de Jerusalém. Uma forma deste despertar evangélico era o movimento dos leigos, a peregrinação dos eremitas consagrada à penitência, a pobreza evangélica e a visitação aos Lugares Santos.
              Além disso, este mesmo período foi testemunha das cruzadas, que se incumbiram de recuperar a "Terra de Cristo". Contudo, depois da derrota de Hatin em 1187 e com a eleição de Inocêncio III em 1189, a razão teológica para visitar a Terra do Senhor prevaleceu sobre todos os outros motivos, fossem eles militares ou comerciais.
De todos os lugares santos que os eremitas peregrinos da Europa visitaram, a Terra de Jesus tornou-se a mais popular. Lá poderiam eles caminhar "pelas pegadas de Jesus" e, na penitência, imitar os seus sofrimentos e a sua morte.
"Pela renúncia a todos os bens materiais, numa pobreza voluntária, buscavam renovar a vida cristã, seguindo a Jesus Cristo através da imitação do modo de vida dos Apóstolos" (Cicconetti).

Além disto, como observa (o mesmo) Cicconetti:
              "O fato real de estar na Terra Santa encerrava em si a decisão de lutar por Jesus Cristo, não necessariamente no sentido militar, mas no serviço pessoal, na guerra espiritual. De fato, a Terra Santa era considerada "O Patrimônio de Jesus Cristo" e a sua herança ou o seu Reino. A pessoa que lá morasse era por um título especial, seu feudatário, um vassalo no seguimento de Cristo, a quem devia fidelidade e serviço leal".
              Um dos grupos de eremitas leigos do Ocidente de vida evangélica, que se dirigiram para a Terra de Cristo e retornaram à vida apostólica primitiva, para ajudar a reconquistar o Patrimônio de Cristo eram os eremitas do Carmelo, que suplicaram a Alberto uma "formula vitæ", que em si mesma, além disso, correspondesse também ao seu anteriormente delineado estilo de vida (propositum) já vivido por eles, isto é, uma vida dedicada ao seguimento de Cristo, especialmente do Cristo Crucificado, e vivida em imitação da primitiva Comunidade de Jerusalém. Como afirma Cicconetti e como tornar-se-á claro mais abaixo:
              " Os pensamentos dos eremitas (do Monte Carmelo) estavam focalizados totalmente na Terra Santa. A partir
desta atitude orientada para a Terra Santa como o sagrado Patrimônio de Cristo, deve-se olhar para a Regra e espiritualidade do Carmelo".
              Tendo dado acima o contexto para a fórmula de Alberto, podem agora duas questões ser abordadas. Primeira: qual é o significado da frase do Prólogo: "caminhar pelas pegadas de Jesus" ?  Segunda: como está este projeto fundamental delineado na Regra de maneira a informar o seu todo ?

CAMINHAR NOS PASSOS DE JESUS (CAMINHAR NO SEGUIMENTO DE JESUS)

              Como diz Cicconetti, a frase in obsequio Jesu Christi, provém de 2Cor 10,5 e apresenta significados um tanto diferentes em  circunstâncias diferentes. Valabek dá um resumo do sentido Paulino deste obsequium. Um discípulo de Cristo é um doulos, um escravo ou servo que faz total entrega de si, pensa, quer e deseja em favor de Cristo, que é a Pessoa mais importante da sua vida. O discípulo, por sua vez, compartilha da verdadeira vida de Cristo e torna-se uma nova criatura, recriada à semelhança de Deus.
              Esta noção Paulina do obsequium assumiu conotações especiais na época feudal. Que imagens e matizes evocou esta expressão paaulina nos eremitas do Carmelo durante tal período feudal ?  O sentido feudal básico do in obsequio era o de serviço, o serviço que um vassalo prestava a um soberano. Assegura Cicconetti:
              " seguimento ou vassalagem em relação a um outro (obsequium) envolve deveres da parte do mestre e do súdito. Os que viviam no patrimônio de um senhor feudal prometiam bons e fiéis serviços, assistência no tempo de guerra e participação na solução de problemas ou questões. Em troca o senhor prometia proteção (...) em favor dos seus súditos.
              Este sentido profano do in obsequio foi transferido na área religiosa para o serviço devido a Deus ou (especialmente) Cristo.
              " Nos séculos XII e XIII, o relacionamento com Cristo era entendido em termos similares; o valor tradicional do serviço (...), da fidelidade (...), da vassalagem (...) ou seguimento (obsequium), do comprometimento (...), da dedicação (...) orientava para Cristo as responsabilidades de um homem com um influxo total, que penetrava todos os variados aspectos da vida de cada dia" (Cicconetti).
              Todos os cristãos eram muito dedicados a este obsequium Christi. Mas durante o período das Cruzadas o conceito adquiriu um sentido bem mais específico. Cristo tinha sido expulso do seu Patrimônio e tinha sofrido uma injustiça. Diante disto os papas evocaram aquele conceito para levarem os cristãos a lutar pela libertação da Terra Santa. Desta forma o obsequium Jesu Christi teve um sentido verdadeiramente cheio para os cruzados e outros, tais como os eremitas do Monte Carmelo, que fizeram a peregrinação ou residiam na Terra de Cristo. Os cristãos todos, igualmente, tornaram-se súditos especiais de Cristo, estavam de maneira especial dedicados ao seu serviço (obsequium) e tinham de ser-lhe completamente fiéis.
              O Patrimônio de Cristo, naturalmente, tinha que ser reconquistado, não somente pelas operações militares. Já que a queda de Jerusalém tinha sido atribuída à infidelidade e aos pecados dos cristãos, uma sincera conversão interior a Cristo e as armas espirituais (oração, penitência, jejuns) seriam mais importantes do que as armas materiais dos cruzados. O soldado de Cristo tinha de armar-se com os gestos pacíficos de Cristo. Esta era a espiritualidade baseada na Paixão de Cristo e realizada unicamente ao se carregar a Cruz, pela qual o próprio Cristo adquiriu a Terra. O obsequium Jesu Christi, portanto, seria muito mais um seguimento do Cristo Crucificado.
              E assim, no caso dos eremitas do Carmelo, a sua vassalagem particular (obsequium) a Cristo era muito melhor definida pela então corrente teologia da reconquista da Terra de Cristo por meio de um combate espiritual, à imitação do Cristo sofredor e pregado na Cruz. Abraçaram a pobreza, a penitência, o silêncio, a solidão, a oração e os jejuns, "para seguirem a lei de Cristo, estarem preparados para fazer tudo em seu nome, revestirem-se da armadura espiritual" (Cicconetti) para desarmarem as forças do mal e, sobretudo, meditarem dia e noite na Lei do Senhor.

COMO O OBSEQUIUM DÁ FORMA À REGRA

              Não pretendo analisar ou comentar cada uma das referências que a Regra faz a Cristo. Quero meramente fazer algumas observações gerais, e então mostrar como é cristocêntrica a verdadeira estruturação da Regra.
              A partir do que dissemos acima, pode-se ver como o projeto básico do seguimento de Jesus Cristo, destacado no Prólogo, é articulado na própria Regra: seguimento fiel de Cristo pela obediência ao seu representante, o prior (capítulos I, XVII e XVIII), solidão (capítulo III), meditação da Lei do Senhor, vigilância na oração, recitação dos salmos (capítulos VII, VIII e X), pobreza (capítulo IX), penitência em forma de jejum e abstinência (capítulos XII e XIII), revestimento da armadura espiritual para o combate do espírito (capítulo XIV), agir em tudo a partir da Palavra do Senhor (capítulo XIV), disposição para suportar a perseguição (capítulo XIV), silêncio (capítulo XVI). Em tudo isto Cristo está presente na comunidade eremítica como modelo, mestre, salvador e juiz escatológico (capítulo XVIII e Epílogo). Dentro desta perspectiva cristocêntrica, Elias e Maria só implicitamente aparecem na Regra, tornam-se modelos ou símbolos subordinados que ajudam a concretizar o obsequium Jesu Christi.
              Bem mais importante do que ver como os vários elementos do obsequium Jesu Christi foram estabelecidos nos capítulos da Regra é a sua estrutura cristocêntrica. Descobrimos aqui o papel que a Comunidade Cristã ideal dos Atos dos Apóstolos representou para aqueles primeiros Carmelitas no seu seguimento dos passos de Jesus.
              Há pouco vimos acima como os eremitas, que estavam no Carmelo, fizeram parte de um mais amplo movimento espiritual que defendia o retorno às Escrituras e à vida da Comunidade de Jerusalém. Aquele caminhar pelas pegadas de Jesus não era para ser vivido de um modo isolado, mas numa comunidade.
              "Fazendo eco às reflexões de Lucas, Alberto impõe aos eremitas um seguimento de Cristo pelo seguimento dos ideais e valores da Comunidade Cristã apostólica" (Valabek).
              Não é surpresa, portanto, que os capítulos VII-XI da Regra sejam paralelos a At 2,42-47; 4,32-35 (fidelidade à Palavra, perseverança na oração, partilha dos bens, unidade fraterna, culto diário como ponto central). No contexto da Regra, a Eucaristia diária é central estruturalmente, isto é, está no centro real do texto (capítulo X). Esta centralidade textual reflete a espacial centralidade do oratório eucarístico no meio das celas. Esta centralidade textual e espacial indica, por sua vez, o centro teológico da Regra, a Eucaristia.
              Esta abordagem estrutural da Regra, tendo textualmente a Eucaristia como seu centro, revela que - como era para a Comunidade de Jerusalém - o centro desta comunidade eremítica é Cristo. A Regra aparece agora visualmente como um arco: nas duas extremidades do arco estão o seguimento de Cristo (Prólogo) e a espera da volta do Senhor (Epílogo); mas o seu ápice é a presença de Cristo na Eucaristia.
              " Em torno destes três pontos de referência gira todo o resto da Regra, sendo cada um uma subseqüente atualização ou uma referência dinâmica " (Secondin).
              Na sua estrutura a Regra diz que todo o seu projeto cristocêntrico, a saber, o seguimento de Jesus (Prólogo) como antecipação da sua volta (Epílogo), está centralizado, celebrado e assumido na Eucaristia (capítulo X), na qual o próprio Cristo está sacramentalmente presente em favor da comunidade, que por sua vez está antecipando a sua volta. Em conclusão da primeira parte deste artigo, que trata do cristocentrismo da Regra e para introduzir a segunda, faço minhas as palavras de Bruno Secondin:
              " Na Regra, portanto, encontramos uma cristologia que estimula o discipulado e gira em torno da «vida em Cristo», da escuta orante da Palavra, da celebração do Mistério, de uma visão de meditação como um modo de imprimir Cristo dentro da vida de cada um (...) e da espera da sua volta. O mesmo estilo de vida (...) como uma dedicação ao Senhor na Terra Santa (...) é agora transformado em uma caminhada aberta a ser empreendida em qualquer tempo ou lugar".
              Como este estilo de vida no seguimento de Jesus pode ser transformado em nosso tempo bem diferente da sociedade feudal e das Cruzadas, que tiveram influência sobre a Regra de Alberto ?       
             
A REFLEXÃO CRISTOLÓGICA CONTEMPORÂNEA

              A retomada do cristocentrismo da Regra para os nossos dias deve levar muito em conta a cristologia contemporânea, porque cada visão de Cristo está condicionada à época. Como a cristologia contemporânea vê a Pessoa de Cristo ? Esta não é uma pergunta fácil de responder, porque atualmente existem muitas maneiras de ver a Cristo, ou seja, muitas cristologias. Também não é possível, nem sequer necessário para o nosso propósito apresentar aqui um breve panorama das cristologias contemporâneas. Todavia, uma preocupação comum à maior parte das cristologias contemporâneas é retomar seriamente o significado da humanidade histórica de Jesus. Assim muitas cristologias hoje, como a de K.Rahner, E.Schillebeeckx,
W.Jaspers, W. Pannemberg, J.Sobrino se caracterizam como cristologias "de descida" ou cristologias "de subida", isto é, cristologias que se movimentam entre o Jesus Histórico e o Cristo da fé, do dogma. O "Jesus Histórico" é atualmente uma imagem conjunta de Jesus (suas palavras, gestos, auto-consciência, projetos, reconhecimento do seu destino), que é montada por meio do recurso ao método da crítica histórica aplicada aos textos do Novo Testamento. É a aspectos selecionados deste Jesus Histórico que eu tenho recorrido, pelo fato de poderem eles ajudar-nos mais a rearticular o cristocentrismo da Regra. Refletindo o consenso dos eruditos de hoje, Norman Perrin declara:
              " O aspecto central do ensinamento de Jesus é o que se refere ao Reino de Deus (...). Jesus surgiu como alguém que proclamou o Reino; tudo o mais, na sua mensagem e ministério, cumpre uma função em vista desta proclamação e dela deriva (...). Entre todos os títulos e descrições que foram aplicados a Jesus através dos séculos, o único que melhor resume a sua presença histórica é aquele único, cuja circulação se deve muitíssimo a Bultmann: «Jesus é o Proclamador do Reino de Deus».
              Jesus, portanto, não prega a sua própria Pessoa, mas o Reino de Deus (malkuth shamayim) ou, mais precisamente, "o Reinado de Deus". Esta proclamação tem suas raízes na época de Davi. Mas sob os profetas e as visões apocalípticas transforma-se numa esperança escatológica. É este substrato escatológico do Reino que forma o contexto para a proclamação própria de Jesus e para a sua práxis. Assim por Reino de Deus, Jesus se refere em primeiro lugar ao final por parte de Deus, atividade salvífica definitiva dentro da História, no decorrer da qual Deus se torna plenamente Rei, se  torna plenamente o Deus da Salvação. Em segundo lugar, por Reino de Deus, Jesus se refere às bênçãos escatológicas da salvação tais como a paz e a justiça, que resultarão da ação decisiva do reinar de Deus.
              Entre outras, as características da proclamação do Reino de Deus por Jesus e a sua práxis são de Jesus somente. Este Reino de Deus não é só o futuro, mas o presente também e de fato já se está  introduzindo agora na História, precisamente por intermédio de Jesus, de suas palavras e ações. Jesus, portanto, vê a si mesmo como o Profeta escatológico. O único por meio de quem a decisiva realidade escatológica de Deus está sendo agora intermediada para a História. Nas suas palavras e ações poderosas ou milagres (dunameis), estão acontecendo as bênçãos escatológicas da Salvação. Ungido com o espírito escatológico profetizado por Joel, Jesus anuncia a Boa Nova aos pobres, proclama a presença do Ano Jubilar, no qual os cativos são libertados e reconduzidos à sua pátria, dá a vista aos cegos, cura os coxos, os leprosos e os surdos, proclama aos pobres as boas notícias e amarra o homem forte, Satanás e o seu reino. Através da práxis de Jesus sobre o Reino de Deus, a criação e a História já estão começando a ser levadas à consumação escatológica. Nas palavras de Orígenes Jesus é a auto-basileia. A sua mensagem e a sua causa não podem ser separadas da sua Pessoa.
              Para Jesus o Reino de Deus ocasiona, portanto, a transformação total da criação e da História. É a realização da esperança escatológica de Israel de que no fim dos tempos toda alienação e todo mal - seja ele físico ou moral - estarão eliminados e reinarão a justiça e a paz. Nada escapará à sua presença salvífica regeneradora. Para Jesus, portanto, este Reino de Deus, enquanto permanente, proeminente ou futuro na sua conclusão, era muito bem uma realidade, que era também deste mundo e estava começando a sanar a realidade em todas as suas dimensões: política, social, econômica, pessoal e cósmica. Não pode ser totalmente escatologizado ou espiritualizado nem pode ser referido somente à realização escatológica de um outro mundo nem somente a dimensões espirituais do homem e da mulher.
              Um aspecto a mais do Jesus Histórico a ser observado é a sua reunião com pecadores ou marginalizados. A freqüente reunião de Jesus com pecadores e o seu comer com eles só podem ser entendidos nos termos do seu serviço ao Reino de Deus. No tempo de Jesus, o perdão definitivo do pecado era o mais feliz aspecto da esperança apocalíptica. Quando Deus reinasse plenamente, todo o pecado seria perdoado. Mas tal perdão estava limitado ao temor de Deus e à observância legal dos Judeus. O perdão não era estendido aos Pagãos nem àqueles Judeus, que se desviaram da lei e dos costumes da classe média dos Fariseus ou, que devido a certas profissões ou práticas, se converteram em Pagãos. Aos olhos dos Fariseus eram todos pecadores sem Deus, os marginalizados, inclusive os que não eram educados na Lei, os pobres, os cobradores de impostos, os criadores de porcos, as prostitutas, os doentes, os cegos, os aleijados, os possuídos pelo demônio, os mendigos, os ladrões, os jogadores e agiotas. Marginalizados, oprimidos, discriminados e injustiçados pela sociedade, é especialmente em favor destes que Jesus realiza os seus milagres e proclama a Boa Nova do Reinado de Deus, a Boa Notícia para eles que até então só tinham ouvido a má notícia da exclusão e da condenação. Na verdade, para Jesus a atividade de rei por parte de Deus estava sendo manifestada em primeiro lugar no amor misericordioso para com eles. É para com estes proscritos que Jesus e o seu Pai têm solidariedade e um amor preferencial.
              Jesus não apenas juntou-se aos pecadores e marginalizados e os servia, mas ainda mais, repartiu com eles o pão e assim "desclassificou-se" com eles, isto é, tornou-se um deles. É como diz Nolan:
              " Seria impossível sobreestimar o impacto que estas refeições devem ter causado nos pobres e pecadores. Recebendo-os como amigos e iguais, Jesus acabou com o seu envergonhamento, humilhação e complexo de culpa. Pelo fato de Jesus tê-los tratado como pessoas, Jesus deu-lhes um sentimento de dignidade e libertou-os do seu cativeiro".           
              É, porém, ainda mais importante o significado teológico destas refeições. Para o Judeu da época de Jesus todas as refeições eram sagradas. A refeição em comum não significava somente paz, amizade e reconciliação, mas tudo isto aos olhos de Deus. A refeição celebrava a restauração do relacionamento contraído e a chegada do Reino de Deus.
              As refeições de Jesus com os pecadores eram parábolas vivas, portanto: celebravam a alegria presente daqueles que haviam aceito o Deus de Jesus e alegremente antecipavam o "éschaton", no qual a graça salvífica de Deus estará plenamente presente. Eram um símbolo em ação da mensagem e da missão de Jesus de oferecer a Paz de Deus, o seu favor e reconciliação, um sacramento ou antecipação (prolépsis) do futuro Reino de Deus, que nos profetas e videntes era simbolizado por uma refeição. E o que era mais escandaloso nestas refeições era que os pecadores eram convidados a tomar a ceia ao lado dos justos. Não mais ditaria a Lei com quem uma pessoa haveria de cear. Não mais seria o pecador bem claramente distinto do justo. Graça e misericórdia conquistariam precedência sobre a Lei. Este era o vinho novo a arrebentar os odres do vinho velho.
              A título de resumo podemos dizer que Jesus teve consciência pessoal de ser profeta escatológico de Deus, cuja missão era fazer penetrar no Reino de Deus e nas suas bênçãos, que abrangem todos os aspectos da Criação e da História. Na sua mediação do Reinado de Deus em favor de homens e mulheres, Jesus o orientava de maneira especial em favor daqueles que eram os párias e marginalizados do seu tempo, as vítimas da injustiça e da opressão. Para eles, especialmente, Jesus teve boas notícias. Para eles, especialmente, Jesus se mostrou a si mesmo como o sacramento da misericórdia de Deus. Para eles, estar tristes na presença de Jesus era de uma existencial impossibilidade.

A REARTICULAÇÃO DA CRISTOCENTRICIDADE DA REGRA

              O projeto de todos os carmelitas é caminhar nos passos de Jesus. Mas a nossa concepção de Jesus muda como também muda a situação histórica. E as mudanças da situação histórica apresentam novas mudanças ao nosso caminhar pelos passos de Jesus. Portanto, para rearticular a espiritualidade cristocêntrica da Regra de Alberto, devemos levar em consideração tanto a nossa concepção atual de Jesus, como também a nossa situação atual. Assim, antes de tentarmos uma rearticulação, faz-se necessária uma palavra sobre a atual situação dos países desenvolvidos do 1º Mundo.
              O filósofo jesuíta, John F.Kavanaugh, vê e analisa a nossa atual situação, empregando o modelo de interpretação do "sistema do mercado", inspirado no Marxismo. O "sistema do mercado" é um paradigma para a vida dos homens. É uma maneira de considerar-nos a nós mesmos e aos outros como objetos ou mercadorias, e assim viver. As coisas substituem as pessoas; as relações materiais com as coisas deslocam as verdadeiras relações humanas. O mercado torna-se um deus, que leva o ser humano a adorar objetos e, no seu relacionamento com eles, tratá-los como se fossem pessoas e no relacionamento com as pessoas, tratá-las como se fossem objetos, fazendo com que as pessoas sejam possuídas pelas próprias posses e produzidas pelos próprios produtos. Tornam-se então alienadas de si mesmas e transformadas em verdadeiras mercadorias. Existe até um "sistema do mercado" do conhecimento. O conhecimento é reduzido a conhecimento técnico, científico, instrumental, "coisificado".   Este "sistema do mercado" com os seus valores preeminentes de mercado e consumo torna-se uma doença patológica, pela qual as pessoas valorizam a si mesmas em termos de produtividade e utilidade, com o resultado de não serem um valor humano intrínseco.
              Por sua vez o "sistema do mercado", como valor fundamental da nossa sociedade, favorece a um mercantilismo ético de um individualismo moral bruto, que resulta em violência, dominação, manipulação, medo, alienação, racismo, chauvinismo, hedonismo, mecanização do sexo, aborto, eutanásia, consumismo exagerado e destruição da vida de família.
              Em contraposição ao "sistema do mercado" há um outro paradigma da existência humana: o "sistema da pessoa". É ele "um modo de compreender e valorizar homens e mulheres como pessoas insubstituíveis, cuja fundamental identidade se preenche num harmonioso relacionamento" (Kavanaugh). O "sistema da pessoa" promove o valor intrínseco da pessoa, ou seja, a liberdade, o respeito, a promoção, a autodoação, a generosidade, a justiça, a paz, o espírito de perdão, a saúde, a compaixão, o engrandecimento e elevação daqueles que são os últimos. Estes dois sistemas, o "do mercado" e o "da pessoa", são opostos em todos os sentidos. E assim Cristo e o Evangelho como plena revelação do "sistema da pessoa" estão em conflito radical com a nossa sociedade contemporânea e o seu "sistema do mercado" e até mesmo os subvertem. Por necessidade, seguir a Cristo é ser da contracultura.
              Como podemos perceber acima, foi a espiritualidade das cruzadas que ajudou a definir o obsequium Jesu Christi dos primeiros eremitas do Carmelo como uma das maneiras de imitar Jesus, na batalha espiritual própria dele, por meio da pobreza, penitência, solidão, silêncio, obediência e oração. Assim, seguir os passos de Jesus não era um empreendimento espiritual meramente; tinha também conotações políticas: a intenção deles era reconquistar a Terra de Cristo. Envolvidos embora no combate espiritual, estes primeiros eremitas estavam bem mais comprometidos com a Terra de Cristo, como seus feudatários, e eram igualmente legítimos cidadãos deste mundo. Como vassalos de Cristo eram solidários com a terra e com o seu povo e tinham responsabilidade por eles.
              É desnecessário dizer que as Cruzadas terminaram e a reconquista da Terra física de Cristo já não é uma prioridade. Mas para os Carmelitas caminhar pelos passos de Jesus permanece uma prioridade. Feita acima a análise da situação dos nossos tempos em termos do "sistema do mercado" e feito também acima um esboço do Jesus Histórico, como podemos agora articular para os nossos dias o "caminhar pelas pegadas de Jesus Cristo" ? Vou oferecer três sugestões.
              Primeira: não é qualquer Jesus que serve. No seguimento nosso dos passos de Jesus, que Jesus seguimos ? Nem todo Jesus se reconcilia com o Jesus Histórico e com a sua práxis. Jesus tem sido usado, abusado e manipulado para se tornar um apoio ideológico do "status quo". Tem sido invocado, e até mesmo se lhe tem rezado para manter o oprimido na opressão e os opressores na sua prepotência, os ricos nas suas riquezas e os não-ricos nas suas não-riquezas. Se Bultmann desmitologizou Jesus, nós devemos desassossegá-Lo de maneira tal que Ele não seja conivente com os ídolos, tais como o "sistema do mercado"; de maneira tal que Ele não deixe a realidade caminhar em paz.
              Segunda: caminhar no seguimento de Jesus quer dizer assumir a práxis do Reino de Deus própria de Jesus. Ainda existe uma Terra de Jesus com o seu povo a serem resgatados, mas esta Terra com o seu povo não se limita à Terra geográfica de Cristo. Jesus estava inserido muito mais do que isso. Estava dentro do desabrochar do Reino de Deus, agora, dentro da História, um Reino de Deus que envolveria e transformaria toda a Criação e toda a História, um Reino que já agora na História iria começar a expulsar o reino de Satã com as suas seqüelas, tais como injustiça, violência, guerra, opressão, dominação; um Reino que tudo iria restaurar no estado paradisíaco. A partir da perspectiva da proclamação do Reino de Deus por parte de Jesus e da sua práxis, a Terra e o povo de Jesus abarcam toda a Criação e toda a História, especialmente os marginalizados, as vítimas da opressão e da injustiça, os últimos entre irmãs e irmãos.
              Caminhar no seguimento de Jesus Cristo para reconquistar a Terra é, portanto, inserir-se na História e nos seus conflitos, assumir uma cidadania terrestre e política, como fizeram os primeiros Carmelitas do Carmelo. O obsequium da Regra autoriza uma espiritualidade não privatizada, não espiritualizada, não escatologizada. Isto exige compromisso com a Terra, com o aqui e agora da História e todos os seus conflitos crivados de pecados. No contexto das nações desenvolvidas e industrializadas do 1º Mundo, esta inserção na História, este compromisso com a Terra tornam-se especiais pela denúncia profética do "sistema do mercado" e o anúncio do "sistema da pessoa". O ídolo do "sistema do mercado", que reduz a pessoa a algo consumível e reduz a experiência humana, a algo quantificável, este ídolo e os seus escravizadores valores de mercantilismo e consumismo, com a sua ética de individualismo  brutal e os seus frutos de violência, dominação, manipulação, alienação, racismo, chauvinismo, mecanização do sexo, aborto e dissolução da vida familiar, tornam-se o novo Satanás, o novo adversário que rodeia como um leão a rugir, procurando a quem possa devorar. Dedicar-se em nossos dias à práxis do Reino de Deus como Jesus significa entrar no combate contra este leão a rugir do "sistema do mercado", e ficar ao lado dos valores interiores das pessoas, a liberdade, o desapego, a generosidade, a justiça, a paz, o espírito de perdão, a misericórdia e a promoção daqueles que são os últimos.
              Terceira: caminhar no seguimento de Jesus exige entrar na luta espiritual contra o leão do "sistema do mercado" que vive a rugir. Porém, em que se baseia esta luta espiritual ? Proponho três elementos: os votos; silêncio, solidão, oração; vida comunitária.
              (a) A pobreza, a castidade e a obediência são valores contraculturais. Opõem-se ao "sistema do mercado", pois propõem a humanização e libertação, libertação diante dos poderes, com que o sistema nos empurra para os valores do mercado do poder, da dominação e da posse; liberdade para valorizar os outros como pessoas. Afinal, aí está uma ciência econômica para os votos. Verdadeiramente eles não ajudam o desenvolvimento financeiro.
              (b) Existe aí também uma ciência econômica para o silêncio, a solidão e a oração. São também financeiramente sem valor e são, por isso, uma  denúncia  profética  contra  o  "sistema  do  mercado".   Silêncio e solidão são cheios de riscos, por reclamarem a privação e pobreza interiores tão fortemente negadas pelo mercantilismo e materialismo do "sistema do mercado". Silêncio e solidão são desesperadoramente incomercializáveis. Oração é uma atitude de interioridade que exige desvencilharmo-nos das regras de comportamento comuns ao "sistema do mercado" da existência. Oração envolve o estar presente em Deus e, portanto, em nossa autêntica identidade de pessoas. Oração é um ataque contra a fraude do mero desempenhar papéis imposto pelo "sistema do mercado"; é um centralizar-se no ser mais do que no ter do "sistema do mercado". A oração é uma desmercantilização da nossa vida e uma reapropriação da nossa personalidade.
              Silêncio, solidão e oração desempenham algum papel em nosso combate espiritual. Estes três valores típicos do deserto Carmelita fazem-nos prestar mais atenção à gratuidade do amor de Deus em nossa vida, dispõem-nos a reconhecer que Deus está presente em todas as coisas, purifica a nossa presença junto aos outros daquela tendência do "sistema do mercado" de lhes impor uma vontade  estranha e facilita assim um sincero e pleno encontro com o nosso próximo. Silêncio, solidão e oração tornam-se o material com que se constroem os profetas místicos. Porque os profetas captam a divina presença, podem ele/ela captar também a ausência de Deus na História, "o sistema do mercado". E é esta consciência da ausência de Deus que faz com que o profeta denuncie o que está velho, o reino de Satanás e anuncie o novo, o Reino de Deus. Silêncio, solidão, oração constituem a escola dos profetas de Elias.
              (c) A vida em comunidade também é uma forma de combate espiritual. Os primeiros eremitas do Monte Carmelo realizaram este seguimento de Jesus Cristo, abraçando a visão ideal da Comunidade de Jerusalém. A fórmula de vida de Alberto exprime esta visão comunitária em termos de partilha de bens e de partilha de vida, um estilo de vida de igualdade, um discernimento comunitário-dialogal e mais ainda o respeito pela pessoa individual. Os eremitas, obedecendo à Regra, passaram logo a denominar-se irmãos, irmãos comprometidos com uma forma participativa de vida em comum. Esta vida em comum é ela também uma contracultura, uma denúncia profética contra o "sistema do mercado" com a sua coisificação das pessoas por meio de relacionamentos de dominação e desumanização; com a sua falta de sensibilidade e respeito; com a sua escravização da liberdade; com a sua idolatria da competição, da vantagem e da prepotência. Por sua vez uma vida comunitária como tal demonstra  e testemunha os valores do "sistema da pessoa": os valores interiores das pessoas, liberdade, desprendimento, generosidade, justiça, paz, espírito de perdão, saúde, misericórdia, e promoção daqueles que são os últimos.
              A Terra de Cristo ainda precisa de ser reconquistada. Todas as coisas ainda têm de ser submetidas a Ele, de maneira que o Seu Pai possa reinar plenamente e ser tudo em todos. Como nos dias de Alberto e dos primeiros eremitas do Carmelo, a Terra será reconquistada não pelas armas nem pela força, e sim pelo seguimento de Jesus Cristo. Este obsequium Jesu Christi envolve uma batalha espiritual que, assim como ao próprio Jesus, nos insere dentro da História, no meio da luta contra o leão a rugir. Caminhar pelos passos de Jesus Cristo é um apelo para a vida comunitária de resistência contracultural, enraizada no silêncio, na solidão, na oração, repromulgando a práxis profética do Reino de Deus da parte de Jesus, na solidariedade com todos, mas especialmente com   aqueles que são os pecadores e rejeitados dos nossos dias.
*Traduziu, Frei Alfredo Francisco de Souza, ex- noviço Carmelita. Revisão de Frei Pedro Caxito O.Carm. (In Memoriam). (20-05-93).

             

CARMELITAS: Olhar o passado com os pés no futuro: A restauração da Ordem no Brasil – 1894



Por Frei Pedro Caxito, 0. Carm. (In Memoriam) 

            Tornou-se evidente que no fim do século a Ordem era capaz de organizar e manter esforços para a sua expansão. Enquanto os alemães e irlandeses partiram para terras fabulosas que até então não tinham sido palmilhadas por pés de carmelitas, os Espanhóis retornaram para a sua América e para as Províncias fundadas há séculos pela sua Província-Irmã de Portugal.
            Já em 1886, o Vigário Provincial, Alberto de Santa Augusta Cabral Vasconcelos escreveu de Recife, pedindo a Savini para mandar religiosos a fim de restaurar a Província de Pernambuco. Os frades sobreviventes da Província, dizia ele, estavam todos num único convento (Recife). As outras quatro casas estavam em mãos de padres seculares. Ele estava velho e doente e alguns dos mais jovens não gozavam de boa reputação. Savini conseguiu reunir um grupo internacional nas pessoas de Ângelo Mallia, André Montebello e José Gregório Geoghegan. Contudo esta primeira tentativa de restauração do Carmelo no Brasil não foi bem sucedida; nos inícios de 1889 Cabral e os recém-vindos separaram-se no meio de mútuas recriminações.
            Com a eleição de um novo Prior Geral, Cabral renovou em 1894 os seus insistentes pedidos de reforço. Por esta data pôde ser feito um esforço mais sério e garantido; a Província da Espanha, em vias de recuperação, estava capacitada a corresponder às necessidades. No dia 7 de julho de 1894, um grupo de 4 padres e 2 irmãos viajou para Recife: Joaquim Guarch (Comissário Geral), Eliseu Gomez, Cirilo Font, Mariano Gordon e os Irmãos Ângelo Trigagnon e Eliseu Gomez (a nota 56 diz que é coincidência mesmo de nome e sobrenome).
            Em 1895, um segundo grupo de dois padres, três clérigos e dois irmãos foram enviados da Espanha. Neste mesmo ano o Conselho da Ordem autorizou o Provincial da Espanha a nomear um vigário provincial para o Brasil e apontou também Cirilo Font como Comissário Geral. Os dois cargos praticamente se reuniram num só.
            Os espanhóis se responsabilizaram pela restauração não só da Província de Pernambuco, mas também de toda a Ordem no Brasil, em geral. A pressa de Cabral não foi compartilhada com igual ardor no Rio de Janeiro e na Bahia. Os poucos frades brasileiros sobreviventes nestas regiões recusaram-se a reconhecer o Comissário Geral e a submeter-se à Província da Espanha. Além disto não quiseram transferir para os espanhóis os bens da Ordem, nem era isto permitido pela lei. Os Brasileiros relutavam em renunciar à sua independência e abrir caminhos, submetendo-se à disciplina religiosa. Diante destas circunstâncias os Espanhóis perceberam que a Restauração do Carmelo Brasileiro seria uma tarefa desencorajadora.
            De fato, Leão XIII tinha um pouco antes, aos três de setembro de 1891, colocado os religiosos do Brasil debaixo da jurisdição dos bispos. Os bispos, por sua vez, delegaram as suas faculdades a um "visitador" episcopal. Numa situação destas um Comissário indicado pelo Prior Geral em Roma ajustava-se tal qual um pino quadrado num furo redondo. Era um caso parecido com o da Espanha nos inícios da restauração da Ordem por lá. Com o tempo as coisas foram-se ajeitando, mas não se pôde fugir inteiramente dos primeiros conflitos.
            Em cartas para Roma datadas de 23 de agosto e 22 de outubro de 1900, o Provincial Eliseu Durán contou como ia a situação no Brasil. Da Vigararia do Maranhão nada restou. A Província de Pernambuco contava com três conventos e um hospício. Em Recife estavam cinco frades espanhóis. Dois anos depois da chegada dos recém-vindos em 1894, morreram os dois brasileiros que restavam, deixando o acima citado no comando da situação. Da Província da Bahia existia somente o Convento de Salvador com dois espanhóis e o brasileiro Frei Inocêncio do Monte Carmelo Sena. Um outro padre brasileiro vivia fora do convento em concubinato. A Província do Rio de Janeiro continha seis casas, duas das quais, Rio e Angra dos Reis, tinham moradores. São Paulo e Santos podiam ser reformadas sem grandes despesas. No Rio de Janeiro viviam sete espanhóis; em Angra, dois espanhóis e o brasileiro Frei Inácio da Conceição Silva, que ostentava o título de Provincial. O outro brasileiro da Província, Frei Antônio Muniz, vivia fora do Convento e na imprensa pública entrou numa campanha de guerrilha contra as autoridades eclesiásticas e os confrades espanhóis. De início viviam no Rio os Padres Furbão (deve ser Pe. Manuel de Santa Teresa Trovão) e Manuel da Ascensão Franco, o administrador do vasto patrimônio do Convento. Quando morreu Furbão em 1896, Mariano Gordon e Carmelo Pastor aí estabeleceram residência. Depois da morte de Manuel em 1899, o arcebispo indicou um administrador leigo para os bens do Convento. Mas a pedido do Internúncio seis frades foram enviados para o Convento de Angra dos Reis destinado a ser casa de Noviciado. Os Espanhóis tinham pouca fé na possibilidade de um noviciado no Brasil. Noviços eram poucos (em seis anos Recife recebeu um só) e tinham pouca chance de serem iniciados adequadamente na vida religiosa. Durán preferiu estabelecer na Espanha um colégio missionário para o Brasil.
            O Capítulo Geral de 1902 deu instruções ao Procurador Geral para conseguir da Santa Sé um decreto que concedesse à Província da Espanha os bens da Ordem no Brasil como medida para uma chance pequenina de sucesso.

CARMELITAS: Olhar o passado com os pés no futuro: O Carmelo no Brasil - 1904-1919.


Por Frei Pedro Caxito, 0. Carm. (In Memoriam)  
           
              A restauração das três Províncias do Brasil apresentava afinal uma carga acima dos recursos da Província da Espanha. O Capítulo Provincial de 1900, por isso, comunicou ao Núncio no Brasil que gostariam de limitar os seus esforços ao Norte, deixando para alguma outra Província a restauração do Rio de Janeiro. Em 1916 ficou decidido que a Andaluzia ficaria com o encargo da Bahia e a Arago-Valentina, de Pernambuco.
            Em 1906 Pio Maria Mayer decretou que o Provincial de Pernambuco seria também o seu Comissário para a Bahia, e de fato deste ano em diante até 1923 era regularmente indicado pelo Provincial de Pernambuco um vigário para a Bahia. Em 1919 a Província da Bahia contava com 4 sacerdotes, 1 diácono e 2 irmãos, todos espanhóis, que viviam na Bahia e em Cachoeira. São Cristóvão não foi mais ocupado.
            O Capítulo Geral de 1902 proclamou o direito das províncias de estabelecer a sua legislação própria e Pernambuco no mesmo ano fez os seus estatutos, que determinaram ser requerida a cidadania brasileira, de nascimento ou por naturalização, para se fazerem os votos solenes. Esta condição foi imposta, sem dúvida, em vista de constituir a Província como entidade jurídica. Em 1919 contava a Província 10 padres e três irmãos, todos concentrados em Recife.
            A 23 de junho de 1904, Pio Mayer abordou o Provincial da Província Holandesa, Lamberto Smeets, para que tomasse conta da Província do Rio de Janeiro, que estava abandonada. Este encargo foi aceito sob a condição de que a administração dos bens fosse devolvida à Ordem. No dia 27 de novembro de 1904, seis padres e 2 irmãos chegaram ao Rio de Janeiro: Frei Cirilo Thewes (superior), Atanásio Rijswijk, Guilherme Meijer, Serapião de Lange, Gregório Meijer, Constâncio Lokkers e os Irmãos Simão Jans e Anastácio Korterijk. Os frades espanhóis governados por André Prat ficaram ajudando no Convento da Lapa. No mês de dezembro Guilherme Meijer e Constâncio Lokkers dirigiram-se para Angra dos Reis, onde encontraram Inácio da Conceição Silva que era digno de toda confiança. Em 1906 o Bispo de Petrópolis, Dom João Braga, confiou aos Carmelitas as Paróquias de Angra dos Reis, Mambucaba, Ribeira, Jacuecanga, Ilha Grande e Jacareí. Aquela região por longo tempo abandonada ofereceu aos missionários oportunidade total para exercerem o seu zelo apostólico.
            No dia 16 de maio de 1905 os freis Cirilo Thewes, Guilherme Meijer e o Irmão Simão Jans foram tomar posse do Convento de São Paulo. Aí incorreram na oposição do terrível Frei Antônio da Virgem Maria Muniz Barreto, prior de Mogi das Cruzes, que se havia empenhado numa contenda legal com o Bispo de São Paulo. Em 1877 Muniz tinha sido nomeado "præses" dos Conventos de São Paulo, Santos e Mogi das Cruzes pelo Vigário Geral do Rio, (Dom) Félix Maria de Freitas Albuquerque, e foi confirmado neste cargo pelo Visitador Apostólico, (Pe.) Eduardo Duarte e Silva. Quando Inácio da Conceição Silva foi nomeado Provincial em 1900, nomeou o Bispo de São Paulo, Antônio de Alvarenga, com o seu Vigário Geral, (Mons.) Manuel Vicente, administradores dos bens da Ordem em São Paulo e Santos, decisão com a qual Muniz não concordou. Finalmente, no dia 22 de junho de 1906, o caso foi resolvido em favor do Bispo e Muniz foi consolado com o Priorado perpétuo de Mogi das Cruzes. Quando morreu em 1919, os seus confrades ficaram livres para entrar na posse do seu Convento.
            Santos foi recuperado em 1906 e Itu em 1917.
            Os Carmelitas Holandeses por toda parte se distinguiram como educadores e assim abriram escolas ou deram continuidade àquelas que já existiam: Rio de Janeiro (1908), Itu (1908), São Paulo (1911), Santos (1917). As escolas de Mogi das Cruzes e de Angra dos Reis vieram a ter vida curta.
            Além da reocupação destes Conventos, os Carmelitas tomaram a seu cargo uma missão em Corumbá, no Mato Grosso. Os pioneiros foram Frei Paulo Hurkmans (superior), Canísio Mulderman, Carmelo Lambooij e o Irmão Pancrácio Helmich. Ao faltar a saúde a Frei Hurkmans, foi ele substituído por Frei Mulderman como superior. Em 1911 Frei Maurício Lans veio ajuntar-se ao grupo. Era enorme o território da missão e exigia viagens de cinco ou seis meses no lombo de cavalos. Ao ser Corumbá elevada a Diocese em 1912, Mulderman foi o seu administrador até à chegada do novo Bispo e a igreja dos Carmelitas serviu de Catedral. Por causa de um desentendimento infeliz surgido entre o Bispo, Dom Cirilo de Paula Freitas, e os Carmelitas, estes abandonaram a missão em 1914.
            Outra missão em Paranaguá, no Paraná, fundada em 1915, teve de ser abandonada por falta de mão-de-obra.
            Os frades holandeses dedicaram-se às Ordens Terceiras, que tinham sobrevivido à supressão dos religiosos. Em Angra dos Reis e Mogi das Cruzes, Inácio da Silva e Antônio Muniz conservaram vivas as Ordens Terceiras locais. No Rio de Janeiro o sodalício degenerou em superstição e prática de macumba e foi extinto pelo diretor Frei Tomás Jansen, que inaugurou um novo no dia 8 de dezembro de 1910, com a profissão de 32 noviços, 16 mulheres e 16 homens. Este sodalício tornou-se o núcleo donde brotaram outros.
            Em 1919 a Província tinha 22 membros: 18 padres e 4 irmãos. Somente Rio e São Paulo na posição de Conventos.

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Diocese manda padre se retratar após vídeos polêmicos

Padre Beto defende reflexão da Igreja Católica sobre moral sexual em vídeos; bispo quer que conteúdo seja retirado do ar
Fernanda Villas Bôas
           Um padre em Bauru, no interior de São Paulo, recebeu um prazo da Diocese local para retirar da internet os vídeos em que apresenta suas ideias consideradas inovadoras sobre moral sexual e organização da Igreja. Roberto Francisco Daniel, 47 anos, o padre Beto, deve se retratar até segunda-feira, dia 29, conforme a determinação do bispo diocesano Dom Frei Caetano Ferrari. O padre disse que ainda não decidiu o que vai fazer.
Padre Beto, que tem site na internet e é ativo nas redes sociais, é considerado polêmico. Ele acha que os padres devem trabalhar em vez de receber salário da Igreja (ele é professor universitário). Também defende o sacerdócio feminino e o sexo antes do casamento. Na opinião de padre Beto, a Igreja deveria rever suas regras em relação à moral sexual para acompanhar os novos tempos.
Na terça-feira (23), quando a Diocese de Bauru determinou que os vídeos fossem retirados do site do padre e das redes sociais, um grande debate se instalou na internet, sobretudo no Facebook. Páginas a favor e contra o padre foram criadas. Para quem apoia o religioso, ele está certo ao tentar atualizar os preceitos católicos. Para esses, a Diocese está sendo retrógrada ao impor censura ao padre. Os contrários questionam a permanência do sacerdote na Igreja. Alguns o chamam de “herege”.
Para bispo, padre vai reconhecer que errou – O bispo diocesano de Bauru, dom Frei Caetano Ferrari, diz que o padre Beto “avançou o sinal” ao postar vídeos que propõem uma revolução nos costumes da Igreja. “Padre Beto é muito inteligente, muito capaz. Mas tem essa tendência de avançar o sinal. Estou cobrando isso dele: que faça uma retratação. Os vídeos provocaram muita inquietação, não só em Bauru, mas em outras dioceses”, disse.
Para Dom Caetano, a necessidade de reflexão defendida pelo padre é legítima. “Refletir é um ato inerente ao ser humano. Mas a reflexão se dá a partir da própria identidade. E o que está acontecendo é que o padre está perdendo a noção da sua identidade, uma vez que é padre”.
Dom Caetano acredita que padre Beto irá se retratar na próxima segunda-feira. “Estou confiante que o Espírito Santo vai tocar o coração dele”, afirmou.  Ele se referiu ao padre como um “filho rebelde”: “É como um filho rebelde, que a gente ama e quer bem”.
Na entrevista abaixo, Padre Beto comenta o episódio e defende uma Igreja mais plural:
Papo Feminino – O senhor recebeu com surpresa a determinação da Diocese de Bauru?
Padre Beto - Sim, recebi com surpresa. Não esperava isso. Não acho que fiz declarações absurdas nem que pudessem atingir autoridades ou os dogmas da Igreja. São reflexões para que as autoridades da Igreja ouçam e possam refletir. Por outro lado, acho que demorou muito até [para a Diocese determinar retratação].
Papo Feminino – O senhor diz que a estrutura de paróquia é falida e deveria ser revista. Também fala que o espaço físico das igrejas é ocioso. E diz ainda que a sexualidade deveria ser alvo de um debate na Igreja para que algumas regras em relação à conduta dos fiéis fossem reformuladas. Quais dessas declarações, na sua opinião, incomodou mais a Diocese?
Padre Beto – O que incomodou a Diocese foi o ato de refletir. Acredito que a posição de Dom Caetano é assim: “já existem pessoas em outras instâncias da Igreja refletindo por nós. Seu papel como padre não é refletir: é acatar e transmitir aos fiéis, que vão acatar também”.
Papo Feminino – Após a declaração da Diocese, dois lados se formaram nas redes sociais: aqueles que apoiam sua conduta e aqueles que repudiam. Quem não concorda com suas ideias diz que o senhor deveria sair da Igreja, já que não acata as regras internas. O que o senhor acha disso?
Padre Beto – A Igreja é uma instituição onde convivem correntes, linhas de pensamento. Neste momento histórico, determinadas linhas estão silenciosas, não estão se expressando. Mas a Igreja não pode ser um monólogo. A Igreja tem que ser uma mesa-redonda onde todas as linhas de reflexão possam discutir. E a Igreja só evolui quando essas linhas entram em debate. O Concílio do Vaticano 2º (assembleia da Igreja, realizada entre 1961 e 1965 e que, entre outros pontos, estimulou maior diálogo com outras religiões) foi um grande debate entre bispos e padres. Questionários foram enviados a todas as dioceses do mundo e encaminhados ao Vaticano para serem lidos, ou seja, teve participação de leigos. E isso foi importante para a evolução da Igreja. Preste atenção: Cristo se encontrou com todos, dialogou com todos de igual para igual, não foi preconceituoso. Dialogou com a prostituta, com a samaritana, que tinha outra fé, com os cobradores de impostos, os chamados pecadores da época. Eu digo para os meus opositores: enxerguem mais Jesus em vez de dogmas, normas ou preceitos religiosos.
Papo Feminino – Isso quer dizer que o senhor não vai se retratar?
Padre Beto – Ainda estou refletindo a respeito.
 Leia abaixo a íntegra da determinação da Diocese de Bauru:
 Ato do Governo Diocesano sobre pronunciamentos do pe. Beto pelos meios digitais
Tendo em vista os recentes pronunciamentos do padre Roberto Francisco Daniel (padre Beto) em páginas pessoais da internet, que têm provocado escândalo junto aos fiéis, agora, extrapolando-se o âmbito diocesano e indo para o mundo aberto da mídia eletrônica; tendo em vista, sobretudo, o conteúdo desses pronunciamentos que ocorrem em desacordo com os ensinamentos da Igreja no campo da doutrina, da moral e dos costumes; tendo em vista que não em poucas oportunidades o Bispo Diocesano já lhe vem alertando sobre seus pronunciamentos; e tendo em vista o diálogo realizado hoje, 23 de abril, na Cúria Diocesana, sobre o assunto, determino ao padre Beto a retirar de imediato tudo o que estiver na mídia, com palavras e imagens relativas a estas suas declarações. Determino a se retratar através do mesmo meio utilizado (site, Facebook e YouTube), no prazo até 29 de abril de 2013, confessando humildemente que errou quanto a sua interpretação e exposição da doutrina, da moral e dos costumes ensinados pela Igreja.
Nossa Diocese, que caminha rumo ao Jubileu de Ouro de sua fundação, encontra-se em oração permanente, suplicando ao Divino Espírito Santo, seu padroeiro, que ilumine nossas mentes e nossos corações para caminharmos na busca da conversão, da santidade, da comunhão e da paz.
Dom Frei Caetano Ferrari, ofm, Bispo Diocesano de Bauru.
Fonte: http://papofeminino.uol.com.br