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sábado, 1 de fevereiro de 2014

O Milagre de Nossa Senhora do Carmo

Frei Jadival, 0. Carm. ( Ex- Frade Carmelita ).
Ia alta a lua nos céus da Bahia, naquela noite de 14 de janeiro. Tudo era quietude, pois a uma hora da madrugada, normalmente o Largo do Carmo é desértico. Quando de repente: - Fogo! Fogo! Fogo!
Estava em chamas o Casarão número 4, também conhecido como a casa que hospedava D. João VI, quando passava pela Bahia, e que hoje é uma triste lembrança desse régio tempo. Em ruínas, abrigava até esses dias algumas pessoas. Havia um pequeno bar, no térreo, e uma lojinha de artesanato. Era uma invasão do que sobrara do Palacete, que tinha dois pavimentos e uma fachada impotente. E foi justamente um desses moradores o pivô da tragédia. Contam que foi briga de casal. Sabe-se com certeza que a mulher jogara o candeeiro no assoalho, provocando um incêndio. Os vizinhos assustados correram para a rua. Ligaram para o Corpo de Bombeiros. E o alvoroço se apoderou de todos. Os palpites eram os mais desencontrados possíveis. Cada um tinha um ponto de vista, mas nada que debelasse o fogo. E os bombeiros não chegavam. O fogo cada vez mais voraz consumia o velho madeirame. Até que alguém foi buscar os bombeiros. Já se passara uma hora após o alarme. A lembrança do incêndio no bairro do Chiado em Lisboa, no ano passado, era muito recente, e as característica do Centro Histórico de Salvador são idênticas às do Chiado. Mas, finalmente, chegaram os bombeiros, e começaram a combater o incêndio. Durou pouco, a água dos heróis do fogo. Acabou-se a água e para agravar a situação a localidade não possui hidrante. O fogo ganhava a luta. Alguém dentre o povaréu, por resignação diante do irremediável, disse, não se sabe se por fé ou desdém!
- Agora só milagre! Vamos rezar, gritou dona Elza em desespero. Só um milagre mesmo, pois o vento naquela noite contribuía em tudo para aumentar o caos. Não tinha jeito. Tirem tudo o que puderem de suas casas!
Dona Elza é moradora do prédio número 6, lado para o qual o vento soprava. Devota a vida toda de Nossa Senhora do Carmo, pensava em voz alta: “Minha N. Sra. quero continuar tua vizinha. Não quero me mudar daqui, protege a minha casa”. Enquanto isto convidava o povo para rezar com ela. Lembrou-se da imagem do Sagrado Coração. Sugeriram que a trouxesse para fora. Ao que ela retrucou: “Não, o Sagrado Coração vai ficar lá, para proteger minha casa”. As seculares portas da Igreja do Carmo Estavam fechadas, e alheias às angústias do povo permaneciam indiferentes aos seus rogos. Mas, foi exatamente no Adro do Carmo, na soleira da Casa de Maria (como diz o Salmo 24,11: “Sim, vale mais um dia em teus átrios que milhares a meu modo, ficar no umbral da casa do meu Deus que habitar nas tendas do ímpio”) que Dona Elza e outras pessoas se ajoelharam rezando e implorando. E dona Elza pedia: Gente! Cante assim:  “Em chuvas de graças a Mãe se mostrou . E todo Carmelo feliz exultou. Flor do Carmelo, nossa alegria/ Salve, Salve, Maria!   (bis).
Ó, vinde cristãos, louvar a Maria! Com um hino singelo e terna alegria.Flor do Carmelo, nossa alegria/ Salve, Salve, Maria!   (bis).
De repente, a lua rainha da noite perde o brilho, ante o esplendor da Rainha dos Céus, que envia a seus filhos clementes uma copiosa chuva. É, isto mesmo, uma copiosa chuva! E foi muita chuva a desabar!
O povo ficou aturdido diante de tamanha coincidência. “Sorte” diziam alguns; “milagre de Nossa Senhora do Carmo”, diziam em lágrimas os devotos, em oração no Adro da Igreja do Carmo.
E a chuva veio com vontade. Entrou madrugada a dentro, impedindo que a aurora trouxesse o sol. Amanheceu nublado e chovendo em salvador.
E o incêndio? Ah, esse foi debelado pela abençoada chuva de Graças. Quando o dia clareou, apenas fumegavam os escombros. Dona Elza conta como chorou, ao ver atendidos os clamores que fizeram a N. Sra. do Carmo. Enquanto pediam, foram atendidos.
Na missa das sete da manhã, lá estava dona Elza ajoelhada aos pés do Altar-Mor, chorando agradecida.
Este fato pode ser confirmado, pois é verídico. Os envolvidos moram no Largo do Carmo, em Salvador-BA.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

MÍSTICA E MÍSTICOS: TENTANDO DESCREVER A MÍSTICA (3ª Parte)

Dom Frei Vital João Wilderink, O. Carm.
 FÉ E MÍSTICA            
A espiritualidade é um caminho de não-ser para ser, um processo divino-humano de transformação em que podemos distinguir cinco níveis ou dimensões: criação, recriação ou redenção, semelhança, amor e glória. A mística pode tomar forma em cada uma dessas dimensões. O predomínio de uma determinada dimensão resulta em determinado tipo de mística.[1] Não existe, portanto, a mística como um prêt-a-porter. Aliás, o mesmo podemos afirmar da fé que é também uma caminhada que no concreto do seu acontecer acentua determinada dimensão. Seria interessante investigar o que alguém quer dizer quando afirma: tenho fé em Deus, ou quando um repórter, no fim de uma entrevista, pede “uma mensagem de fé” para seus ouvintes ou leitores.
Existe uma relação íntima entre fé e mística. Na fé já estamos no nível teologal: é o próprio Deus que dá ao ser humano a capacidade de relacionar-se diretamente com Ele. Portanto a fé é a raíz da vida espiritual: “Deus amou o mundo a tal ponto que deu o seu Filho único, para que todo o que nele crer não morra, mas tenha a vida eterna”(Jo 3, 16). Na fé nos apoiamos na palavra de Deus como condição da nossa peregrinação sobre esta terra. É peregrino quem vive no meio das realidades deste mundo e, ao mesmo tempo, caminha para além delas até seu fundamento invisível: “Pela fé compreendemos que o universo foi organizado por uma palavra de Deus, de sorte que as coisas visíveis provêm daquilo que não se vê”(Hb 11, 3). Caminhada feita de confiança, que sempre de novo se esbarra com as nossas exigências de autonomia racional diante das “evidências” das coisas visíveis: “Pela fé, Abraão obedeceu à ordem de partir para uma terra que devia receber como herança, e partiu, sem saber para onde iria”(Hb 11,8).
Mas, o Mistério só pode ser percebido na fé quando se torna presente. Seria irracional deixar ao homem a escolha do modo em que Deus revela sua presença porque o homem só sabe criar ídolos. Até hoje tropeça nos deuses que ele já fabricou e continua a fabricar! “Filipe, há tanto tempo estou convosco, e não me conheces? Quem me vê, vê o Pai. Como é que tu dizes: ‘Mostra-nos o Pai’? Não acreditas que eu estou no Pai e que o Pai está em mim?” (Jo 14, 9-10). Para tornar-se presença o Mistério serviu-se da própria realidade criada por Ele, entrando no tempo e no espaço. Ele se fez homem com a sua vida que nasce, se desenvolve, morre. Loucura para os racionalistas e liberais de todos os tempos, escândalo para os que se reservam o direito de interpretar o que Deus pensa.[2]
A fé faz entrar no espaço vital de Jesus o espaço da manifestação do Pai que, de maneira intensa, acontece no mistério da cruz. Mas, se não fosse a cruz do Ressuscitado, a fé não teria nenhum valor (1Cr 15,16). Quem pela fé adere a Jesus pode fazer as obras dele, inclusive outras que são maiores na sua força reveladora, uma vez que Jesus ressuscitou (cf Jo 14, 12-13). É que no tempo, em cada momento do tempo existe o “Hoje” de Deus. Pela fé o captamos mediante sinais, sinais dos tempos, como aprendemos a dizer depois do Vaticano II. Esse “Hoje” não é uma abstração, uma realidade inteligível despojada das aparências sensíveis e históricas. É perceber, ao mesmo tempo, a realidade histórica em si mesma e enquanto manifestação divina. Não se trata, porém, de uma visão evidente. Na fé o Mistério de Deus nos é dado gratuitamente. Mas, a fé tem também o seu lado subjetivo: entra aqui a consciência  pessoal que formamos desse dom. A fé é “a vitória sobre o mundo”(1 Jo 5,4). Mas o “mundo” não são somente os homens e as situações, o acontecimentos e o que se passa nele, mas também nós mesmos, o nosso jeito de ser, com todas as suas tensões, fragilidades e crises. A fé, além de ser um reconhecimento certo e firme da verdade, fundado não em provas e argumentos, mas na confiança que temos na testemunha que assegura essa verdade  para, assim, orientar a própria existência à luz dessa verdade.[3] A fé, unida à esperança e à caridade, torna-se a razão do nosso viver. Isto, porém, não acontece sem um despojamento e uma purificação do aspecto subjetivo da fé.
As virtudes teologais oferecem ao ser humano o dinamismo para um processo de transformação que, atingindo sua liberdade e sua responsabilidade histórica, dilate sempre mais a sua consciência até a universalidade de Cristo. Dirigindo-se aos cristãos de Éfeso, Paulo, em atitude de súplica, pede ao Pai “que ele faça Cristo habitar em vossos corações, pela fé, e que e que estejais enraizados e bem firmados no amor. Assim estareis capacitados a compreender, com todos os santos, qual a largura, o comprimento, a altura, a profundidade; e conhecereis também o amor de Cristo, que ultrapassa todo conhecimento, e sereis repletos da plenitude de Deus” (Ef 3, 17-19). Paulo fala do conhecimento do Mistério oferecido pela fé que de fato supera o conhecimento intelectual embora não o exclua. De outro lado, a expressão “repletos da plenitude de Deus” faz pensar num conhecimento ou, melhor talvez, numa experiência do Mistério sem outras mediações a não ser a graça, segundo a riqueza da glória de Deus, por meio do seu Espírito(Ef 3,16). Seja como for, as palavras de Paulo dão ensejo a ver mais de perto os traços caraterísticos da mística cristã que a própria fé anuncia como uma promessa.
(Leia na 4ª Parte: AS CARACTERÍSTICAS DA MÍSTICA)


[1] Kees Waaijman, Spiritualiteit, pp.846-847
[2] Cf Luigi Giussani, Um lugar, em 30 DIAS,  novembro de 2000, pp 38-44.
[3] Cf  Carlos Josaphat,OP, Fé, esperança e caridade, São Paulo, Paulinas, 1998, p.37.

A PALAVRA... Nº 528. Mais um janeiro passou.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

MÍSTICA E MÍSTICOS. (2ª Parte):O QUE ELES NOS CONTARAM

Dom Frei Vital João Wilderink, O. Carm.

Uma jovem universitária
Um dia, cedo ainda, ela foi à faculdade de bicicleta. Uma chuva que caíra durante a noite, tinha lavado as folhas das árvores que beiravam a alameda que ela percorria. De repente, uma gota d’água caiu-lhe na nuca. A reação espontânea seria levar a mão à pele umedecida para desfazer uma sensação incômoda. Mas a jovem ficou profundamente emocionada. Como se tomasse consciência de uma presença que era maior do que aquela sensação provocada pelo pingo d’água, maior do que seus próprios pensamentos. Parecia que as tantas preocupações e barreiras que marcam e fragmentam a vida tinham desaparecido numa transparência, numa unidade interior que não era feita de um simples conteúdo. Como falar disto? Embora cristã, a jovem não dispunha  de uma linguagem religiosa para verbalizar a sua experiência. Quem sabe, com as palavras do Pequeno Príncipe de Saint-Exupéry poderia ter dito: “o essencial é invisível”. Experiência do numinoso, do transcendente? Uma iluminação? Mas nem essas expressões faziam parte do vocabulário da estudante de medicina.

Um adolescente
Acariciadas pelo vento, as folhas das árvores faziam ouvir um murmúrio. Não foi a primeira vez que ele o notava. Mas naquele dia o fenômeno da natureza o atingiu além dos sentidos. Como se ele mesmo fosse puxado para dentro de uma esfera de silêncio feito de uma plenitude. Foi um breve parêntese onde perdeu a experiência e a noção de tempo e de espaço, mas que o marcou para a vida. O relato me fez pensar no profeta Elias, escondido numa gruta do monte Horeb quando, depois de um furacão, de um terremoto e de um fogo, ouviu o murmúrio de uma brisa suave: “cobriu o rosto com o manto, saiu e ficou na entrada da gruta” (1 Rs 19, 11-13).

São Bernardo (1090-1153)
Monge cisterciense, fundador da abadia de Clairvaux e de numerosos mosteiros, doutor da Igreja, conselheiro de príncipes e de papas, autor de tratados de teologia, conhecido pelos seus sermões. Num sermão sobre o Cântico dos Cânticos, o abade confessa  que recebeu com certa freqüência a visita do Verbo, mas que não soube explicar como Ele entrou. Afirma, porém, que não foi pela porta dos sentidos naturais.

Então por onde entrou? Ou será que Ele não entrou, visto que não vem de fora?  Pois Ele não é nenhuma das coisas que estão fora de nós. Também é certo que não veio de dentro de mim, porque Ele é bondade, e bem sei que em mim não existe nada de bom. Daí eu me elevei acima de mim mesmo, mas o Verbo está mais além. Intrigado, sondei o que está abaixo de mim, mas Ele está em maior profundidade. Olhando para fora de mim, concluí que está além de  tudo o que do lado de fora fica o mais longe de mim.  E olhando dentro de mim, que a sua presença é mais interior que o meu íntimo. E assim compreendi a verdade daquilo que eu tinha lido: “Nele vivemos, nos movemos e somos” (At 17,28).[1]


Santa Teresa de Ávila (1515-1582)
Religiosa carmelita reforma a sua Ordem com a ajuda de S. João da Cruz. Escreveu várias obras. Em 2 de junho de 1577, por insistência de Frei Jerônimo Gracián, começa a escrever O Castelo Interior ou As Moradas.

Enquanto eu hoje estava suplicando a nosso Senhor que falasse por mim - já que não sabia o que dizer nem como começar a cumprir esta tarefa - veio-me em mente o que agora vou dizer, para começar com um pensamento que sirva de fundamento. Este consiste nisto: considerar nossa alma como um castelo todo feito de um diamante ou cristal muito claro em que há muitos aposentos, como no céu há muitas moradas. Pois, considerando bem, irmãs, a alma do justo não é outra coisa que um paraíso em que Deus, como Ele diz, encontra as suas delícias (Pr 8,31). Pois bem, o que vocês pensam: como será o aposento onde um rei tão poderoso, tão sábio, tão puro, tão rico de todos os bens se regozija? Não encontro nada com que a grande beleza e a grande capacidade de uma alma possam ser comparadas. Realmente, a nossa inteligência, por aguda que possa ser, mal chega a compreendê-lo, assim como não pode chegar a conhecer a Deus; pois Ele mesmo diz que nos criou a sua imagem e semelhança (Gn 1,26). Agora, se é assim - e assim é - não há razão para nos cansar com tentativas para compreender a beleza desse castelo, pois, ainda que entre ele e Deus exista a diferença que há entre o Criador e a criatura - porque o castelo é criatura - é suficiente que Sua Majestade diga que o fez à sua imagem para que apenas  possamos entender a grande dignidade e beleza da alma.[2]
Consideremos portanto que esse castelo tem, como eu disse, muitas moradas, umas no alto, outras embaixo, outras dos lados. E, no centro, no meio de todas está a principal, onde se passam as coisas de grande segredo entre Deus e a alma.[3]

Dag Hammarskjöld (1905-1961)
Nasceu como quarto filho de uma família luterana, pertencente à nobreza sueca. Muito dotado e inteligente, estudou história da literatura, francês, filosofia e economia. Exerceu vários cargos no governo de seu país, principalmente nos setores econômicos e financeiros. Em abril de 1953 foi eleito secretário geral  das Nações Unidas. Morreu num desastre de avião no Congo, em 17 de setembro de 1961, quando estava empenhado em resolver pacificamente os graves conflitos naquele país. No seu apartamento em Nova York foi encontrado seu diário onde descreve o caminho da sua vida interior. Segue o texto escrito no dia de Pentecostes do ano em que faleceu:
Eu não sei quem - ou o que - fez a pergunta. Não sei quando ela foi feita. Não me recordo se respondi. Mas uma vez eu disse sim a alguém - ou a algo. Desde aquele momento tenho a certeza de que a vida tem sentido e que a minha vida, em obediência - tem um objetivo.
Desde aquele momento eu soube o que quer dizer “não olhar para trás”, ou “não preocupar-se com o dia de amanhã”. Conduzido através do labirinto da vida pelo fio de Ariadne desta resposta, alcancei um tempo e um lugar em que tomei consciência de que esse caminho leva para um triunfo que é perda, e para uma perda que é triunfo, que o preço que você recebe pelo engajamento de sua própria vida é injúria, e que a profundidade da humilhação é a única elevação que é possível para o homem. Depois disso a palavra “coragem” perdera para mim o seu sentido, porque não havia mais nada que me pudesse ser tirado.
Caminhando para mais adiante, aprendi, passo por passo, palavra por palavra, que por trás da cada frase do herói do evangelho está um homem e a experiência de um homem. Também por trás da oração para que o cálice fosse afastado dele, e por trás da promessa de esvaziá-lo  até o fim. Como está  por trás de cada palavra na cruz.[4]

Hadewijch (primeira metade do século XIII)
Pouco se sabe da história desta mística. A língua em que escreveu permite localizar Hadewijch na região de Brabante (Bélgica), possívelmente em Antuérpia. Ela exercia uma liderança num grupo de mulheres “religiosas” sem votos. Deixou alguns escritos que abrangem três categorias: Cartas, Poesias e Visões. Estas últimas são relatos da sua experiência de Deus. Cópias manuscritas desses textos foram reencontradas na Biblioteca Real em Bruxelas. Várias publicações desses manuscritos continuam, até hoje,  a incentivar estudiosos ao aprofundamento dos textos de Hadewijch do ponto de  vista literário e espiritual. Segue a tradução de um texto selecionado das Visões:

Meu Amado me deu a compreender e sentir a Si mesmo. Mas quando o vi, caí a seus pés; pois eu tomava consciência de que de todo esse caminho pelo qual fui conduzida a Ele, faltava-me ainda muitíssimo para viver.
E Ele me disse: Levanta-te, porque tu te levantaste em Mim, sem começo, totalmente livre e sem queda. Pois desejaste ser um comigo e para isso fizeste todo o possível e impossível.
(...)
Agora te farei saber o que quero de ti. Eu quero que tu, por minha vontade, estejas disposta a toda forma de miséria. E nisto Eu te ordeno  que jamais ouses irritar-te ou vingar-te por qualquer razão que seja, mesmo através do teu olhar. (...) Ainda te dou - assim falou - um novo mandamento: Tu que desejas possuir tudo de Mim na divindade, se quiseres também ser semelhante a Mim na humanidade, hás de desejar ser pobre, deplorável e desprezada entre todos os homens, e em todas as dores hás de encontrar sabor que ultrapassa todos os prazeres terrestres. Não deixes de modo algum que elas te entristeçam. Elas estarão acima das forças humanas. Se queres alcançar o amor de acordo com o brio da tua índole que me reclama todo inteiro, te tornarás uma estranha entre os seres humanos, tão desconsiderada e deplorável que não saberás onde encontrar um abrigo, nem por uma noite. Todos te deixarão cair e vão abandonar-te e ninguém vai querer estar ao teu lado na tua necessidade e na tua aflição.  Eu te asseguro que passarás por tudo isso nos dias que ainda tens para viver.  Mas  é um tempo breve, pois tua hora ainda não chegou.  
Tu és jovem ainda e queres que Eu reconheça os sofrimentos do teu corpo e o trabalho constante de tuas mãos, e a tua firme vontade de praticar a  caridade, e o desejo do teu coração e o estremecimento dos teus sentimentos, e o amor da tua alma. Pois bem, Eu reconheço tudo isso. Mas reconhece, tu também, que Eu vivia realmente como homem: que meu corpo suportava fortes dores, e que minhas mãos trabalhavam com total fidelidade, e que minha firme vontade de amar abrangia o mundo inteiro, tantos os que estavam distantes como os amigos; e meu espírito estremecia, e meu coração desejava, e minha alma amava. E em tudo isso Eu esperei completar o meu tempo, até chegar a hora em que meu Pai me retomou. Já me disseste que para mim era fácil viver como homem porque Eu tinha os sete dons. Isto é verdade: Eu os  possuía. E não só tinha os sete dons, Eu mesmo era Dom do Espírito de quem procedem os assim chamados dons. E tu me disseste que meu Pai estava comigo. É verdade, nunca nos separamos. Mas faço-te  saber uma verdade escondida sobre mim, a qual, no entanto, era clara para quem a pudesse entender: jamais, em nenhum momento, satisfiz a uma necessidade minha, qualquer que fosse, por meu próprio poder, nem apelei para os dons do meu espírito, mas em muito sofrimento os recebi de meu Pai - conquanto Ele e Eu fôssemos um, como o somos agora - e isto não antes do dia em que chegou a hora da minha consumação. Jamais aliviei, por minha onipotência, a minha aflição ou as minhas dores.[5]

João Paulo II na carta apostólica Novo Millenio Ineunte
Não será porventura um “sinal dos tempos” que se verifique hoje, não obstante os vastos processos de secularização, uma generalizada exigência de espiritualidade, que em grande parte se exprime precisamente numa renovada carência de oração? Também as outras religiões, já largamente presentes nos países de antiga cristianização, oferecem as suas respostas a tal necessidade, chegando às vezes a fazê-lo como modalidades cativantes. Nós que temos a graça de acreditar em Cristo, revelador do Pai e Salvador do mundo, temos obrigação de mostrar a profundidade a que pode levar o relacionamento com Ele.
A grande tradição mística da Igreja, tanto no Oriente como no Ocidente, é bem elucidativa
a tal respeito, mostrando como a oração pode progredir, sob a forma dum verdadeiro e próprio diálogo de amor, até tornar a pessoa humana totalmente possuída pelo Amante divino, sensível ao toque do Espírito, abandonada filialmente no coração do Pai. Experimenta-se então ao vivo a promessa de Cristo: “Aquele que me ama será amado por meu Pai, e Eu amá-lo-ei e manifestar-me-ei a ele”(Jo 14,21). Trata-se dum caminho sustentado completamente pela graça que no entanto requer grande empenhamento espiritual e conhece também dolorosas purificações (a já referida “noite escura”), mas desemboca, de diversas formas possíveis, na alegria inexprimível vivida pelos místicos como “união esponsal”. Como não mencionar aqui, entre tantos testemunhos luminosos, a doutrina de S. João da Cruz e de S. Teresa de Ávila?[6]


[1] Sermo super Cantica Canticorum 74, 5.
[2] Primeiras Moradas, I, 1. Seguimos o texto estabelecido de Tomás Alvarez, ocd, Obras Completas de Teresa de Jesus, Ed. Loyola-Ed. Carmelitanas, São Paulo, 1995. Foram feitas algumas modificações na tradução baseadas no texto espanhol das Obras Completas, 4a ed., Editorial de Espiritualidade, Madrid, 1994.
3 Ibidem I, 2.
 [4][4] Dag Hammarskjöld, Merkstenen, Kok, Kampen, 1998, p.158.
[5] Hadewijch, Een bloemlezing uit haar werken,  (composição e introdução de N. de Paepe), Elsevier, Amsterdam/Brussel, 1979, pp.12-14.
[6] Novo Millenio Ineunte, 33.

EU ABENÇOO O ROLEZINHO.

UMA PRESENÇA AMOROSA: MARIA E O CARMELO: Um Estudo da Herança Mariana na Ordem do Carmo. (1ª Parte)

Frei Christopher O’Donnell, O. Carm.

A Mariologia  Carmelitana- Uma palavra de admoestação

Nos estudos carmelitanos devemos sempre nos preocupar com o que é afirmado precisamente sobre a palavra “Carmelita”. Já que a Ordem não tem um fundador, de certo modo sempre existiu um problema de identidade. Em tais circunstâncias é natural que os carmelitas busquem enfatizar o que é deles. Contudo, o erro seria afirmar que aquilo que é autenticamente carmelitano não deveria ser também partilhado por outras famílias religiosas.

 Modo de buscar uma identidade carmelitana é eliminar do conjunto tudo o que é encontrado em outras ordens religiosas e identificar o restante como sendo “carmelita”. Assim, deveríamos buscar o que é exclusivo aos carmelitas na espiritualidade e na devoção. Um dos resultados seria ignorar as Escrituras, os sacramentos, os dogmas, os votos, já que são comuns a toda Igreja. Mesmo admitindo que poderia existir alguma compreensão específica carmelitana para alguns desses pontos como, por exemplo, os votos, permanece verdadeiro que o que é partilhado com a Igreja sobre obediência, pobreza e castidade será mais importante para a vida dos carmelitas do que aquilo que poderia pertencer somente à Ordem.

Se buscássemos no que é especificamente carmelitano naquilo que não é encontrado em outras ordens religiosas, terminaríamos com alguns hinos ou textos espirituais como o Flos carmeli, e uma determinada visão de Elias e de Maria – o que não é histórico em qualquer sentido moderno. Em vez disso, nosso objetivo é examinar toda a vida mariana da Ordem, sem estarmos interessados com o que possa ser partilhado com outras ordens.

            Façamos uma analogia. Três construtores podem receber materiais idênticos para construírem uma casa de um andar. Os mesmos materiais podem ser usados para construir uma casa com espaço suficiente para a sala-de-estar, outra com quartos espaçosos, a terceira com uma cozinha maior. Utilizando os mesmos materiais, até mesmo mais ou menos a mesma quantidade, poder-se-ía conseguir três casas bem diferentes. O que é diferente é o foco dos construtores e a disposição do mesmo material.

            Os mesmos elementos principais podem ser encontrados na mariologia das ordens medievais. Nossa tentativa será buscar a experiência carmelitana de Maria. O conjunto será genuinamente carmelitano, apesar de diversos componentes serem partilhados. É importante termos ideia sobre a cultura de nossa antiga mariologia e como esse material não é muito acessível.