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sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Finados: a sabedoria de fazer-se presente diante da morte

“Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus...” (Mt 5,12)

O artigo é de Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho segundo Mateus 5,1-12, correspondente à quinta-feira, dia 2 de novembro, Comemoração dos fiéis defuntos.
No dia de Finados, fazemos memória e nos unimos a todas aquelas pessoas cujos rostos estão gravados em nossa mente e coração, pois foram presenças que nos sustentaram, nos confortaram, nos animaram e nos impulsionaram. E podemos expressar a confiança profunda de que a vida é conduzida secretamente a um Porto de Amor definitivo, e todo pranto, impotência e fragilidade serão abraçados e sanados n’Ele.
Há tanto que agradecer a estas pessoas que, como silencioso fermento, fizeram história com Deus no interior de nossa pobre humanidade. Foram presenças inspiradoras que melhoraram uma parte do mundo e nossa gratidão as acompanha. Ditosos eles e elas, e ditosos também nós porque, na comunhão com aqueles(as) que já vivem a páscoa definitiva, somos movidos a seguir seus passos pelo caminho da vida, para sermos dispensadores humildes de felicidade, compaixão, mansidão, famintos e sedentos de justiça, de paz.
Com a morte começa a vida para sempre, no coração do Deus amor. E se a morte é capaz de nos privar do dom da vida, o “amor tem poder para nos devolvê-la”, nos afirma o bispo Balduino de Cantebery.
Ao falar da morte sempre nos sentimos impotentes, pois ela nos ultrapassa. Sabemos de sua existência, mas muitas vezes nos dá medo. E o medo da morte impede viver adequadamente o presente. Mais grave ainda, o medo da morte pode chegar a nos travar profundamente e alimentar uma angústia a ponto de impedir-nos de viver a vida com sentido, qualidade e prazer.
Nossa sociedade tende a negar a morte, afastando-a dos nossos ambientes cotidianos, tornando-a invisível; procuramos negá-la, escondê-la, dissimulá-la; preferimos não falar dela e, mesmo quando falamos desta realidade última, a ela nos referimos com temor e tremor. O pânico e a negação são nosso pão de cada dia: a compulsão por manter-nos – ou ao menos parecer-nos – jovem, o culto à saúde e à vitalidade, a incapacidade de aceitar a fragilidade e a finitude de nossa natureza humana, deixam transparecer o medo de nos deparar com a morte.
morte nos golpeia em dimensões muito sensíveis e frágeis de nossa experiência humana; ela desnuda e des-vela a precariedade de nossa existência. Com nada chegamos ao mundo e sem nada partiremos dele. E a realidade é que sem aceitação da morte continuamos presos à onipotência infantil que nos faz fantasiar de seres imortais.
E, no entanto, a morte está aí, na volta da esquina; por ser algo seguro e certo, a morte é realidade freqüente de distância, mistério e silêncio; ela nos faz cruzar o umbral do desconhecido, do qual é impossível dar um passo atrás; ficamos paralisados frente ao desconhecido e ao irreversível. A morte põe fim ao nosso estado de caminhantes neste mundo, tempo no qual fomos nos amadurecendo e crescendo.
A experiência cristã, por outro lado, nos revela o caminho de uma morte preparada ao longo da vida, porque a entende em relação com a vida e a vida em relação com a morte. Vida sem morte é irresponsável. Tira a seriedade da vida, que lhe é dada pela morte.
Na verdade, a morte nunca fala sobre si mesma. Ela sempre nos fala sobre aquilo que estamos fazendo com a própria vida: as perdas, os sonhos não realizados, os riscos que não enfrentamos por medo...
É de todos conhecido o refrão: “A morte menos temida dá mais vida”.
Superar o medo da morte é um processo longo, complexo, mas para o cristão constitui uma experiência religiosa muito profunda, que o desafia a aprofundar na consciência de si mesmo e em sua capacidade de confiar em Deus. Vencer o medo da morte é reconhecer que a vida sempre é um dom, não o resultado de nosso esforço; e que, por isso mesmo, o essencial não é encontrar um caminho para alcançar a imortalidade, mas aprender a “morrer em Cristo”.
Não é a morte aquela que deve dar sentido à nossa vida, mas ao contrário, só aprendendo a viver é que se aprende a morrer. Mesmo que nos restasse apenas um segundo de vida, faríamos muito mal em pensar na morte. Seria muito mais positivo viver plenamente esse segundo.
A fé cristã não é masoquista ou sádica quando nos ensina a bem morrer. Assim nos dá maior responsabilidade para com a própria vida. O teólogo Soren Kierkegaard afirma que “só a fé proporciona ao ser humano o valor e a audácia necessárias para olhar a morte de frente”. Sem medos, sabendo que o Deus da vida, acolhe com amor e ternura, àqueles(as) que são “aspirados(as)” para dentro de suas entranhas misericordiosas.
O diretor japonês Akira Kurosawa retrata, de maneira original, questão da morte, em seu filme Ikiru, uma obra-prima de 1952. Trata-se da história de Watanabe, um humilde burocrata japonês que descobre ter câncer de estômago e apenas mais alguns meses de vida. O câncer serve de experiência reveladora para este homem, que antes tinha vivido uma vida tão limitada e atrofiada que seus próprios funcionários o apelidaram de “a múmia”.
Depois de descobrir o diagnóstico, ele falta ao trabalho pela primeira vez em 30 anos, retira uma grande quantia de dinheiro de sua conta-corrente e tenta voltar à vida em vibrantes boates japonesas.
No meio desse ambiente devasso, ele encontra inesperadamente uma ex-funcionária que havia pedido demissão de seu escritório porque o emprego era tedioso demais: ela queria viver.
Fascinado por sua vitalidade e energia, ele a segue e implora para que ela o ensine como viver. Ela lhe disse apenas que odiava seu antigo trabalho porque se tratava de uma burocracia sem sentido.
No novo emprego, em que faz bonecas numa fábrica de brinquedos, ela se sente inspirada e motivada a viver a partir da idéia de poder levar felicidade a muitas crianças.
Quando o burocrata revela a ela seu câncer e a proximidade da morte, ela fica horrorizada e corre para longe, emitindo apenas uma única mensagem por sobre os ombros: “Faça alguma coisa”.
Watanabe retorna, transformado, ao seu trabalho, recusa-se a ser engessado pelo ritual burocrático, quebra todas as regras e dedica o restante da vida à construção de um parque infantil, que seria aproveitado por muitas crianças, durante muitos anos. Na última cena, Watanabe, próximo da morte, está sentado em um balanço no parque. Apesar da nevasca, ele está sereno e se aproxima da morte com uma tranquilidade impressionante.
De fato, aqueles que que vivem com mais intensidade são os que deixam a segurança da margem e se dedicam apaixonadamente à missão de comunicar vida aos outros.
Por isso, para os cristãos, a morte sempre se refere à Vida e à vida; à Vida com maiúscula, junto a Deus e para sempre (que chamamos Vida Eterna), e a vida de todos os dias, na qual somos chamados a ser testemunhas do amor de Deus a todos os homens e mulheres deste mundo; uma vida de serviço, de compromisso, de entrega generosa para construir um mundo melhor; uma vida com sentido, para que, quando cruzar o umbral da porta desta vida, de verdade encontremos plenamente o que tanto buscávamos: o amor, a paz e o rosto bondoso de um Deus que é Amor.
A vida se expande quando compartilhada e se atrofia quando permanece no isolamento e na comodidade. E a morte é o instante da expansão plena para aquele que soube dar um sentido inspirador à sua existência. Podemos afirmar, então, com muita propriedade, que todos morremos para o interior da Vida.

Para meditar na oração

A certeza de nossa fé em Cristo morto e ressuscitado nos ajuda a tirar do coração os medos, os impulsos auto-referentes na busca de segurança e imortalidade, para encontrar uma paz profunda que nos permita fazer de nossa vida uma oferenda gratuita em favor da vida de outros.

Como você se situa diante da morte: medo? serenidade? certeza de poder mergulhar numa Vida maior?... Fonte: http://www.ihu.unisinos.br

terça-feira, 31 de outubro de 2017

A guerra contra o Papa Francisco

Sua modéstia e humildade fizeram dele uma figura popular em todo o mundo. Mas dentro da Igreja, suas reformas têm enfurecido os conservadores e desencadeado uma revolta.
O Papa Francisco é um dos homens mais odiados do mundo atualmente. Os que mais o odeiam não são ateus, protestantes, nem muçulmanos, mas alguns de seus seguidores. Fora da Igreja, ele é muito conhecido como uma figura de modéstia e humildade quase ostensivas. Desde que o Cardeal Jorge Bergoglio tornou-se Papa, em 2013, seus gestos capturaram a imaginação mundial: o novo Papa dirigia um Fiat, carregava suas próprias malas e cuidava de suas próprias contas de hotel; perguntava, a respeito dos gays, "Quem sou eu para julgar?" e lavou os pés de mulheres muçulmanas refugiadas. A reportagem é de Andrew Brown, publicada por The Guardian, 27-10-2017. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Mas dentro da Igreja Francisco tem provocado uma reação feroz dos conservadores, que temem que este espírito a divida e possa chegar a destruí-la. Neste verão, um importante sacerdote inglês me disse: "Mal podemos esperar por sua morte. O que dizemos em particular não é publicável. Quando dois padres se encontram, falam sobre o quão horrível é Bergoglio... é como o Calígula: se tiver um cavalo, iria nomeá-lo cardeal." Claro, depois de 10 minutos reclamando, acrescentou: "Nada disso pode ser publicado, ou vou ser demitido."
Esta mistura de ódio e medo é comum entre os adversários do Papa Francisco, o primeiro papa não Europeu dos tempos modernos e o primeiro papa jesuíta, foi eleito como alguém fora do sistema do Vaticano e, naturalmente, faria inimigos. Mas ninguém previa que seriam tantos. Desde sua pronta renúncia da pompa do Vaticano, que notificou os 3.000 integrantes da do serviço da Igreja da qual queria ser o mestre, até seu apoio aos migrantes, ataques ao capitalismo global e, acima de tudo, seus movimentos para re-examinar os ensinamentos da Igreja sobre sexo, ele tem escandalizado reacionários e conservadores. A julgar pelas figuras que votaram no último encontro mundial dos bispos, quase um quarto do Colégio dos Cardeais – o mais alto clero da Igreja – acredita que o Papa está flertando com a heresia.
O ponto alto da crise chegou em um conflito sobre sua visão a respeito do divórcio. Rompendo com séculos, se não milênios, de teoria católica, o Papa Francisco tentou encorajar os padres católicos a dar a comunhão a alguns casais divorciados e recasados e famílias em que os pais são solteiros e moram juntos. Seus inimigos estão tentando forçá-lo a desistir dessa tentativa.
Como isso não vai acontecer, e suas ideias têm prosperado apesar do descontentamento de muitos, eles estão se preparando para lutar. No ano passado, um cardeal, apoiado por alguns colegas aposentados, levantou a possibilidade de uma declaração formal de heresia – a rejeição deliberada de uma doutrina estabelecida da Igreja, um pecado punível com a excomunhão. No mês passado, 62 católicos insatisfeitos, incluindo um bispo aposentado e um ex-chefe do banco do Vaticano, publicaram uma carta aberta acusando Francisco de sete ocorrências específicas de ensino herético.
Acusar um Papa atual de heresia é a opção nuclear em conflitos católicos. A doutrina afirma que o Papa não pode estar errado ao falar sobre as questões centrais da fé; se estiver errado, não pode ser Papa. Por outro lado, se estiver certo, todos os antecessores deviam estar errados.
A questão é particularmente tóxica, porque é quase completamente teórica. Na prática, em grande parte do mundo, os casais divorciados e recasados recebem a comunhão rotineiramente. O Papa Francisco não está propondo uma revolução, mas o reconhecimento burocrático de um sistema que já existe e pode até ser essencial para a sobrevivência da Igreja. Se as regras fossem aplicadas de forma literal, ninguém cujo casamento não deu certo poderia ter relações sexuais novamente. Não é uma maneira prática de garantir que existam futuras gerações de católicos.
Mas as cautelosas reformas de Francisco parecem, para os seus adversários, ameaçar a crença de que a Igreja ensina verdades atemporais. Se a Igreja Católica não ensina verdades eternas, perguntam os conservadores, qual é o sentido? A batalha acerca do divórcio e do novo casamento trouxe à tona duas ideias profundamente contrárias da função da Igreja. A insígnia do Papa é duas chaves cruzadas, representando aqueles que Jesus supostamente ofereceu a São Pedro e simbolizando a capacidade de vinculação e perda: proclamar o que é pecado e o que é permitido. Mas qual é mais importante e mais urgente agora?
A crise atual é a mais grave desde que as reformas liberais dos anos 60 impulsionaram um grupo dissidente de conservadores radicais a romper com a Igreja. (Seu líder, o arcebispo francês Marcel Lefebvre, foi depois excomungado). Durante os últimos anos, escritores conservadores têm levantado o espectro do cisma por diversas vezes. Em 2015, o jornalista americano Ross Douthat, que se converteu ao catolicismo, escreveu um artigo para a revista Atlantic cuja manchete era Será que o Papa Francisco vai quebrar a Igreja?; um post do blogue Spectator do tradicionalista inglês Damian Thompsonameaçou que o "Papa Francisco está em guerra com o Vaticano. Se ele vencer, a Igreja pode desmoronar." A visão do Papa sobre o divórcio e a homossexualidade, de acordo com um arcebispo do Cazaquistão, permitiu que "a fumaça do Satanás" entrasse na Igreja.
A Igreja Católica passou grande parte do século passado lutando contra a revolução sexual, tanto quanto lutou contra as revoluções democráticas do século XIX, e nesta luta teve que defender uma posição absolutista indefensável, que proíbe qualquer forma de contracepção artificial, assim como qualquer relação sexual fora do casamento para toda a vida. Como Francisco reconhece, as pessoas não se comportam assim. O clero sabe disso, mas deve fingir que não. O ensino oficial não pode ser questionado, mas também não pode ser obedecido. Alguém tem que ceder, e quando isso acontece, a explosão que resulta pode quebrar a Igreja.
Apropriadamente, o ódio às vezes amargo dentro da Igreja – direcionado ao aquecimento global, à migração ou ao capitalismo – chegaram a um ponto de uma luta gigantesca sobre as implicações de uma única nota de rodapé em um documento chamado The Joy of Love (ou, em latim, Amoris Laetitia). O documento, escrito por Francisco, é um resumo do debate atual sobre o divórcio, e é nesta nota de rodapé que ele faz uma afirmação aparentemente suave de que casais divorciados e recasadospodem, às vezes, receber a comunhão.
Com mais de 1 bilhão de seguidores, a Igreja Católica é a maior organização global que o mundo já viu, e muitos deles são pais divorciados ou solteiros. A Igreja depende de trabalho voluntário para realizar sua obra em todo o mundo. Se os fiéis comuns deixarem de acreditar no que estão fazendo, tudo desmorona. O papa sabe disso. Se não for possível conciliar teoria e prática, a Igreja pode se esvaziar em todos os lugares. Seus adversários também acreditam que a Igreja enfrenta uma crise, mas afirmam o contrário. Para eles, a lacuna entre teoria e prática é exatamente o que confere valor e significado à Igreja. Se eles conseguem viver sem o que a Igreja oferece, segundo acreditam os adversários de Francisco, ela certamente entrará em colapso.
Ninguém previu isso quando Francisco foi eleito em 2013. Um dos motivos para sua nomeação como papa por seus colegas cardeais foi resolver a esclerose da burocracia do Vaticano. Há muito que se esperava por isso. O Cardeal Bergoglio de Buenos Aires foi eleito como alguém relativamente de fora, que poderia limpar parte do bloqueio no centro da Igreja. Mas essa missão em breve colidiu com uma linha de falha ainda mais acirrada na Igreja, que é geralmente descrita como uma batalha entre "liberais", como Francisco, e "conservadores", como seus inimigos. Mas isso é uma classificação escorregadia e enganosa.
O conflito central é entre católicos que acreditam que a Igreja deve definir a agenda do mundo e os que pensam que o mundo deve definir a agenda da Igreja. São tipos ideais: no mundo real, os católicos são uma mistura dessas orientações, mas, em sua maioria, uma predomina.
O papa Francisco é um exemplo puro de católico extrovertido ou "voltado para o exterior", especialmente em comparação com seus antecessores imediatos. Seus adversários são os introvertidos. Muitos atraíram-se pela Igreja por sua distância das preocupações do mundo. Um número surpreendente dos principais introvertidos advém de pessoas convertidas do protestantismo estadunidense, algumas conduzidas pela superficialidade dos recursos intelectuais com que foram criadas, mas principalmente por um sentimento de que o protestantismo liberal estava morrendo justamente porque já não oferecia nenhuma alternativa para a sociedade ao seu redor. Querem mistério e romance, não o senso comum estéril ou a sabedoria convencional. Nenhuma religião pode florescer sem esse impulso.
Assim como nenhuma religião global pode ficar totalmente contra o mundo. No início da década de 60, um encontro de três anos entre os bispos de todas as partes da Igreja, conhecido como o Segundo Concílio Vaticano, o Concílio Vaticano II, "abriu as janelas para o mundo", nas palavras do Papa João XXIII, que iniciou o movimento, mas morreu antes de concluir seu trabalho.
O Concílio renunciou ao antissemitismo, abraçou a democracia, proclamou direitos humanos universais e em grande medida aboliu a missa em latim. O último ato, em particular, surpreendeu os introvertidos. O escritor Evelyn Waugh, por exemplo, nunca foi a uma missa em inglês após a decisão. Para homens como ele, os rituais solenes de um serviço realizado por um sacerdote de costas para a Congregação, falando inteiramente em latim, diante de Deus no altar, eram o coração da Igreja – uma janela para a eternidade promulgada em cada performance. O ritual foi central para a Igreja de uma forma ou de outra desde a sua fundação.
A mudança simbólica provocada pela nova liturgia – substituindo o padre introvertido voltado para Deus no altar pela figura extrovertida voltado à congregação – era imensa. Alguns conservadores ainda não se reconciliaram com a reorientação, como o Cardeal ganês Robert Sarah, apontado por introvertidos como um possível sucessor de Francisco, e o Cardeal estadunidense Raymond Burke, que emergiu como o adversário mais explícito de Francisco. A crise atual, nas palavras da jornalista católica inglesa Margaret Hebblethwaite – partidária apaixonada de Francisco – o "Vaticano II está voltando novamente".
"É preciso ser inclusivo e acolhedor a tudo o que é humano", disse Sarah em uma reunião do Vaticano no ano passado, em uma denúncia das propostas de Francisco, "mas o que vem do inimigo não pode e não deve ser assimilado. Não se pode juntar Cristo e Belial! O que foram o nazi-fascismo e o comunismo no século XX, são as ideologias ocidentais da homossexualidade e do aborto e o fanatismo islâmico hoje."
Nos anos imediatamente depois do Concílio, freiras descartaram seus hábitos, sacerdotes descobriram as mulheres (mais de 100.000 deixaram o sacerdócio para se casar), e teólogos jogaram fora com as algemas da ortodoxia introvertida. Após 150 anos resistindo e repelindo-o, a Igreja viu-se engajada com o mundo exterior em todos os lugares, parecer aos introvertidos que todo o edifício entraria em colapso, tornando-se escombros.
O número de frequentadores da Igreja despencou no mundo ocidental, assim como em outras denominações. Nos EUA, 55% dos católicos iam à missa regularmente em 1965; em 2000, apenas 22%. Em 1965, 1.3 milhões de bebês católicos eram batizados nos Estados Unidos; em 2016, apenas 670.000. Se foi causa ou correlação, permanece o debate feroz. Para os introvertidos, a culpa é do abandono das verdades eternas e práticas tradicionais; já os extrovertidos sentiram que a Igreja não tinha mudado muito ou rápido o suficiente.
Em 1966, uma comissão papal de 69 membros, com sete cardeais e 13 médicos, em que leigos e até mesmo algumas mulheres eram representadas, votou esmagadoramente pela revogação da proibição da contracepção artificial, mas o Papa Paulo VI negou o pedido em 1968. Ele não podia admitir que seus antecessores estavam errados, e os protestantes estavam certos. Para uma geração de católicos, o debate passou a simbolizar a resistência à mudança. No mundo em desenvolvimento, a Igreja Católica em grande parte foi dominada por um enorme renascimento Pentecostal, que oferecia muito carisma e status para os leigos, mesmo para as mulheres.
Os introvertidos vingaram-se com a eleição do Papa (agora Papa São) João Paulo II, em 1978. Sua igreja polonesa havia sido definida por sua oposição ao mundo e seus poderes dividiram o país a partir dos nazistas e comunistas, em 1939. João Paulo II era um homem de uma tremenda energia, força de vontade e dons importantes. Ele também era profundamente conservador em assuntos de moralidade sexual e, quando era cardeal, forneceu a justificativa intelectual para a proibição do controle de natalidade.
Desde o momento da sua eleição, ele começou a remodelar a Igreja à sua imagem. Se não podia transmitir seu próprio dinamismo e força de vontade, podia, ao que parecia, expurgar a Igreja da extroversão e configurá-la mais uma vez como uma rocha, contra as correntes do mundo secular.
Ross Douthat, o jornalista católico, foi uma das poucas pessoas no partido introvertido que estava disposto a falar abertamente sobre o conflito atual. Por ser jovem, ele foi um dos que se converteram na época do Papa João Paulo II. Agora, diz: "A Igreja pode estar bagunçada, mas o importante é que o centro é sadio, e sempre se pode reconstruir as coisas a partir do centro. Ser católico é bom porque há garantia de continuidade no centro, e, com isso, a esperança de reconstituição da ordem católica."
João Paulo II teve o cuidado de nunca repudiar as palavras do Concílio Vaticano II, mas trabalhou para esvaziá-las do espírito extrovertido. Ele começou impondo uma disciplina feroz sobre o clero e os teólogos. Dificultou tanto quanto possível que os sacerdotes saíssem para se casar. Seu aliado nisso era a Congregação para a Doutrina da Fé - CDF, antes conhecida como Santo Ofício. A CDF é o departamento mais institucionalmente introvertido do Vaticano (ou "dicastérios", como são conhecidos desde a época dos impérios romanos; é um detalhe que indica o peso da experiência institucional e inércia – se o nome era bom o suficiente para Constantino, por que mudar?).
Para a CDF, era axiomático que o papel da Igreja fosse ensinar o mundo, e não aprender com ele. Há uma longa história de punição aos teólogos que discordam: foram proibidos de publicar ou retirados de universidades católicas.
No início do pontificado de João Paulo II, a CDF publicou Donum Veritatis (o dom da verdade), um documento explicando que todos os católicos devem praticar a "submissão da vontade e intelecto" ao que o Papa ensina, mesmo quando não é infalível; e que teólogos, embora possam discordar e dar a conhecer aos superiores, nunca devem expressar desacordo em público. Isso foi usado como uma ameaça, e, por vezes, como uma arma, contra qualquer pessoa suspeita de dissidência liberal. Francisco, no entanto, transformou esses poderes contra os que haviam sido seus defensores mais entusiastas. Os padres, bispos e cardeais católicos servem ao Papa e podem a qualquer momento ser demitidos. Os conservadores aprenderiam tudo sobre isso durante o papado de Francisco, que demitiu pelo menos três teólogos da CDF. Os jesuítas demandam disciplina.
Em 2013, logo após sua eleição, enquanto ainda estava numa onda de aclamação quase universal pela ousadia e simplicidade de seus gestos – havia se mudado para dois quartos com pouca mobília nos jardins do Vaticano, em vez dos apartamentos suntuoso do Estado usados por seus predecessores –, Francisco expurgou uma pequena ordem religiosa dedicada à prática da missa em latim.
Os Frades Franciscanos da Imaculada, um grupo com cerca de 600 membros (homens e mulheres), estava sendo investigado por uma Comissão em junho de 2012, durante o papado de Bento XVI. Eles eram acusados de combinar cada vez mais uma política de extrema direita com uma devoção à missa em latim. (Esta mistura, muitas vezes vista ao lado de declarações de ódio do "liberalismo", também estava se espalhando na mídia on-line nos EUA e no Reino Unido, como o blogue Holy Smoke, do Daily Telegraph, editado por Damian Thompson).
Quando houve o relato da Comissão, em julho de 2013, a reação de Francisco chocou os conservadores rígidos. Ele fez os frades deixarem de usar o latim na missa em público e fechou seu seminário. Ainda podiam educar novos sacerdotes, mas não segregados do resto da Igreja. Além disso, foi muito direto, sem passar pelo sistema jurídico interno do Vaticano, liderado na época pelo Cardeal Burke. No ano seguinte, Francisco demitiu Burke de seu trabalho poderoso no sistema jurídico interno do Vaticano e ganhou um inimigo implacável.
Burke, um estadunidense audacioso, dado às vestes de rendas bordadas e (em ocasiões formais) à capa escarlate cerimonial, que de tão longa precisa de pessoas que carreguem sua cauda, foi um dos principais reacionários no Vaticano. Na forma e na doutrina, ele representa uma longa tradição de grandes corretores de poder estadunidense do Catolicismo étnico branco. A Igreja hierática, patriarcal e conflituosa da missa em latim é seu ideal, ao qual parecia que a Igreja de João Paulo II e de Bento XVI foi voltando lentamente – até Francisco começar a trabalhar.
A combinação do Cardeal Burke de anticomunismo, orgulho étnico e ódio do feminismo tem alimentado uma sucessão de figuras proeminentes de direita nos Estados Unidos, de Pat Buchanan a Bill O'Reilly e Steve Bannon, ao lado de intelectuais católicos conhecidos como Michael Novak, que promoveram incansavelmente as guerras no Oriente Médio e a compreensão Republicana dos mercados livres.
Foi o Cardeal Burke que convidou Bannon, que já era o espírito que animava o Breitbart News, para falar em uma conferência no Vaticano, por videoconferência, da Califórnia, em 2014. O discurso de Bannon foi apocalíptico, incoerente e historicamente excêntrico. Mas não havia como confundir a urgência da sua convocação para uma guerra santa: a segunda guerra mundial, disse, tinha sido "judaico-cristãos do oeste contra os ateus", e agora a civilização estava "em estágios iniciais de uma guerra global contra o fascismo islâmico... um conflito brutal e sangrento... que erradicará completamente todo o nosso legado dos últimos 2.000, 2.500 anos... se as pessoas nesta sala, as pessoas na Igreja, não... lutarem por nossas crenças, contra esta nova barbárie que está começando."
Tudo no discurso é um anátema para Francisco. A primeira viagem oficial do Papa para fora de Roma, em 2013, foi para a ilha de Lampedusa, que havia se tornado o ponto de chegada de dezenas de milhares de migrantes desesperados do norte da África. Como ambos seus predecessores, ele se opõe firmemente às guerras no Oriente Médio, embora o Vaticano tenha apoiado, de forma relutante, a extirpação do califado doEstado Islâmico. Ele se opõe à pena de morte. Ele abomina e condena o capitalismo estadunidense: depois de dar seu apoio a migrantes e homossexuais, a primeira grande instrução política do seu período no cargo foi uma encíclica, documento que traz um ensinamento, dirigido a toda a Igreja, que condenava ferozmente o funcionamento de mercados globais.
"Algumas pessoas continuam defendendo teorias de gotejamento que pressupõem que o crescimento econômico, incentivado por um mercado livre, inevitavelmente terá sucesso em trazer maior justiça e inclusão no mundo. Esta opinião, que nunca foi confirmada pelos fatos, exprime uma enorme e ingênua confiança na bondade daqueles que exercem o poder econômico e no funcionamento sacralizado do sistema econômico vigente. Enquanto isso, os excluídos ainda estão esperando."
Acima de tudo, Francisco está do lado dos imigrantes – ou os emigrantes, como ele os vê – expulsos de casa por um capitalismo voraz e destrutivo sem limites, que causou uma mudança climática catastrófica. É uma questão racial, assim como profundamente política, nos EUA. Os evangélicos que votaram em Trump e no seu muro são esmagadoramente brancos. Assim como a liderança da Igreja Católica estadunidense. Mas cerca de um terço dos leigos são hispânicos, e essa proporção está crescendo. No mês passado, Bannon afirmou, em entrevista ao programa 60 Minutes da CBS, que os bispos estadunidenses eram a favor da imigração em massa só porque mantinha suas congregações – embora a questão vá adiante do que a maioria dos bispos de direita diga publicamente.
Quando Trump anunciou que construiria um muro para manter os imigrantes fora do país, Francisco chegou muito perto de negar que o então candidato seria cristão. Na visão do papa dos perigos para a família, os banheiros para transgêneros não são o problema mais urgente, como afirmam alguns guerreiros culturais. O que destrói famílias, escreveu, é um sistema econômico que força milhões de famílias pobres a se separar em busca de trabalho.
Assim como abordou os praticantes da antiga missa em latim, Francisco começou uma ampla ofensiva contra a velha guarda dentro do Vaticano. Cinco dias após sua eleição, em 2013, ele convocou o Cardeal hondurenho Óscar Rodríguez Maradiaga e disse que ele seria o coordenador de um grupo de nove Cardeais de todo o mundo cuja missão era limpar o lugar. Todos eles haviam sido escolhidos por sua energia e pelo fato de já terem discordado do Vaticano. Foi um movimento popular em todos os lugares fora de Roma.
João Paulo II passou a última década de sua vida cada vez mais debilitado pela doença de Parkinson, e as energias que restavam não foram gastas com lutas burocráticas. A Cúria, como a burocracia do Vaticano é conhecida, ficou ainda mais poderosa, estagnada e corrupta. Muito pouco foi feito contra os bispos que abrigaram padres que abusaram de criança. O banco do Vaticano - IOR era conhecido pelos serviços de lavagem de dinheiro. O processo de fabricação de santos – algo que João Paulo II tinha feito a um ritmo sem precedentes – tornou-se uma confusão extremamente cara. (O jornalista italiano Gianluigi Nuzzi estimou o custo de uma canonização em €500.000 por halo.) As finanças do Vaticano em si eram uma confusão horrível. O próprio Franciscorefere-se a "um fluxo de corrupção", na Cúria.
O estado pútrido da Cúria era amplamente conhecido, mas nunca abordado em público. Em nove meses da nomeação, Francisco disse a um grupo de freiras que "na Cúria, também existem pessoas santas, realmente, existem pessoas santas" – sendo que a revelação foi que ele imaginou que o público de freiras ficaria chocado ao descobrir isso.
A Cúria, disse, "vê e cuida dos interesses do Vaticano, que ainda são, em grande parte, interesses temporais. Esta visão centrada no Vaticano ignora o mundo que nos rodeia. Não compartilho desta opinião, e vou fazer o que puder para mudar isso." Ele disse ao jornal italiano La Repubblica: "Os líderes da Igreja muitas vezes foram narcisistas, orgulhosos e emocionados por seus cortesãos. O tribunal é a lepra do papado".
"O Papa nunca falou nada agradável sobre os sacerdotes," disse o padre que mal pode esperar por sua morte. "Ele é um jesuíta anticlerical. Lembro disso pelos anos 70. Eles diziam: 'Não me chame de Padre, me chame de Gerry' – essa porcaria – e nós, o clero paroquial oprimido, sentimos que perdemos o chão."
Em dezembro de 2015, Francisco fez seu tradicional discurso de Natal à Cúria Romana, e não teve papas na língua: Acusou-os de arrogância, “Alzheimer espiritual”, "hipocrisia típica dos medíocres e um vazio espiritual progressivo que graus acadêmicos não conseguem preencher", bem como materialismo vazio e vício por fofoca e calúnia – não é o tipo de coisa que se quer ouvir do chefe na festa do escritório.
Porém, quatro anos após ter se tornado papa, a resistência passiva do Vaticanoparece ter triunfado sobre a energia de Francisco. Em fevereiro deste ano, apareceram cartazes durante a noite nas ruas de Roma que perguntavam, "Francisco, onde está sua compaixão?", atacando-o por seu tratamento ao Cardeal Burke. Os cartazes só podem ter vindo de desafetos no Vaticano e são sinais exteriores de uma teimosa recusa de ceder poder ou privilégio aos reformadores.
Esta batalha, porém, tem sido ofuscada, assim como todas as outras, pelos conflitos internos sobre a moralidade sexual. A luta sobre o divórcio e o recasamento centra-se em dois fatos. Primeiro, que a doutrina da Igreja Católica não mudou em quase 2.000 anos – o casamento é indissolúvel pela vida toda; isso é muito claro. Assim como o segundo fato: As taxas de pessoas que se divorciam ou casam novamente entre os católicos são as mesmas do restante da população, e quando isso acontece, eles não veem nada imperdoável em suas ações. Portanto, as igrejas do mundo ocidental estão cheias de casais divorciados e que se casaram novamente que recebem a comunhão com os outros, mesmo que eles e seus sacerdotes saibam perfeitamente que isso não é aceitável.
Os ricos e poderosos sempre exploraram as lacunas. Quando querem se livrar de uma mulher e casar novamente, um bom advogado encontra uma forma de provar que o primeiro casamento foi um erro, não algo que tenha entrado no espírito que a Igreja exige, para que seu registro possa ser limpo – no jargão, anulado. Isto se aplica especialmente para os conservadores: Steve Bannon conseguiu se divorciar das suas três esposas, mas talvez o exemplo atual mais escandaloso seja o de Newt Gingrich, que liderou a aquisição republicana do Congresso na década de 90 e desde então reinventou-se como aliado de Trump. Gingrich terminou com sua primeira esposa enquanto ela se tratava para um câncer e, ainda casado com sua segunda esposa, teve um caso de oito anos com Callista Bisek, devota católica, antes de se casar com ela na Igreja. Ela está prestes a assumir o cargo de embaixadora de Donald Trump no Vaticano.
O ensino sobre casar-se novamente após um divórcio não é o único ensino sexual católico que nega a realidade dos leigos, mas é o mais prejudicial. A proibição da contracepção artificial é ignorada por todos onde quer que seja legal. A hostilidade aos gays é comprometida pelo fato geralmente conhecido de que uma grande proporção do sacerdócio no Ocidente é gay, e alguns deles são bem ajustados celibatários. A rejeição do aborto não é um problema onde o aborto é legal, e, em todos os casos, não é particular à Igreja Católica. Mas a recusa em reconhecer segundos casamentos, a menos que o casal prometa nunca mais fazer sexo, destaca os absurdos de uma casta de homens celibatários que regulam a vida das mulheres.
Em 2015 e 2016, Francisco convocou duas grandes conferências ou sínodos de bisposde todo o mundo para discutir tudo isso. Ele sabia que não podia operar mudanças sem amplo acordo. Ele manteve-se em silêncio e encorajou os bispos a discutir. Mas logo ficou claro que favoreceu um considerável afrouxamento da disciplina em torno da comunhão, após um novo casamento. Como isso é o que se passa na prática de qualquer forma, é difícil para alguém de fora entender as paixões que desperta.
"O que me preocupa é a teoria", disse o padre inglês que confessou seu ódio por Francisco. "Na minha paróquia há muitos casais divorciados e recasados, mas muitos deles, se ouvissem que o primeiro cônjuge havia morrido, correriam para casar na igreja. Conheço muitos homossexuais que estão fazendo todo tipo de coisa errada, mas que sabem que não devem fazer. Somos todos pecadores. Mas temos que manter a integridade intelectual da fé católica".
Pensando assim, o fato de que o mundo rejeita seu ensino meramente prova o quão correto é. "A Igreja Católica deveria ser contracultural na esteira da revolução sexual", diz Ross Douthat. "A Igreja Católica é o último lugar do mundo ocidental que diz que o divórcio é ruim."
Para Francisco e seus apoiadores, tudo isso é irrelevante. A Igreja, afirma, deveria ser um hospital ou um posto de primeiros-socorros. As pessoas que estão divorciadas não precisam que alguém lhes diga que isso é ruim. Precisam recuperar e reconstruir suas vidas novamente. A Igreja deve ficar ao seu lado e demonstrar piedade.
No primeiro Sínodo dos Bispos em 2014, essa ainda era uma opinião minoritária. Um documento liberal estava preparado, mas foi rejeitado pela maioria. Um ano depois, os conservadores estavam claramente em minoria, mas uma minoria muito determinada. O próprio Francisco escreveu um resumo das deliberações de A Alegria do Amor. É um documento longo, reflexivo e cuidadosamente ambíguo. A dinamite é enterrada na nota de rodapé 351 do capítulo oito e teve grande importância nas revoluções subsequentes.
A nota de rodapé faz um adendo a uma passagem que vale a pena citar tanto pelo que diz como pela forma com que diz. Sua mensagem é clara: algumas pessoas vivendo segundos casamentos (ou parcerias civis) "podem viver na graça de Deus, podem amar e podem também crescer na vida de graça e de caridade, recebendo para isso a ajuda da Igreja".
Mesmo a nota de rodapé, que diz que esses casais podem receber a comunhão se confessarem seus pecados, aborda o assunto com cautela: "Em certos casos, isso pode incluir a ajuda dos sacramentos." Portanto, "quero lembrar os sacerdotes que o confessionário não pode ser uma câmara de tortura, mas um encontro com a misericórdia do Senhor." E: "Gostaria também de salientar que a Eucaristia 'não é um prêmio para a perfeição, mas um poderoso remédio e alimento para os fracos'."
"Por pensar que tudo é preto ou branco", acrescenta Francisco, "às vezes fechamos o caminho da graça e do crescimento".
É esta pequena passagem que uniu todas as rebeliões contra sua autoridade. Ninguém consultou os leigos para sabem sua opinião sobre isso, que em caso algum foi de interesse para o partido introvertido. Mas entre um quarto e um terço dos bispos resiste passivamente à mudança, e uma pequena minoria está fazendo isso de forma ativa.
O líder dessa facção é o grande inimigo de Francisco, o Cardeal Burke. Demitido primeiro do cargo no Tribunal do Vaticano e depois da comissão de liturgia, ele acabou no conselho de fiscalização dos Cavaleiros de Malta – um órgão de caridade dirigido pelas velhas aristocracias católicas da Europa. No outono de 2016, despediu o líder da ordem por supostamente permitir que freiras distribuíssem preservativos na Birmânia. Isso é algo que as freiras fazem muito no mundo em desenvolvimento, para proteger as mulheres vulneráveis. O homem que havia sido demitido apelou ao Papa.
O resultado foi que Francisco reintegrou o homem que Burke tinha demitido e nomeou outra pessoa para assumir a maioria das funções de Burke. Foi um castigo por suas afirmações completamente falsas de que o Papa estava do seu lado no conflito original.
Enquanto isso, Burke utilizou-se de outras frentes, que chegaram o mais próximo que conseguiu de acusar o Papa de heresia. Juntamente com três outros cardeais, dois dos quais já morreram, Burke produziu uma lista de cinco questões destinadas a verificar seAmoris Laetitia violava o ensino anterior ou não. As questões foram enviadas como uma carta formal para Francisco, que ignorou. Depois de ser demitido, Burke divulgou as questões e disse que estava preparado para emitir uma declaração formal de que o Papa era um herege se ele não as respondesse, para satisfazê-lo.
Claro, Amoris Laetitia representa uma ruptura com o ensino anterior. É um exemplo da Igreja ter aprendido com a experiência. Mas é difícil os conservadores assimilarem: historicamente, estas explosões de aprendizagem só aconteceram em convulsões, a séculos de distância. Essa chegou apenas 60 anos após a última explosão de extroversão, com o Concílio Vaticano II, e somente 16 anos depois de João Paulo II ter reiterado a velha linha dura.
"O que significa um papa contradizer um papa anterior?", pergunta Douthat. "É notável o quão perto Francisco chegou de discutir com seus predecessores imediatos. Foi apenas há 30 anos que João Paulo II previu no Veritatis Splendor uma linha que parece contradizer Amoris Laetitia."
O Papa Francisco está deliberadamente contradizendo um homem que ele mesmo proclamou santo. Isso dificilmente vai incomodá-lo. Talvez a mortalidade incomode. Quanto mais Francisco altera a linha de seus predecessores, mais fácil fica para que um sucessor reverta a sua. Embora a doutrina católica sofra alterações, depende de sua força a ilusão de que não. Os pés podem estar dançando sob a batina, mas o manto pode nunca se mover. No entanto, isso também significa que mudanças que haviam ocorrido podem ser revertidas sem qualquer movimento oficial. É assim que João Paulo IIatingiu o Vaticano II.

Para garantir que as mudanças de Francisco vão perdurar, a Igreja tem que aceitá-las. Essa é uma pergunta que não será respondida em sua vida. Ele tem 80 anos e só tem um pulmão. Seus adversários podem ser rezando por sua morte, mas ninguém sabe se seu sucessor tentará contradizê-lo – e dessa questão depende o futuro da Igreja Católica. Fonte: http://www.ihu.unisinos.br

domingo, 29 de outubro de 2017

30º Domingo do Tempo Comum: Fiquei pensando...


Comentário do Frei Petrônio de Miranda, Padre Carmelita e jornalista, Rio de Janeiro.

Fiquei pensando...

Fiquei... Pensando nos corruptos da Lava Jato- todos, ou 99, 9 % são cristãos- Como é possível alguém dizer que segue o amor de Jesus e desvia bilhões dos pobres? Quantos estão padecendo nos hospitais ou em suas casas vítimas dos desvios das verbas da saúde? No Rio de Janeiro, várias crianças foram vítimas das balas perdidas. Enquanto o Gedel Vieira Lima- Cristão- “guardava” mais de 50 milhões em seu apartamento, no sertão baiano diversas famílias não tem o precioso líquido, a água. É possível seguir o Cristo e seu amor e deixando o povo padecer?
Fiquei... Pensando nos moradores de rua das grandes cidades. Ontem estive na Praça da Sé, São Paulo. Lá tem a maior concentração de moradores e rua por metro quadrado. Onde resido, na Lapa, Rio de Janeiro, também se repete a mesma sena da Sé. Será que podemos falar do amor de Jesus e fingir que não existem homens e mulheres vivendo de uma maneira sub-humana? Que amor é esse?   
Fiquei pensando... Pensando nos refugiados e seus diversos campos- verdadeiros campos de concentração- onde crianças e anciões- as principais vítimas- morrem por não ter o básico para a sobrevivência. É possível falarmos em alto e bom som no amor do Nazareno sem voltar o nosso olhar para esta realidade que envergonha o mundo?
Fiquei pensando... Pensando nos milhares de desempregados no Brasil. Famílias que não tem mais o básico para sobreviver. Jovens sem perspectivas de futuros, sem sonhos e sem brilho nos olhos. Como podemos falar do amor de Jesus fechando os nossos olhos para esse Brasil real que os nossos governantes fingem não ver?
Fiquei pensando... Pensando nos novos escribas, sacerdotes, fariseus e doutores da lei de nossas igrejas que esquecem o fundamental da nossa espiritualidade: O AMOR. Muitas vezes tais “guardiões” da doutrina excluem aqueles que, por um motivo ou outro falharam, seja na vida conjugal, moral ou social. Será o Jesus-amor desses letrados o mesmo do Evangelho? Tenho absoluta certeza que não.
Fiquei pensando...             


Para além do Halloween: bruxas, demônios, processos e condenações

Num período em que as crianças se vestem de bruxas para o Halloween, somos lembrados de que houve um momento em que as bruxas eram perseguidas e executadas pela sociedade. Para um olhar sobre este período horrível da história europeia, entrevistei o Pe. David Collins, professor jesuíta de história da Universidade de Georgetown. A entrevista é de Thomas Reese, jesuíta, jornalista, publicada por Religion News Service, 25-10-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.

Eis a entrevista.

Por que se interessou em bruxas?
Acabei me interessando em bruxas porque tinha interesse em magia de um modo geral. Os historiadores estudam magia medieval por causa da luz que ela lança sobre a maneira como as pessoas da Idade Média achavam que o mundo natural funcionava e como poderiam usar, subordinar e tirar vantagem das forças naturais no mundo criado.
Escrevi minha tese sobre os santos. Os milagres formam uma grande parte desta história, e os teólogos medievais, juntamente de figuras eclesiásticas, muito se interessavam em desvendar a diferença entre milagres e magia. Em alguns casos, era até mesmo difícil distinguir entre pessoas a que haviam ocorrido milagres e aquelas que haviam praticado magia. Se os milagres eram provas de santidade e a magia era o produto da mágica, como ter, na prática, um modo confiável para distinguir santos de feiticeiros?
Após muita pesquisa sobre os santos, desejei misturar as coisas e me voltei aos feiticeiros e às bruxas, sobre os quais trabalho atualmente.

O que é uma bruxa?
Não há uma definição clara. Depende muito da cultura e do período histórico analisado. Na Idade Média, raramente era algo que a pessoa atribuía a si mesma; em geral, era uma característica que outras pessoas acusavam alguém de ter.
O que as pessoas têm em mente, hoje, é uma mulher velha a pilotar uma vassoura, usando um chapéu pontudo e que pratica o mau. É também alguém que foi assombrado e perseguido com um fervor irracional no passado.
caça às bruxas histórica que as pessoas pensam em geral não é medieval; ela é um pouco mais recente. Quando pensamos nas bruxas que foram queimadas ou condenadas, estamos falando de algo que surge no século XV e que dura até o fim do século XVIII.
Nesse período, definia-se bruxa como alguém que fez um pacto com o diabo. O pacto era normalmente selado com o intercurso sexual, e as bruxas formavam uma comunidade de malfeitoras, reunindo-se regularmente nos assim-chamados “sabbats”. Os pactos eram o que tornava a maldade delas tão poderosa.
Sempre houve a noção da mulher que faz coisas más ou pessoas que usam da magia para prejudicar outros indivíduos. O negócio de um pacto com o diabo é singular, característico da história ocidental, em oposição ao resto do mundo. E o pacto estava no centro das preocupações sociais que motivaram as perseguições do início do período moderno (1400-1800).
É algo que surge no fim da Idade Média e começa a ser perseguido com vigor no meio do século XV. As primeiras grandes condenações são do começo do século XV e os últimos datam da década de 1770, aproximadamente.

Isto é como os opositores descreviam as bruxas. As bruxas, elas pensavam que estavam fazendo um pacto com o diabo?
Há duas escolas de pensamento nesta questão. Uma sustenta que a crença em bruxaria foi inventada por grupos que a acusavam, tendo em vista a consecução de seus próprios objetivos. A outra escola de pensamento sustenta que as pessoas acusadas acreditavam, genuinamente, em bruxaria.
Está claro que os processos por bruxaria nasceram de jogos de poder de forças religiosas e seculares que queriam ganhar um maior controle sobre as comunidades religiosas e civis. Mas, hoje, temos também inúmeros exemplos de pessoas que se confessavam perante as acusações, conforme definido. Nem todos estes casos podem ser explicados por tortura, muito embora a possibilidade de tortura sempre esteve presente.

De onde vem a ideia de um pacto com o diabo?
Na verdade, a ideia começa por volta de 1200, entre os literatos, pessoas instruídas, no momento em que cogitaram aprender sobre magia e feitiçaria. Pensemos no Fausto: um pacto com o diabo para obter um conhecimento oculto e para manipular o mundo natural como a alquimia.
Temos manuais de necromancia, que claramente foram produzidos pessoas letradas ligadas à Igreja, em fins do século XIV, início do século XV. Eles invocam os espíritos dos mortos para conseguir a ajuda deles na feitura das coisas. Os manuais de necromancia, na estrutura dos rituais e das cerimônias, são imagens espelhadas de exorcismos. “Se podemos expulsar demônios, talvez possamos invocá-los”.

Além de um desejo de dominar um conhecimento oculto, havia um elemento financeiro impulsionando esta “pesquisa”. Estas pessoas faziam por dinheiro. Quem não iria querer ver os seus tesouros aumentados com o recém-criado lingote de outro do alquimista? E todos os tipos de pessoas poderosas se interessavam em horóscopos – príncipes, papas, todos eles. De que outra forma elas saberiam os dias propícios para assinar contratos, fazer tratados, casar as filhas, etc.?
Por volta de 1400, a preocupação com a ajuda do diabo para chegar a fontes mais profundas de conhecimento místico, conhecimento esotérico, se funde com a magia popular praticada nas aldeias, vilarejos.
Parte da tragédia social é que é mínimo o número de processos e execuções contra essas figuras da elite. Existe um certo tipo de pessoa que acaba comprimida entre uma fixação bizarra com o poder do diabo no mundo vindo de cima, e a amargura e o preconceito que vêm debaixo. No final das contas, as bruxas acabam comprimidas entre os dois.

A magia em si era vista como má?
Historicamente, surgiu a ideia de forças ocultas que podem ser usadas para fins bons. O teólogo escolástico dos séculos XV e XVI diria: “Se você estiver manipulando os poderes do mundo natural de um modo que é natural e para fins bons, então, de fato, não é magia”. Estas forças ocultas nos objetos materiais estão aí para se tirarem a vantagem mais completa delas.
A poção do amor constitui um caso de estudo interessante nas escolas. “Podemos usar a poção do amor contra o parceiro que não está apaixonado por nós?” Há dois problemas para os alunos debaterem. Um tem a ver com a licitude da produção da substância e se esta é natural. A outra tem a ver com o livre arbítrio. “O uso da poção do amor está privando o outro de sua liberdade, apesar da infelicidade que é o parceiro não estar mais apaixonado?”
Mas há outros que diriam que a poção do amor é uma coisa boa porque o casamento pode, às vezes, ser difícil. As brasas esfriam-se, e seria bom elas se reacenderem.

Que tipo de prova era usada num processo por bruxaria?
Temos aí algo bastante arbitrário. Lembremos da cena do filme “Monty Python em Busca do Cálice Sagrado” com o pato. Não gosto de usar arte popular contemporânea para explicar coisas em história, mas acho que essa cena capta o problema.
Acreditava-se que havia pessoas que eram bruxas e que fizeram pactos com o diabo, e criam que elas causavam um mal verdadeiro. Se um conselho municipal ou os consultores do arcebispo recebessem um conjunto coerente de problemas lançados em seu colo e ele começasse a associá-los, poderia pensar: “Bem, podem ser bruxas”.
Em seguida, diria: “Por que não ter um processo?” Então se começa a caminhar numa dada direção, está-se à procura de certa coisa, e esta é encontrada.
O primeiro livro realmente importante contra os processos por bruxaria é “Cautio Criminalis”, de Friedrich Spee, publicado em 1631. Spee é um jesuíta e confessor de bruxas que haviam sido condenadas. Ele escreveu um tratado que defendia parar a realização destes processos com base em que não havia um padrão adequado de provas. Ele não questionava a existência ou não uma tal coisa chamada bruxas.
O guia mais famoso para estes processos, muito embora não o mais comumente usado na época, é “Malleus Maleficarum” (O martelo das bruxas), de Heinrich Kramer, que escreveu a obra na década de 1480 depois de não conseguir obter as condenações de um conjunto particular de processos em Innsbruck. Cerca de um terço é um longo discurso misógino, ideias tiradas da Antiguidade e trazidas para o momento contemporâneo; um outro terço fala sobre como encontrar uma bruxa; e o outro terço fala a respeito dos procedimentos, como realizar um julgamento.

Quantas bruxas foram executadas?
De 1450 até 1750 foram provavelmente 100 mil julgamentos, no máximo. Na década de 1970, o número estimado estava em torno de 9 milhões, mas hoje ficamos entre 100 mil e 70 mil julgamentos. Grande parte deles foram processos civis, e não eclesiásticos. Houve de 30 mil a 50 mil execuções nesse período de 300 anos. Pesquisas recentes sustentam números menores ainda.
É importante também perceber que não houve um número constante, coerente de processos entre os anos de 1450 e 1750. Os casos irrompem em lugares particulares e em épocas particulares. Os julgamentos continuam por alguns anos e então desaparecem. Ou duram por um ano e então, de repente, 50 anos mais tarde desaparece de novo.
Há um alto índice de execuções, mas há um índice ainda mais alto de condenações. Houve mais condenações do que execuções. Havia a possibilidade de penalidades alternativas à execução. Assim, se a pessoa renunciasse o pacto com o demônio, se as provas não fossem suficientes para uma condenação plena por bruxaria, havia penalidades menores.

O que fazia irromper estes processos?
Uma vez que a ideia da elite de magia e a ideia popular de bruxaria se juntaram, o ator principal para o surgimento dos processos em geral tende a ser a pessoa proeminente de uma pequena localidade. Muitas vezes, o que parece ter acontecido é que coisas ruins ocorriam e alguém precisava ser culpado.
Na ausência de alguma explicação, a magia maléfica servia para estes propósitos: pôr a culpa de qualquer coisa que precisa ser explicada em alguém que, por alguma outra razão, estava socialmente separada, era odiada ou, simplesmente, era alguém sem confiança dentro da comunidade.
Há problemas que, por muito tempo, perduraram. E, de repente, num momento apetece: “Ah, a solução para estes problemas duradouros é começar uma caça às bruxas”.

Que impacto a Reforma teve sobre os processos?
Quando começa a Reforma há um declive, há uma pausa. As pessoas estão distraídas. Mas, por volta das décadas de 1550 e 1560, o número de processos e execuções aumenta de novo, especialmente na Alemanha. Um total de 70% dos processos e execuções aconteceu na Alemanha. Algo entre 90 e 95% das pessoas executadas por bruxariafalavam um dialeto alemão.
Além disso, após a Reforma, são os tribunais seculares que processam as bruxas. E é aí quando as coisas se tornam realmente brutais. No período entre 1560 e 1660, que é quando as acusações mais brutais se encontram, são os tribunais seculares, com o incentivo das autoridades eclesiásticas, que os realizam.
Parece também haver uma pequena associação com uma preocupação religiosa de reformar a sociedade cristã. As figuras eclesiásticas que se preocupavam com os pactos com o diabo estão também falando sobre a reforma da Igreja. Elas estão olhando para a cristandade e dizendo: “Estamos trabalhando nisso há 1.500 e ainda não temos o Reino de Deus. Por que isso? É porque muitíssimas pessoas estão fazendo pactos com o diabo”.

Por que havia mais processos por bruxaria na Alemanha do que em outras partes da Europa?
Imaginemos a importância dos atores locais em conseguir com que alguém fosse julgado por bruxaria. Se tivermos um sistema jurídico altamente centralizado, ele força camadas múltiplas de revisões. Na França, por exemplo, temos um número pequeno de execuções, e eles malogram logo em seguida. Depois de um entusiasmo inicial, este número estanca. Por quê? Por causa do sistema jurídico.
Na França, um judiciário centralizado em Paris assume o papel-chave de supervisionar os processos. Um pequeno vilarejo perto de Toulouse poderia condenar 20 bruxas de uma vez só, mas estas condenações iam para Paris, e muitas delas que aí chegavam eram anuladas.
O que não temos no Sacro Império Romano? Não temos um governo central forte. Temos o imperador, mas temos estes principados, mais de 300 deles, cada qual sendo o responsável pelo seu próprio sistema de justiça. Exatamente estas camadas de supervisão é que faltam, e isso uma das razões pelas quais os processos duraram todo aquele tempo na Alemanha.
Qual o sistema jurídico mais centralizado da Europa nos séculos XV, XVI e XVII? A inquisição. Portanto, em lugares onde as inquisições organizadas – a romana e a espanhola – eram as mais fortes, quase não temos julgamentos por bruxaria. Na Espanha e na Irlanda, não temos quase nenhum. Na Itália, pouquíssimos. De novo, onde temos os sistemas jurídicos menos centralizados, vemos mais e mais casos [de processos].

Que lição os julgamentos por bruxaria nos deixam para os dias de hoje?
As tendências humanas que levam a elite e outras pessoas a conspirar para processar e perseguir nos primórdios da era moderna estão ainda entre nós, hoje. A nossa criatividade em fazer bodes expiatórios – em inventar ideologias para explicar coisas que a razão e a experiência real não dão conta; em expressar as nossas frustrações nos limites das nossas realizações com violência; em justificar esta violência com o apelo à raison d’etat [razão de Estado] e à pureza da crença – desconhece fronteiras.

Curiosamente, foi a burocracia que deu início a esta calamidade particular, e a burocracia que o encerrou. A atenção à irracionalidade humana e a prática de duvidar de si próprio, especialmente quando se trata das formas como nós restringimos, punimos e acusamos os outros, são, com certeza, desafios recorrentes desde a caça às bruxas. Mas, então, não temos muita coisa no século passado que dê a entender que iremos, em algum momento, aprender esta lição. Fonte: http://www.ihu.unisinos.br