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sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Quando Jesus libertou a mulher.

Artigo de Enzo Bianchi

"O exemplo de Jesus no encontro com a mulher adúltera é pouco compreendido e ainda menos vivido, mas, mesmo assim, ficou memorizado no Evangelho, e sempre haverá leitores que encontrarão nele uma boa notícia."
O jornal La Repubblica, 08-11-2016, publicou um trecho do novo livro Gesù e le donne [Jesus e as mulheres] (Ed. Einaudi), do monge italiano Enzo Bianchi, fundador e prior da Comunidade de Bose. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.
"Jesus foi para o monte das Oliveiras. Ao amanhecer, ele voltou ao Templo, e todo o povo ia ao seu encontro. Então Jesus sentou-se e começou a ensinar. Chegaram os doutores da Lei e os fariseus trazendo uma mulher, que tinha sido pega cometendo adultério. Eles colocaram a mulher no meio e disseram a Jesus: ‘Mestre, essa mulher foi pega em flagrante cometendo adultério. A Lei de Moisés manda que mulheres desse tipo devem ser apedrejadas. E tu, o que dizes?’ Eles diziam isso para pôr Jesus à prova e ter um motivo para acusá-lo. Então Jesus inclinou-se e começou a escrever no chão com o dedo. Os doutores da Lei e os fariseus continuaram insistindo na pergunta. Então Jesus se levantou e disse: ‘Quem de vocês não tiver pecado, atire nela a primeira pedra.’ E, inclinando-se de novo, continuou a escrever no chão. Ouvindo isso, eles foram saindo um a um, começando pelos mais velhos. E Jesus ficou sozinho. Ora, a mulher continuava ali no meio. Jesus então se levantou e perguntou: ‘Mulher, onde estão os outros? Ninguém condenou você?’ Ela respondeu: ‘Ninguém, Senhor’. Então Jesus disse: ‘Eu também não a condeno. Pode ir, e não peque mais’." (Jo 8, 1-11, trad. Bíblia Pastoral)
Esse trecho conhecido teve um destino muito particular, que atesta o seu caráter escandaloso e embaraçoso: de fato, ele foi "censurado" pela Igreja! Está ausente nos manuscritos mais antigos, é ignorado pelos padres latinos até o século IV, durante cinco séculos não foi proclamado na liturgia e não existem comentários a ele por parte dos padres gregos do primeiro milênio.
Ao término de um longo e turbulento migrar entre os manuscritos, ele foi inserido no Evangelho segundo João, depois do sétimo capítulo e antes do versículo 15 do oitavo. Não é uma cena incomum: muitas vezes, os Evangelhos anotam que os adversários de Jesus tentam colocá-lo em contradição com a Lei de Deus, para poder acusá-lo de blasfêmia, de desobediência ao Deus vivo. 
Para aqueles escribas e fariseus, na realidade, a mulher não lhes importava nada; para eles, era importante encontrar motivos de condenação contra Jesus: eles não queriam apedrejar a adúltera, mas apedrejar Jesus! Esses homens religiosos irrompem na audiência de Jesus, levante diante d’Ele uma mulher pega em flagrante adultério, colocam-na no meio de todos e se apressam a declarar: "Moisés, na Lei, nos mandou apedrejar mulheres como essa".
Tal declaração parece formalmente impecável, porque cita a Lei; a um olhar atento, porém, capta-se que o seu recurso à Torá é parcial. A Lei, de fato, previa a pena de morte para ambos os adúlteros e atestava a mesma pena, mediante apedrejamento, enquanto, se já fossem casados, então se recorria ao estrangulamento. 
Porém, é altamente significativo que apenas ela tenha sido capturada e levada diante de Jesus, enquanto o homem que cometeu adultério com ela e, de acordo com a Lei, é tão culpado quanto ela não é nem imputado nem levado a julgamento! 

Tentemos nos deter por um momento nessa cena. Há alguns que levaram uma mulher a Jesus, para que seja condenada. Mas Jesus começa a responder aos acusadores falando com o corpo, não com palavras: inclina-se, abaixando-se, rompe o círculo da "violência mimética" (René Girard), despedaça a cara a cara com aqueles fariseus e põe-se a escrever no chão, em absoluto silêncio.
Da posição de quem está sentado, Ele passa para a de quem se inclina para o chão; além disso, desse modo, se inclina diante da mulher que está de pé diante d’Ele! No entanto, como os acusadores insistem em interrogá-Lo, depois daquele longo e, para eles, desconfortável silêncio preenchido apenas pela sua mímica profética, Jesus se levanta e não responde diretamente à questão que lhe foi feita, mas faz uma afirmação que contém em si mesma também uma pergunta: "Quem de vocês não tiver pecado, atire nela a primeira pedra". Depois, inclina-se de novo e volta a escrever no chão.
Assim, uma palavra de Jesus, uma única palavra, mas incisiva (a ponto de ter se tornado proverbial) e autêntica, uma daquelas perguntas que nos agitam e nos fazem ler em profundidade a nós mesmos, impede que aqueles homens façam violência em nome da Lei. Só Deus e, portanto, só Jesus poderia condenar aquela mulher. 
Pois bem, aqui, Jesus – que se me permita dizer – "evangeliza" Deus, isto é, torna Deus Evangelho, boa notícia para aquela mulher. Jesus, o único homem que narrou Deus em plenitude, que foi a Sua exegese viva, afirma que, diante do pecador, da pecadora, Deus tem apenas um sentimento: não a condenação, não o castigo, mas o desejo de que se converta e viva. 
Jesus, enviado por Deus "não para condenar o mundo, mas para salvar o mundo", aqui também, age como tinha anunciado no início do Seu ministério: "Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores".
Somente quando todos foram embora, Ele se levanta e se coloca diante da mulher. Ela, posta ali de pé no meio de todos, agora é finalmente restituída à sua identidade de mulher e vê Jesus de pé diante de si: assim, é possível o encontro verdadeiro. 
Por fim, Jesus conclui esse encontro com uma afirmação extraordinária: "Eu também não a condeno. Pode ir, e não peque mais". São palavras absolutamente gratuitas e unilaterais. 
Eis a gratuidade dessa absolvição: Jesus não condena, porque Deus não condena, mas, com esse seu ato de misericórdia preventiva, oferece à mulher a possibilidade de mudar.
Não sabemos se essa mulher perdoada, depois do encontro com Jesus, mudou de vida; sabemos apenas que, para que ela mudasse de vida e voltasse a viver, Deus, que não quer a morte do pecador, perdoou-a através de Jesus e a enviou para a liberdade: "Vá, vá para você mesma e não peque mais"... 
As pessoas religiosas gostariam que, nesse ponto, Jesus tivesse dito à mulher: "Você se examinou? Sabe o que fez? Compreende a gravidade disso? Está arrependida da sua culpa? Detesta-a? Promete que não vai mais fazer isso? Está disposta a sofrer a pena justa?".
Essas omissões nas palavras de Jesus escandalizam ainda, hoje como ontem! Nenhuma condenação, apenas misericórdia: aqui está a grandeza e a unicidade de Jesus. Esse encontro entre Jesus e a mulher surpreendida em adultério não nos revela apenas a misericórdia de Jesus, mas também a Sua capacidade de defender a mulher de um círculo de homens, sempre prontos para justificar a si mesmos e condenar as mulheres. 
Infelizmente toda a história dos fiéis, da antiga como da nova aliança, testemunharia esse "olho espião, exigente e condenador" dos homens religiosos contra as mulheres, consideradas culpadas pela sua condição – dizem os homens – de criaturas sempre tentadoras e fáceis à tentação. 
Esse exemplo de Jesus seria pouco compreendido e ainda menos vivido, mas, mesmo assim, seria memorizado no Evangelho, e sempre haverá leitores que encontrarão nele uma boa notícia.

Jesus e as mulheres: no amor não há temor.

Artigo de Enzo Bianchi

Foi lançado nessa terça-feira pela editora Einaudi o novo livro de Enzo Bianchi, Gesù e le donne [Jesus e as mulheres]. Partindo da narrativa dos Evangelhos, o prior de Bose refaz a relação do Messias com figuras femininas como a mulher doente de hemorragia uterina que ousa a tocá-Lo embora fosse "impura"; a estrangeira grega da origem siro-fenícia e, portanto, pagã; as irmãs Marta e Maria; a mulher apanhada em adultério. No trecho que antecipamos nesta página, a protagonista é a prostituta que lava os pés de Jesus na casa de Simão, tradicionalmente (mas impropriamente) identificada como Madalena. O texto de base é Lucas 7, 36-50. O trecho foi publicado por La Stampa, 08-11-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.
No nosso relato, Jesus é convidado à mesa por Simão, um fariseu, um homem religioso, observante da Lei e justo, irrepreensível no seu comportamento. Ele aceita o convite, entra na casa dele e se acomoda à mesa junto com ele para esse banquete reservado apenas a homens. 
E eis que uma mulher, notoriamente uma prostituta, portanto uma pecadora manifesta e reconhecida como tal pelos habitantes daquela cidade, sabendo que Jesus se encontra à mesa naquela casa, com audácia, se apresenta ao banquete levando um vaso de alabastro cheio de perfume. 
Ela entra furtivamente, às escondidas, para-se "atrás" de Jesus (como os discípulos: cfr. Lc 9, 23; 14, 27), aninha-se "aos seus pés" (na posição de escuta, de discípula, como Maria de Betânia: cfr. Lc 10, 39) e faz aquilo que frequentemente fazia por ofício: lavar os pés dos clientes e perfumá-los. Assim também ela faz com Jesus, mas com uma significativa novidade: ela o faz gratuitamente, não solicitada, e lava os Seus pés com as próprias lágrimas, beijando-os com todo o amor de que é capaz. Ela ouviu falar de Jesus, escutou-O e ama-O a ponto de ousar com audácia um gesto extraordinário.
Um ofício não escolhido
É uma mulher anônima não porque não tenha dignidade, mas porque cada um dos leitores e das leitoras do Evangelho possa não se sentir alheio à sua condição, portanto por ela representável. 
E aqui o leitor deve esquecer a tradição, devida à Gregório Magno, que identifica nessa mulher tanto Maria Madalena quanto Maria de Betânia, que fará a unção dos pés (ou da cabeça) de Jesus, às vésperas da Sua paixão. Essa é uma mulher sem nome, que vive no pecado da prostituição. Ofício, este, que, nos tempos de Jesus, na Palestina, não era escolhido, mas ao qual eram destinadas, desde pequenas, as meninas abandonadas pelos pais ou compradas como escravas. 
Sim, esta é sobretudo uma pobre mulher, vítima do abandono ou do domínio dos homens, destinada por outros à prostituição.
E eis que, à vista dos gestos feitos por essa mulher, logo se cria um grande constrangimento, e os homens religiosos ali presentes, em primeiro lugar o fariseu que convidou Jesus, ficam escandalizados: Jesus é um rabi que não lhe imputa nada, não a acusa e se deixa apalpar (verbo háptomai, v. 39) por essa mulher, reconhecível como uma prostituta pelas próprias roupas! A intimidade sempre imprópria com uma mulher parece ser uma grave ofensa à Lei, porque essa mulher é impura, é uma prostituta.
O fariseu é forçado pela sua ética a pensar: ou Jesus não é um profeta e não sabe o que está acontecendo nem quem é essa mulher, ou é alguém que, na realidade, ama esses gestos, a companhia das prostitutas, o seu comportamento. A cena é intolerável, constrange, porque, indubitavelmente, tem uma qualidade erótica: essa prostituta apalpa e sente os pés de Jesus, beija-os, lava-os com suas lágrimas e, depois, enxuga-os com os seus longos cabelos. É uma mulher não velada como todas as outras e faz os gestos nos quais as prostitutas são especialistas para seduzir e dar prazer. 
Enfim, tirado um frasco de perfume, ela derrama o unguento sobre os pés de Jesus. Isso é realmente demais! Essa eloquência do corpo feminino em relação ao corpo de Jesus, um rabi e profeta, é inédita e dá medo!
Mas Jesus lê tudo de forma diferente: há uma mulher aninhada aos seus pés que toca o Seu corpo, chora-se até lavar os Seus pés com as lágrimas, enxuga-os com os seus cabelos, beija-os sem dizer uma palavra e os perfuma. Jesus vê uma mulher que sofreu e que sofre, que ama, uma mulher à procura de amor, enquanto o fariseu vê uma pecadora. 
Aqui está a diferença entre o rabi Jeshu'a e os outros especialistas da Lei, os homens religiosos: Jesus não vê primeiro o pecado, mas o sofrimento, e aqui, principalmente, vê alguém que pode ser amado apesar dos seus pecados e que ainda ama; os homens religiosos se exercitam primeiro em espionar, em medir o pecado, em emitir um julgamento, depois, eventualmente, veem o sofrimento, que impõem aos outros, como resultado do pecado!
Experiência tátil
De acordo com a Lei e o pensamento dominante, aquela mulher impura, tocando o corpo de Jesus, Lhe comunicaria a sua impureza, mas o Evangelho ressalta, em vez disso, que ela sabe transformar em uma manifestação de amor para com Ele aquilo que sempre tinha desenvolvido como serviço pago. 
Impulsionada pelo amor, ela age sem temor: "No amor, não há temor" (1Jo 4, 18)! O que ela faz está no registro amoroso, e Lucas descreve as ações no imperfeito, isto é, como gestos repetidos, caracterizados por uma longa duração: "secava, beijava, ungia"...
As mãos dessa mulher tomam e abraçam os pés de Jesus, as suas lágrimas os banham até lavá-los, os seus cabelos os enxugam, os seus beijos narram com a boca os seus sentimentos, as suas mãos derramam perfume e o espalham sobre os seus pés: gestos que são um conjunto de carícias, de beijos, de experiência tátil entre dois corpos.
A mulher chora porque sente a culpa dos pecados cometidos ou, talvez, chore de alegria, porque finalmente encontrou um homem que realmente pode amar e do qual pode ser amada em troca. Em um silêncio absoluto, ela deixa que o seu corpo expresse a sua linguagem afetiva: audácia, humildade, amor, e tudo está resumido "nas suas lágrimas, o verdadeiro significado escondido naqueles gestos" (François Bovon). 
É muito feminina essa atitude de intimidade, marcada pelo fato de tocar Jesus com as mãos e com os cabelos soltos: ela finalmente chegou até Ele!