Padre
Cícero
*Orani João,
Cardeal Tempesta, O.Cist.
Uma carta do Secretário de Estado de Sua
Santidade, o Cardeal Pietro Parolin, datada de 20 de outubro de 2015 e dada a
conhecer no dia 13 de dezembro do mesmo ano, data da abertura das portas santas
da misericórdia nas catedrais do mundo, reconhecendo as virtudes e bem que o
Padre Cícero fez ao povo de Deus no Nordeste foi amplamente divulgada no final
do ano passado.
Nosso “Padim
Ciço” é assim chamado pelo povo que o admira e diz que é porque, após a
proibição de celebrar os sacramentos, ele foi chamado a ser padrinho de batismo
de muitas crianças. É com essa expressão carinhosa e confiante que muitos de
nossos irmãos, nordestinos ou não, se dirigem ao Padre Cícero Romão Batista
(1844-1934). Ele é o sacerdote sobre o qual a mídia, no final do ano passado, tem
voltado a atenção, especialmente com manchetes que intentavam passar a mensagem
de que a Igreja o tinha reabilitado. Como estamos nos aproximando do dia 2 de
fevereiro, data que marca a história da região com a grande procissão de nossa
Senhora das Candeias, em respeito ao povo e à verdade sempre é importante
aprofundar um pouco mais essa questão.
Padre Cícero
nasceu no dia 24 de março de 1844, em uma casa humilde da Rua Grande, hoje
Miguel Limaverde, em Crato (CE), cidade localizada no Sopé da Chapada do
Araripe, como segundo filho do casal de agricultores Joaquim Romão Batista
e Joaquina Vicência Romana. Conta-se que, criado por duas de suas irmãs,
Mariquinha e Angélica, sempre quis ser padre e já aos doze anos, depois de ler
a vida de São Francisco de Sales, fez, piedosamente, voto de castidade.
Ingressou no
seminário da Prainha, em Fortaleza, com 21 anos de idade e aos 26 foi ordenado
sacerdote, atuando um pouco na própria cidade de Crato, mas durante 60 anos
morou e atuou em Juazeiro do Norte, povoado vizinho à sua terra natal. Aí
exerceu um imenso bem à população, segundo as diretrizes pastorais de seu
tempo, com o incentivo de missões populares, novenas, terços públicos,
procissões e celebração da Missa com frequência.
Aqui é preciso
lembrar que era comum a celebração da Eucaristia apenas aos domingos durante o
dia. Nelas, na maioria das vezes, as comunhões eram raras. A Missa durante a
noite, salvo a de Natal (chamada de “Missa do Galo”), só foi possível com a
reforma litúrgica promovida pelo Concílio Vaticano II (1962-1965), assim como a
comunhão frequente passou a ser estimulada, inclusive às crianças devidamente
preparadas, pelo Papa São Pio X (1903-1914), por quem o Papa Francisco tem
grande devoção. Desde que era arcebispo de Buenos Aires promovia, anualmente,
um encontro com os (as) catequistas no dia 21 de agosto, memória do santo, que
faleceu, em odor de santidade, depois de grandes trabalhos em favor do Povo de
Deus. Dessas formações de Bergoglio, resultou o livro Anunciar o Evangelho
(Campinas: Ecclesiae, 2013).
Voltando, porém,
ao Padre Cícero, vê-se que ele foi fiel ao espírito de certa recusa à
obediência às ideias portuguesas em si, frutos do chamado Regime de Padroado,
no qual Igreja e Estado se achavam ligados para aderir às regras de Roma, ou
seja, havia nele plena fidelidade ao Santo Padre, o Papa, e ao Bispo diocesano
em comunhão com o Papa, alicerces da unidade a ser mantida na Igreja sob pena
de esfacelamento da face humana do Corpo místico de Cristo prolongado na
história (cf. 1Cor 12,12-21; Cl 1,24).
O Pe. Comblin,
sacerdote belga que muito atuou no Nordeste na época de Dom Helder Câmara,
arcebispo de Olinda e Recife (PE), escreveu que o Padre Cícero “dedicou-se a
corrigir os vícios e os abusos morais”. Proibiu as danças, conseguiu que os
homens parassem de beber. Obrigou as prostitutas a confessar seus pecados. Em
pouco tempo, Juazeiro tornou-se um modelo de ordem e de virtudes. Padre Cícero
era no Juazeiro o equivalente ao Santo Cura D’Ars. (Padre Cícero de Juazeiro.
S. Paulo: Paulinas, 1991, apud Henrique Cristiano José de Matos. Caminhando
pela história da Igreja. Belo Horizonte: O Lutador, 1993, vol. 3, p. 172).
No entanto, na
passagem do Império à República (1889), com grande mudança no cenário
político-religioso, o zeloso sacerdote não deixou de entrar em um ritmo de fala
um tanto “apocalíptica” (com anúncios de catástrofes eminentes para o mundo).
Dizia que com a nova forma de governo brasileiro o fim do mundo estaria
próximo. Daí, sempre insistir com seus fiéis sobre o Juízo Final e a
necessidade de se confessarem a fim de estarem puros na volta do Senhor e,
consequentemente, escaparem dos castigos de Deus para a humanidade pecadora
que, segundo suas pregações, não tardariam vir demonstrando a força de Deus.
No entanto,
Padre Cícero ficou mais conhecido por todo o Brasil, especialmente a partir do
ano de 1889, quando se deram os chamados “milagres da hóstia”. Trata-se do
seguinte: Maria de Araujo (1860-1914), conhecida como “Beata”, solteira de 29
anos e costureira de prestígio, foi comungar e viu a hóstia verter sangue,
conforme ela mesma narrou ante as autoridades eclesiásticas, no inquérito
instaurado para apurar os fatos. Disse Maria que, no dia 6 de março de 1889,
“pela primeira vez, fui tomada de um rapto extático, resultando na
transformação da hóstia em sangue, tanto que além do que não sorvi, parte caiu
na toalha e parte no chão” (Maria do Carmo P. Forti. Maria de Araujo, a beata
de Juazeiro. S. Paulo: Paulinas, 1991, apud Matos, obra citada, p. 173).
O fato, tido,
então, por milagroso, se repetiu diversas vezes, ocasionando muitas
peregrinações do povo a Juazeiro e certo espanto no meio do clero, pouco afeito
a esse tipo de fenômeno que precisa ser sempre muito bem investigado. A Igreja
é prudente e não afoita na análise de assuntos como esse. Nos meios populares,
no entanto, surgiu uma possível explicação para as ocorrências: ante a grande
maldade do mundo, dentre as quais se destacou a proclamação da República no
Brasil, Nosso Senhor tinha decidido derramar o Seu sangue uma segunda vez para
redimir novamente a humanidade. Outros, mais atentos às pregações apocalípticas
do zeloso sacerdote, defendiam que o sangue saído da hóstia na boca da jovem
Maria era sinal claro do Juízo Final muito próximo. (Cf. Matos, obra e página citadas).
Ora, parece que
o Padre Cícero via, apoiado no parecer de um médico e de um farmacêutico local,
um verdadeiro milagre na hóstia sangrante, mas o Bispo, à luz do parecer de uma
comissão específica por ele nomeada, notou apenas um fenômeno incomum, mas não
milagroso. Mais: ambas as lições extraídas do fenômeno foram (e são) exageradas
e errôneas. Com efeito, o sacrifício de Cristo na Cruz é único e supera todos
os demais sacrifícios (cf. Hb 10,10), de modo a não se poder afirmar que o
Senhor voltou a derramar seu sangue pela humanidade, como se tivesse de fazer
uma reedição de sua aliança nova e eterna (cf. Catecismo da Igreja Católica, n.
613-614). Sobre o juízo final sabemos que ocorrerá, como professamos no Credo,
mas não temos, por escolha divina, como prever com certeza exata o dia e a hora
da segunda vinda de Cristo em poder e glória (cf. Mt 24,36).
Pois bem, foi
essa interpretação popular, mas errônea dos fenômenos – que alguns afirmavam
ser apoiada pelo Padre Cícero – uma das causadoras das reservas de Dom Joaquim
José Vieira (1883-1912), Bispo do Ceará, a respeito do famoso sacerdote.
Suspeitando de heresia (negação de verdades de fé) e temendo um cisma
(rompimento com a Igreja em sua estrutura hierárquica), o Prelado proibiu o
padre de atender Confissões, pregar e orientar os fiéis. Em 1886, Padre Cícero
foi suspenso de poder celebrar Missas e, mesmo tendo recorrido à Santa Sé,
indo, inclusive, pessoalmente a Roma, jamais teve a alegria de poder voltar a
exercer o ministério sacerdotal. Contudo – isso é importante –, segundo as
notícias, ele nunca teria sido excomungado.
Além disso,
outra acusação que se fez contra “Padim Ciço” foi a de ser, na opção política,
um apoiador do comunismo. Ele, porém, rebatia a acusação dizendo que “o
comunismo foi fundado pelo demônio”. E acrescentava: “Lúcifer é o seu chefe e a
disseminação de sua doutrina é a guerra do diabo contra Deus. Conheço o
comunismo e sei que é diabólico. É a continuação da guerra dos anjos maus
contra o Criador e seus filhos”. (Autorizada pelo Vaticano a reconciliação de
Padre Cícero com a Igreja, ACI Digital, 14/12/15, online).
O fato é que em
meio a tudo isso, o povo nunca deixou de procurar o padre. Ele se tornou, na
verdade, o grande Patriarca do Nordeste e vivia dando conselhos, resolvendo
conflitos de várias naturezas, dando remédios certos para muitas doenças e até
ajudando na escolha de matrimônios (tinha fama de “casamenteiro”).
Preocupava-se
também com os mais pobres, especialmente os trabalhadores e as crianças. A
essas estimulava a aprenderem algum bom ofício da época a fim de se tornarem,
no campo financeiro, independentes e poderem ajudar a seus pais. A partir de
1911, Padre Cícero, já afastado das atividades sacerdotais, entrou na política,
muito mais forçado pelas circunstâncias do que motivado por gosto pessoal.
Chegou a ser o primeiro prefeito de Juazeiro, emancipado naquele ano, e
vice-governador do Ceará por dois mandatos. Em 1914, juntando-se a vários
coronéis locais, foi contra a intervenção do Governo Federal no Estado.
Padre Cícero
faleceu em 20 de julho de 1934, com 90 anos de idade, em paz com a Igreja que
tanto amou, tendo em seu sepultamento aproximadamente 60.000 pessoas, que logo
passaram também a peregrinar a Juazeiro a fim de rezar a Deus por meio do
“Padim Ciço”. Fizeram, com isso, que aquela cidade se tornasse a “cidade santa”
a receber, segundo dados do site oficial do Governo do Estado do Ceará
(www.juazeiro.ce.gov.br) cerca de 2,5 milhões de pessoas por ano.
Tudo isso
motivou a Diocese de Crato, por meio de seu Bispo Diocesano, Sua Excelência Dom
Fernando Panico, a pedir que a Santa Sé estudasse o caso do Padre Cícero.
Agora, o Papa Francisco, por meio do Eminentíssimo Senhor Cardeal Pietro
Parolin, Secretário de Estado da Santa Sé, enviou uma Carta na qual aponta o
lado benemérito de todo o apostolado que se realiza em torno da figura do
sacerdote a favor do Povo de Deus. É esse ato que a imprensa chamou de
reabilitação do Padre Cícero com a Igreja, embora, como dito, ele nunca teria
sido excomungado. Ao contrário, bons historiadores garantem que ele morreu
firme na fé católica. (Cf. Matos. Obra citada, p. 174).
Fazemos, pois,
votos de que a questão, já estudada há tempos, chegue a bom termo com a graça
de Deus, pois Ele, dentro de seus santos e sábios desígnios, nunca deixa de
atender ao seu povo sedento de santos pastores e dignos ministros, a fim de que
estes possam, nas dificuldades do dia a dia, batalhar em demanda da Jerusalém
celeste. Certamente a notícia traz alegria não só aos irmãos nordestinos, mas a
todos os brasileiros que amamos nosso País e queremos ver o seu autêntico
progresso, livre de todas as mazelas e corrupções nos vários âmbitos em que
elas se encontrem.
Aqui no Rio de
Janeiro a presença nordestina é grande e a influência do Padre Cicero se faz
sentir com muita clareza, principalmente na “feira de São Cristóvão”, que
concentra as tradições nordestinas e sente-se o carinho do povo pelo seu “padim
ciço”.
Sem dúvida que
um belo sinal de trabalho evangelizador é a tradição nordestina do Padre Cícero,
e a Igreja reconheceu essa missão. Algumas questões da vida do padre ainda
estão envoltas em estudos de questões controversas, porém é inegável a
necessidade de evangelização.
Que no próximo
dia 2 de fevereiro, festa de Nossa Senhora das Candeias, no evento criado por
ele, as pessoas possam encontrar a luz que é Cristo, que ilumina a todo homem
que vem a este mundo. Fonte: http://br.radiovaticana.va
*Arcebispo
Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ