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domingo, 30 de dezembro de 2012

A PALAVRA DO FREI PETRÔNIO, Nº 233: Pedaços de 2012.


SAGRADA FAMÍLIA- Homilia do Frei Petrônio.

SANTA TERESINHA: "MINHA VOCAÇÃO É O AMOR".

Por Frei Gianfranco Maria Tuveri O.Carm.
Com muita simplicidade apresento aqui um apanhado da sua vida e da sua mensagem, recorrendo à leitura de um texto redigido há cem anos e que conserva intactas toda a sua força e sua luz, um cimo culminante da literatura cristã de todos os tempos, cuja ponta é a expressão: "A minha vocação é o Amor!"
1. Uma vida sob o signo do Amor
            "A minha vocação é o amor!" Não é o clarão rápido de uma estrela, que desliza pela noite, mas o final lúcido de uma vida inteira, profundamente marcada pelo selo do amor. Com toques rápidos iremos relembrar algumas passagens da vida de Teresa, como a "Subida da Montanha do Amor".
            Desde a sua chegada a este mundo, Teresa foi cercada de um amor assinalado pela maior ternura. Ela própria o reconhece: "Toda a minha vida o Bom Deus teve o prazer de cercar-me de amor: as minhas primeiras lembranças estão repletas de sorrisos e das mais ternas carícias! Mas se colocou junto a mim muito amor, Ele pôs também no meu coração muito amor, fazendo-o amoroso e sensível e, por isso, eu amava demais a Papai e Mamãe e lhes testemunhava a minha ternura de mil maneiras, pois eu era muito expansiva".
            O dia da sua Primeira Comunhão é um dia de inesquecível amor. Sobre este dia escreverá: "Oh! Como foi doce o primeiro beijo de Jesus à minha alma! Foi um beijo de amor: sentia-me amada e dizia por minha vez: «Amo-vos e entrego-me a vós para sempre». Não houve pedidos, não houve lutas, não houve sacrifícios. Há muito tempo Jesus e a pobre Teresa haviam-se entreolhado e se haviam entendido... Naquele dia já não era mais um entreolhar-se e sim uma fusão, não eram mais dois: Teresa desaparecera como a gota d' água que se perde no seio do oceano".
            Pelo Natal de 1886, Teresa experimentou a força transformante do Amor divino. Eis como ela fala a respeito desta graça: "Num instante o trabalho, que não consegui fazer durante dez anos, Jesus o fez, contentando-se com a minha boa vontade, que nunca me faltou. Como os seus Apóstolos eu podia dizer-lhe: «Senhor, pesquei durante toda a noite e não peguei nada». Mostrando-se mais misericordioso para comigo do que para com os seus discípulos, Jesus mesmo apanhou a rede, lançou-a e a retirou cheia de peixes. Ele fez de mim «pescador de almas», senti um grande desejo de trabalhar na conversão dos pecadores, desejo que não tinha sentido antes tão vivamente. Senti, numa palavra, a caridade entrar no meu coração, a necessidade de esquecer-me de mim mesma para dar prazer, e desde esta hora fui feliz!..."
            No Carmelo, é sobretudo ao pé da cruz que Teresa prossegue na "Subida da Montanha do Amor". A sua correspondência com Celina durante o seu tempo de noviciado traz ressonâncias da dolorosa provação da doença do seu pai e, ao mesmo tempo, ressonâncias do crescimento da sua sede de amor. Qualquer uma das passagens das suas cartas estão inflamadas de amor. Citemos um texto apenas, uma passagem da carta de 15 de outubro de 1889: "Façamos da nossa vida um sacrifício contínuo, um martírio de amor, para consolar Jesus; ele não quer senão um olhar, um suspiro, mas um olhar, um suspiro, que sejam somente para ele! Que todos os instantes da nossa vida sejam somente para ele, que as criaturas não toquem em nós a não ser de passagem... Durante a noite não há nada a fazer senão uma só coisa, na única noite da vida que não virá a não ser uma só vez: e é amar, amar Jesus com todas as forças do nosso coração e salvar almas para ele, para que ele seja amado".
            No seu último retiro, de 7 a 18 de setembro de 1896, Teresa escreve o Manuscrito B. A 8 de setembro, ela comemora na solidão o sexto aniversário do dia em que professou. Parece-me importante ler uma passagem da oração que ela compôs no dia da sua profissão  e foi escrita num bilhete que ela trazia sempre sobre o coração: "Ó Jesus, meu Divino Esposo! Que nunca eu perca a segunda veste do meu batismo. Arrebata-me antes que eu cometa a mais leve falta voluntária. Que não procure e não encontre nunca senão a ti somente; que as criaturas não sejam nada para mim e eu não seja nada para elas, mas tu, Jesus, sejas tudo!... Que as coisas da terra nunca possam perturbar a minha alma, nada perturbe a minha paz; Jesus, eu não te peço senão a paz, e também o amor, o amor infinito, sem outro limite além de ti, o amor que já não seja mais eu mesma e sim tu, meu Jesus!"
            Os anos, em que Paulina foi Priora, foram um período de desabrochamento espiritual e humano para Teresa. "Ó minha Mãe! Foi sobretudo desde o dia abençoado da vossa eleição que eu voei pelos caminhos do amor!"
            Em 1893, Teresa escreveu novamente cartas ardentes de amor à sua irmã Celina: "O meu Diretor, que é Jesus, não me ensina a contabilizar os meus atos; ele me ensina a fazer tudo por amor, a não lhe recusar nada, a estar satisfeita quando me oferece uma ocasião de provar-lhe que eu o amo; mas é na paz, no abandono que isto acontece: é Jesus quem faz tudo e por mim eu não faço nada".
            E em 1895, no Manuscrito A, é assim que Teresa fala dos seus desejos: "Agora não tenho mais nenhum desejo, a não ser o de amar Jesus até à loucura..." Foi no Priorato da sua irmã Paulina e com a permissão dela que Teresa pronunciou o "Ato de Consagração ao Amor Misericordioso". É nos seguintes termos que ela fala a respeito, alguns meses mais tarde: "Este ano, no dia 9 de junho, Festa da Santíssima Trindade, recebi a graça de compreender mais do que nuca quanto Jesus deseja ser amado. Eu pensava nas almas, que se oferecem como vítimas à Justiça de Deus, a fim de desviar, atraindo sobre si, os castigos reservados aos culpados; esta oferta parecia-me grande e generosa, mas eu estava longe de me sentir levada a fazê-la. «Ó meu Deus!» - clamei do fundo do meu coração - «não existirá nada mais do que a vossa Justiça para receber almas que se imolem como vítimas? O vosso Amor Misericordioso não tem ele também necessidade delas?... Por todas as partes ele é desconhecido, rejeitado; os corações, dentro dos quais vós quereis derramá-lo prodigamente, voltam-se para as criaturas, mendigando-lhes a felicidade com a sua mísera afeição, em lugar de se lançarem nos vossos braços e aceitarem o vosso Amor infinito... Oh! Meu Deus! O vosso Amor desprezado vai permanecer só no vosso Coração? Acho que se encontrásseis almas que se oferecessem a vós como Vítimas de holocausto ao vosso Amor, haveríeis de consumi-las rapidamente, acho que ficaríeis feliz a ponto de não poderdes absolutamente reprimir as ondas de ternuras infinitas que em vós se encontram. Se a vossa Justiça gosta de descarregar-se, ela que não se estende a não ser sobre a terra, quanto mais o vosso Amor Misericordioso está desejoso de abrasar as almas, visto que a vossa Misericórdia se eleva até os Céus. Oh! Meu Jesus! Seja eu esta vítima feliz, consumi o vosso holocausto com o fogo do vosso Divino Amor!».
            Minha Mãe querida, vós que me haveis concedido a licença de assim oferecer-me ao Bom Deus, sabeis dos rios, ou antes, dos oceanos de graças que vieram inundar a minha alma... Ah! Depois daquele dia feliz, parece-me que o Amor me penetra e me envolve, parece-me que a cada instante este Amor Misericordioso me renova, purifica a minha alma e nela não deixa traço nenhum de pecado de tal modo que não posso ter medo do purgatório. Sei que por mim mesma não mereceria nem sequer entrar neste lugar de expiação, visto que somente as almas santas podem ter acesso a ele, mas também sei que o Fogo do Amor é mais santificador que o do purgatório, sei que Jesus não pode desejar para nós sofrimentos inúteis e me não inspiraria os desejos que sinto, se não quisesse realizá-los".
            O Ato de Consagração ao Amor Misericordioso é uma forma diversa, implícita ainda, mas não menos expressiva, da descoberta do mês de setembro de 1896: "A minha vocação é o Amor". Aí encontramos, de um lado, os mesmos desejos infinitos; de outro lado, o reconhecimento da pequenez e da impotência, o ato de se apropriar de todos os merecimentos de todos os santos do céu e da terra, o ato de esperança em Deus, que o suscita e lhe dá a segurança de que será atendida. Encontramos aí também a coexistência da possibilidade da experiência do pecado junto à confiança de que bastará um só Olhar do Bem-Amado para que seja transformada em Deus.
            Podemos repassar brevemente o itinerário deste Ato. Teresa começa por falar dos seus desejos infinitos, que não são eliminados pela experiência dos seus limites, mas confirmados pela certeza de que é o próprio Deus quem os suscitou. Então já não fala mais de desejos; baseando-se sobre a ação de Deus, ela daí em diante vai falar de esperança. O amor infinito de Deus não é mais um desejo, mas uma esperança: o que é uma virtude teologal, sinal da ação de Deus na alma, antes de ser movimentação da alma para Deus. Da esperança ela passa enfim para o ato de oferecimento, para a ação, para a expressão de uma vontade que se faz inteiro acolhimento da vontade de Amor de Deus, vontade que a ela se manifestou: "«Quero revestir-me de Jesus Cristo», de sua Justiça e de seu Amor. Não quero nada mais além de vós". E enfim o quer para sempre. É a conclusão do seu Ato de Oferecimento: "Quero renovar este Oferecimento um número infinito de vezes", por toda a extensão do tempo e pelo depois do tempo, pela eternidade. Teresa não quer sair mais deste Amor. É verdade que o Ato, ainda que repetido, é limitado no tempo e no espaço. Mas o Amor que ele encerra é eterno; como Oferecimento ao Amor Infinito este Ato é prelúdio e posse da Eternidade.
2. O Manuscrito B
            O Manuscrito B compõe-se de 5 fólios recobertos, na frente e no verso, por uma escrita fina, muito apertada. É à sua irmã Maria do Sagrado Coração que devemos este escrito, como por outro lado o Manuscrito A, coletânea das recordações da infância, foi dedicado à sua irmã Paulina. A Irmã Maria deve muitas vezes ter pedido oralmente a sua irmã (Teresa) para deixar-lhe por escrito algo da seu "pequenino caminho" de confiança e de amor. Quando Teresa está fazendo o seu retiro pessoal, a Irmã Maria lembra-lhe este pedido por meio de um bilhete, que lhe envia no dia 13 de setembro. Nele a Irmã Maria transmite-lhe que alcançou da Madre Priora não somente a licença de lhe escrever, mas também a de Teresa mandar-lhe a resposta. Teresa redige rapidamente o que será chamado Manuscrito B, composto de duas partes: a primeira traz a data de setembro de 1896 (sem o dia), e a segunda foi (pós-) datada de 8 de setembro do mesmo ano (data da profissão).
            Associadas estreitamente a este "tesouro", duas cartas datadas de 17 de setembro seguinte iluminam o Manuscrito B. A primeira apresenta a reação maravilhada de Maria diante da leitura destas páginas, exprimindo a sua alegria, mas também o seu pesar. Do mesmo dia é a resposta de Teresa.
2.1 A Carta de introdução
            Teresa acolhe com alegria este pedido que lhe permite falar sobre o Amor, a Ciência do Amor. Tal expressão, palavra de Nosso Senhor a Santa Margarida Maria, encontra-se num livro da época conservado no Carmelo, do qual Teresa se serviu.
            Esta ciência não se encontra nos livros, encontra-se na sua fonte que é Deus. Somente Jesus comunicou-a à sua esposa. Esta ciência não se adquire por meio de grandes obras, mas unicamente pelo abandono e pela gratidão. Está aí a misteriosa escolha da Misericórdia de Deus, que faz o Coração de Jesus exultar de alegria: "Eu vos bendigo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondestes isto aos sábios e entendidos e o revelastes aos pequeninos" (Mt 11,25//Lc 10,21). É neste desígnio divino que Teresa reconhece a sua graça: "Porque eu era pequena e fraca, ele se inclinava sobre mim, instruía-me em segredo sobre coisas do seu amor. Ah! Se os sábios, tendo passado a vida nos estudos, viessem interrogar-me, sem dúvida teriam ficado admirados ao ver uma  criança  de  quatorze  anos  compreender  os  segredos  da perfeição, segredos que toda a ciência deles não lhes foi capaz de  revelar, pois  para  possuí-los  é  necessário ser  pobre de espírito!"
            Teresa vai então responder à pergunta de Maria,  concretamente, falando sobre dois assuntos: o sonho, que Maria já deve conhecer, e a pequena doutrina, da qual Teresa vivia e que, em particular, comunicava às suas noviças, há mais de três anos, estando encarregada do acompanhamento delas.
            Teresa fala do profundo do seu coração estabelecido numa calma e paz profundas, apesar das trevas densas que a rodeiam, às quais faz alusão no início da sua carta: "Não creiais que eu esteja nadando em consolações, - oh não! - a minha consolação é a de não ter nenhuma sobre a terra". Sem dúvida, ela usa de expressões que a Maria poderão parecer exageradas: que Maria não se engane; elas não são exageradas, exprimem a realidade do Amor infinito, que está nela, Amor infinito como o fogo do Espírito Santo.
            Para melhor se expressar sobre estas coisas, Teresa não se dirigirá mais a Maria, vai dirigir-se diretamente a Jesus numa oração ardente. Trata-se de um movimento natural, pois Teresa não vai fazer um discurso abstrato, vai lembrar a Jesus com gratidão o louco amor, do qual pela sua parte é ela o objeto, este amor que arde dentro dela: esta labareda de amor não pode ser nem considerada nem atingida a não ser na oração, que em Teresa nada mais é do que amor. Não há nenhum outro caminho para se chegar ao Amor senão o Amor: é para este caminho que Teresa quer arrastar Maria, sua irmã, e todos nós.

2.2 A oração de 8 de setembro
            Esta longa oração, que é o facho de luz do Manuscrito B, é a obra-prima de Teresa, uma das jóias mais belas da literatura cristã. Compõe-se de duas partes, o sonho de 10 de maio e a doutrina da pequenina via. A passagem de uma para a outra é também a passagem do "vós" para o "tu". Passagem que marca uma intensificação de comunhão com Jesus, um crescendo do amor, que se traduz na materialidade da escrita. Na leitura do autógrafo de Teresa podemos constatar a transformação da escrita, em particular, quanto às letras, que evidentemente se engrandecem quando chegamos ao coração desta prece, onde fala sobre a descoberta da sua vocação: "A minha vocação é o Amor".
            Esta passagem do "vós" para o "tu" é o sinal de que Teresa, mais do que nunca, se sente dona de si nesta oração. O "vós" era obrigatório segundo o uso da época. Mas nas suas poesias e nos seus textos mais pessoais, como o bilhete de sua profissão, é o "tu" que prevalece. De um modo espontâneo Teresa tratava a Jesus de "tu" na sua oração. O uso de "tu" neste texto o diferencia claramente dos outros, onde ela sempre usa o "vós".
            É caracterizada pelo amor esta oração do Manuscrito B, um amor cheio de audácia, um amor que não tem outro objeto senão a Pessoa de Jesus, pois é dele que ela recebe o amor. "Duma parte ela sempre pede a Jesus o dom do seu amor, mas ao mesmo tempo este amor é por ela recebido, por ela possuído, ela o diz muitas vezes apaixonadamente... Ousa declarar seu amor a todo instante, dizendo a Jesus "Eu te amo", "Meu Bem-Amado", "Meu único Amor", "Tu a quem amo unicamente" etc. Este ato de amor, este "Eu te amo" é profundeza de toda a prece de Teresa".
            No seu "Porque te amo, ó Maria" Teresa dirá as razões do seu amor por Maria. "Na sua oração a Jesus, a teologia de Teresa vai além: tudo se detém num puro e simples "Eu te amo", sem que seja necessário descer ao "Porque te amo" nem ao expor as razões do amor".

2.3 O sonho
            Teresa, em sonho, vê três carmelitas. Numa delas Teresa reconhece a Venerável Madre Ana de Jesus, que a toma debaixo do seu véu e lhe mostra o seu rosto celestial iluminado por uma luz inefável. "Vendo-me tão ternamente amada, tive a coragem de pronunciar estas palavras: «Ó minha Mãe! Eu vos suplico, dizei-me se o Bom Deus me deixará por muito tempo na terra!... Ele virá buscar-me logo?...» Sorrindo com ternura, a Santa murmurou: «Sim! logo, logo... Eu vo-lo prometo» - «Minha Mãe - acrescentei eu - dizei-me ainda se o Bom Deus não me está pedindo algo mais do que as minhas pobres açõezinhas e os meus desejos. Ele está contente comigo?» As feições da Santa tomou um expressão incomparavelmente mais carinhosa do que da primeira vez que me havia falado. O seu olhar e as suas carícias eram a mais doce das respostas. Contudo me disse: «o Bom Deus não exige de vós nenhuma outra coisa. Ele está contente, muito contente!...» Após ter-me acariciado com muito amor mais do que o tenha feito alguma vez ao seu filhinho a mais terna das mães, eu a vi afastar-se..."
            No sorriso e no gesto da Madre Ana de Jesus há uma superposição teologicamente exata entre o sorriso de Maria e o sorriso da Igreja do Céu. Nos dias da infância de Teresa, Maria tinha vindo sorrir-lhe e curou-a da sua misteriosa doença. Nos dias da sua paixão, da sua noite na provação de uma nova doença associada às tentações contra a fé, a Igreja do Céu vem sorrir-lhe e encorajá-la na sua caminhada, dando-lhe a consoladora segurança de que Deus está muito contente com ela.
            O Céu, objeto das tenebrosas tentações contra a fé, ilumina-se de amor. Teresa compreende assim que o amor dos habitantes do Céu é muito grande, compreende que é amada mais do que poderia pensar;  a  revelação  deste amor  faz  com que o seu coração se derreta de amor. Vem a conclusão desta primeira parte: "Oh Jesus! A tempestade não trovejava ainda, o céu estava calmo e sereno... Eu cria, sentia que existe um Céu e que este Céu está povoado de almas que me querem bem, que olham para mim como sua filhinha..."
2.4 A pequena doutrina

Os desejos infinitos
A segunda parte desta oração introduz-nos na exposição da sua pequena doutrina, sob o tema dos seus grandes desejos: "Oh meu  Bem-Amado!  Esta graça não era mais do que o prelúdio da graças maiores, com que tu querias cumular-me: deixa-me, meu Amor único, relembrá-las a ti hoje... hoje o sexto aniversário da nossa união. Ah! Perdoa-me, Jesus, se falo desarrazoadamente ao querer redizer os meus desejos, as minhas esperanças, que tocam ao infinito; perdoa-me e cura a minha alma, concedendo-lhe o que ela está esperando!"
            A palavra "infinito", censurada pelo teólogo, no seu Ato de Consagração ao Amor Misericordioso, retorna aqui com toda força. No que vem depois Teresa ainda se esforçará por utilizar outras expressões, como "desejos maiores que o universo"; consideramos como um esforço para exprimir com outras palavras as realidades do seu coração, que somente a palavra "infinito" podia satisfazer.
            O outro termo que Teresa utiliza para exprimir o caráter extremo destas realidades é a palavra "loucura", loucura de Teresa e loucura de Jesus: "Ó meu Jesus! a todas estas minhas loucuras que é que tu vais responder?... Haverá uma alma menor, mais impotente que a minha!... Contudo, por causa mesmo da minha fraqueza, tu te comprouveste, Senhor, em realizar os meus desejinhos infantis, e hoje queres satisfazer a outros desejos maiores do que o universo..." E mais adiante: "Ó Jesus, deixa-me dizer-te que o teu amor vai até à loucura..."
            "Assim os desejos infinitos de Teresa, fundamentalmente, não são nada mais do que o multiforme desejo de amar Jesus totalmente, infinitamente. Nós o vimos, era a oração de Teresa no dia 8 de setembro de 1890, dia da sua Profissão. Seis anos mais tarde, esta louca oração foi atendida ao pé da letra; para darmos conta disto é preciso considerar agora a extraordinária descrição que Teresa faz deste desejo de amar Jesus de todas as maneiras possíveis".
            Leiamos agora este texto admirável que todo mundo conhece: "Ser tua esposa, ó Jesus, ser carmelita, ser pela minha união contigo, mãe das almas, deveria ser suficiente para mim... não é assim, porém... Sem dúvida, estes três privilégios bem que são a minha vocação, Carmelita, Esposa e Mãe, contudo sinto em mim outras vocações, sinto-me a vocação de Guerreiro, de Padre, de Apóstolo, de Doutor, de Mártir, enfim, sinto a necessidade, o desejo de executar por ti, Jesus, todas as obras mais heróicas... Sinto na minha alma a coragem de um Cruzado, de um Zuavo Pontifício, quereria morrer no campo de batalha pela defesa da Igreja. Sinto em mim a vocação de Sacerdote: com que amor, ó Jesus, eu te carregaria nas minhas mãos, quando, à minha voz, tu descesses do Céu. Com que amor dar-te-ia às almas!... Mas - pobre de mim! - por mais que deseje ser Padre, admiro e invejo a humildade de São Francisco de Assis e sinto em mim a vocação de imitá-lo, recusando a sublime dignidade do Sacerdócio.
            Oh!  Jesus!  Meu amor,  minha vida...  como aliar estes contrastes? Como realizar os desejos da minha pobre pequenina alma? Ah! Apesar da minha pequenez, eu gostaria de iluminar as almas como os Profetas, os Doutores, tenho a vocação de ser Apóstolo... gostaria de percorrer a terra, pregar o teu nome e plantar no chão infiel a tua Cruz gloriosa, mas, ó meu Bem-Amado, uma missão sozinha não me seria suficiente, eu quereria num mesmo tempo anunciar o Evangelho nas cinco partes do mundo e até às ilhas mais afastadas. Eu quereria ser missionária não apenas durante alguns anos, mas quereria tê-lo sido desde a criação do mundo e o ser até à consumação dos séculos... Mas eu quereria acima de tudo, ó meu Bem-Amado Salvador, quereria derramar o meu sangue por ti até à última gota... O Martírio, eis o sonho da minha juventude, sonho que veio crescendo comigo sob os claustros do Carmelo...  Mas  ainda    eu  sinto  que  o  meu sonho é uma loucura, pois não conseguiria limitar-me a desejar um gênero único de martírio. Para satisfazer-me precisaria de todos... Como tu, meu Esposo Adorado, eu quereria ser flagelada e crucificada. Quereria morrer esfolada como São Bartolomeu. Como São João (Evangelista) eu quereria ser mergulhada no óleo fervendo, eu quereria sofrer todos os martírios infligidos aos mártires... Com Santa Inês e Santa Cecília eu quereria apresentar o meu pescoço à espada e como Joana d' Arc, minha irmã querida, eu quereria em cima da fogueira murmurar o teu nome, ó Jesus. Ao imaginar os tormentos que serão a sorte dos cristãos no tempo do Anticristo, sinto estremecer o meu coração e eu quereria que estes tormentos fossem reservados para mim... Jesus, Jesus, se eu quisesse escrever todos os meus desejos, seria necessário tomar emprestado o teu Livro da Vida: nele estão relatados todos os atos de todos os Santos e estes atos quereria eu tê-los praticado todos por ti".
            "Os desejos infinitos de Teresa, rigorosamente falando, são impossíveis: como mulher é impossível que ela seja padre; como carmelita enclausurada, é impossível que ela seja missionária no exterior. Mas há também uma impossibilidade metafísica naquilo que ela deseja: é o seu desejo de transcender os limites do espaço e do tempo, de transcender a distinção entre o um e o múltiplo. Teresa não deveria contentar-se com um lugarzinho bem pequenino na História da Salvação, no espaço e no tempo? Estar contente por não ter senão uma parte pequena na santidade de todos os outros Santos? Desejando ser missionária «nas cinco partes do mundo» ao mesmo tempo, tê-lo sido «desde a criação do mundo» até «a consumação dos séculos», Teresa deseja propriamente o infinito tal como se exprime através dos divinos atributos de imensidão e eternidade. Os seus desejos são literalmente «maiores do que o universo», posto que abarcam na dimensão de Deus, para lá do espaço e do tempo, a totalidade do universo, a totalidade do universo da santidade".
            "Ó meu Jesus, que é que vais responder a todas as minhas loucuras? Haverá uma alma mais pequenina, mais impotente do que a minha?!...  Contudo,  por  causa  mesmo  da  minha  fraqueza  te comprouveste, Senhor, em cumprir os meus desejinhos infantis e queres hoje realizar outros desejos maiores do que o universo... Durante a minha oração, quando os meus desejos me faziam sofrer um verdadeiro martírio, abri as epístolas de São Paulo a fim de procurar alguma resposta. Os Capítulos 12 e 13 da primeira Carta aos Coríntios caíram debaixo dos meus olhos. Li aí, no primeiro, que não podem todos ser apóstolos, profetas, doutores etc... que a Igreja se compõe de membros diferentes e que o olho não poderia ser ao mesmo tempo a mão".
            "Se Teresa não tivesse sido animada pela força do seu amor, ter-se-ia contentado com esta primeira resposta da fé; a sua busca não teria ido mais longe. Ora o amor a obriga a continuar na sua busca...  A tensão  extrema  da  busca  é  admiravelmente evocada quando Teresa se compara a Maria Madalena na manhã da Páscoa; Teresa não procura a não ser o próprio Jesus e, nesta primeira fase da sua procura, nada encontrou ainda a não ser o túmulo vazio. Mas, por amor, como Madalena, Teresa insiste na sua procura. Assim como Madalena se inclinava junto ao túmulo, é preciso que Teresa se abaixe totalmente num derradeiro ato de humildade, que é ato supremo de amor, pois «o Amor, para que seja plenamente satisfeito, é necessário que se abaixe, que se abaixe até o nada»".
            "A resposta era clara, mas não satisfazia aos meu desejos, não me dava a paz. Como Madalena, inclinando-se sempre junto ao túmulo vazio, acabou por encontrar aquele que procurava, assim, abaixando-me até às profundezas do meu nada, elevei-me tão alto que consegui alcançar a minha meta... Sem perder a coragem, continuei a minha leitura, e esta frase me deu alívio: «Procurai ardorosamente os dons mais perfeitos, mas vou mostrar-vos ainda um caminho mais excelente». E o Apóstolo explica de que modo  todos os dons, mesmo os mais perfeitos, nada são sem o Amor. Que a Caridade é o caminho excelente que conduz até Deus com segurança. Enfim havia eu encontrado o repouso...
            Contemplando o Corpo Místico da Igreja, não me reconhecera em nenhum dos membros descritos por São Paulo, ou antes, pretendi reconhecer-me em todos... A Caridade entregou-me a chave da minha vocação. Compreendi que, se a Igreja tinha um corpo composto de membros diferentes, o mais necessário, o mais nobre de todos não lhe faltaria, compreendi que a Igreja tinha um Coração e que este Coração era ardente de Amor. Compreendi que somente o Amor fazia agir os membros da Igreja, que se o Amor viesse a se extinguir, os Apóstolos não anunciariam mais o Evangelho, os Mártires se recusariam a derramar o seu sangue. Compreendi que o Amor encerrava todas as Vocações, que o Amor era tudo, que ele abraçava todos os tempos e todos os lugares... numa palavra, que o Amor é eterno!...
            Então, no excesso da minha alegria delirante exclamei dentro de mim mesma: «Ó Jesus, meu Amor, a minha vocação encontrei-a enfim, a minha vocação é o Amor!... Sim, encontrei o meu lugar; ó meu Deus, fostes vós que o destes a mim... no Coração da Igreja, minha Mãe, serei o amor... assim serei tudo... assim o meu sonho será realizado!!!...»"
            Podemos entender agora a profundidade desta expressão de Teresa: "A minha Vocação é o Amor!" Não se trata de um vago sentimento ou de uma atitude de benevolência universal. Este Amor é a Caridade Teologal, como, aliás, no texto de São Paulo, onde Teresa foi haurir. Este Amor é o próprio Deus em nosso coração. Este Amor, que é o próprio Deus em nosso coração, é a vocação de Teresa. É nele que Teresa pode aspirar ao Infinito, ultrapassar todos os limites para deixar transbordar o Amor por todos os tempos e por todos os lugares.
2.5 As duas parábolas da pequenez
            Este amor propriamente infinito está no coração, não apenas da finitude, mas da pequenez e do nada. Teresa serve-se de duas parábolas para enunciar esta pequenez. A primeira apresenta-nos uma criança que vai lançando flores, expandindo os seus perfumes e com voz argentina cantando o cântico do Amor. Este Amor, que tem um valor infinito, dará valor infinito a todas as coisas pequeninas. É desta maneira que ela pode visualizar que o Amor é a alegria dos eleitos, a consolação dos sofredores, a força dos combatentes.
            A segunda parábola sobre esta desproporçãao entre aquela imensidão do Amor e a pequenez da criatura humana é a imagem da avezinha débil, que tem em si os olhos e o coração da águia, mas não tem as suas asas poderosas. Não consegue impelir o seu vôo até às alturas, mas os seus olhos e o seu coração nem por isso deixam de permanecer fixos no Sol Divino. E se por um instante se esquece de exercer o seu "ofício de amor", pouco depois o retoma e se apressa em contar a sua miséria, pois, graças ao seu abandono e confiança, acha que pode atrair plenamente o Amor daquele, que não veio para os justos e sim para os pecadores. A avezinha sabe que sozinha nunca poderá elevar-se até às regiões das águias, contudo não cessa de esperar por isso. Apaixonada de um louco amor, encontra o meio de chegar até lá: "A minha loucura  consiste em suplicar às Águias, minhas irmãs, que me alcancem o favor de voar até o Sol do Amor com as próprias asas da Águia Divina".
            "Detenhamo-nos nesta última frase: (...) a perfeição do amor que Teresa deseja atingir, a caridade teologal no seu ponto culminante, não será ela quem vai realizá-la, Teresa vai deixar agir as próprias asas da Águia Divina, isto é, as forças, o poder, o amor do próprio Deus. O amor que está em Deus, que é Deus, coloca-se no lugar do amor de Teresa, toma o seu lugar, ama no seu lugar". Mais tarde Teresa usará de uma imagem menos poética, a imagem do elevador, para enunciar a mesma realidade: a poderosa  ação  de  Deus  em  nós.  "As duas imagens concordam no essencial: tentam fazer-nos compreender o que Teresa quer dizer, e que constitui a sua vida: o seu louco amor por Deus, a caridade que deve ser uma amizade entre ela e Jesus, não é Teresa quem a gera, é Deus! Para voar rumo ao Sol do Amor, são as asas da Águia que agem. Teresa não é apenas ajudada; ela, por assim dizer, é substituída, nada mais faz do que deixar-se levar, ela deixa a grande ave agir em seu lugar. Para subir a escada, o elevador não faz mais do que ajudar Teresa a subir os degraus, como outrora pôde fazê-lo a sua mãezinha: o elevador sobe no lugar dela ou, se o quisermos, ela toma lugar nele.
            Em linguagem teológica - se é permitido traduzir os textos de Teresa para ver neles uma "doutrina" - pode-se dizer: "Quando a caridade atinge o seu ponto culminante de perfeição, já não é mais o coração humano que age para amar, é Deus mesmo, e como é Deus mesmo quem é amado, pode-se concluir que numa alma humana, que pratica um ato de caridade perfeita, Deus está amando a Deus. A alma então deixa Deus agir, como se Deus lhe dissesse: «deixa-te agir» ou «deixa-me agir". O ato de caridade não é mais unicamente um ato criado por Deus assim como todos os outros nossos atos, é um ato que participa da divina atividade, é um ato que é Deus quem faz.
            Que pode então a alma fazer? O caminho que permite o amor infinito é o caminho da pequenez. Por isto, "é preciso que eu permaneça pequena, que me torne pequena cada vez mais", escreverá Teresa no Manuscrito C. Mas não nos enganemos!... A pequenina via nada tem de um tranqüilo passeio. "Deixar-se fazer por Deus não se parece em nada com o «deixar ir» dos preguiçosos. Deixar o lugar todo para Deus numa vida representa um «trabalho», de que poucos são capazes. O esforço interior, que se deve fazer para deixar Deus agir, para abandonar-se totalmente em vez de se enrijecer, muitos sabem que não é fácil. Só o amor, com a fé, pode acabar com o orgulho. E só um amor grande pode levar a consentir afinal na pequenez. Teresa um dia confessa: «Não me recordo de lhe ter recusado nada de tudo quanto ele me pediu»".
            A expressão extrema desta pequenez é o holocausto, a hóstia sacrificada e reduzida ao nada: "Sim, para que o Amor se satisfaça inteiramente, é necessário que se rebaixe até o nada e que transforme em fogo este nada". Esta pequenez extrema atrai irresistivelmente o Coração de Jesus, visto que ela reside em criaturas que se abandonam com inteira confiança à infinita misericórdia.
            Teresa termina estas páginas com uma derradeira intercessão; solicita a Jesus uma legião de pequeninas almas, vítimas de amor, com a mesma vocação universal igual à sua. Sendo o Amor a vocação delas, essas pequeninas almas terão elas também de amar o Coração de Jesus sedento de Amor. E assim como Teresa, elas podem encher de alegria as almas do Céu, aliviar o sofrimento das almas do Purgatório e reconfortar no seu combate as almas da terra.
             Entregar-se como vítima de amor é fazer um ato de perfeito amor, pois é um ato de amor a Deus e de amor ao próximo ao mesmo tempo, segundo a medida do Coração de Deus, que nos concede desejar e poder pôr em prática estas diligências sobre o amor. "Suplico-te inclinar os teus olhos divinos sobre um número enorme de pequeninas almas... Eu te suplico que escolhas uma legião de pequeninas vítimas dignas do teu AMOR!..."

3. A objeção da sua irmã Maria e a resposta de Teresa
            Irmã Maria do Sagrado Coração devora admirada estas páginas da sua irmãzinha. Fica seduzida por um tal amor, mas também ainda  distante de compreender e aceitar o seu dinamismo. Sente-se atraída por este fogo, que arde no coração de Teresa. É envolta nestes sentimentos que escreve outra carta à sua irmã, contando-lhe a sua alegria, mas também a sua pena de se ver muito distante destes "desejos infinitos", que habitam no coração de Teresa.
            "Irmãzinha querida, li as vossas páginas ardentes de amor por Jesus; a vossa madrinhazinha está muito feliz por ser dona deste tesouro e muito agradecida à sua filhinha querida, que lhe abriu assim os segredos da sua alma. Oh! Bem que eu teria muito a vos dizer a respeito destas linhas marcadas com o selo do amor. - Uma  palavra  apenas  no  que  me  diz respeito. Como do jovem do Evangelho, um certo sentimento de tristeza apoderou-se de mim diante dos vossos desejos extraordinários de martírio. Eis aí bem clara a prova do vosso amor; sim, vós o possuís, o amor, mas eu! Nunca, de maneira nenhuma; vós não me fareis crer que eu possa atingir a esta meta desejada. Pois eu temo tudo isto que vós amais.
            Eis que está aí uma boa prova de que não amo Jesus como vós. Ah! Vós dizeis que não fazeis nada, que sois uma pobre avezinha mirrada, mas os vossos desejos por que coisa os calculais? O Bom Deus os olha como obras.
            Não posso falar disto convosco mais prolongadamente: comecei estas palavrinhas esta manhã e não tive um minuto para terminá-las; são cinco horas. Gostaria muito que dissésseis por escrito a vossa madrinhazinha se ela pode amar a Jesus como vós. Mas duas palavras somente, pois o que tenho comigo é bastante para a minha felicidade e meu tormento. Para minha felicidade, ao ver a que ponto sois amada e privilegiada; para meu tormento, ao pressentir o desejo que tem Jesus de colher a sua florzinha querida! Oh! Bem que eu tinha vontade de chorar quando li estas linhas que não são da terra, mas um eco do Coração de Deus... Quereis que vos diga? Pois bem! Vós estais possuída pelo Bom Deus, mas possuída como se diz... não absolutamente como os maus são possuídos pelo vilão. Gostaria muito de ser possuída eu também pelo Bom Jesus. Mas eu vos amo tanto que me alegro mais do que tudo vendo-vos mais privilegiada do que eu. Uma pequena palavrinha para a sua madrinhazinha".
            No mesmo dia Teresa responde à sua irmã. Faz-lhe o convite para ler com mais atenção "a história da sua avezinha". Esta carta de Teresa é um dos textos mais potentes sobre a pequenez como pobreza espiritual.
            "Minha Irmã querida, não me sinto embaraçada em vos responder... Como podeis perguntar-me se é possível amar o Bom Deus como eu o amo?... Se tivésseis compreendido a história da minha avezinha, vós não me faríeis esta pergunta. Os meus desejos de martírio não são nada, não são eles que me dão a confiança ilimitada que sinto no meu coração. São as riquezas espirituais, para dizer a verdade, que fazem alguém injusto, quando nelas se repousa complacentemente e quando se crê que elas são alguma coisa de grande... Estes desejos são uma consolação, que Jesus às vezes concede às almas fracas como a minha (e tais almas são numerosas), mas quando ele não dá esta consolação é uma graça de privilégio - lembrai-vos destas palavras do Padre (Pichon): «Os Mártires sofreram com alegria, mas o Rei dos Mártires sofreu com tristeza». Sim! Jesus disse: «Meu Pai, afastai de mim este cálice!» Irmã querida, como podeis falar depois disto que os meus desejos são a marca do meu amor?... Ah! Bem sinto que não é nada disto que na minha alma agrada ao Bom Deus: o que lhe agrada é me ver amar a minha pequenez e a minha pobreza, é a esperança cega que deposito na sua misericórdia... Eis aí o meu único tesouro. Madrinha querida, por que não seria vosso também este tesouro?...
            Vós  não  estais  pronta  a  sofrer  tudo  quanto o Bom Deus quiser?  Sei  bem  que  sim: então, se  desejais  sentir  alguma alegria, ter atração pelo sofrimento, é a vossa consolação que estais procurando, pois quando se ama alguma coisa o sofrimento desaparece. Asseguro-vos que se caminhássemos juntas para o martírio com as disposições em que nos encontramos, vós teríeis um grande merecimento e eu não teria nenhum, a menos que praza a Jesus mudar as minhas disposições.
            Ó minha irmã querida, eu vos rogo isto: «Compreendei a vossa filhinha, compreendei que para amar Jesus, ser a sua vítima de amor, quanto mais alguém for fraco, sem desejos nem virtudes, tanto mais estará preparado para as operações deste Amor Devorador e Transformante»... Um único desejo de ser vítima basta, mas é preciso consentir em permanecer sempre pobre e sem forças e aqui está o difícil, pois «O verdadeiro pobre de espírito onde encontrá-lo? É preciso procurá-lo bem longe», disse o salmista... Não disse ser preciso procurá-lo entre as grandes almas, mas «bem longe», quer dizer, na baixeza, no nada... Ah! Fiquemos bem longe de tudo o que brilha, amemos a nossa pequenez, gostemos de não sentir nada, então seremos pobres de espírito e Jesus virá buscar-nos: por mais longe que estejamos transformar-nos-á em chamas de amor... Oh! Como gostaria de poder fazer-vos compreender o que eu sinto!... É a confiança e nada mais do que a confiança que nos deve levar até o Amor..."
            A resposta de Teresa é de uma clareza surpreendente. Não é o desejo do Martírio que faz a grandeza do Amor de Teresa, isto não é senão uma consolação que Jesus concede às almas fracas como a sua. O que faz ser grande o amor é unicamente o abandono, é a confiança cega em Jesus e nada mais, é isto que nos leva ao Amor. Por isso os grandes desejos podem tornar-nos injustos, podem ser um obstáculo, pois próprio do amor é humilhar-se.
            É importante nada ter: quanto mais formos fracos, sem desejos nem virtudes, tanto mais estaremos preparados para as operações do Amor. Tenhamos gosto de permanecer pequenos. Jesus virá buscar-nos e transformar-nos em chamas de amor, por mais distantes que estejamos. Cheios de confiança, não teremos mais do que expor-nos aos seus raios benéficos, deixar-nos dourar pelo seu fogo divino, firmes na confiança, quando não o estamos vendo, quando o sentimos arder e quando em qualquer lugar nos acontece o mal.
Conclusão
            No mês de fevereiro de 1895, Teresa havia escrito uma poesia, que brotou de um só jacto durante os longos momentos de adoração diante do Santíssimo Sacramento, antes da sua entrada na Quaresma. Trata-se de uma declaração de amor, que preludia o seu Ato de Consagração ao Amor Misericordioso, mas contém ainda o anúncio da sua morte próxima. A palavra "Amor" retorna aí 35 vezes, é o estribilho dos 120 versos da poesia. Encontramos aí a sua convicção de ser chamada para o amor e reconhecer no Amor a vocação que Deus lhe deu para a vida como para a morte e, ouso dizer, para depois da morte. Teresa recebeu de Deus a missão de Amar e de fazer amar o Amor, de ensinar isto aos outros por meio do seu pequenino caminho. Devemos-lhe o título de "Doutor do Amor". Desejamos que este título de Doutor lhe seja enfim reconhecido pelo magistério da Igreja, no ano centenário da sua morte. Gostaria de terminar este encontro convosco, lendo os últimos versos da poesia "Viver de Amor". Nela, não somente a vida, mas a morte também é um ato de amor. A morte não escapa à sua Vocação de Amor, a morte é o seu feliz coroamento.

                        "Morrer de Amor, eis a minha esperança:
                        Quando vir quebrados os laços meus
                        Será meu Deus a Grande Recompensa.
                        Outros bens não quero possuir,
                        No seu Amor abrasada quero estar,
                        Quero vê-lo, a ele sempre unir-me.
                        Eis o meu Céu... Eis o meu destino:
                                               Viver de Amor!!!..."
 Artigo publicado em Près de la Source  Les Grands Carmes en France  Bourges  Janvier - Février - Mars   1997  /  nº 4

sábado, 29 de dezembro de 2012

A PALAVRA DO FREI PETRÔNIO, Nº 231: Outro olhar sobre 2012.

EDITH STEIN E A NOVA EVANGELIZAÇÃO

Francisco Javier Sancho Fermín OCD

            No momento atual, os meses que passaram e os que estão vindo agora estão marcados por diversas celebrações centenárias: a 14 de dezembro de 1991 celebrava-se o IV Centenário da morte de São João da Cruz. Em alguns países era o dia do encerramento, em outros o início. Não demorará muito e no dia 12 de outubro começa o V Centenário da Evangelização da América.
            Entre estas datas teve lugar outro centenário. Na sombra dos outros passou quase sem ninguém advertir: o I Centenário do nascimento de Edith Stein. A abertura foi no dia 12 de outubro de 1991 e o encerramento coincidirá com o início do Centenário das Américas.
            Todas estas celebrações ficariam vazias se se limitassem a um simples festejar e recordar tempos passados. O objetivo é outro: fazer-nos refletir. Hoje, na América de modo especial, se insiste sobre o tema da Nova Evangelização. Ajuda para esta reflexão dão-nos os Santos, enquanto encarnação do ideal evangélico. Fixamos a nossa atenção na Bem-Aventurada do nosso século, Edith Stein. Através da exposição da sua vida e do contexto histórico que ela viveu chegaremos a colher do seu pensamento alguns aspectos, que poderão oferecer-nos luz, ao refletirmos sobre a Nova Evangelização.
1. Vida
            Nasceu Edith Stein no seio de uma família judia, no dia 12 de outubro de 1891, na cidade prussiana de Breslau. É a mais nova de 11 irmãos, dos quais 4 morreram em idade prematura.
             Não tinha ainda completado 2 anos quando o pai morreu de insolação. A mãe, "mulher forte da Bíblia", como é chamada por Edith, encarrega-se da família, translada-se para a cidade e leva para a frente o negócio de madeiras iniciado pelo marido.
            Aí Edith vai receber a primeira formação escolar na  Viktoria-Schule. Aos 14 anos abandona os estudos, movida por um certo enjôo intelectual e talvez de fé. Por esta ocasião deixou toda prática religiosa, certamente influenciada pelas idéias racionalistas pós-kantianas, que caracterizavam a linha de pensamento da escola. Passaram-se quase dois anos até se decidir a recomeçar os estudos para bacharelado em 1908.
            Em 1911 entra para a Universidade. Escolhe História, Filologia Alemã, Filosofia e Psicologia. Esta última é a que mais atrai a sua atenção, mas por ser ainda uma ciência sem fundamentos sólidos, ela resolve dedicar-se à filosofia.
            Durante estes anos começa a tomar parte em diversas associações estudantis orientadas para reforma do sistema educativo e promoção dos direitos da mulher etc.
            Em 1913, atraída pela fenomenologia de Husserl, dirige-se para a Universidade de Göttingen. Aí conheceu Scheler, que infiltra na vida de Edith a abertura para a Igreja Católica. Estoura a 1ª Guerra Mundial e Edith se oferece como voluntária da Cruz Vermelha para atender os doentes num hospital de "contagiosos". Terminados estes serviços humanitários, volta para o seu trabalho intelectual. Conclui a sua tese doutoral sobre o tema da Empatia (Einfühlung), que apresenta na Universidade de Friburgo no dia 3 de agosto de 1916, alcançando a nota máxima. Nesta Universidade permanece até 1918, como assistente de Husserl.
            Por ser mulher, fracassa no seu projeto de subir a uma cátedra. Dá algumas aulas particulares e faz substituições na Escola Viktoria, onde tinha sido aluna adiantada. Parece que nestes anos a crise espiritual de busca toma conta dela. O momento definitivo da sua conversão chega no verão de 1921, quando por acaso, estando na casa de campo dos seus amigos Conrad-Martius, cai nas suas mãos o "Livro da Vida" de Santa Teresa. AÍ descobre a Verdade. É batizada no dia 1° de janeiro de 1922 em Berzabém.
            A conversão muda a orientação da sua vida. Primeiro como professora de bacharelado e magistério no Colégio das Dominicanas de Espira; neste tempo dedica-se ao estudo e tradução de Santo Tomás. A sua vida é de intensa oração e de serviço aos mais pobres.
            A partir de 1928 desdobra-se a sua atividade no terreno do "feminismo". Chegam convites de numerosas cidades dos países de língua alemã, para fazer conferências sobre o tema. Em 1930 foi convidada pela "Societé Thomiste" de Paris.
            A sua última atividade, antes do triunfo nazista, foi-lhe oferecida no Instituto de Pedagogia de Munster como ocupante da nova cátedra de antropologia (1932-1933).
            Com a proibição aos judeus de exercerem cargos públicos abrem-se as portas para ela realizar a sua vocação. Nada agora podia detê-la de entrar para o Carmelo. Os seus próprios confessores já não puseram obstáculo. E é assim que na véspera da Festa de Santa Teresa, no dia 14 de outubro, se dá o seu ingresso no Carmelo. No dia 16 de abril recebe o hábito com o nome de Teresa Benta da Cruz. Nome que denuncia a sua vida espiritual. Teresa, porque em Teresa encontrou a mãe na fé e na vocação. Benta, porque na espiritualidade de São Bento encontrou o verdadeiro sentir com a Liturgia da Igreja. Da Cruz, porque lhe foi possível a entrada no Carmelo debaixo deste sinal, que daí em diante será o sinal da configuração e consumação da sua vida em Cristo.
            No Carmelo prossegue na atividade intelectual, levando ao fim a sua grande obra filosófica: "Ser finito e Ser eterno".
            Contudo, pela situação extrema de ódio contra os judeus, é levada a transferir-se para o Carmelo de Echt na Holanda, onde escreveu o sua última obra, "A Ciência da Cruz", em homenagem ao IV Centenário do nascimento de São João da Cruz; não conseguiu,porém, terminá-la, já que no dia 2 de agosto de 1942 foi arrancada pela Gestapo da paz do Carmelo e levada ao campo de Auschwitz/Birkenau, onde, junto com Rosa, sua irmã, foi martirizada na câmara de gás no dia 9 do mesmo mês. O exemplo e heroicidade da sua vida foram apresentados à Igreja Universal no dia 1º de maio de 1987 na cidade de Colônia, onde João Paulo II a proclamou Bem-Aventurada e Mártir.
2. Contexto Histórico
            Uma análise, ainda que superficial, do ambiente onde Edith viveu pode ajudar-nos a compreender a sua vida e a sua doutrina. A sua vida decorreu ao longo da primeira metade do nosso século, numa Europa que sofreu duas guerras mundiais. A situação ideológica geral ainda estava marcada pelas correntes racionalistas do século XIX, que distanciou o homem da sensibilidade religiosa. É neste tempo que novas ideologias de caráter sócio-político, como o socialismo marxista, começam a minar a política, criando em muitos países situações de revolução.
            As pessoas de fé, e os católicos ainda mais, viviam a sua religiosidade numa situação de "ghetto" provocada pela mentalidade racionalista e - em países como a Alemanha - por leis favoráveis só ao protestantismo. Isto criou uma espécie de complexo no católico alemão.
            A 1ª Guerra Mundial (1914-1918) será ocasião de grandes mudanças. As primeiras conseqüências trágicas fazem-se sentir na grande perda de vidas humanas e no caos econômico proveniente dos gastos bélicos.
            A Alemanha, a grande protagonista da guerra, ao alcançar a paz perde todas as suas colônias e parte dos seus territórios próximos das fronteiras. A paz trouxe-lhe instabilidade em todos os campos. Grupos socialistas aproveitam-se da ocasião para provocar a revolução em vários estados alemães e chegar assim à constituição da república. O Imperador Guilherme II apresentou renúncia à coroa e se exilou.
            Não houve estabilidade garantida até 11 de agosto de 1919, ano em que nasceu a Constituição de Weimar. Já se nota aí uma certa participação dos católicos na política, no partido do Centro.
            A guerra e o pós-guerra fizeram surgir também alguma crise de consciência. A razão não bastava para solucionar os problemas da humanidade e acontece o fenômeno do retorno à religiosidade.
            Todos estes fenômenos são para o mundo católico a porta de penetração na sociedade alemã. Dá-se um autêntico renascimento da vida espiritual. Cresce o empenho pelas questões sociais: a Ação Católica adquire força, aparecem grêmios e diversas associações de trabalhadores. Aumenta a atividade literária. E pouco a pouco se consegue um lugar qualificado dentro daquela sociedade. Procura-se unir doutrina e vida.
            Como fruto deste florescimento desenvolvem-se movimentos diversos, que irão dar a fisionomia espiritual à Alemanha. O mais forte, é sem dúvida, o movimento litúrgico, que pretende aproximar a liturgia do povo e o povo da liturgia. Outros movimentos são o bíblico-patrístico, que recupera os valores sempre atuais da tradição, o movimento social ou laical, que trata de conscientizar o leigo do seu trabalho social e eclesial. Há um outro aspecto: a teologia e a piedade se tornam mais cristocêntricas. Cristo como homem e como Deus. Um cristocentrismo que se manifesta na concepção eclesial: Igreja como Corpo de Cristo.
            Esta situação vai ser freada em grande parte com a subida ao poder do nacional-socialismo (1933), ideologia que se fundamenta num desejo radical de fazer crescer e proteger os valores supremos da raça germânica (ariana). Na frente está Hitler, que se constitui "führer" do Terceiro Reich com a pretensão de reconquistar as glórias do antigo Império Alemão.
            Esta ambição leva-o a fechar a boca de todos opositores;       entre eles a Igreja Católica.
            Os primeiros passos de Hitler, porém, são dirigidos para a purificação da raça e isto manifestou-se por primeiro por meio da proibição aos judeus de assumirem cargos públicos e, em seguida, revelou-se num ódio de perseguição e assassínio. Esta mesma sorte sofreram os católicos que se opuseram abertamente a tais medidas.
            Esta ambição levou ao desencadeamento da 2ª. Guerra Mundial (1939-1945), quando Hitler pretendeu recuperar os territórios perdidos. Desta guerra e do ódio contra os judeus Edith Stein foi vítima.
3. Contribuições para uma Nova Evangelização
            Puebla, fazendo-se eco do que dizia Paulo VI, entende por evangelização "levar a Boa Nova a todos os ambientes da humanidade e, pela sua influência, transformar por dentro, renovar esta mesma humanidade" (Puebla 402). Como Edith Stein foi capaz de fazê-lo? Se dizemos que "o Santo é o símbolo do ideal evangélico visualizado e posto ao alcance de todos a um certo momento e perante certos desafios históricos" e, mais ainda, que "o Santo é o comentário vivo do Evangelho escrito"[1], o nosso objetivo está plenamente justificado.
            O contexto em que viveu Edith Stein não é o nosso, mas certas situações assemelham-se às nossas. Por outro lado, os valores evangélicos apresentam-se como valores universais, válidos para todos os tempos.
            Edith Stein não enfrenta diretamente o problema da Evangelização, e sim certos aspectos, que cuidaremos de pôr em evidência.
            O conceito que ela tem de Evangelização consiste em "colaborar com Cristo na Redenção da humanidade". Colaborar como "instrumentos" dóceis à vontade do Pai, deixando-se guiar pelo Espírito Santo. É este o trabalho de todo cristão, não de uns poucos. Cada um a partir da sua condição "carismática". Quem não coopera está pondo em risco a sua filiação divina. "Ser filhos" é participar da obra do Pai.
            Como colaborar com Cristo? O evangelizador autêntico não é aquele que "faz muitas coisas" ou "coisas grandes". Cada um há de fazê-lo de acordo com a função para a qual foi chamado. Como norma para todos, colaborar com Cristo consiste sobretudo em estar "unido a Ele" através de uma intensa vida teologal:
            "Na Nova Aliança o homem participa da obra da redenção numa forte relação pessoal com Cristo: por meio da fé que o une a Ele, Caminho de Salvação, à verdade por Ele revelada, aos meios de santificação que Ele oferece; por meio da esperança que faz o homem esperar com firme confiança a vida prometida por Cristo; por meio do amor, pelo qual procura todas as maneiras possíveis de unir-se a Cristo. Esforça-se por conhecê-Lo melhor, meditando sobre a sua vida e refletindo nas suas palavras; conquista a união mais íntima com Ele na Eucaristia e participa da continuidade mística da sua vida, vivendo o Ano Litúrgico, a Liturgia da Igreja".
            Temos aqui, em maravilhosa síntese, as características da autêntica Evangelização, da autêntica Vida Cristã:
            * em união com Cristo, porque Ele é o revelador do Pai. Segui-Lo é o caminho seguro, porque Cristo é o conteúdo da Evangelização.
            * Seguir a Cristo através da vida teologal:
            - na fé, como adesão à sua Pessoa, à sua vontade, à sua verdade;
            - na esperança: com a confiança nas suas promessas, trabalhando para realizar já na terra o Reino dele;
            - no amor: como atitude que nos aproxima da autêntica união com Ele no exercício do amor ao próximo, no qual "servimos a Ele";
            * Seguir a Cristo é chegar a um maior conhecimento da sua Pessoa, da sua vontade, através da oração, da meditação e do estudo[2];
            * Seguir a Cristo é fazer parte da sua Igreja. Participar com ela dos meios que aproximam de Cristo. Nos Sacramentos, na Liturgia como momento de celebração da Fé e fonte de graça para pôr em ação a vida de Cristo em nós e no irmão.
            * Seguir a Cristo é colaborar na sua obra, uma obra que redime todos os setores da vida.
            A razão para esta amplidão encontra-a Edith numa tríplice causa: Cristo ao se encarnar assume a natureza humana; o homem não é uma composição, mas uma unidade de espírito, alma e corpo[3]; e finalmente, o mundo é para o homem que tem fé um "Mundo de Deus" (Gotteswelt) e como tal deve ser recuperado para Deus.
            Na tarefa da Evangelização é fundamental para Edith a educação, como princípio para o indivíduo de iniciação na fé, e a Liturgia, como momento catequético, vivencial, celebrativo e configurativo com Cristo.
            A figura de Maria é um modelo excepcional para ser imitado. Esta mulher simples, que na sua humildade se transforma na Mãe do crente, é chave e exemplo para a Evangelização no seu sentido total de Redenção do mundo:
            "Quem pode afirmar que a política nada tem a ver com a religião e que as almas têm de afastar-se da vida pública? Se a Virgem de Nazaré, na paz e no silêncio da sua alma absorvida em Deus, seu Salvador, se interessa, na estrofe central do Magnificat, pelo que acontece neste mundo, é possível que o homem religioso - e não menos a mulher - permaneçam indiferentes?"
            Já encontramos neste texto uma alusão ao tema mais original, pelo qual Edith Stein mais lutou: "e não menos a mulher". Na sua época a mulher ocupava um lugar secundário na sociedade: não tinha direito ao voto nem acesso a cargos públicos. Não era também aceita em muitos estudos universitários. Desde estudante Edith trabalhou por esta liberação da mulher. Com a conversão esta atividade ficou mais robusta. É conhecida no mundo germânico e convidada a dar conferências sobre o tema. Examina o "ethos" da mulher sob os diversos pontos de vista: teológico, antropológico, psicológico, para estabelecer as características peculiares da condição feminina, diferente do homem, mas nem por isso inferior. Conclui que a vocação primária da mulher é a maternidade, a educação dos filhos, é ser o coração da família. Mas isto não fecha para ela o campo para outras atividades. As suas características peculiares fazem dela companheira indispensável no trabalho primário do homem de dominar a terra. A mulher tem que ser mulher, seja qual for a sua profissão. A maternidade não é somente física, mas tem a sua dimensão espiritual, dimensão que tem sempre de transparecer.
            Animada por esta mesma convicção, ela reivindica para a mulher uma maior presença dentro da Igreja, tanto no Apostolado como nos ministérios eclesiásticos não sacerdotais. Encara o problema do sacerdócio da mulher e afirma a inexistência de razões dogmáticas. Reconhece o impedimento por parte do próprio Cristo, que não escolheu para Apóstolo nenhuma mulher. Deixa a porta aberta para o diaconato.
            Maria é modelo para todo Cristão, mas de modo especial para a mulher. Em Maria Imaculada encontramos em estado puro as características peculiares da vocação natural e sobrenatural da mulher. E justamente porque Maria é a concebida sem mancha original.
            Não podemos deixar no esquecimento o aspecto central da espiritualidade de Edith: a Cruz. Com a Cruz ela coroou a sua vida com o martírio. Na Cruz ela descobre o caminho - o único - da Evangelização pessoal e do próximo:
            "Desta forma encontram-se indissoluvelmente unidos a própria perfeição, a união com Deus e o trabalho para que o próximo alcance a união com Deus e a própria perfeição. E o caminho para tudo isto: a Cruz. E a pregação da Cruz seria vã se não fosse expressão de uma vida unida a Cristo Crucificado".  
            Seguir a Cristo, cooperar com Ele na Redenção do mundo, é caminhar após Ele, carregar a própria Cruz e subir para o Calvário. A Cruz foi o instrumento da nossa salvação e é para o evangelizador a arma com que pode vencer o mundo. O mais profundo sentido da Cruz não é de dor, mas de configuração com Cristo: é portanto um sinal de libertação. Uma Cruz como aquela que a situação histórica proporcionava a Edith Stein. Uma situação de opressão pode ser, inclusive no seu aspecto mais duro, um motivo de Redenção, se vivida em união com a Cruz de Cristo. É eloqüente e pode ajudar-nos em nossa reflexão a visão de Edith. Deixemos que ela mesma lance a luz sobre nós:
            "A visão do mundo em que vivemos, a necessidade, a miséria e o abismo da maldade são causa suficiente para mitigar o gozo do triunfo da luz. A humanidade ainda luta no meio da lama e o rebanho dos que da lama se libertaram no mais alto cume dos montes ainda é muito pequeno. A batalha entre Cristo e o Anticristo não terminou ainda. No interior desta luta têm o seu posto os seguidores de Jesus e a sua arma principal é a Cruz. Como podemos entender isto? O peso da Cruz que Cristo carregou sobre si é a corrupção da natureza humana com todas as suas conseqüências de pecado e sofrimento, com que a humanidade decaída foi embalada no seu berço. O sentido último da Cruz é libertar o mundo desta carga. A volta da humanidade libertada para o coração do Pai Celeste e a aceitação da herança legítima é um dom livre da graça e do amor misericordioso de Deus (...). Finalmente os amantes da Cruz, que Ele fez surgir e haverá de suscitar sempre de novo na história sempre em mutação de uma Igreja controvertida, serão os companheiros dele até o fim dos tempos. Para isto nós também fomos chamados"
      Concluindo. Para Edith a Evangelização consiste em cooperar com a obra redentora de Jesus. Cooperação em íntima união com Ele, com os seus mistérios de Encarnação e Cruz, buscando a Salvação do mundo em todas as dimensões. Redenção libertadora, porque se realiza a partir da vocação particular de cada um dentro do Corpo de Cristo e porque a sua finalidade última é conduzir a pessoa à
plena realização humano-espiritual, que só em Cristo se encontra.

Traduzido da Revista Vida Espiritual - Santa Fé de Bogotá (DC)  n.107  p.53-61



    [1]. Segundo Galilea
    [2]. "Quem vive na certeza desta crença não pode já, em consciência, descansar no seu próprio saber. Deverá, por conseguinte esforçar-se por conhecer o que é justo e verdadeiro aos olhos de Deus. Esta é a razão porque a atitude religiosa é a única verdadeiramente ética. Claro está que existem um desejo e uns impulsos naturais de buscar o bem e a justiça, e acontece mesmo que alguém tenha a felicidade de encontrá-los, mas é somente quando se busca a vontade de Deus que aquele desejo e aqueles impulsos se encontram consigo mesmos e encontram a satisfação". Cfr. A Ciência da Cruz Edições Loyola  São Paulo, Brasil  1988  pg.138
    [3]. Sobre este aspecto da unidade essencial do homem Edith insiste muitíssimo em todos os seus estudos de caráter filosófico.