Frei Tito Figueirôa de Medeiros,
O.Carm.
Foi
o contato com este tipo de cultura - geralmente chamada de subcultura urbana
pelos cientistas sociais - e o “estranhamento” daí resultante, que me
“empurraram” para a pós-graduação em Antropologia Cultural e Social. Após vinte
anos de ministério junto a movimentos de jovens e adultos de classe média, o
mergulho em comunidades da periferia do Recife, que depois se tornariam uma
paróquia, constituiu, para mim, um certo choque cultural. A constituição da
estrutura familiar, muito diferente da de classe média; o papel da mulher como
provedora principal em não poucos lares; o caráter festivo das manifestações
dos afro-descendentes; a moçada pobre que descia, todos os domingos à noite,
para os bailes nos clubes do bairro - rapazes e moças vestidos com as roupas
jovens da última moda, imitando perfeitamente as roupas de griffe, em meio a uma situação de níveis de desemprego maiores do
que nestes meses de fevereiro-abril de 1998; a presença maciça dos evangélicos,
principalmente os pentecostais, fazendo
os católicos se sentirem - e eram, de fato - minoria, em algumas comunidades em
formação... tudo isto eram desafios para a minha compreensão do fenômeno
(sub)urbano e para a interlocução com os sujeitos imersos neste contexto..
A
busca de melhores condições de trabalho, de melhor remuneração, de direitos
trabalhistas respeitados - realidade muito falha na atividade econômica
agrícola; a necessidade de melhor escolarização para os filhos; o desejo de
gozar de mais liberdade individual, de fugir do enorme controle social ainda
vigente nos pequenos núcleos populacionais interioranos; a atração exercida
pelos MCS, acenando para as vantagens e confortos da vida na cidade grande...
são alguns dos principais motivos da
migração em massa, no Brasil e em boa parte dos países do Terceiro
Mundo, para as metrópoles e cidades de grande porte, dentro como fora de seus
países de origem.
Sem
entrar nas discussões sobre este fenômeno, e sem tocar na questão da cultura
urbana como um todo, pretendo destacar apenas o tipo de sub-culturas
desenvolvidas pelos migrantes pobres para as periferias suburbanas e bairros
centrais que entraram em processo de degradação, nas médias e grandes cidades brasileiras.
Tais
formações urbanas se caracterizam por uma enorme concentração populacional,
verdadeiros aglomerados superlotados, tanto nos “cortiços” e “cabeças de porco”
como nas favelas e bairros populares periféricos, produzindo situações de
espaço vital reduzido, da privacidade sempre ameaçada, da grande incidência de
“doenças dos nervos”, sobretudo nas mulheres, aqui também as vítimas principais
destas situações desumanas. O clima de freqüente frustração com a miragem do
conforto da grande cidade, o medo da violência, a escassez dos serviços
urbanos, a insegurança quanto ao próprio futuro, em termos de trabalho e outras
formas de realização pessoal e familiar, sonhadas com a migração, proporcionam
outras tantas fontes de sofrimento e conflito. Para escapar destes, recorrem ao
clientelismo, depositando nos líderes políticos do bairro suas esperanças.
Outro recurso é o ingresso na marginalidade e na prostituição, principalmente
entre os jovens, levados pelas promessas
de dinheiro fácil e farto. Para uma parcela destas populações, existe
hoje o recurso da mudança de sua religião de origem para as igrejas e seitas salvacionistas, que acenam com milagres,
libertações das mazelas pessoais e melhorias de vida repentinas.
Atenção
especial se deve ter, ainda, às relações de gênero, sobretudo nos migrantes
provindos do mundo rural e regiões mais tradicionais do Brasil. Estas continuam
muito marcadas por um cunho patriarcal/machista, às vezes até violento, como
provam as estatísticas levantadas pelas delegacias da mulher. Além disso, o
desemprego, afetando sobretudo os homens, sobrecarrega a mulher com a função de
provedora principal da família. Como esta
situação não é bem aceita pela mentalidade machista dos maridos ou
companheiros, torna-se fonte de inúmeros
conflitos.
Em
face destas situações, o associativismo, liderado pelas Igrejas, ONGs e
partidos políticos, cresce cada vez mais nas periferias, despertando vocações
para a solidariedade e auxílio mútuos, e para aumentar o número das lideranças
comunitárias. Multiplicam-se hoje experiências que dão certo na busca da
diversificação de estratégias de sobrevivência. A par disso, há muita alegria, festa, diversões nesses
bairros, práticas de esporte, fins de semana animados, reforços para ajudar a
suportar a dureza cotidiana.
Então,
como se lançar à missão inculturada num contexto de uma cultura do
utilitarismo, da “lei do mais esperto”, da competição às vezes extremamente
agressiva, do cinismo ético dos que caem nas drogas, no narcotráfico e na
prostituição, da busca da relação com o
Sagrado de cunho utilitário, marcada pela transferência da relação
clientelista, antes mantida principalmente com os políticos locais e agora,
também com um Deus provedor das necessidades econômicas e sociais imediatas:
Deus que é cultuado, invocado, na expectativa de que essas sejam atendidas?
Como,
por outro lado, nós, religiosos/as poderemos nos inserir nas e dar nossa
contribuição às iniciativas abnegadas de agentes externos e do próprio bairro,
que lideram iniciativas tendentes a melhorar a infraestrutura, a convivência
social do meio onde vivem, através de camapanhas permanentes de educação
popular, cidadania, formação profissional, etc?
Em
primeiro lugar, o conhecimento desta realidade conflitual e altamente
heterogênena de periferias urbanas é importante para se ter uma base
preparatória para a experiência do contato vivencial com a mesma.
Em seguida, uma grande dose de compaixão, no sentido próprio
do termo= “sofrer com”, é muito importante. A compreensão compassiva levará o
religioso e a religiosa a não se espantar, a evitar atitudes de estranhamento
que afastem a aproximação, a abertura para futuras confidências por parte dos
habitantes destas comunidades.
No
anúncio de Jesus Libertador não pode estar ausente a perspectiva da salvação individual, no plano da
realização econômica (encontro de um trabalho decente, p. ex.) além da sua perspectiva social, que inclui a
educação para a solidariedade e a cidadania a nível comunitário entre os
vizinhos, parentes, amigos, “que estão no mesmo barco”.
Deste
modo, o processo da evangelização dialogante poderá aos poucos ir valorizando
os aspectos positivos da alegria, das festas do bairro, das organizações comunitárias
educativas e para o lazer. Destas últimas, os religiosos/as participem na
medida do possível, transformando-os paulatinamente em lazer educativo, que atenda às exigências da socialização, do
cuidado com a saúde, etc.
Por outro lado, a atitude crítica para com os
contra-valores apontados acima, no esforço inculturativo, precisa ser levada em
frente com “entranhas de misericórdia” e um compromisso atuante com a
libertação em todos os níveis supramencionados.
Embora
a índole sectária predomine entre os evangélicos pentecostais, é importante
descobrir entre eles os de mentalidade sensível ao ecumenismo e valorizar
experiências de oração, leitura da Bíblia e ações solidárias em conjunto.
O mesmo pode valer para os grupos religiosos
não-cristãos presentes e atuantes na área - destacando-se os afrobrasileiros,
pelo seu número e influência social - que sejam sensíveis a algumas formas de
diálogo inter-religioso.
Neste
sentido, é importante valorizar e celebrar as pequenas e grandes vitórias
alcançadas sobre as “situações de morte” vivenciadas pelos membros da
comunidade, assim como os esforços feitos, mas que ainda não lograram muito êxito.
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