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terça-feira, 26 de abril de 2016

Sobre o ódio. Artigo de Ivone Gebara

"Reconhecimento de nossa necessidade uns dos outros não como superior e inferior, mas simplesmente como cidadãos do mesmo planeta terra que necessitam da ajuda mútua para sobreviver. Reconhecer que somos ‘terrícolas’ que competimos uns com os outros", escreve Ivone Gebara, filósofa, religiosa e teóloga.

Eis o artigo.
Uma preocupação me ocupa...
Ando muito preocupada como a questão do ódio social que observamos em nossos comportamentos. Pode parecer uma preocupação exagerada em torno de uma palavra pouco simpática, mas que sintetiza múltiplas emoções, sentimentos e comportamentos agressivos de variados tipos que estamos presenciando nos dias de hoje. Sem dúvida ela é parte integrante dos muitos paradoxos e contradições do tabuleiro da vida humana.
Preocupo-me especialmente com a juventude e as crianças em processo de educação inicial. Penso em nossa responsabilidade de adultos de conviver bem com elas e de ajudá-las a viver no mundo que lhes estamos deixando como herança. Elas já experimentam em suas relações tantas agressões mútuas aprendidas provavelmente de nós mesmos, de nossos preconceitos e egoísmos tão presentes no mundo que as rodeia.
Hoje se fala, por exemplo, do ‘bulling’, forma de agressão infanto-juvenil aos colegas que não se adéquam às normas sociais de beleza, de vestimenta, de peso, de sexualidade, de família, de religião e outras. O ‘bulling’ sempre existiu como comportamento social, embora não usássemos a palavra em inglês em moda hoje em dia.
Crianças e jovens começam por “destruir” o corpo que não querem ser, o “defeito” que não querem ter, o “sotaque” que não gostam, o “estrangeiro” com quem não querem conviver. Desde a mais tenra idade foram socializadas para ter essas reações. E esses comportamentos tendem a acentuar-se nas diversas formas sociais de exclusão.
Destrói-se o outro que não quero ser porque temo reconhecer inconscientemente que posso sê-lo. Aparentemente me satisfaço acreditando que ao eliminar o outro, elimino parte do problema. 
Destrói-se o outro pela palavra “mal dita”, pelo ocultamento de seu corpo não permitindo que ele apareça junto dos outros, isolando-o do espaço comum para que sua presença nem seja lembrada. Despossuímos os outros de suas identidades e histórias tornando-os objeto de chacota e agressão.
Nessa breve reflexão quero citar o cineasta e filósofo belga Luc Dardenne que tem uma interessante reflexão sobre o ódio. “O ódio é uma paixão que destrói seu objeto e seu sujeito. Por quê? Porque, na destruição de seu objeto, ela visa a destruição da relação, da separação, portanto do outro como objeto e também do outro como sujeito, como um eu separado. Como toda paixão o ódio busca a continuidade, a massividade. Desejar destruir o outro, odiá-lo é o mesmo movimento de desejar me destruir, me odiar a mim mesmo que não estou mais numa bolha, mas nasci no mundo.
Já que é uma paixão que busca continuidade e crescimento por que, nesse momento difícil de nossa história nacional, falar de ódio e não falar do amor tão necessário às relações humanas? É porque o ódio é uma forma de doença do amor e essa doença volta hoje coletivamente como uma epidemia ameaçadora capaz de destruir vidas. E é uma doença para além das classes sociais e nas classes sociais, é para além das etnias e nas etnias, é para além da política e na política, é para além dos sexos e nos sexos, é para além das religiões e nas religiões. Então é urgente reconhecê-la e conhecê-la um pouco mais para saber lidar com sua presença em cada um de nós e nos outros.

O ódio aos outros e a mim...
Ao odiar os outros, no mesmo ato estamos também nos odiando, fazendo com que essa paixão avassaladora tome conta de nosso corpo e de nossas emoções de forma massiva. Tornamo-nos escravos dela, obedientes aos seus cegos impulsos. Destruímos e nos destruímos tomados por velhos rancores e por muitas odiosas vinganças. Embora não possamos evitá-la completamente, saber que dentro de nós existe um nefasto vulcão que pode lançar suas lavas destruidoras a qualquer instante é algo muito importante.
Muitas vezes pensamos que essa paixão que toma nossas entranhas poderia ser controlada através de muitos artifícios começando pela repressão policial aos excessos ou pela fuga através do álcool ou de outras drogas. Também pensamos que as religiões, apelando para Deus e o diabo, poderiam controlar o desvario de nossas emoções. Mas é preciso ir mais longe. É preciso captar sua força em nós, pensar com um pouco de lucidez sobre ela, conversar com ela como parte de mim.
Esta é sem dúvida uma breve reflexão entre outras tantas. Quero apenas retomar a questão do ódio como um contagioso fenômeno individual e social com traços e desdobramentos próprios ao nosso tempo.
No atual contexto político nacional, internacional e também para além deles, cada um de nós de certa forma se descobre odiando o outro/a. E descobrimos, não sem espanto, como o ódio faz parte das fibras de nosso ser tanto quanto o nosso desejo de sermos amados e cuidados. Tudo em nós é misturado...
Creio que não há que temer o reconhecimento do ódio em nós em diferentes intensidades e formas. O ódio mora em nós... Não podemos querer apenas preservar um idealismo romântico do amor como se essa força que acreditamos ser positiva fosse isenta do seu negativo ou fosse isenta do ódio ou de qualquer outra forma de mal. Até os “mais puros” odeiam e odeiam o ódio e a possibilidade de cair na tentação da impureza mesmo não sabendo exatamente o que é a pureza e a impureza.

Compreender o ódio...
Não seria hoje uma necessidade urgente enfrentar a tarefa de compreender algo do ódio que habita em nós? Compreender para avançar em qualidade de humanidade... Compreender para não cair na ilusão de que o ódio pertence aos outros... Compreender para não levantarmos o dedo acusatório aos outros sem que o dirijamos também a nós. Compreender para não nos alienarmos de nossas paixões na diversidade e na mistura de nossa vida.
Enfrentar-nos a essa paixão primitiva sem querer negá-la ou encobri-la é acolher-nos de certa forma na beleza e no paradoxo de nossa nudez interior. É esta nudez que traz a tona um ódio quase constitutivo, nos ajuda, na medida em que é compreendido, a sair das ilusões que construímos sobre nós mesmos. Quem de nós para disfarçar o ódio diz apenas “não tenho ódio de ninguém”, “só não gosto de fulano, beltrano, sicrano”? Ou ainda, “respeito sua posição, mas não é a minha”... Ou, “sem nenhum preconceito, mas não acho isso natural...” O que se esconde atrás dessas afirmações?
Gradações e matizes de ódio incluindo o ódio supremo de tirar a vida daquele ou daquela que me destrói por sua presença convivem em nós. Por quê? São muitas as razões e as sem razões. 
Entretanto, intuo, na linha de Luc Dardenne que tomados pelo medo de morrer, de não continuarmos no palco da história queremos destruir o que possa nos negar a existência individual soberana ou o que possa descobrir nossa fragilidade, nossa fraqueza ou mesmo anunciar nosso desaparecimento. O grito do “odeio” parece mais intenso ou talvez mais barulhento do que a intimidade do amor ou sua aparente fragilidade.
Por isso preservamos nossa destruição e nossa trivialidade a todo custo odiando aqueles e aquelas que ameaçam nossa existência. Não nos esqueçamos que já no desdobramento do mito adâmico Caim cheio de inveja odeia seu irmão Abel e o mata. O fratricídio está nas nossas origens... É a marca que levamos em nós como uma entranhada tentação a eliminar o outro/a.
“Odeio aquela mulher que ‘roubou’ meu marido”. “Odeio Narciso que roubou meus votos nas eleições”. “Odeio meu irmão que tomou meu lugar na empresa de meu pai”. “Odeio minha vizinha que montou uma barraca de pastéis igual a minha”. “Odeio o médico que foi incompetente no seu diagnóstico”. “Odeio a mim mesma porque não fui o que sonhei ser”.
Se pudesse poria fogo na barraca de pastéis, mataria a ladra, destruiria meu irmão, acabaria com a vida de meu opositor, tiraria a licença profissional do médico, passaria a limpo toda a minha vida... E, há mais, bem mais coisas nessa linha de eliminação do outro do circuito de minha vida. Paixões vingativas, ódios destruidores pequenos e grandes nos assolam cada dia e nos assolam desde as palavras, desde o volume alto de nossa voz até a efetivação de outras formas de eliminação dos outros. Mas são essas pequenas manifestações de ódio mais ou menos cotidianas que vão fazendo crescer em nós a vontade de destruir quem não é como eu. Solução fácil para resolução de conflitos! Os que não são como eu, tanto na vida familiar, na vida política, nas religiões, nas ideologias valem menos a meus olhos... Quem não é como eu sou é meu inimigo! Quem me impede de viver o prazer que julgo ser minha felicidade é meu inimigo. Quem me nega o pão é meu inimigo. Quem acumula para si o pão de todos é inimigo. Quem não vive a mesma orientação sexual, é anormal e até inimigo. Expulsão da diferença. Ignorância da sociabilidade e interdependência vital dos seres humanos. Idolatria do eu... Destruição do eu e do tu... E, paradoxalmente condição de reconstrução do eu, do nós.
O mais trágico no ódio é que criamos instrumentos e máquinas para alimentá-lo. A velha “indústria da guerra”, a indústria das armas cuja finalidade é matar e ao mesmo tempo fazer viver a economia mundial e através dela tantas famílias confirma essa afirmação. Contradição, paradoxo, loucura humana que nos mata e nos mantém vivos!

Não é de hoje, mas é também de hoje...
O ódio é de certa forma a idolatria do eu, o medo da morte daquilo que imagino que é a razão de meu viver, a simples contrariedade à minha vontade ou ao sonho imaginado. O ódio é o medo de
perder a exclusividade, a particularidade, a especificidade a partir da existência do outro. Ódio como fechamento na bolha do útero materno como se não quiséssemos a inevitável saída para a experiência da vida plural num mundo plural.

O ódio e a cultura popular
O ódio destrói a realidade relativa e provisória de meu ser fazendo-me acreditar na onipotência e imortalidade de minha vida sem o outro. E, ao odiar o outro estou mais uma vez odiando a mim mesma que sou o diferente do outro, que não sou sem o outro. Sem perceber podemos criar relações de ódio múltiplo e diversificado como base dasrelações sociais.
Muitas atitudes chamadas de ‘bem educadas’ revelam nossos preconceitos de classe e de cor.
Muitas músicas do funk nacional dos últimos anos revelam a seriedade das denúncias contra as diferentes formas deopressão social, mas ao mesmo tempo revelam o fio de ódio presente no tecido da arte musical. É como se os injustiçados e odiados pelos que lhes negam direitos de vida retribuíssem com ódio artístico sua relação odiosa. Que explodam os que não são de meu clã. Olho por olho, dente por dente dos dois ou dos três lados embora as responsabilidades e oportunidades sejam diferentes.
Mais alguns exemplos podem talvez ajudar a entender a complexidade dos diferentes matizes do ódio como também os diferentes matizes do amor.
Fecharam as torneiras de água para os pobres da periferia... Ódio vivido pelos pobres aos quais foi negada ou reduzida a água para sobreviver. Ódio dos ricos porque não tiveram a água renovada da piscina aquecida dos filhos. Ódio dos órgãos públicos que não cumpriram com sua responsabilidade social. Como sair desse ódio mortal coletivo e diversificado que invade a todos nós? Ou como torná-lo paixão menos destrutiva e avassaladora? Ou seria o ódio necessário para a prática da justiça? Seria ele o começo da consciência social?
No último domingo na câmara federal dos deputados do Brasil se ouvia o nome de Deus misturado ao ódio pelo atual governo da república. Nem Deus, mistério infinito foi isentado da acusação de ódio e da vivência do mesmo em relação às ações humanas. “Primeiro agradeço a Deus” por tomar essa decisão histórica diziam alguns, e, em seguida despejavam sua raiva ou seu ódio em forma de palavras acusatórias. Por que nos comportamos assim? Por que necessitamos de um plano acima da história para justificar nossas posturas políticas e sociais? Por que usamos de uma autoridade intangível com a qual não podemos debater em iguais condições para justificar ou legitimar nossas posições?
A capacidade que temos de fazer de nosso semelhante um inimigo, um ser humano sem humanidade, um ser cujo sofrimento não me interessa, um ser ao qual nego qualquer possibilidade de relação ou de aproximação comigo é aterradora. E essa capacidade é elevada à potência superior na medida em que determina a partir de nós mesmos a vontade de Deus sobre a história humana. Essa vontade superior imaginariamente legitima a minha. E no mesmo ato releva minha fraqueza e falta de convicção pessoal na afirmação dos frágeis caminhos escolhidos. Sem dúvida há uma questão cultural religiosa em tudo isso, mas através dela se mostram também os complexos meandros do coração humano.
Embora eu possa parecer bastante teórica ou até mesmo idealista não vejo outro caminho para encontrar o equilíbriode nossas paixões as mais vis a não ser o da proximidade e do reconhecimento uns dos outros. É da proximidade conosco mesmo que nasce a compreensão de nossa complexa humanidade. É da proximidade reconhecida como necessidade para a convivência social que nasce o contrato, a negociação, o encontro entre as pessoas como caminhos que apaziguam nosso desejo de morte ao outro, como caminhos que equilibram a expansão indevida de nosso eu a limites inimagináveis.
Aprender a proximidade...
A proximidade do outro, da outra é um aprendizado desde a mais tenra idade, aprendizado que nos previne da tirania de uns contra os outros, da guerra que podemos declarar àqueles que pensam e vivem de forma diferente. A proximidade do outro deveria me conduzir desde a mais tenra idade a ser educada para um mundo onde todos e todas possam caber e nesse mesmo ato me previne do consumismo exagerado, consumismo não só de coisas, mas do outro que deve se submeter à minha vontade soberana.
Reconhecimento de nossa necessidade uns dos outros não como superior e inferior, mas simplesmente como cidadãos do mesmo planeta terra que necessitam da ajuda mútua para sobreviver. Reconhecer que somos ‘terrícolas’ que competimos uns com os outros, que nos odiamos, mas também nos amamos, é apenas a retomada de antigas sabedorias que nos convidavam a desenvolver a proximidade e a simpatia uns pelos outros, como condição de sobrevivência. A recusa da dominação do ódio, trabalho árduo sobre si mesmo, não é o esquecimento das muitas histórias de ódio, mas é uma ponte que nos conduz ao reconhecimento do direito de vida do próximo, a uma convivência com menos obsessões e agressões.
Sair de nosso cinismo, de nossa crueldade pessoal e de nossa auto-suficiência para simplesmente reconhecer que cada um de nós é a criança necessitada de cuidado e carinho, o velho trôpego caído na rua, o homem adulto que chora e sofre em seu cotidiano. Este é um caminho a ser retomado como convicção comum para o nosso tempo. Não é para chegarmos ao céu que o reconhecimento recíproco se faz necessário, mas é para apagar os incêndios que nosso egoísmo acendeu, incêndio do coração humano que é mais grave do que o fogo nas florestas e a crise econômica epolítica na qual vivemos. Não há receita de como fazer isso valer em mim e nos meus próximos.
Mas, tenho certeza que cada um e cada uma de nós tem dentro de si alguma luz capaz de iluminar sua mente e seu coração para descobrir sendas, atalhos, veredas de luz. Luz que pode abrir pequenos espaços para sairmos do reinado do ódio e das rivalidades no meio de nós. E esta descoberta, mais uma vez, não é espontânea, nem mágica. É um trabalho educativo individual e coletivo sobre si e sobre os outros até que descubramos afinal o veio de água fresca capaz de apaziguar nossa sede de amor e de justiça. E quando o veio desaparecer enterrado por nossos ódios e tribulações é preciso procurá-lo de novo como uma infinda tarefa humana.
Antes de nos reconhecermos como sendo de um partido, de uma nação, de uma religião, de uma ideologia, com uma identidade sexual precisa reconheçamo-nos na nossa diferença e diversidade como imagem e semelhança uns dos outros.
O ódio sou eu, o amor sou eu, o outro sou eu, o hoje e o amanhã sou eu... E nós todos somos da terra e a terra da Via Láctea e ela do inominável mistério infinito...

É fácil terminar um texto sobre o ódio com uma conclusão mais ou menos poética que pode até parecer uma nova ilusão. Mas, de fato é uma ilusão necessária ou simplesmente uma aposta ou uma singela utopia de que amanhã tudo poderá ser melhor, que meus filhos e filhas poderão viver melhor, que os que hoje buscam terra poderão enfim habitá-la com dignidade. Ilusão necessária aos seres humanos, ilusão que longe de nos cegar aos outros nos convida a reconhecê-los, a socorrê-los em suas necessidades e em seus sonhos de amor. Fonte: http://www.ihu.unisinos.br

segunda-feira, 25 de abril de 2016

ESPIRITUALIDADE CARMELITANA: Rearticulando a Cristocentricidade Hoje.

Frei Donald Buggert, O. Carm.

O projeto de todos os carmelitas é caminhar nas pegadas de Jesus. Mas nossa compreensão de Jesus muda, assim como muda a situação histórica. E a mudança da situação histórica apresenta novos desafios ao nosso caminhar nas pegadas de Jesus. Portanto, para rearticular a espiritualidade cristocêntrica da Regra de Alberto devemos levar em conta tanto nossa compreensão contemporânea do Jesus histórico quanto nossa situação contemporânea.
Não nos serve qualquer Jesus. Em nosso caminhar nas pegadas de Jesus, que Jesus seguimos? Não é qualquer Jesus que é conciliável com o Jesus histórico e sua prática. Jesus tem sido usado, abusado e manipulado, tornando-se um apoio ideológico para o status quo. Ele tem sido invocado, e até recebe orações, para manter o oprimido na opressão, os opressores no poder, os “ricos” em suas riquezas e os que “não têm” em sua pobreza. Se Bultmann “desmitologizou” Jesus, devemos “despacificar” Jesus, para que ele não seja conivente com os ídolos, como a mercantilização, e para que ele não mantenha esta realidade em paz. [i]
Devemos nos perguntar: o que teria a dizer um Jesus “despacificado” sobre a tremenda desigualdade na distribuição e no uso dos bens da terra entre ricos e pobres, nações ricas e pobres, sobre a escravidão, injustiça, desumanização e pilhagem ecológica que resulta dessa distribuição desigual? O que teria a dizer o Jesus “despacificado” sobre a opressão e a marginalização das mulheres ou de qualquer minoria? Não aceitar Jesus e sua prática libertadora, como se ele não tivesse nada a dizer sobre essas questões, é na verdade apresentar um Jesus celestial e escatologizado, desprovido de significado para a história, para nossa salvação aqui e agora. É reduzir o reino de Deus à uma realidade exclusivamente escatológica.
Qualquer seguimento de Cristo que nos anestesie da história e de seus conflitos, é na melhor das hipóteses, uma espiritualidade fuga mundi, que nega a própria história encarnacional de Deus. Em Jesus, Deus assumiu para si mesmo nossa história, precisamente para curá-la e realizá-la. Na pior das hipóteses, tal espiritualidade anestesiadora direcionada para a “vida interior” da pessoa, negligenciando a criação e a história, é uma gnosticização ou platonização do cristianismo.
Um cristianismo supostamente mágico, um vodu, que tenta manipular o divino e escapar dos compromissos e dos esforços dolorosos, algumas vezes, “arriscando a própria vida”, mas necessários para tornar o Reino de Deus mais uma realidade em nosso mundo.
Caminhar nas pegadas de Jesus significa assumir a prática de Jesus na construção do Reino de Deus. Ainda existe uma terra de Cristo com um povo a ser resgatado. Mas essa terra com seu povo não está limitada ao espaço geográfico de Cristo. Jesus queria muito mais que isso. Jesus queria a inauguração do Reino de Deus agora e na história. Um Reino de Deus que envolveria e transformaria toda criação e toda história. Um Reino que agora mesmo, na história, começaria a vencer o Reino de Satã e todas as suas conseqüências: injustiça, violência, guerra, opressão, dominação. Um Reino que restauraria todo o estado paradisíaco. A partir da perspectiva da proclamação do Reino de Deus e da prática de Jesus, a terra e o povo de Jesus significam toda a criação e toda a história, especialmente a dos marginalizados, das vítimas da opressão e da injustiça, os menores dos irmãos e das irmãs.[ii]
Portanto, caminhar nas pegadas de Jesus Cristo para reconquistar a terra é inserir-se na história com seus conflitos, assumir a cidadania terrena e política como fizeram os primeiros eremitas do Carmelo.[iii] O obsequium da Regra não permite uma espiritualidade privatizada, espiritualizada, escatologizada. Ele não pode separar-se da polis. Tanto o Jesus quanto o discipulado da teologia e da espiritualidade clássicas devem ser “secularizados”, ou seja, serem relevantes ao saeculum, o mundo e sua história. Os carmelitas também devem ficar atentos à sabedoria da décima primeira tese de Marx contra Feuerbach: “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diversas formas. A questão, no entanto, é transformá-lo”.[iv]
Caminhar nas pegadas de Jesus exige entrar num combate espiritual com o leão rugidor do mercado. No que poderia consistir esse combate espiritual? Proponho três elementos: os votos, o silêncio-solidão-oração e a comunidade.
A pobreza, a castidade e a obediência são em si posturas contraculturais. Elas se opõem ao modo de produção, pois seu propósito é a humanização e a liberdade. Liberdade frente aos poderes que nos levam aos valores da produção, da dominação e da posse, e liberdade para fortalecer os outros como pessoas. Da mesma maneira, existe uma economia nos votos. Mas eles não favorecem muito o crescimento financeiro.[v]
Existe também uma economia no silêncio, na solidão e na oração. Eles também são financeiramente sem valor e, por isso, tornam-se uma denúncia profética do modo de produção.[vi]  O silêncio e a solidão estão cheios de riscos, pois revelam nossas necessidades e nossa pobreza interior, que são fortemente negadas pelo comercialismo e materialismo do modo de produção. O silêncio e a solidão são irremediavelmente inegociáveis.[vii]  A oração é um ato de interiorização que exige que nos libertemos dos padrões de comportamento normativos no modo de produção da sociedade. A oração significa estar presente diante de Deus e, por isso, a nossa verdadeira identidade como pessoas. A oração é um ataque contra a fraude dos ridículos papéis exigidos pelo modo de produção. É uma centralização no “ser”, contrário ao “ter” do modo de produção. A oração é uma anti-comercialização de nossas vidas e uma reapropriação de nossa personalidade.[viii]
O silêncio, a solidão e a oração também exercem outro papel em nossa batalha espiritual. Esses três valores tipicamente desérticos do Carmelo nos tornam atentos à gratuidade do amor de Deus em nossas vidas, nos dispõem a reconhecer que Deus está presente em todas as coisas, purificam nosso relacionamento com os outros da tendência materialista em impor uma vontade alienada a eles, e possibilitando assim um encontro real e pleno com o próximo.[ix]  O silêncio, a solidão e a oração são as “substâncias” que geram profetas místicos. Por “experimentar” a presença divina, o profeta (ele/ela) também pode experimentar a ausência do divino na história, no modo de produção. É essa consciência da presença divina que levou o profeta a denunciar o velho, o reino de Satã, e a anunciar o novo, o Reino de Deus. O silêncio, a solidão e a oração são a escola dos profetas de Elias.[x]
A comunidade também é uma forma de contracultura no combate espiritual. Os primeiros eremitas do Carmelo contextualizaram seu caminhar nos passos de Jesus Cristo abraçando a visão ideal da comunidade de Jerusalém. A fórmula de vida de Alberto descreve esta visão comunitária em termos de uma partilha de bens e de vida, um estilo de vida igualitário, discernimento comunitário-dialogal e um respeito pelo indivíduo. Os eremitas dentro da própria Regra logo foram chamados de “irmãos”, chamados a trilhar uma forma participativa da vida comunitária. Esta vida comunitária é em si um protesto alternativo e profético contra o modo de produção, que materializa a pessoa através de relacionamentos dominantes e desumanizadores, com sua falta de zelo e de respeito, sua escravização da liberdade e sua idolatria da competição, do empreendimento e do controle.[xi] Por sua vez, tal vida comunitária testemunha os valores do modo interpessoal, o valor intrínseco das pessoas: a liberdade, o desprendimento, a generosidade, a justiça, a paz, o perdão, a cura, a compaixão, o fortalecimento dos menores.
A terra de Cristo ainda deve ser reconquistada. Todas as coisas ainda devem se sujeitar a ele para que seu Pai possa reinar plenamente e ser tudo em todos. Como nos dias de Alberto e dos primeiros eremitas do Carmelo, a terra será reconquistada não por armas e forças, mas pelo caminhar nas pegadas de Jesus Cristo. Esse obsequium Jesu Christi envolve uma batalha espiritual que, como aconteceu com o próprio Jesus, insere a pessoa na história num combate contra o leão rugidor. Caminhar nas pegadas de Jesus Cristo hoje é ser chamado a uma vida comunitária da resistência contra-cultural, enraizada no silêncio, na solidão e na oração, restabelecendo a prática profética de Jesus anunciando o Reino de Deus na solidariedade com todos. Especialmente com os pecadores, os proscritos e a ralé de nossos dias.




[i]  Sobrino, Jesus in Latin America, p. 59. Sobre as imagens e invocações ideológicas ou desumanizadoras de Jesus, ver José Miguez Bonino, ed., Faces of Jesus: Latin American Christologies, trad. Robert Barr (Maryknoll, New York: Orbis Press, 1977).
[ii]  É este impulso para a universalização, enraizado no Reino de Deus proclamado e decretado pelo próprio Jesus, que define as Cristologias de inspiração sapienciais, universalistas e cósmicas que encontramos no Cristo apresentado pelos escritos posteriores do Novo Testamento, tais como Colossenses, Efésios e o Evangelho de João. Se Jesus deve ser o “Senhor”, então esse domínio deve ser tão amplo quanto o de Yahweh, cujo nome ele partilha agora. Por isso, ele deve abraçar toda a criação e a história. Sobre essa questão ver Reginald Fuller, The Foundations of New Testament Christology (New York, New York: Charles Scribner’s Sons, 1965), pp. 62-85; e. Schillebeeckx, Christ: The Experience of Jesus as Lord, trad. John Bowden (New York, New York: Seabury Press, 1980) pp. 179-217; James D. G. Dunn, Christology in the Making (Philadelphia PA: Westminster Press, 1980), pp. 163-250.
[iii]  Fitzgerald, “How To Read the Rule: An Interpretation”, p. 59.
[iv]  Ver “Theses on Feuerbach” in Robert C. Tucker, ed. The Marx-Engels Reader (New York: W. W. Norton and Company, 1978), p. 145.
[v]  Kavanaugh, Following Christ, pp. 48, 137-138.
[vi]  Ibid., p. 48.
[vii]  Ibid., p. 121.
[viii]  Ibid., p. 121-122.
[ix]  Gutiérrez, Beber no Próprio Poço, p. 99-102.
[x]  Sobre “profetas místicos”, ver minha “Liberation Theology: Praxis and Contemplation”, Carmelus 34 (1989), p. 55. Sobre a importância da espiritualidade do deserto do Carmelo para a ação de libertação profética, ver Segundo Galilea, “The Future of Our Past”, pp. 25-43.
[xi]  Ver Fitzgerald, “How To Read the Rule: An Interpretation”, pp. 61-62.