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sábado, 4 de fevereiro de 2017

A NOIVA CADÁVER: Frei Petrônio.

A NOIVA CADÁVER: Frei Petrônio.

Marisa Letícia, 1950-2017, filha do Brasil

Ex-primeira dama costurou a primeira bandeira do PT, começou a trabalhar aos nove anos e organizou resistência das mulheres durante as grandes greves do ABC.

 “A primeira bandeira do PT fui eu que fiz. Tinha um tecido vermelho, italiano, um recorte, guardado há muito tempo. Costurei a estrela branca e ficou lindo. Minha casa era o centro. Foi assim que começou o PT.” 
Marisa Letícia tinha 29 anos quando costurou uma estrela branca sobre um pano vermelho e concebeu aquela que viria a ser a primeira bandeira do Partido dos Trabalhadores, antes mesmo de sua fundação oficial, em fevereiro de 1980. Pouco depois, em abril, seu marido seria preso pela primeira vez e ficaria detido por 31 dias no DEOPS de São Paulo por exercer o direito à greve e à luta por direitos trabalhistas — quando a regra era o silêncio, a opressão, o arbítrio.
Marisa seguiu costurando e não parou mais: o sonho, a resistência, a família, o futuro. E carimbou sua estrela não apenas no tecido vermelho, mas também na história do Brasil.
Filha de pequenos agricultores de origem italiana estabelecidos num sítio modesto na zona rural de São Bernardo do Campo, região metropolitana de São Paulo, Marisa foi a décima filha entre as 11 crianças de Regina Rocco Casa e Antônio João Casa. Nasceu numa casa simples, na periferia de São Bernardo, e cresceu vendo o pai e os irmãos carregarem uma charrete com verduras e legumes para vender no mercado. Ainda criança, mudou-se com a família para o centro da cidade. Filha do Brasil, Marisa começou a trabalhar aos 9 anos, como babá. Dos 13 aos 19 foi operária numa fábrica de chocolates. Largou para casar.
Marisa se casou pela primeira vez aos 19 anos, em 1970, com o motorista de caminhão Marcos Cláudio dos Santos. Entre um frete e outro, carregando areia para construção civil, Marcos fazia bico dirigindo o táxi de seu pai nas ruas de São Bernardo. Seis meses após o casamento, foi assassinado num assalto. Marisa estava grávida de quatro meses. Seu primeiro filho recebeu o nome de Marcos Claudio, em homenagem ao pai que jamais conheceu.  
Aos 23 anos, a jovem viúva Marisa trabalhava como inspetora em um colégio estadual quando conheceu o também jovem viúvo Luiz Inácio da Silva, o Lula, então diretor do departamento jurídico do Sindicato dos Metalúrgicos e responsável pelo setor de previdência social. Lula, com 27, tinha perdido a mulher e o filho durante o trabalho de parto dois anos antes. Marisa procurou por ele no sindicato para solicitar um atestado de que precisava para receber a pensão a que tinha direito. Era o final de 1973.
Lula já tinha ouvido falar sobre aquela moça. Sem carro, e sem ônibus que servisse a cidade após as 22 horas, Lula recorria ao táxi de Seu Cândido quando precisava voltar para casa mais tarde. Papo vai, papo vem, Lula soube que o filho de Seu Cândido havia morrido num assalto, naquele mesmo táxi. O taxista falava coisas sobre o neto e sobre a nora, que era viúva como ele, que era muito bonita, coisa e tal. Quando Marisa apareceu em sua sala à procura de um atestado, Lula não imaginava que era a filha de Seu Cândido. Mas bastou que ela respondesse às perguntas do formulário para Lula juntar os pontos. Viúva, marido morto num assalto num táxi, filho com 2 anos... "Você é a nora do Seu Cândido?", ele perguntou. Cinco meses depois, Lula e Marisa estavam casados.
"Eu assumi o Marcos como se fosse meu filho quando casei com a Marisa", disse Lula em entrevista reproduzida no livro "O Filho do Brasil", de Denise Paraná. "Ele tinha três anos, a mesma idade que teria meu primeiro filho, se ele estivesse vivo". Quando nasceu o primeiro filho biológico de Lula e Marisa, Fábio Luís, em 1975, o casal convidou Seu Cândido e a mulher, Dona Marília, para serem padrinhos do menino.
Com Lula, Marisa, que o marido costumava chamar de "Galega", teve mais dois filhos: Sandro Luís, em 1978, e Luís Cláudio, em 1985. A família se completa com a enteada Lurian, de 1974, fruto do namoro de Lula com Mirian Cordeiro, anterior ao casamento com Marisa.
Dona de casa desde o nascimento de Fábio, Marisa foi sempre muito presente na militância do PT e desempenhou papel central na trajetória política do marido. Um ano depois do casamento, Lula assumiu a presidência do sindicato, mergulhando de cabeça na vida política. Durante as grandes greves dos metalúrgicos entre 1978 e 1980, e também nos primeiros anos do PT, transformou sua casa em local de reuniões intensas e frequentes, por vezes diárias, onde foram gestadas algumas das mais importantes estratégias de luta e também os sonhos de um país mais justo e democrático.
Quando Lula foi preso, em abril de 1980, e ficou 31 dias no Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo, o DEOPS, Marisa se engajou na organização do fundo de greve e liderou uma marcha de mulheres que tomou as ruas de São Bernardo em 8 de maio, caminhando na linha de frente de mãos dadas com os filhos. Visitava o marido todos os dias na prisão, e, quando o filho Marcos, aos 10 anos, cismou de não querer mais ir à escola para não ouvir seus colegas o acusarem de ser "filho de bandido", foi obrigada a administrar, sem perder a dureza nem a ternura, os primeiros sintomas da perseguição política que ela e os filhos seriam obrigados a administrar, até hoje.
"Hoje parece loucura. Fizemos uma passeata das mulheres em 1980, quando os dirigentes sindicais estavam presos. Encheu de polícia. Os homens queriam dar apoio, mas dissemos não. Fizemos só com as mulheres, eu de mãos dadas com meus filhos à frente."
Após três campanhas eleitorais frustradas, Lula foi eleito presidente da República em 2002. Marisa virou primeira dama em 1º de janeiro de 2003. Ao longo de oito anos, reformou o Palácio da Alvorada, introduziu as famosas festas juninas da Granja do Torto no calendário oficial de Brasília, e teve atuação discreta, mantendo sob sua responsabilidade a logística da casa, a administração financeira da família, o guarda roupa do marido, o zelo pela privacidade e pela intimidade dos filhos. Esteio e alicerce são duas palavras constantemente utilizadas pela imprensa para se referir a ela.
Lula ainda era presidente da República quando exames revelaram a presença de um aneurisma no cérebro da então primeira dama. Aneurisma é uma deformação que ocorre numa veia ou artéria, causando a dilatação do canal e o afinamento da parede para formar uma espécie de bolha. Na ocasião, foi feita a opção por monitorar o aneurisma, ao mesmo tempo em que se reforçou a necessidade de controlar a pressão sanguínea de Marisa, que foi diagnosticada como hipertensa.  No dia 24 de janeiro, Marisa teve uma crise hipertensiva que provocou o rompimento desse aneurisma, um acidente vascular cerebral. Foi atendida na emergência do Hospital Assunção, em São Bernardo do Campo, e transferida para o Hospital Sírio Libanês, em São Paulo, onde foi submetida a um procedimento cirúrgico para estancar uma hemorragia.

Marisa Letícia Lula da Silva faleceu aos 66 anos no início da noite do dia 3 de fevereiro de 2017. Marisa virou estrela, uma estrela igual àquela que alinhavou sobre tecido vermelho para criar a primeira bandeira do Partido dos Trabalhadores. Uma estrela que, como a outra, jamais deixará de brilhar. Fonte: http://www.lula.com.br

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Quem é o padre, hoje, segundo Francisco. Discurso do Papa aos bispos italianos cita D. Helder Câmara.

"Em uma visão evangélica, evitem se sobrecarregar em uma pastoral de conservação, que obstaculiza a abertura à perene novidade do Espírito. Mantenham somente o que pode servir para a experiência de fé e de caridade do povo de Deus", afirmou o Papa Francisco ao falar na abertura da Assembleia Geral da Conferência Episcopal Italiana - CEI, no dia de ontem, referindo à gestão econômica dos bens da Igreja.
Citando D. Helder Câmara, o Papa, referindo-se aos padres, já que o tema da assembleia é "A renovação do clero", disse:
"O povo fiel de Deus continua sendo o ventre do qual ele (o padre) é tirado, a família em que está envolvido, a casa à qual é enviado. Essa pertença comum, que brota do Batismo, é a respiração que liberta de uma autorreferencialidade que isola e aprisiona: "Quando teu navio começar a criar raízes na estagnação do cais – recordava Dom Hélder Câmara – faze-te ao largo." Parta! E, acima de tudo, não porque você tem uma missão a cumprir, mas porque, estruturalmente, você é um missionário: no encontro com Jesus, você experimentou a plenitude de vida e, por isso, deseja com todo você mesmo que outros se reconheçam n'Ele e possam conservar a Sua amizade, alimentar-se da Sua palavra e celebrá-Lo na comunidade".
O discurso foi publicado no sítio da Santa Sé, 16-05-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis a íntegra do discurso.
Boa tarde a todos (…) [O papa saúda em particular os 36 novos bispos italianos, nomeados no último ano.]
Caros irmãos,
O que me deixa particularmente contente ao abrir com vocês esta Assembleia é o tema que vocês colocaram como fio condutor dos trabalhos – "A renovação do clero" –, na vontade de apoiar a formação ao longo das diversas fases da vida.
O Pentecostes recém-celebrado coloca essa meta de vocês na justa luz. O Espírito Santo, de fato, continua sendo o protagonista da história da Igreja: é o Espírito que habita em plenitude na pessoa de Jesus e nos introduz no mistério do Deus vivo; é o Espírito que animou a resposta generosa da Virgem Mãe e dos Santos; é o Espírito que age nos fiéis e nos homens de paz, e suscita a generosa disponibilidade e a alegria evangelizadora de tantos sacerdotes.
Sem o Espírito Santo – sabemos – não existe nenhuma chance de vida boa, nem de reforma. Rezemos e comprometamo-nos a conservar a Sua força, para que "o mundo do nosso tempo possa receber a Boa Nova [...] de ministros do Evangelho cuja vida irradie fervor" (Paulo VI, exortação apostólica Evangelii nuntiandi, n. 80).
Nesta tarde, não quero lhes oferecer uma reflexão sistemática sobre a figura do sacerdote. Tentemos, em vez disso, inverter a perspectiva e nos colocar em escuta, em contemplação. Aproximemo-nos, quase na ponta dos pés, de algum dos tantos párocos que se consomem nas nossas comunidades; deixemos que o rosto de um deles passe na frente dos olhos do nosso coração e perguntemos com simplicidade: o que torna a sua vida saborosa? Por quem e por que coisa ele empenha o seu serviço? Qual é a razão última da sua doação?
Espero que essas perguntas possam repousar dentro de vocês no silêncio, na oração tranquila, no diálogo franco e fraterno: as respostas que florescerem os ajudarão a identificar também as propostas formativas para se investir com coragem.
1. O que, portanto, dá sabor à vida "nosso" presbítero? O contexto cultural é muito diferente daquele em que ele deu os seus primeiros passos no ministério. Também na Itália, muitas tradições, hábitos e visões de vida foram afetadas por uma profunda mudança de época.
Nós, que muitas vezes nos encontramos deplorando este tempo com tom amargo e acusatório, devemos perceber também a dureza dele: no nosso ministério, quantas pessoas encontramos que estão ansiosas pela falta de referência para se olhar! Quantas relações feridas! Em um mundo em que cada um se pensa como a medida de tudo, não há mais lugar para o irmão.
Nesse pano de fundo, a vida do nosso presbítero se torna eloquente, por ser diferente, alternativa. Como Moisés, ele é alguém que se aproximou do fogo e deixou que as chamas queimassem as suas ambições de carreira e poder. Ele fez uma fogueira também da tentação de se interpretar como um "devoto", que se refugia em um intimismo religioso que, de espiritual, tem bem pouco.
Está descalço, o nosso padre, em relação com uma terra que ele se obstina a crer e a considerar como santa. Ele não se escandaliza com as fragilidades que abalam a alma humana: consciente de ser, ele mesmo, um paralítico curado, está longe da frieza do rigorista, assim como da superficialidade daqueles que querem se mostrar condescendentes de modo barato. Em vez disso, ele aceita se encarregar do outro, sentindo-se partícipe e responsável pelo seu destino.
Com o óleo de esperança e da consolação, ele se faz próximo de cada um, atento para compartilhar o abandono e o sofrimento. Tendo aceitado não dispor de si mesmo, não tem uma agenda para defender, mas entrega o seu tempo cada manhã ao Senhor para se deixar encontrar pelas pessoas e ir ao seu encontro. Assim, o nosso sacerdote não é um burocrata ou um anônimo funcionário da instituição; não é consagrado a um papel empregatício, nem é movido pelos critérios da eficiência.
Ele sabe que o Amor é tudo. Não busca assegurações terrenas ou títulos honoríficos, que levam a confiar no homem; no ministério, não demanda nada para si que vá além da necessidade real, nem está preocupado em amarrar em si mesmo as pessoas que lhe são confiadas. O seu estilo de vida simples e essencial, sempre disponível, o apresenta credível aos olhos das pessoas e o aproxima dos humildes, em uma caridade pastoral que faz livres e solidários.
Servo da vida, caminha com o coração e o passo dos pobres; é enriquecido pela sua convivência. É um homem de paz e de reconciliação, um sinal e um instrumento da ternura de Deus, atento a difundir o bem com a mesma paixão com que outros cuidam dos seus interesses.
O segredo do nosso presbítero – vocês sabem bem disto! – está naquela sarça ardente que marca a fogo a sua existência, conquista-a e conforma-a à de Jesus Cristo, verdade definitiva da sua vida. É a relação com Ele que o protege, tornando-o estranho à mundanidade espiritual que corrompe, assim como a todo compromisso e mesquinhez. É a amizade com o seu Senhor que o leva a abraçar a realidade cotidiana com a confiança de quem crê que a impossibilidade do homem não permanece assim para Deus.
2. Assim, torna-se mais imediato enfrentar também as outras perguntas a partir das quais começamos. Por quem o nosso presbítero empenha o seu serviço? A pergunta, talvez, deve ser especificada. De fato, antes mesmo de nos interrogarmos sobre os destinatários do seu serviço, devemos reconhecer que o presbítero é tal na medida em que se sente partícipe da Igreja, de uma comunidade concreta com a qual compartilha o caminho.
O povo fiel de Deus continua sendo o ventre do qual ele é tirado, a família em que está envolvido, a casa à qual é enviado. Essa pertença comum, que brota do Batismo, é a respiração que liberta de uma autorreferencialidade que isola e aprisiona: "Quando teu navio começar a criar raízes na estagnação do cais – recordava Dom Helder Câmara – faze-te ao largo." Parta! E, acima de tudo, não porque você tem uma missão a cumprir, mas porque, estruturalmente, você é um missionário: no encontro com Jesus, você experimentou a plenitude de vida e, por isso, deseja com todo você mesmo que outros se reconheçam n'Ele e possam conservar a Sua amizade, alimentar-se da Sua palavra e celebrá-Lo na comunidade.
Aquele que vive pelo Evangelho entra, assim, em uma partilha virtuosa: o pastor é convertido e confirmado pela fé simples do povo santo de Deus, com o qual atua e em cujo coração vive. Essa pertença é o sal da vida do presbítero; ela faz com que o seu traço distintivo seja a comunhão vivida com os leigos em relações que sabem valorizar a participação de cada um.
Neste tempo pobre de amizade social, a nossa primeira tarefa é a de construir comunidade; a atitude à relação, portanto, é um critério decisivo de discernimento vocacional.
Do mesmo modo, para um sacerdote, é vital reencontrar-se no cenáculo do presbitério. Essa experiência – quando não é vivida de maneira ocasional nem por força de uma colaboração instrumental – liberta dos narcisismos e dos ciúmes clericais; faz crescer a estima, o apoio e a benevolência recíproca; favorece uma comunhão não só sacramental ou jurídica, mas fraterna e concreta.
No caminhar juntos como presbíteros, diversos por idade e sensibilidade, expande-se um perfume de profecia que surpreende e fascina. A comunhão é realmente um dos nomes da Misericórdia.
Na reflexão de vocês sobre a renovação do clero, também se enquadra o capítulo que diz respeito à gestão das estruturas e dos bens econômicos: em uma visão evangélica, evitem se sobrecarregar em uma pastoral de conservação, que obstaculiza a abertura à perene novidade do Espírito. Mantenham somente o que pode servir para a experiência de fé e de caridade do povo de Deus.
3. Por fim, perguntamo-nos qual é a razão última da doação do nosso presbítero. Quanta tristeza sofrem aqueles que, na vida, estão sempre um pouco pela metade, com o pé levantado! Calculam, sopesam, não arriscam nada por medo de se perder... São os mais infelizes! O nosso presbítero, em vez disso, com os seus limites, é alguém que se joga até o fim: nas condições concretas em que a vida e o ministério o puseram, ele se oferece com generosidade, com humildade e alegria. Mesmo quando ninguém parece notar. Mesmo quando intui que, humanamente, talvez ninguém vai lhe agradecer o suficiente da sua doação sem medida.
Mas – ele sabe – não poderia fazer de outra forma: ele ama a terra, que reconhece visitada todas as manhãs pela presença de Deus. É um homem da Páscoa, do olhar voltado ao Reino, rumo ao qual ele sente que a história humana caminha, apesar dos atrasos, das obscuridades e das contradições.
O Reino – a visão que Jesus tem do homem – é a sua alegria, o horizonte que lhe permite relativizar o resto, temperar preocupações e ansiedades, permanecer livre das ilusões e do pessimismo; conservar a paz no coração e difundi-la com os seus gestos, as suas palavras, as suas atitudes.
* * *
Eis delineada, caros irmãos, a tríplice pertença que nos constitui: pertença ao Senhor, à Igreja, ao Reino. Esse tesouro em vasos de barro deve ser conservado e promovido! Sintam até o fim essa responsabilidade, encarreguem-se com paciência e disponibilidade de tempo, de mãos e de coração.

Rezo com vocês à Virgem Santa, para que a Sua intercessão os conserve acolhedores e fiéis. Junto com os seus presbíteros, que vocês possam levar a termo a corrida, o serviço que lhes foi confiado e com o qual vocês participam do mistério da Mãe Igreja. Obrigado. Fonte: http://www.ihu.unisinos.br

“Muitos se tornam padres para ter um nível de vida melhor, dignidade ou categoria”, constata teólogo.

"Será que ainda não chegou a hora de modificar a atual legislação canônica, para recuperar as surpreendentes intuições organizativas que a Igreja viveu nas suas origens?", pergunta José María Castillo, teólogo espanhol, em artigo publicado por Religión Digital, 29-01-2017. A tradução é de André Langer.

Eis o artigo.
Do jeito que as coisas aconteceram, no momento em que vivemos, o futuro da Igreja dá o que pensar. Porque dá a impressão de que a Igreja, assim como está organizada e como funciona, tem cada dia menos presença na sociedade, menos influxo na vida das pessoas e, portanto, um futuro bastante problemático e muito incerto.
Cada dia há menos sacerdotes, cada semana ficamos sabendo de conventos que fecharam para se transformarem em hotéis, residências ou monumentos meio arruinados. A progressiva diminuição nas práticas sacramentais é alarmante. Mais da metade das paróquias católicas de todo o mundo não tem pároco ou o tem apenas nominalmente, mas não de fato.
Há poucos dias, o Papa Francisco dizia em uma entrevista: “O clericalismo é o pior mal que a Igreja pode ter, quando o pastor se torna um funcionário”. E é verdade que há padres que entraram no seminário ou foram a um convento, porque não queriam passar a vida como uns “Zé Ninguém” que não têm nenhuma importância na vida. Isto acontece mais do que imaginamos.
Mas, embora se trate de pessoas generosas e decentes, como não vão acabar sendo meros “funcionários” indivíduos que, para cumprir com suas obrigações, têm que ir de um lado para o outro, sempre com pressa, sem poder atender de maneira tranquila a ninguém? E conste que me limito a recordar apenas esta causa de que na Igreja haja tantos “clérigos funcionários”.
Não quero entrar na raiz profunda do problema, que não é outra senão a quantidade de indivíduos que se fazem padres porque, no fundo, o que querem é ter um nível de vida, uma dignidade ou uma categoria que não correspondem nem com o projeto de vida que nos é apresentado pelo Evangelho, nem com o que deles espera e necessita a Igreja.

Além disso – e isto é o mais importante –, é a Igreja uma mera empresa de “serviços religiosos”? Como pode a Igreja ser isso se pretende manter viva a memória de Jesus de Nazaré, que foi assassinado pelos homens do sacerdócio e do Templo, os mais estritos representantes dos “serviços religiosos”?
Já sei que estas perguntas nos trazem um problema que a teologia cristã não resolveu. Mas, há coisas que a Igreja tinha muito claro, em tempos já muito distantes, e que hoje seria muito bom recuperar. Refiro-me concretamente a dois assuntos capitais: a “vocação” ao ministério pastoral e a “perpetuidade” deste ministério.
A vocação. Entende-se por “vocação” um “chamamento”, um chamado. Por isso dizemos que vai ao seminário ou entra no noviciado quem se sente “chamado” para isso. Mas, chamado por quem? Há séculos se vem dizendo que o bispo “ordena sacerdote” a quem é “chamado por Deus”. Mas é claro que ocorreria a qualquer um perguntar: e por que será que agora ocorre a Deus chamar menos pessoas precisamente nos países mais necessitados de bons párocos, teólogos, etc.? Não. Hoje, não há quem acredite no fato de que a vocação é um chamado de Deus. Então...?
O melhor historiador da teologia da Igreja, Yves Congar, publicou em 1966 um memorável estudo (Rev. Sc. Phil. y Théol. 50, 169-197) documentado até o último detalhe, no qual ficou demonstrado que a Igreja, desde as suas origens até o século XIII, não ordenava (sacerdote ou bispo) quem queria ser ordenado e alcançar a dignidade que isso levava consigo, mas a quem não queria.
A vocação não era vista como um chamamento de Deus, mas da comunidade cristã, que escolhia e nomeava a quem a assembleia considerava o mais capacitado para o cargo. É o que se vinha fazendo nas primeiras “igrejas” já desde a missão de Paulo e Barnabé, que designavam “votando com a mão levantada” ("cheirotonésantes") (At 14, 23) os ministros de cada comunidade.
Será que ainda não chegou a hora de modificar a atual legislação canônica, para recuperar as surpreendentes intuições organizativas que a Igreja viveu nas suas origens?
A perpetuidade. Desde a Idade Média tardia vem se repetindo na teologia que o sacramento da ordem “imprime caráter”, um “sinal espiritual e indelével”, que marca o sujeito para sempre (Trento, ses. VII, cânon 9. DH 1609). O concílio quis, neste caso, definir uma “doutrina ou dogma de fé”. Porque o tema do “caráter” foi introduzido na teologia pelos escolásticos do século XII. E, em definitiva, a única coisa que se via como certa é que há três sacramentos – batismo, confirmação e ordem –, que só podem ser administrados uma vez na vida, ou seja, são irrepetíveis, como indica o citado cânon de Trento.
O importante aqui é saber que durante o primeiro milênio a Igreja ensinou e praticou de maneira insistente o que repetiram e exigiram os concílios e sínodos de toda a Europa. A saber: os clérigos, inclusive os bispos, que cometiam determinadas faltas ou escândalos (detalhados pelos concílios), eram expulsos do clero, eram privados do ministério, perdiam os poderes conferidos pela ordenação sacerdotal e, em consequência, ficavam reduzidos à condição de leigos.

Este critério se repetiu tantas vezes, durante mais de 10 séculos, que a Igreja se comportava, naqueles tempos, como qualquer outra instituição que se propõe ser exemplar. Os responsáveis, que não são exemplares, não são transferidos para outras cidades ou trancados em um convento. Eram postos com os pés na rua. E que se busquem a vida, como qualquer outro funcionário, que não cumpre com suas obrigações.
Se a Igreja quer realmente acabar com os clérigos funcionários e com os clérigos escandalosos não pode depender dos juízes e tribunais civis. A própria Igreja deve tirar a chamada “dignidade sacerdotal” aos “inescrupulosos”, aos “espertinhos”, aos “aproveitadores”, que se servem da fé em Deus, da memória de Jesus e de seu Evangelho, para desfrutar de um respeito ou de uma dignidade que, na realidade, não tem nem merecem. Fonte: http://www.ihu.unisinos.br