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terça-feira, 30 de outubro de 2012

A Paróquia perfeita

Dom Murilo Krieger, Arcebispo de Bahia e Primaz do Brasil
          Conta-se que um jovem procurou, um dia, um eremita, isto é, uma dessas pessoas que vivem retiradas do mundo, isoladas, em meio a sacrifícios, orações e jejuns. Os eremitas não fogem do mundo para procurar Deus, mas levam o mundo em seus corações para, na oração, interceder por seus irmãos e irmãs que lutam, sofrem e procuram a vontade do Senhor. O jovem falou-lhe de sua decepção com a paróquia de sua cidade. Afinal, sonhara tanto com uma comunidade ideal, sem defeitos e sem problemas, e lá encontrara somente pessoas com imperfeições.
O experiente eremita levou-o, então, a um lugar não muito distante, onde havia uma capela, e perguntou-lhe: “O que você está vendo?” A resposta foi imediata: “Vejo uma velha capela de madeira, com algumas tábuas um tanto apodrecidas e a pintura toda desbotada!” “É verdade”, respondeu-lhe o eremita. “A capela é isso mesmo que você está falando. Veja, porém: nela habita Deus! O mesmo acontece com sua paróquia. Ela não é tão pura e perfeita como você deseja, porque é formada por seres humanos. Você também é um ser humano e, por isso, continuamente faz experiência das próprias limitações e pecados. Por sinal, mesmo que você encontrasse, um dia, uma paróquia perfeita, ela deixaria de ser perfeita tão logo você nela entrasse!”
Meu artigo poderia terminar por aqui, porque meus leitores já perceberam aonde quero chegar. Mas vou adiante, lembrando uma observação que a Igreja fez de si mesma, cinco décadas atrás. Os bispos do mundo inteiro estavam reunidos em Roma, participando do Concílio Ecumênico Vaticano II (“segundo” porque outro concílio ecumênico havia sido realizado antes no Vaticano, em 1870). A preocupação que dominava seus participantes pode ser sintetizada em uma pergunta: “Igreja, o que dizes de ti mesma?” A belíssima e profunda resposta que surgiu das orações e reflexões dos bispos pode ser lida no documento mais importante desse Concílio: “Lumen Gentium” (Luz das nações). Como desejo voltar à história narrada acima, destaco desse documento a parte que diz: “A Igreja cerca de amor todos os afligidos pela fraqueza humana, reconhece mesmo nos pobres e sofredores a imagem de seu Fundador pobre e sofredor. Faz o possível para mitigar-lhes a pobreza e neles procura servir a Cristo. Mas enquanto Cristo, ‘santo, inocente, imaculado’  (Hb 7,26) não conheceu o pecado (cf. 2Cor 5,21), mas veio para expiar os pecados do povo (cf. Hb 2,17), a Igreja, reunindo em seu próprio seio os pecadores, ao mesmo tempo santa e sempre na necessidade de se purificar, busca sem cessar a penitência e a renovação” (LG 8).
Não tenhamos, pois, ilusões: a comunidade perfeita existe, sim, mas na eternidade. Enquanto formos peregrinos nesta terra dos homens, viveremos em função de um desafio, de uma certeza e de uma utopia.
O desafio: deve orientar-nos a ordem dada por Cristo – isto é: “Sede perfeitos, assim como vosso Pai celeste é perfeito!” (Mt 5,48). Há muito que fazer, pois, para atingirmos a perfeição! A certeza: “Não vos deixarei órfãos!” (Jo 14,18). Se nossa luta em busca da santidade exige muito de nós, alegra-nos a certeza de que não estamos sozinhos nesse esforço. Jesus está muito mais interessado em nossa vitória (e em nossa santidade) do que nós mesmos. E ele vai nos ajudar!  A utopia: “Vi, então, um novo céu e uma nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra desapareceram e o mar já não existia. Eu vi descer do céu, de junto de Deus, a Cidade Santa, a nova Jerusalém, como uma esposa ornada para o esposo. Ao mesmo tempo, ouvi do trono uma grande voz que dizia: ‘Eis aqui o tabernáculo de Deus com os homens. Habitará com eles e serão o seu povo, e Deus mesmo estará com eles. Ele enxugará toda lágrima de seus olhos e já não haverá morte, nem luto, nem grito, nem dor, porque passou a primeira condição’ ”(Ap 21,1-4). Trabalhemos, portanto, para que nosso mundo (nossa paróquia, nossa família, nosso coração etc.) melhore; mas não nos iludamos: a perfeição só encontraremos quando Cristo for tudo em todos (cf. Cl 3,12).
Fonte: www.cnbb.com.br

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

O PROFETISMO NOS CARMELITAS DO SÉCULO XIX NO NORDESTE DO BRASIL: FREI JOAQUIM DO AMOR DIVINO RABÊLLO CANECA, UM CASO EXEMPLAR

Frei Tito Figuierôa de Medeiros, O. Carm.
(Trabalho apresentado  no encontro da Comissão  Mista  ocarm/ocd para  América Latina e Caribe)

CURITIBA-PARANÁ, 22  A  27  DE JUNHO  DE  1998

 INTRODUÇÃO
            Inicio este  trabalho com um parecer da historiadora brasileira Emília Viotti da Costa, que defende a hipótese, juntamente com outros autores, de que o Iluminismo, enquanto sistema de idéias, constituiu-se num leque de significados e tendências diversas, englobados naquela designação.[1] Nesta mesma palestra, a Dra. Emília V. da Costa elencou uma variedade de seguidores desta postura filosófica e política, pertencentes aos grupos sociais mais diferentes. Detendo-se na análise do chamado clero iluminista, que floresceu em quantidade respeitável no Brasil e colônias ou nações emergentes hispano-americanas, entre as duas últimas décadas do século XVIII e três primeiras do século XIX, ela asseverava que estes padres, frades e bispos realizaram uma verdadeira leitura e interpretação cristãs das teorias iluministas.
Dentre eles, avulta no Brasil a figura do carmelita pernambucano Frei Joaquim do Amor Divino Rabello, mais conhecido como Frei Caneca, devido a que se pai era dono de uma oficina de tanoeiro, que fabricava canecas e outros utensílios de lata e latão.

I.    NOÇÃO E EMPREGO DO PROFETISMO, NESTE CONTEXTO 
            A pergunta principal a se fazer aqui é: em que ponto e em que medida podemos chamar de profetas ao Frei Caneca em particular e aos religiosos em geral que fizeram uma leitura cristã das propostas e teorias iluministas, na América Latina no século XIX?
            Se tomamos o termo em sua acepção genérica de “falar alto”, “chamar”, “proclamar”, “anunciar”, “advertir”, “antever punições” aos inimigos contra os quais se combate, sem dúvida nenhuma eles são profetas. Mas, no sentido de homem ou mulher que vive uma experiência de Deus e, através dela, interpreta a vontade do Senhor em relação aos acontecimentos do seu tempo, temos que ver caso a caso.       
            Com respeito ao Frei Caneca, não consta tenha tido experiência extraordinária de Deus, visível ou narrada pelo mesmo. Portanto, a associação do profeta ao místico, encontrada em alguns biblistas[2], sobretudo após os tempos do Novo Testamento, não se aplicaria a ele. No entanto, se tomamos a maneira como o Frei une os conhecimentos dos autores iluministas com sua familiaridade com a Bíblia e a Patrística - como vamos conferir, no correr deste trabalho -, podemos certamente atribuir um carisma profético a seus escritos e discursos. Quanto a sua atuação, está clara a linha de fidelidade caneciana, abundantemente expressa aos princípios jusnaturalistas de grande peso ético. Há uma síntese dinâmica e crescente, no processo humano e político de Caneca, entre os postulados da “religião civil”, construída pelos pensadores anteriores e contemporâneos das revoluções francesa e norteamericana, e a reinterpretação cristã por ele dada, às vezes de modo muito eloqüente, a ponto de um de seus estudiosos mais recentes, Montenegro[3], falar de um esboço de uma Teologia da Política - que explanarei mais extensamente na última parte deste texto. Junte-se a isto o caráter forte, enérgico, exasperado, às vezes, de sua linguagem e estilo, na busca de caminhos para enfrentar e derrubar o imperialismo colonialista, inicialmente, e o projeto absolutista do governo do Brasil, depois.
            Encontramos bem presentes nos escritos de Caneca os três elementos ou “três linhas de ação dos profetas”:[4] o caminho da justiça; o caminho da solidariedade, no esforço de reunir a comunidade nacional para fundar um estado de direito democrático; e por fim, o caminho da mística, no sentido da mudança no modo de pensar, do heroísmo renunciador de uma vida pacata e tranqüila, em prol da dedicação integral à luta pelos seus ideais e de toda uma Região:  o Nordeste do Brasil no século XIX.

II.   PRIMEIROS PASSOS
            Caneca nasce no Recife a 20 de agosto de 1779. Na árvore genealógica de sua família, de posição social humilde, contavam-se raízes negras e indígenas, das quais ele viria a se orgulhar, mais tarde. Em 8 de dezembro de 1796, com 17 anos de idade, inicia seu noviciado no Convento do Carmo do Recife, e já é ordenado padre em 1801, com apenas 22 anos. Logo após sua ordenação, faz uma tentativa frustrada de ir estudar em Coimbra, às custas da família e amigos. Não conseguindo, por conta de problemas internos da Província Turonense de Pernambuco, obtém licença para estudar no Seminário de Olinda, recém-fundado pelo grande representante do Iluminismo no clero de Pernambuco, o Bispo D. Azeredo Coutinho. Ali faz cursos de Filosofia, Retórica e Geometria. Recebe o diploma de “Lente” naquelas três disciplinas, passando então a lecionar no Convento do Carmo do Recife.
            O período de estudos no Seminário de Olinda, põe-no em contato com o que existia de melhor na literatura liberal dos teóricos europeus e norteamericanos, trazidos e importados pelo Bispo Coutinho.  Deste modo, sua mente inquieta e sua inteligência brilhante continuam a beber na leitura dos mestres marcados pelas “luzes do século”. Sem ter pertencido à Maçonaria[5], freqüentou a Academia literária do Paraíso, no Recife, onde se discutia literatura, além de filosofia e política.
            As constantes citações bíblicas e dos Padres da Igreja em seus sermões e escritos demonstram que Caneca entendia com desenvoltura o latim, assim como rezava assiduamente o Breviário, em contrário a algumas opiniões, que o descrevem como religioso relapso. O mesmo se diga das obras em francês, comentadas por ele. As freqüentes citações de periódicos norteamericanos e de obras em língua inglesa nos fazem crer que o confrade teria amigos e/ou correligionários que lessem para o mesmo a correspondência trazida - quase sempre às escondidas - dos Estados Unidos da América.
            Antes de nos determos nas influências filosóficas, bíblico-teológicas, jurídicas e literárias do Frei, é importante salientar o seguinte: Caneca jamais pretendeu ser um pensador puramente teórico ou em construir um sistema de pensamento. Como escreveu Frei Reginaldo Manzotti, “sua doutrina foi praticamente toda exposta no sufoco da luta revolucionária; como jornalista que era, escrevia o que ia fazer ou dava uma explicação racional para o que fazia ou planejava”. de fato, “ele escreve ao sabor das circunstâncias...  Ele vivia a revolução, a praticava, e o trabalho de racionalização da mesma, do qual surge a sua doutrina, provinha de todo um feedback cultural de um autêntico sábio novecentista que se chocava com uma situação de fato”.[6]
            Quase todos os seus escritos políticos, portanto, têm um caráter circunstancial - com exceção da Dissertação sobre a Pátria do Cidadão[7]. Não se tratam de textos amadurecidos em clima de reflexão e tranqüilidade próprias do ambiente acadêmico. Muito ao contrário, são escritos polêmicos, tratando os temas no calor do debate público, ao sabor imediato dos acontecimentos que se precipitavam, no meio dos vais-e-vens das notícias e discussões: isto, sobretudo, no período entre 1822 a 1824, época da maior parte da produção caneciana no domínio ético- jurídico-político.
            Feita esta observação, é importante salientar sob que situações políticas e sociais Caneca vai refletir, assimilar e propagar suas idéias:
            Em 1817 estoura no Recife a Revolução Republicana de Pernambuco, na época a província líder do Norte e Nordeste. Mais de 40 padres e/ou religiosos participam do movimento, seja pela pregação dos ideais republicanos de liberdade, por palavras e escritos, seja, inclusive, pelo engajamento direto na luta armada. Foi tamanha a participação do clero diocesano e religioso, que este movimento ficou conhecido por historiadores como Gilberto Vilar de Carvalho como “a revolução dos padres”[8]. Caneca toma parte ativa, tanto nas articulações preliminares da elaboração do pacto social e na sessão que deflagra o movimento, como em atos de “guerrilha”. Um outro carmelita, Frei José Brayner, prior do convento da Guia, na província vizinha de Pernambuco, Paraíba, também adere à revolução; renuncia no capítulo da comunidade ao cargo de prior, enverga a veste de couro de uma companhia guerrilheira: os “coiraças”, e vai lutar no meio rural. Reprimida a tentativa de independência pelas tropas imperiais, fiéis ao Rei de Portugal, Brasil e Algarve, D. João VI - desde 1808 residindo no Brasil para onde viera com a corte portuguesa, fugindo ao exército napoleônico -, Caneca é preso e enviado para a cidade da Bahia. Anistiados os detentos em 1821 pelo príncipe regente D. Pedro - o rei já havia retornado a Portugal, por pressão da Assembléia Constituinte reunida em Lisboa - Caneca, juntamente com muitos pernambucanos, paraibanos e norte-riograndenses, voltam para o Recife. Todos são recebidos naquela cidade como heróis nacionais. A comissão de recepção escolhe a Igreja do Carmo para a celebração do solene Te-Deum comemorativo. O historiador Pereira da Costa escreve que o ato religioso “foi tão concorrido que as 580 tochas individuais distribuídas - a celebração realizou-se à noite - não chegaram nem para a metade das pessoas que compareceram”.[9]
            O motivo da anistia e reintegração nos direitos civis dos prisioneiros foi a vitória da revolução constitucionalista  e liberal em Portugal, em 1820, e o conseqüente juramento da Constituição portuguesa pelo rei e príncipes: D. Pedro e D. Miguel. Este acompanhara o pai para a metrópole do Reino. O frei Brayner, companheiro de Caneca no movimento de 1817 e na prisão na Bahia, foi posteriormente agraciado com uma comenda militar e o cargo de capelão militar no Rio de Janeiro, conforme alguns cronistas.
            Durante sua permanência na prisão, Frei Caneca organizou com os companheiros um programa de discussões sobre a análise de conjuntura nacional e internacional, além de um sistema de aulas comunitárias, nas quais quem sabia melhor uma determinada disciplina (retórica, gramática, línguas estrangeiras, filosofia, etc) ensinava aos demais.

III.   PROFETISMO NO PENSAMENTO RELIGIOSO
            A proclamação da Independência do Brasil, em 7 de setembro de 1822, dentro do estatuto jurídico da monarquia constitucional, recebe do Frei um apoio entusiasta. Por isso, é ele o escolhido para pregar o sermão panegírico em comemoração da coroação de D. Pedro I, como Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil, em cerimônia “mandada celebrar pelo Senado da cidade do Recife a 8 de dezembro de 1822”, numa das igrejas matrizes do centro. Numa peça oratória muito bonita e de estilo elegante, Caneca manifesta os temas e recursos caros à sua atividade de polemista, escritor e orador: o recurso constante à Bíblia - citada 22 vezes - à liturgia do dia, Festa da Imaculada Conceição, o paralelo ricamente traçado entre a Solenidade Mariana e a da Pátria, e as citações de autores seus preferidos na alusão às questões da filosofia do direito e da política. É desse sermão esta frase programática: “Unir o temporal com o eterno; a religião com a natureza; a mostrar-se ao mesmo tempo cristãos mais devotos e pios, e cidadãos mais patriotas e justos!” Percebe-se aí o dualismo próprio da cultura ocidental, do qual o pensamento iluminista não escapou - muito ao contrário. Ao mesmo tempo, podemos admirar neste, como em muitos outros trechos de suas obras, o esforço de Caneca em aliar a fé e a política, dentro do contexto do sua época.
            Eis um exemplo bonito do paralelismo recorrente em todo o texto panegírico, vazado no dualismo iluminista de cunho cristão, que tenta aproximar a toda hora razão e fé:
“Maria sendo, por um dom especial da redenção de Jesus Cristo, concebida em graça, livre de todas as manchas que contaminavam os demais filhos dos homens, assegurou à humanidade todas as suas felicidades, quanto aos bens eternos: primeiro ponto. Sua majestade imperial, fundando o império constitucional do Brasil, por um dom particular de justiça e prudência, estabelece u governo das maiores vantagens para o Brasil, quanto aos bens temporais: segundo ponto”[10]
            Em fevereiro de 1823, Frei Caneca é convidado a pronunciar um sermão sobre a Oração para a Ordem Terceira do Carmo do Recife, na capela da mesma. Nesse pronunciamento, de estilo mais didático, o Frei se revela mais uma vez conhecedor da Patrística e da Bíblia, citando-a fartamente em vernáculo e latim, conforme o costume de então. Ele identifica a oração com a oração de petição, na maioria das conceituações e definições  apresentadas. Não demonstra conhecimento dos místicos e escritores da Ordem, não citados diretamente nenhuma vez. Maria, no entanto, é venerada e exaltada neste sermão, também. a Tradição Eliana vem lembrada por ele, numa bela alusão de dois parágrafos sobre a oração de Elias em I Reis, 17 e sua atuação em I Reis 18.[11] Além destas ausências, destacamos neste sermão as críticas que faz o Frei a algumas características do catolicismo vivido pela nobreza e burguesia comercial da época, no Brasil.
            Misturando conceitos e virtudes da religião civil, propagados pelos ideólogos da Revolução Francesa, com as virtudes evangélicas, Caneca investe contra a oração de petição interesseira, que só cuida de suplicar bens materiais, êxito nos negócios - nem sempre lícitos, como ele dá a entender em termos muito fortes. A este respeito, chega a citar Santo Agostinho: “Não se pede em nome do Salvador, aquilo que se pede contra a salvação”[12]. Ele insiste várias vezes no que se deve pedir e no como se deve pedir. Traça três condições para a boa oração: “devem as nossa orações ser justas em si quanto à matéria de que versam; devem ser justas da nossa parte, isto é, feitas por nós livres de culpas e em santidade; e justas finalmente quanto às circunstâncias do tempo e do lugar”.[13] 
            Um dos trechos mais bonitos é a página em que Frei Caneca elogia e comenta a oração do Pai Nosso, sobre a qual diz o seguinte:
            “Nas sete petições da Oração Dominical... ele (Jesus Cristo) resumiu tudo que nos era necessário nesta vida e útil para alcançarmos a outra; e não se pode conhecer bem algum para nós temporal ou eterno, que ali não vejamos compreendido pelo Divino Salvador, e na ordem que lhe compete, segundo a sua gravidade e excelência. Portanto, todas as nossas orações, cujo objeto se não compreender em algum daqueles artigos, e na ordem ali estabelecidas, são injustas, são ímpias, indignas dos ouvidos do Eterno e dos seus despachos”.[14]
            Sobre as condições do orante para rezar bem, Caneca revela-se de um grande radicalismo: “Se os pecados nos tornam inimigos de Deus, indignos de sua presença, como, cobertos de culpas, queremos ser atendidos e despachados? Queremos que Deus nos ouça nas nossas orações, e não queremos nós ouvi-lo nos seus preceitos?... E julgamos que Deus, que esquadrinha nossos corações e vontades, haja de ouvir vozes levantadas do meio dos homicídios, dos furtos, dos adultérios, das calúnias? Vozes repercutidas e aniquiladas pelos clamores do inocente, do caluniado, da matrona infamada, do homem de bem injuriado, do justo perseguido?... Isto, meus irmãos, não condiz com a justiça do Eterno, aquele que ouve a voz do sangue de Abel, que clama da terra ao céu”. E arremata, dizendo: “A oração eficaz só se encontra nas mãos do justo”.[15]
            Podemos conferir nesses trechos do discurso uma das temáticas expressas na obra do Frei, inclusive nos escritos políticos: a relação estreita entre a fé e a política, embora vivenciada e considerada numa visão dualista e não integrativa. Tal relação chega a fornecer elementos para uma incipiente Teologia da Política e do Direito, seja ele privado e público: conseqüência destas ligações - ou, talvez, precedendo-as - é a insistência numa religião ética, não apenas de ritos e culto, o que justamente predominava em nosso catolicismo do ciclo econômico do açúcar, tipo de catolicismo hegemônico também na vida religiosa das cidades coloniais e do império. Caneca advoga a necessidade da união entre fé e vida. Ele polemiza contra uma religião apenas festeira, santeira e devocional, descomprometida em termos de vivência no cotidiano, antes preocupada com o número de devoções de que se tem de dar conta diariamente, mas que não leva a transformações de vida, a um reflexo no comportamento pessoal, familiar e social.
             As raízes desta sua posição não se encontram apenas no Evangelho e na Patrística, mas também no apreço às virtudes cívicas, dentro do quadro referencial do ascetismo intramundano, expressão cunhada por Max Weber para designar, entre outros, o comportamento ético-religioso do puritanismo anglo-saxão, muito presente nos escritos dos líderes da independência norteamericana.[16] Caneca revela conhecimento de alguns desses textos.
            Fazendo eco ao Evangelho, o Frei fustiga a multiplicidade de repetições de “coroas”, de visitas a igrejas, de audição de sermões, de ouvir missas, da quantificação da devoção enfim, que trazem como conseqüência o prejuízo dos deveres profissionais, de pai e mãe de família, etc.
            Tal postura resultou numa enorme campanha contra o sermão, por parte dos ouvintes, culminando com uma denúncia formal ao provincial. Este, por sorte, era um homem inteligente, teólogo, examinador dos candidatos às ordens sacras na Cúria de Olinda, e eleito bispo do Maranhão após a morte de Frei Caneca:[17] Dom Frei Carlos de São José e Souza. Tendo examinado o sermão, Frei Carlos declarou que o mesmo não tinha nada contra a ortodoxia e os costumes. Munido deste parecer, Caneca resolveu publicar o sermão e distribuí-lo gratuitamente, a fim de que este juiz imparcial (o público) lhe faça justiça e ao mesmo tempo conheça qual é a religião e a moral daqueles espertalhões que, por meio de suas intrigas, tem tornado aquela venerável confraria (a OTC do Recife!)  deserta dos homens honrados[18].
            A peça oratória não contém nada contra a fé. No entanto, falta nela aspectos importantes da espiritualidade carmelitana, inspirados na Regra e no espírito da Reforma Turonense, presentes nas suas Constituições, que regiam também a Província Reformada de Pernambuco, bem como deveriam constar da formação dos noviços, através do “Diretório próprio da Reforma. Assim sendo, não há comentário sobre o “meditar da e noite na Lei do Senhor” e o “perseverar na oração”, da Regra. Ausente, também, algo do método de oração mental da Reforma, do exercício da presença de Deus, da oração aspirativa propugnados pela mesma. Tais lacunas, penso, indicam um “esquecimento” ou diminuição do fervor e aplicação do espírito de Tourenne, muito fortes em seus inícios no Brasil, na penúltima década do século XVII, e que motivaram a constituição da Província Reformada de Pernambuco, separada então da Província da Bahia.
            Em 12 de novembro de 1823, D. Pedro I dissolve a Assembléia constituinte e Legislativa e designa um conselho presidido por ele para preparar a Constituição do Brasil, a ser outorgada. O Imperador passa a trilhar o caminho da monarquia absoluta.
            Caneca põe-se resolutamente do lado contrário do Imperador. Seu intuito é tentar recuperar o ideal monárquico constitucional. Não pensa mais em república. A esta altura dos acontecimentos, seu pensamento evoluiu para aceitar um tipo de monarquia constitucionalista, mas na qual a vontade da maioria da câmara prevalece sobre a do imperador.[19] Para isto, funda no Recife o jornal Typhis Pernambucano, no qual, anonimamente, vai atacar o absolutismo régio e, mais adiante, conclamar as províncias do Norte e Nordeste do Brasil a não jurar a constituição outorgada por D. Pedro I em 25 de março de 1824. Isto feito, elas se organizariam para uma reação em conjunto, de cunho constitucionalista não-separatista, com base num pacto social que marcaria o início de um sistema de governo constitucional representativo e fortemente federativo, com a capital do país escolhida pelo voto democrático. Enquanto isto não acontecia, Pernambuco expulsava o presidente da província nomeado pelo Imperador e instituía um governo liberal de forma republicana, convidando as demais províncias do Norte a fazerem o mesmo. Este movimento ficou conhecido como “Confederação do Equador”. O historiador Gilberto Vilar de Carvalho chamou este movimento de “a revolução de um Frade” apontando Frei Caneca como o grande mentor intelectual e a maior força moral deste.[20]
            Fracassada a revolução pela ação militar enérgica e imediata do poder central sobre Pernambuco e demais províncias do Nordeste que aderiram (Ceará, paraíba e Rio Grande do Norte), as rendições das tropas, com muitas baixas, vão se sucedendo. O grupo onde Caneca se encontrava, em marcha pelo interior da paraíba, rumo ao Ceará, para reorganizar a resistência, se rende e o Frei é recolhido na cadeia nova do Recife com muitos companheiros, entre eles mais dois padres. Em dezembro de 1824, tem início o julgamento do acusados, por um tribunal militar. O próprio Frei faz a sua defesa com a lógica e segurança de pensamento que sempre caracterizou seus escritos e pronunciamentos. No entanto, neste jogo de cartas marcadas previamente, ele é condenado à morte pela forca, como outros revolucionários.
            No dia da execução, 13 de janeiro de 1825, Caneca passa pela humilhação do ritual da degradação das ordens sacras, presidida pelo bispo do Rio de Janeiro, vindo a Pernambuco para esta cerimônia. Historiadores e juristas consultados acusam este ato de ilegal, porque não foi precedido de nenhum processo canônico em tribunal eclesiástico.
            Na manhã deste dia, o Cabido Diocesano de Olinda, com os cônegos em procissão e “cruz alçadas”  se dirigem ao palácio do governo, no Recife, que sediava a comissão militar, a pedir a graça da clemência e a comutação da pena para Frei Caneca. Tal solicitação é recebida com zombarias e ameaças de prisão para os cônegos, pelo presidente da comissão. Outras demonstrações fortes e comoventes do apreço da população pelo Frei são as recusas dos carrascos encarregados sucessivamente de enforcá-lo. Corre entre o povo presente ao ato a história de que o primeiro carrasco tinhas preferido a morte a executar Caneca porque havia tido uma visão de Nossa Senhora do Carmo. Nem mesmo os presos condenados à prisão perpétua ou à morte, intimados para executar Caneca, aceitam fazê-lo, apesar das promessas de anistia.[21] Foi uma situação que demorou horas. Cansada de tantos contratempos, a comissão militar ordena verbalmente a mudança da morte pelo fuzilamento, o que era uma forma de execução considerada mais digna que a forca. A caminho do pelotão de fuzilamento, um dos soldados, crioulo de cor[22] cai, vitimado por uma síncope. Os outros seguem em frente.
             Após o fuzilamento, o corpo de Caneca é depositado na porta do convento do Carmo, à noite. Recolhido por um dos frades, foi sepultado por este, às ocultas, em local ignorado, a fim de não ser depois buscado e exposto em praça pública. Anos mais tarde, numa reforma na igreja e convento, os ossos encontrados aqui e ali - inclusive um esqueleto completo emparedado no coro superior da igreja - não-identificados, foram misturados num jazigo geral dos frades.

IV.   PROFETISMO NO PENSAMENTO POLÍTICO
A leitura atenta dos eventos ocorridos entre 1817 e 1824 em Pernambuco, tempo da atuação política de Frei Caneca, bem como das obras de conteúdo político:  Dissertação sobre o que se deve entender por Pátria do cidadão e deveres deste para com a mesma Pátria, Cartas de Pitia a Damão, Voto contra o juramento do projeto da Constituição Outorgada e os 28 números existentes do Typhis Pernambucano[23],  demonstram um senso de maleabilidade política em aplicar as idéias e projetos de acordo com a conjuntura local e o jogo de forças sociopolíticas atuantes no Brasil. Assim, Caneca é republicano em 1817; em 1822, tendo D. Pedro jurado seguir a Constituição brasileira, ele se torna adepto e defensor do sistema monárquico constitucional, no estilo seguinte: total divisão dos três poderes: executivo, legislativo e judiciário; nenhum poder de veto atribuído ao Imperador; uma só câmara, completamente escolhida por processo eleitoral, que fosse o órgão de expressão da soberania do povo. Julgando ser estas as disposições de Sua Majestade Imperial, expande sua alegria e esperanças no Sermão da Aclamação de D. Pedro I, comentado acima.
            Quando começa a intuir os projetos absolutistas do Imperador, Caneca se torna defensor ferrenho de um regime monárquico “o mais liberal possível”: soberania total da nação; tal soberania é representada pelos eleitos à Assembléia Nacional Constituinte; esta delega ao rei os poderes para fazer executar as leis; (“os reis não são os pais dos povos, antes os povos são pais dos reis”). A assembléia constituinte não faz o povo abdicar de sua soberania (“o povo, apesar das côrtes, fica com o poder soberano para alterar e suspender as côrtes”); o poder maior, delegado pelo povo, reside na assembléia (“as côrtes são superiores ao imperador”); tal poder se exerce pelas leis (“no sistema constitucional, a lei é quem governa”); defende uma só câmara, excluindo a dos nobres, que o partido aristocrata do Rio de Janeiro tenta incluir no projeto constitucional (“a nobreza hereditária é prejudicial ao Brasil”) ... (“a câmara alta é inteiramente prejudicial: os aristocratas tudo votam em seu proveito contra todas as classes da sociedade”). Temos aí algumas das teses defendidas pelo Frei e outros patriotas contemporâneos seus.[24]
            O golpe de estado impingido à nação pelo Imperador, dissolvendo a Assembléia Constituinte, em 12 de novembro de 1823, marca uma mudança de posição e de estilo em Frei Caneca: seu liberalismo assume contornos radicais, usando a expressão de Souza Montenegro:[25] analisando os decretos imperiais, passa a rebater as acusações contra a  assembléias extinta, preconiza a recusa da aceitação da Constituição outorgada e alça as bandeiras do movimento revolucionário, como maneira de obrigar o poder central a rever sua posição absolutista. A esta fase da luta caneciana corresponde o estilo panfletário, incendiário, do Typhis, diferente do caráter mais reflexivo, embora não menos contundente, das 10 Cartas.

V.       AS INFLUÊNCIAS DO PENSAMENTO ILUMINISTA EUROPEU
            São abundantes nas obras políticas acima elencadas. Encontramos muitas citações, algumas longamente, outras mais brevemente comentadas: de Montesquieu, Rousseau, Abade Reinal, dos autores da Enciclopédia, além do filósofo inglês Locke e, sobretudo, de Puffendorf, o pensador suíço do monumental Tratado De Jure Naturae et Gentium, o qual não sabemos se o Frei leu no original latino ou na tradução francesa.[26]  Todos estes autores, ao igual que os clássicos greco-romanos - principalmente Cícero - povoam os escritos de Frei Caneca, corroborando suas afirmações. As freqüentes referências às “luzes do século”, à “razão”, ao “pacto social”, situam-se entre os textos, com a naturalidade de quem já se habituou a trabalhar com os materiais teóricos que estão embutidos nesses termos, dentro do quadro referencial iluminista.
            De Montesquieu, Caneca toma a preocupação com a legalidade: que nada se faça sem a lei; o poder executivo só pode atuar se houver lei, nunca na ausência dela. A maleabilidade política do Frei, encontramo-la em Montesquieu, para o qual  vários regimes de governo são bons. Compete, porém, ao legislador, adaptar suas instituições às circunstâncias particulares, sem perder de vista o objetivo universal: “fazer recuar o despotismo.[27]  A definição clara das três funções estatais: a executiva, a legislativa e a judiciária - tendo como mais importante a legislativa; enfim, os aspectos técnico-legais, que fizeram do autor do O Espírito das Leis uma presença marcante nos debates da Assembléia Nacional francesa, influenciam o pensamento caneciano. Não concorda com  Montesquieu, porém, no poder de veto por este atribuído ao rei.
            De Puffendorf, Souza Montenegro distingue duas grandes influências deste pensador do século XVII sobre o Frei: a doutrina do direito natural, baseado em sua visão da Filosofia do Direito, e a dimensão essencialmente ética que Puffendorf infunde no Direito: para ele, a ação jurídica é uma ação moral. Existe em Caneca uma preocupação ética acentuada, aliada a um sentido de justiça e a uma assimilação dos conceitos de cidadania e diretos civis bastante arraigadas em seu discurso, tanto na denúncia dos despotismos como na tentativa de elaborar um projeto de sociedade que seria melhor para o país. Não foi esta a luta dos grandes profetas bíblicos? Deste modo, Caneca, ao denunciar a extrema arbitrariedade do golpe de estado  de Pedro I, “estabelece a conexão entre os ditames da natureza humana e a inconstitucionalidade ou ilegalidade do ato imperial “. [28]
            Munido ainda destes argumentos, Caneca investe contra a “Santa Aliança”, mentora principal, talvez, da mudança realizada na política imperial. Acusando Pedro I de “crime de perjúrio”, relembra sentenças pronunciadas pelo mesmo, inclusive na Proclamação da Independência do Brasil, em 1822: “Toda força é insuficiente contra a vontade de um povo, que não quer ser escravo.”[29] Assim também a ausência da liberdade, por causa da coação, pode anular a obrigatoriedade dos pactos sociais: “Algum dia se fizeram contratos ou pactos com as baionetas aos peitos? Bastava um tal meio para ser tudo nulo, e nós não ficamos obrigados a nada[30]. As leis positivas, na sua concepção, só obrigam se estiverem de acordo com o pacto jurado: “... não cometemos crime nenhum, nem desobediência penal, porque pena supõe um crime, e crime supõe a violação voluntária de uma lei; e a única lei, que há aqui a observar-se religiosamente, é o juramento, que prestamos, de sustentar e defender o regime constitucional.[31]
            E de Jean Jacques Rousseau, que teria Frei Caneca aprendido?  Em primeiro lugar, o apreço pelos pensadores da Antigüidade Clássica. Se Caneca se fundamenta muito em Cícero, coo por exemplo, no seu escrito sobre A Pátria do Cidadão..., já Rousseau faz de Catão, sobretudo, um paradigma, entre outros menos consultados, de sua visão filosófica do mundo.
            Principalmente, as idéias mestras do Rousseau do Contrato Social no tocante ao primado da sociedade sobre o Estado, a soberania do povo acima da dos governantes, considerada por ele como inalienável, calaram fundo no espírito investigador e inquieto de Caneca. Além disso, o Discurso sobre a Desigualdade dos Homens influencia o Frei na sua visão igualitária da liberdade do ser humano e dos “direitos quanto a conservação da sua vida e comodidades, e a tudo que deve aperfeiçoar o seu ser.” E, nas suas “Bases para a formação do pacto Social” - editada num dos últimos números do Typhis, a igualdade consiste “em que cada um possa gozar dos mesmos direitos”; “a lei deve ser igual para todos”; e todos os cidadãos são admissíveis a todos os lugares, empregos e funções públicas: “os povos livres não conhecem outros motivos de preferência, senão os talentos e virtudes.[32]
            Caneca passa por alto, no entanto, a questão do igualitarismo no campo econômico e no da propriedade privada, contrariamente a Rousseau, que defendera uma “reforma agrária” na França e a abolição dos monopólios comerciais. As investidas do Frei são contra as pretensões de se criar nobreza, aristocracia, no Brasil. Não é contra os ricos nem os proprietários. Seu liberalismo permanece burguês, como foi, em geral, o liberalismo iluminista. Nisso, ele foi homem do seu tempo, também. No entanto, aqui e ali ele avança para além das teses liberais, que o aproximam das utopias rousseaunianas. Defende em vários lugares, de passagem - e nas “Bases para a formação do Pacto Social” de maneira explícita - a abolição da escravatura, incluindo naquele escrito o princípio de que “o homem não pode vender-se nem ser vendido”.[33] Reafirma esta sua postura anti-escravista em carta a Cipriano Barata, liberal radical da Bahia, por este publicada em seu jornal Sentinela da Liberdade. Em algumas passagens, demonstra ternura para com os pobres e humildes, embora apareça agressivo, muitas vezes, contra os que se entregam à malandragem, à sobrevivência às custas da caridade alheira, à perturbação da ordem pública com furtos, atos de delinqüência, etc.
            Mas, talvez tenha sido a grande preocupação com a ética no manuseio da coisa pública o principal legado de Rousseau para Caneca: os anseios de justiça, retidão, honestidade daquele, como exigência para os homens públicos, repercutem, sem dúvida, nos escritos deste. Um exemplo, tirado ao acaso do no VIII do Typhis, mais parecendo trecho de um sermão do que um artigo político, ilustra bem a preocupação ética inspirada também no Cristianismo, haja vista o exemplo bíblico que a insp
“O espírito do nosso amor para com o comum (quer dizer, a causa comuntário-coletiva) é bem explicado pelo profeta Jonas, quando disse aos da nau em que navegava para Társis: ‘Se por meu respeito se comoveu toda esta tempestade, alijai-me ao mar, para que deixeis de perigar’. Sem este espelho de desinteresse, de justiça, de generosidade, não poderemos jamais atender seriamente ao bem da nossa pátria, à sua grandeza e glória; sem uma perfeita união seremos com facilidade rotos e desbaratados; unamo-nos, pois, em um só pensar, em um só querer.”[34]           

VI.      ESBOÇOS DE UMA TEOLOGIA POLÍTICA?
            A citação anterior introduz bem este item. Como o título indica, não se trata de nenhuma teologia sistemática que aborde a Revelação Cristã sob o enfoque da política. Mas, não deixa de causar surpresa a ligação que vamos encontrando, nos textos canecianos, de sua luta e idéias políticas, liberais e radicais, com sua fé. Minha surpresa com essa descoberta foi maior, por conta dos comentários, escutados dentro e fora dos arraiais religiosos, de que se trata de um autor e pensamento leigos ou seculares. Por isso, foi agradável encontrar, principalmente nas Cartas de Pitia a Damão e nos exemplares do Typhis Pernambucano, suas obras políticas e polêmicas mais compactas, freqüentes alusões à Sagrada Escritura, do Novo e Antigo Testamento. A familiaridade com que o Frei emprega os textos bíblicos, faz com que estes se constituam, juntamente com as propostas iluministas, veiculadas por seus autores preferidos, dois horizontes de significação, assim como dois espaços cognitivos que, às vezes, se entrelaçam, se dão as mãos, em apoio às exigências éticas da ordem pública, da luta pela liberdade a ser conquistada, a ser defendida inclusive através do rompimento com o governo imperial absolutista, recorrendo-se às armas para isto.
            Assim sendo, para corroborar seu apelo em favor da derrocada do absolutismo, Caneca invoca a visão do Profeta Daniel, da estátua preciosa mas com pés de barro, que a pedra derruba. Numa bela interpretação desta imagem bíblica, Caneca aplica-a à futura derrubada dos projetos golpistas do Rio e das pretensões absolutistas de Pedro I.
            Para chamar a atenção e repreender a falta de disciplina das tropas sublevadas em Pernambuco, em 1824, propõe o exemplo de Gedeão e seu pequeno mas valoroso e bem adestrado exército, na luta contra os madianitas. Para antever o avanço triunfante dos ideais de liberdade, identificados com a proposta constitucionalista, Caneca adverte com o horror estampado no rosto do Rei Baltazar e sua côrte, do Livro de Daniel, e a passagem do Mar Vermelho, do Livro do Êxodo. O horror iria se estampar nos rostos dos absolutistas.
            Em outro trecho, Caneca arremata o comentário bíblico aplicado ao movimento revolucionário, com um belíssimo ato de fé no futuro livre da Nação Brasileira, que conclui com a frase de São Paulo: “Onde está o espírito do Senhor, aí está a liberdade”.
            Estas são algumas dentre as citações invocadas pelo Frei, que não se restringe à Bíblia para ratificar suas proposições político-sociais. a Patrística, igualmente - sobretudo Santo Agostinho e Beda, o Venerável - assim como a História da Igreja são invocadas em apoio de suas teses, como vimos mais extensamente nos comentários aos dois Sermões.

            A tal ponto o referencial da fé se imiscui no tecido da doutrina caneciana, me parece, que se pode falar, com Souza Montenegro,  em esboços de uma Teologia Política. E, com Emília Viotti da Costa, concluir com a existência de um processo de elaboração de um Iluminismo cristianizado; ou, - o que vem a dar quase no mesmo - de uma leitura cristã do Iluminismo.
            O caráter profético intuído no Frei  se torna mais evidente, também, por sua preferência em citar os profetas bíblicos. O que quer dizer: Caneca encontrava  ressonâncias entre sua experiência e visões, e a deles.

Goiana, 19 de junho de 1998, Festa do Coração de Jesus.
              

REFERÊNCIAS  BIBLIOGRÁFICAS
CANECA, Frei Joaquim do Amor Divino. Obras Políticas e Literárias. (org. Antônio Joaquim de Mello, Recife, 1875). Recife, Assembléia Legislativa, 1979.

CARVALHO, Gilberto Vilar de. A Liderança do Clero nas Revoluções Republicanas (1817 a 1824). Petrópolis, VOZES, 1980.

COSTA, Francisco Pereira da. Anais Pernambucanos: vol. VIII. Recife, Arquivo Público Estadual, 1962.

CRB (Conferência dos Religiosos do Brasil). A Leitura Profética da História (Col. “Tua Palavra é Vida” no 3. São Paulo, Publicações CRB/Loyola, 1992.

FIGUEIRÔA DE MEDEIROS, Frei Tito. “Frei Caneca e o Iluminismo”, In Mensageiro da Família Carmelitana. Rio de Janeiro, set/out/ 1989, Ano III, no  18, pp. 8-12.
________________________________. Concepção do Direito Natural em Frei Caneca e Construção do Direito Natural em Max Weber: distanciamentos e aproximações. Rio de Janeiro, UFRJ/Museu Nacional, 1990 (mímeo).

FURET, François e OZOUF, Mona. Artigos: “Iluminismo”, “Montesquieu”, Rousseau”e “Voltaire”, In Dicionário Crítico da Revolução Francesa. Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1989.

LUNA,  Frei Lino do Monte Carmelo. Memória Histórica e Biográfica do Clero Pernambucano (escrita em 1857). Recife, Ed. do Governo do Estado de Pernambuco, 1976    

MACKENZIE, John L. Verbetes “Profeta” “Profecia” In Dicionário Bíblico. São Paulo, Paulinas, 1983.

MANZOTTI, Frei Reginaldo. O Conceito de soberania Popular na práxis revolucionária de Frei Caneca. Curitiba, I.V.C. (Monografia de conclusão do Curso Filosófico. Mímeo), 1992.

MAX WEBER  (H.H. GERTH e C. WRIGHT MILLS org.). Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro, Guanabara, 1982.

MONTENEGRO, João Alfredo de Souza. O Liberalismo Radical de Frei Caneca. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1978.

PEREA, Frei Romeu. (org.) Ensaios Universitários sobre Frei Joaquim do Amor Divino (Caneca). Recife, Editora da UFPE, 1975.

PUFFENDORF, Samuel, Barão de. Le Droit de la Nature et des Gens, ou: Systeme General des Principes les plus importants de la Morale, de la Jurisprudence, et de la Politique. Basiléia/Suíça, E. & J.R. Thourneissen Frères, 1732.


[1] Recolhi este ponto de vista da historiadora citada numa conferência apresentada num Congresso Internacional sobre A REVOLUÇÃO FRANCESA E O BRASIL - IMAGENS E REPERCUSSÕES, realizado no Rio de Janeiro, em julho de 1989.
[2] Cf. por ex. o Dicionário Bíblico de MACKENZIE (cf. Ref. Bibliográficas), pp. 742-747.
[3] Cf. MONTENEGRO nas Ref. Bibliográficas.
[4] Cf. CRB nas Ref. Bibliográficas: pp. 17ss.
[5]  Isto ele mesmo declara em sua IX Carta de Pítia a Damão (cf. Bibliografia, em CANECA, 1979, P. 389).
[6] Cf. na Bibliorafia MANZOTTI, Frei Reginaldo, O.Carm., 1992, p.02.
[7]  Mais adiante, darei referência mais completa sobre esta e as demais obras do Frei.
[8]  Cf. Bibliografia: CARVALHO, 1980.
[9] Cf. na Bibliografia, COSTA, Pereira da, 1962, pp. 143-145.
[10] CANECA: Obras Políticas e Literárias, pp. 235ss. (Cf. Biliografia no final). Decidi escrever os textos de Caneca na grafia portuguesa atual, para maior clareza.
[11]   Cf. em Obras, pp. 225ss.
[12]   Do Tratado 102 sobre João: Obras, p. 227.
[13]  Obras, p. 228.
[14]  Obras, p. 228.
[15] Obras, p. 230.
[16] Weber explica este  tipo de ascetismo, por ele chamado também de “ascetismo voltado para o mundo” em diversos textos seus. Os consultados nesta ocasião: “As Seitas Protestantes e o Espírito do Capitalismo” e “”Rejeições Religiosas do Mundo e suas Direções”. Cf na Bibliografia  MAX  WEBER,  pp. 347ss. e 371ss.
[17] consta historicamente que Frei Carlos de S. José confessou e deu a última comunhão a Frei Caneca, no dia de sua execução, em 13 de janeiro de 1825, e o assistiu até seu último momento. Em seguida, foi vsitar os pais do herói morto, quando ouviu então estes o acusarem de culpado da morte do filho, por não o ter impedido de seguir o caminho da atuação revolucionária.
[18]  Cf. Obras, p. 226, nota de rodapé.
[19]  Cf. mais adiante as condições que deveria ter a monarquia constitucional para Caneca.
[20]  Cf. Referências Bibliográficas.
[21]  Cf. Obras, pp. 53 ss.
[22]  Uma forma mais branda de chamar os negros, no Brasil, tanto naquela época, como hoje.
[23]  As quatro produções se encontram nas Obras. Perfazem um conjunto de 270 páginas, no meio das 617 que constituem a coletânea, precedida de uma biografia escrita pelo organizador, Antônio Joaquim de Mello, em 1869, a pedido do então governador (chamava-se então “Presidente”) da Província de Pernambuco.
[24] Cf. Obras, pp. 26-27, entre outras, onde se encontram a maioria destas afirmações.
[25] Cf. MONTENEGRO, nas Ref. Biliográficas.
[26] A tradução francesa desta obras, que vai citada na Bibliografia, encontrei-a na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, em edição suíça de 1732, sinal de que ela circulava no Brasil, no século XIX.
[27]  Cf. na bibliografia, FURET e OZOUF, 1989.
[28]  Cf. MONTENEGRO, pp.
[29]  Cf. Obras, p. 454.
[30]  Obras, p. 492.
[31]  Obras, p. 498.
[32] Obras, pp. 185ss e 586ss.
[33] Obras, p. 587
[34] Cf. Obras, p. 470