ASSEMBLEIA DE ESPIRITUALIDADE DOS CARMELITAS
- Província Carmelitana de Santo Elias-
Belo Horizonte- MG. Casa de Retiro São José. De 26 -30
de janeiro-2015.
Tema: 500 Anos de Santa Teresa de Jesus.
Pregador:
Professor Francisco Catão, São Paulo.
A pedagogia
de Santa Teresa de Jesus vista por um teólogo nos dias de hoje
Por
Professor Francisco Catão, São Paulo.
1ª
Parte: Premissa
Princípios
diretores
Ver Teresa de Jesus, a partir da
teologia de hoje, pode parecer estranho. Não seria mais correto, tanto do ponto
de vista teológico como histórico, partir do ensinamento de Teresa, Doutora da
Igreja, para aprendermos com ela como proceder nos caminhos da oração, traçados
com tanta precisão no relato de suas experiências (Vida), nos escritos que deixou para suas filhas (Caminho de perfeição, Moradas) e
na abundante correspondência trocada com ilustres contemporâneos?
Relatos e escritos, aliás, rigorosamente
fiéis à doutrina da Igreja e, ao mesmo tempo, tão ricos de observações
psicológicas, que encantam ainda hoje a grande maioria dos psicanalistas, quer
freudianos (Julia Kristeva, Thérese mon
amour. Paris, Fayard, 2010), quer junguianos (Léon Bonaventure, Psicologia e vida mística. Petrópolis:
Vozes, 1996²)!
Mas é justamente a preocupação de melhor
conhecer Teresa, que nos leva a colocar seu ensinamento no contexto da Tradição
espiritual cristã, como deve fazer sempre o teólogo. Assim como o pensamento de
todo autor só se revela, de fato, quando situado no contexto histórico-cultural
em que viveu, a teologia cristã só se elabora corretamente, tendo presente a
fé, que, por sua vez nos é transmitida pelos profetas e pelos santos, trazendo
sempre, por isso, as marcas das exigências espirituais e da cultura de sua
época. É o que denominamos “a historicidade da fé”.
O trabalho teológico do Vaticano II foi
todo feito à luz de um princípio fundamental, necessário para explicar ao mesmo
tempo, a continuidade da fé cristã pregada pelos Apóstolos e formulada nos
símbolos da fé desde as origens do cristianismo e a evolução da doutrina
cristã, sempre renovada no tempo, nesses dois mil anos, e na grande diversidade
cultural do mundo hoje globalizado.
Na época do Concílio o Pe. Congar
repetia sempre: estamos vivendo em um tempo de mudança e muitas vezes nos falta
uma Teologia da Mudança.
Coube a João XXIII formular lhe o
princípio, no importante discurso de abertura do Vaticano II. Reinterpretando a
famosa sentença do Commonitorium de Vicente de Lérins (†445) num sentido, porém,
complementar ao do Vaticano I (Dz 3026), mas teologicamente justificado (como o
demonstrara Congar no seu estudo de 1954, Vraie
et fausse reforme dans l’Église, sublinhar a continuidade do “depósito” ou
“substância” da fé através da contínua mudança
de suas expressões, de acordo com a evolução dos tempos e a dversidade das
culturas.
Eis
famosa a passagem de Vicente de Lérins:
Crescat igiur et multum vehementerque
proficiat, tan singulorum quam omnium, tan unius hominis quam totius
Ecclesiae, aetatum ac saeculorum gradibus, intelligentia, scientia,
sapientia: sed in suo dumtaxat genere, in eodem scilicet dogmate, eode sensu eademque
sententia
|
“Cresça, pois o conhecimento, tanto em
cada indivíduo como de todos os homens, tanto pessoal quanto de toda a
Igreja, através dos anos e dos séculos, desde que se mantenha a mesma compreensão, o mesmo saber e a mesma sabedoria da doutrina, do sentido e da
linguagem empregada” (Commonitorium primum. 23, nº 3, citado em DZ 3026)
|
João XXIII, no discurso de abertura do
Vaticano II, Gaudet mater Ecclesia, distinguindo
o “depósito” ou “substância” da fé, de suas expressões, ao mesmo tempo em que
professava a permanência da substância, como todos os seus antecessores, acentuada,
apenas cem anos antes por Pio IX (†1878), sustentou a constante necessidade de
ajustar as expressões da fé aos tempos e às culturas. Dessa forma, não só
removia o principal obstáculo teológico à renovação do pensamento cristão, como
possibilitava o aggiornamento da
Igreja, principal objetivo do Concilio.
O Concílio, veremos mais tarde, esboçou
a elaboração da nova doutrina sobre a renovação da Igreja nos tempos atuais (Cf. Gaudium et spes, nº 62), doutrina que cresceu e
amadureceu nestes últimos cinquenta anos, através da obra reformadora de Paulo
VI e de João Paulo II, da agudeza teológica de Bento XVI e da orientação
pastoral de Francisco.
Visando analisar o ensinamento de
Teresa, em particular sua pedagogia de iniciação à vida espiritual, de grande
relevância para todos os cristãos que buscam a Deus nos dias atuais,
apoiamo-nos principalmente nesses dois documentos.
Essa Teologia
da Mudança, que distingue a substância da fé das suas expressões”, alimenta-se,
a seu modo, do velho principio filosófico de Jacques Maritain, “distinguir para
unir”, largamente estabelecido em Les
Degrés du Savoir. Distinguer pour unir. (passim)
Metodologia
de análise
Com esse objetivo, adotamos uma
metodologia de análise que comporta um alicerce, um pilar que lhe dá
continuidade no tempo e dois painéis, que o manifestam através das mutações da
História: No fundamento, Jesus Cristo. No pilar central, a Tradição da fé,
orientada para a Visão, na eternidade. Dos lados, um painel voltado para as
expressões passadas da Tradição e do outro, um segundo painel em que se projeta
o enriquecimento progressivo da Tradição ao longo dos anos.
O alicerce, sobre o qual se apoia todo o edifício é o encontro com Jesus, Palavra de Deus que é Deus e vem habitar entre
nós (cf. Jo,1,1-14) tal como o
experienciaram os Apóstolos, segundo os
relatos evangélicos e dos demais escritos apostólicos.
A experiência dos seguidores imediatos de
Jesus e das primeiras comunidades, que vieram a ser conhecidas como cristãs,
ainda no seio do judaísmo (cf. At 11,
26), é de ordem espiritual. Corresponde ao ensinamento de Teresa: relacionamento interpessoal de ns com os outros no seio
da comunidade presidido pela fidelidade à Palavra transmitida pelos Apóstolos.
Teresa, porém, descreve essa mesma
experiência, denomnmada mística ou “sobrenatural”, em termos de encontro com
Jesus e vivência interpessoal com Deus, segundo a imagem bíblica corrente na
tradição medieval das núpcias espirituais,
que remonta a Bernardo de Claraval (1091-1153). Esquematicamente, tem como
fundamento a íntima união com Deus baseada no encontro com Jesus e construída em torno do pilar central da busca de Deus em nossa vida, cujo ápice Teresa qualifica
matrimônio espiritual e está claramente expressa nas palavras de Jesus.
Experiência que foi diferentemente
expressa através dos tempos, desde a dedicação das comunidades primitivas,
descritas por Lucas e a que se referem os primeiros “filósofos” cristãos, como Orígenes (±185-±254), por exemplo.
Experiência vivida nos movimentos
surgidos no século IV, dos Pais do deserto, revivida no monaquismo, em suas
formas ocidentais, institucionalizadas por Bento de Nursia (±480-±547), através
dos votos, orginalmente de estabilidade obediência e conversação dos costumes,
e difundida no Ocidente por Gregório Magno (±540-604).
No decorrer da Idade Média, com a
crescente atenção aos aspectos estruturais da religião cristã, elaborou-se uma
teologia dos estados de vida na Igreja. Passa-se então a encarar o monaquismo
menos como uma filosofia de vida,
centrada na tradição e na experiência, do que como vida religiosa, baseada na
instituição e chamada a desempenhar um papel específico no cumprimento da
missão apostólica de dar testemunho do Evangelho no seio da cristandade,
primeiro, pela vida, quer do culto público, quer da misericórdia, e pela
palavra, da pregação e do ensino. A vida religiosa, entendida como estado de
perfeição, tem por objetivo final, manifestar, dentro de um determinado
contexto histórico, a perfeição da caridade. Teresa vai traçar seu Caminho de perfeição baseada nessa
teologia, mas voltando à perspectiva do monaquismo primitivo, dada à percepção
que tinha das necessidades da Igreja de seu tempo!
O estado de perfeição se funda no
empenho de toda a vida – totalidade e radicalidade – a serviço do Reino. É
constituído pelos bispos, que se consagram inteiramente ao serviço da Igreja, e
pelos religiosos, que se consagram ao Senhor, na Igreja, pelos votos públicos
de pobreza, virgindade e obediência. Na disciplina latina atual, também só são
ordenados presbíteros os cristãos que se consagram ao serviço da Igreja pelo
celibato, a que se comprometem na ordenação diaconal.
Aos poucos, porém, as exigências dos
estados de perfeição se difundem na Igreja, seja na esfera do ministério, como
se observa no caso do celibato sacerdotal, seja no surgimento das congregações
e associações, regulares ou seculares, em graus variados, num conjunto
canonicamente heterogêneo, sob a designação de vida consagrada.
No tempo de Teresa, a grande novidade era
a articulação entre as observâncias vinculadas à oração e ao afastamento do
século e o testemunho e empenho apostólicos. Novidade introduzida pela
Companhia de Jesus, com seu voto de especial obediência ao Papa, que vai
estender a vida consagrada a todas as formas de “apostolado” e vinculá-la mais
estreitamente ao minstério hierárquico. Dedicada, por isso, a todos os gêneros
de apostolado, desde o “apostolado da oração” até o mais secularizado
“apostolado da inserção” nos mais diferentes “meios” sociais, tanto da educação
como das camadas mais carentes da sociedade.
Esse pilar central, na obra de Teresa
como escritora, reformadora e fundadora, desdobra-se em dois painéis laterais: o primeiro painel, olhando para o
passado, traz a marca indelével da tradição carmelita, inserida na tradição
monástica.
Teresa viveu quarenta anos num mosteiro
em que prevalecia a tradição monástica institucionalizada nos votos solenes de
observância dos conselhos evangélicos de pobreza, virgindade e obediência.
Sobre eles, se estruturava uma vida religiosa, considerada institucionalmente
estado de perfeição, na qual, porém, corria-se o risco de se faltar de
dinamismo, do frescor do Espirito. Disciplinavam-se os corpos, regulavam-se,
sem maior rigor, ao modo da lei, as relações interpessoais, mas não se falava
ao coração, deixando, em geral, as pessoas presas às suas idiossincrasias nem
sempre santas, quando não contribuía para aquela espécie de monges que são
Bento apelidava de sarabaítas,
“porque, pelo seu modo de viver se conservam fieis ao século e mentem a Deus
pela tonsura” (Regra, c. 1º).
Teresa não o suportou. Influenciada pela
tradição mística dos alumbrados,
cujas raízes se inserem da Tradição da mística renana (Ekhart, Kempis etc.),
entra pessoalmente em choque com o modo de viver do Mosteiro da Encarnação,
onde havia professado. Sua saúde espiritual, a intimidade com Jesus a que todas
as irmãs, tendendo a perfeição, deviam visar, requeria um engajamento mais
pessoal e concreto.
Fosse varão, iria lutar pela Igreja,
ameaçada em diversas frentes, a exemplo de seus irmãos, que partiram para as
Américas. Sendo mulher confinada, na época, ao ambiente doméstico, sem ceder a
uma eventual vocação feminista, o que seria um anacronismo, tudo que lhe
restava fazer, parecia-lhe, seria seguir outro caminho. visar pessoalmente à
perfeição da caridade, como os primeiros eremitas do Carmelo, pela prática dos
votos, de forma efetiva, radical e total.
Dadas as circunstâncias de viver numa
sociedade em que se valorizava antes de tudo a honra, pensou num mosteiro em
que se favorecesse o contato pessoal entre as irmãs, umas com as outras, na
prática efetiva de uma caridade heroica, na pobreza e no despojamento de tudo,
inclusive de si mesmo, pela total dedicação de umas às outras. Que antes de
tudo as irmãs se amem umas às outas “até o fim”, a exemplo de Jesus (Jo 13,1).
Eis o verdadeiro caminho para o encontro com Ele!
Jesus vem a nós no outro. O “mistério”
da vida cristã é a vinda de Deus a nós, na intimidade do coração, vivida no
encontro com Jesus, realizado:
efetivamente, na relação
interpessoal de uns com os outros; sacramentalmente
na Eucaristia e
misticamente na união
esponsal com o Pai e o Filho no Espírito, que nos é dada no mais íntimo de nós
mesmos, na oração.
Com base nesse conteúdo da fé, elaborado
pela teologia de seu tempo, Teresa firmou o fundamento do que hoje conhecemos sob o nome de vida
contemplativa, que está na base de toda vida consagrada segundo a doutrina que
se começou a elaborar no Concílio (Decreto Perfectae
caritatis), aperfeiçoou-se no Sínodo sobre o tema (Exortação Vita consecrata, 1996) e prevalece nos
dias de hoje na Carta Apostólica às
pessoas consagradas, para a celebração em curso, do Ano da Vida Consagrada
(2014 – 2015). Do ponto de vista de teologia da vida religiosa, Teresa é a
grande doutora da Igreja, Mãe dos
espirituais, tal como a classificou Paulo VI, quando lhe reconheceu o
título (1970), conferindo-o pela primeira vez a uma mulher.
O outro painel lateral é o futuro da tradição carmelita. É preciso levar em
conta como Teresa ecoou na história nesses últimos 500 anos, para esboçar as
direções em que se vai desenvolver a tradição carmelita. A tarefa nos
ultrapassa. Procuraremos, no decurso de nossas reflexões, nunca perder de vista
a necessidade de sintonizar todo e qualquer eventual enriquecimento da
tradição, com a renovação da Igreja, tal como está em progresso nesses últimos 50 anos.
Trata-se de um dado fundamental para
responder ao que os cristãos e, de certo modo todos os homens e mulheres que
aspiram pela Verdade, pela Justiça e pela Paz e esperam da Igreja e do Carmelo:
que nos empenhemos, de coração, a começar pela família e por nossas relações
pessoais, em nos amarmos uns aos outros,
encontrando assim Deus em nossa
vida, para clamar até as periferias da terra, o que disse Jesus aos discípulos
de João que o procuraram logo no início de seu ministério: “venham e vejam” (cf. Jo 1,39).
Desenvolvimento
Dentro dos limites impostos pela vida
que levamos, tocados pela vocação monástica na juventude e secularizados depois
de um quarto de século, mas tendo mantido, por graça de Deus, até hoje,
interiormente, o empenho na busca de Deus, faremos o possível para ecoar com a
maior precisão que me é possível, as palavras de Teresa junto a seus filhos.
Ela mesma, ao abordar o discurso sobre o
caminho das virtudes para alcançar a perfeição da oração, desculpa-se, de
maneira meio canhestra, de falar das virtudes de que não tem sequer o
princípio:
Pediram-me
que lhes explicasse o princípio da oração: eu, filhas, embora não tenha sido
levada por Deus por este princípio, o dessas virtudes, não sei outro (Caminho 16,1).
Como aprendizes da última hora, não nos
foi possível nem mesmo abarcar todos os escritos de Tereza. Ajudados pela
experiência em campos conexos da Teologia Sistemática e Espiritual, tivemos que
optar pela análise de alguns capítulos iniciais do Caminho de Perfeição, em que Teresa expõe o caminho que conhece
para chegar à perfeição da oração. Esperamos haver conseguido apontar algumas
das principais características de sua pedagogia, enraizada na primitiva
tradição carmelita e que nos permitirá, quem sabe, descobrir a direção a seguir
em face dos desafios do tempo presente, para que o Espírito do Carmelo não
falte ao insistente apelo pela renovação da Igreja em nossos dias.
Assim, depois de lembrar o tempo de Deus
que somos chamados a viver nesse ano de graça (01), abramos o Caminho de Teresa (02), situando-o no
amplo contexto da tradição monástica historicamente histórica e espiritualmente
falando (03). Compreenderemos então o eixo central da tradição teresiana: a
caridade fraterna (04) e o caminho das virtudes (05), voltando-nos, enfim, para
o presente e encarando o futuro (06), para concluir.