ASSEMBLEIA DE ESPIRITUALIDADE DOS CARMELITAS
- Província Carmelitana de Santo Elias-
Belo Horizonte- MG. Casa de Retiro São José. De 26
-30 de janeiro-2015.
Tema: 500 Anos de Santa Teresa de Jesus.
Pregador:
Professor Francisco Catão, São Paulo.
A
pedagogia de Santa Teresa de Jesus vista por um teólogo nos dias de hoje
Por
Professor Francisco Catão, São Paulo.
2ª
Parte Introdução: 2015, Ano da Graça.
Celebramos este ano, na Igreja, dois
marcos históricos: os 50 anos do encerramento do Vaticano II e os 500 anos do
nascimento de Teresa de Jesus. Além
disso, o papa Francisco nos convocou para a celebração de um ano dedicado à
vida consagrada. Parece-nos impossível falar de Teresa sem nos perguntar que
significam esses fatos, para os “eremitas” do Monte Carmelo?
Reforma
carmelita e renovação da Igreja
Nas primeiras décadas do século XIII,
alguns eremitas, que viviam junto à fonte do Monte Carmelo, pediram a Alberto,
então Patriarca da Jerusalém, que lhes propusesse uma “fórmula” pela qual
regulassem seu modo de viver, que ainda hoje figura, sob a denominação de REGRA
no início das Constituições da ordem dos
irmãos da Bem-aventurada virgem Maria do Monte Carmelo (Lisboa, 1996).
Qualquer história, por resumida que
seja, da Tradição carmelita de oito séculos, deixa transparecer a grande
diversidade de regras, ordenamentos, doutrinas e teologias, ramos e famílias
que até hoje se inserem nessa Tradição,
Dentre todas as reformas, porém, a mais
importante foi, sem dúvida, a de santa Teresa de Jesus, reconhecida doutora
da Igreja, na expressão de Paulo VI, Mater spiritualium. Eis porque lhe
consagramos de maneira especial este ano, celebrando o quingentésimo
aniversário de seu nascimento.
Celebramos também, num ano dedicado pelo
papa Francisco à vida consagrada, os cinquenta anos do Vaticano II, que anima
até hoje, na linguagem de seu promotor, João XXIII, o aggiornamento da Igreja, e que alcança, com o Papa Francisco, as
áreas mais profundas da espiritualidade, jamais reformulada de maneira tão
radical, por nenhum dos vinte concílios ecumênicos anteriores.
Chama atenção o paralelismo que se
observa entre a reforma carmelita do século XVI e a renovação de Igreja no
ocaso de segundo milênio: ambas têm como foco, em última análise, a promoção da
santidade da vida espiritual, em sua perene atualidade.
A santidade é o coração da Igreja.
Ilumina-a Cristo, luz dos povos – Lumen Gentium. Por isso, a Igreja é o
sacramento da união com Deus e de toda a humanidade. A vida da Igreja é, pois,
a santidade no Espírito, e sua missão, comunicá-la a todos, participando da alegria
e esperança, das tristezas e das angústias – Gaudium et spes, luctus et angor – de todos os homens e mulheres.
Para Teresa também, no centro da vida
religiosa está a santidade da vida de intimidade com Jesus – Deus me basta. A
união no Espírito com o Cristo que vem a nós na oração – a amizade com Deus no
Espírito, que faz habitar a Trindade no mais íntimo de nosso coração (leb), no
sentido bíblico do termo.
O Espírito torna a alma a morada
luminosa do Castelo e dá sentido à vida.
Confere valor e sentido definitivos a todas as práticas herdadas do
monaquismo original e até hoje conservadas, nem sempre, é verdade, com o mesmo
empenho e vigor, pelas mais variadas formas de vida consagrada.
A
vida religiosa no mais íntimo da Igreja
Há 50 anos do encerramento do Vaticano
II, aparecem com maior nitidez suas linhas mestras. Como dizia João XXIII, no
profético discurso de abertura do Concílio, a história, conduzida pelo
Espírito, nos ajuda a entender melhor os desígnios de Deus. Vaticano II,
visando à renovação da Igreja, nos propõe um consistente tripé de sustentação,
em que a fé é vivida através da história: o primado da Palavra de Deus, a
natureza espiritual da Igreja e a universalidade da salvação. Três
referenciais, cujo alcance entendemos melhor hoje, passados cinquenta anos.
Antes de ser assim, uma organização
hierarquizada, a Igreja, na sua vida e na sua missão, é um povo reunido pelo
laço da fé, da esperança e do amor, vínculo espiritual, pessoal e livre de cada
um de nós com o Pai e o Filho, na unidade do Espírito, segundo a expressão de
Cipriano de Cartago, citada na Lumen
Gentium (LG 4).
Sabemos que não foi fácil chegar a essa
posição, de colocar o capítulo segundo, sobre o povo de Deus, antes do capítulo
sobre a hierarquia. Mas constituiu um passo decisivo, um movimento
indiscutivelmente provocado pelo Espírito.
Definido o primado da realidade
espiritual da Igreja, tudo, em nossa vida cristã, muda de sentido e reclama uma
renovação profunda, segundo o Espírito. Passa a ter como princípio e fonte a Palavra
de Deus, Jesus Cristo, Verbo encarnado, que vem ao nosso encontro no fundo do
coração, comunicando seu Espírito ao nosso espírito.
A Igreja são todos aqueles que, animados
pelo Espírito e chamados a ser “evangelizadores com Espírito” (cf. EG, c. V), estão presentes no mundo,
embora nem sempre reconhecidos como cristãos: é o primado do espiritual na
vida, no ministério, nos sacramentos, na
pastoral. A Igreja existe no mundo e na História, graças ao alcance universal
da ação salvadora e santificadora de Jesus, que nos comunica seu Espírito e a
envia a todo o mundo, cujas fronteiras, portanto, estendem-se até às periferias
aparentemente mais distantes.
Cada uma das realidades da Igreja, das
mais visíveis, como o ministério pastoral, às mais interiores, como a vida
consagrada, é chamada a obedecer a essa mesma estrutura, que é o DNA da Igreja:
o primado do Espírito.
Ora, foi precisamente o que Teresa
percebeu com clareza, haurindo a tradição em que se situavam os primeiros
carmelitas, e reformulando-a de maneira adequada à sua época, de revoluções e
de extremismos.
Teresa sobrepõe a vida pessoal de união
com Deus não só às exigências e comodidades de seu tempo, mas até mesmo às
práticas habituais da vida claustral então adotada, e convoca, mulheres e homens
consagrados, a fazer do recolhimento em Deus o foco inspirador e animador de
toda a vida.
Dessa forma, o que há de mais profundo
na vida da Igreja, e a define como Igreja, é, para Teresa, o que há de mais
precioso na vida consagrada e, em particular carmelita: viver de Deus, por Deus
e para Deus.
Redescobrir
o caminho
Convidado a assessorar a assembleia
anual da Província Santo Elias, me foi pedido que apreciasse os escritos de
Teresa, na ótica da reflexão teológica atualizada e evidenciada pelo Espírito,
com a eleição do Papa Francisco.
Não posso ter a pretensão de trazer nada
de novo a quem conhece e vive a tradição carmelita. Como alguém, porém, que se
inspira há mais de setenta anos na tradição monástica, passou pelos bancos de
teologia e testemunhou muito de perto os esforços de renovação feitos pela
Igreja durante o Concílio, creio poder comunicar o entusiasmo de um
neo-convertido ao ensinamento de Teresa.
Nessas circunstâncias, na leitura de
seus escritos chama atenção antes de tudo sua pedagogia.
Admira sua história, situada no contexto
de seu tempo e vista através das narrativas de sua vida e de sua atividade de
reformadora.
Causam vertigem suas experiências
místicas, descritas com tal precisão, que surpreendem os psicólogos de toda
orientação, inclusive positiva e psicanalítica.
Mas o que chama atenção, antes de tudo,
para quem a procura abordar com olhar de noviço, para lhe descobrir o segredo
do sucesso de Mater spiritualium, que
presidiu seu reconhecimento como Doutora da Igreja, é o caminho que nos propõe
para o encontro com Deus no íntimo do coração.
Descreve-o cuidadosamente nas Moradas, cujo ensinamento, porém,
pressupõe o itinerário prático por ela traçado no Caminho de Perfeição, legado às suas filhas desejosas de ter acesso
a seus escritos sobre a oração, mas entregues aos “letrados” e cuja publicação
só foi, de fato autorizada depois de sua morte.
Nos dias de hoje, chamados a viver
intensamente a renovação da Igreja e da vida religiosa, a abordagem, que me
sinto capaz de fazer, parece corresponder, além disso, a uma flagrante
necessidade em nosso meio, sequioso de encontrar o caminho do Espírito.
O
legado conciliar nos indica o caminho.
Antes de entrar, porém, na análise do Caminho de Teresa, convém tomarmos
consciência de que vai na direção que nos indicou o Concílio, interpretado pela
forma com que vem sendo recebido na Igreja nestes 50 anos
O Vaticano II tratou dos religiosos. A
Constituição sobre a Igreja os colocou estrategicamente entre a vocação
universal à santidade (cf. LG, c. V)
e a perspectiva escatológica em que são chamados a viver os cristãos (ib. c. VII), dando relevo à prática dos
conselhos evangélicos, objetos dos votos, e reconhecendo o lugar especial que
ocupam na Igreja (ib. c. VI).
Dentro do mesmo quadro doutrinal,
colocando em primeiro lugar a prática
evangélica dos conselhos, o Decreto, Perfectae
caritatis, promulgado nos últimos dias do Concílio, estabeleceu algumas
diretivas sobre a renovação da vida religiosa. Uma grande onda de revisão dos
estatutos de cada uma das ordens, congregações e institutos de vida consagrada
estendeu-se por décadas.
Trinta anos depois (1994), João Paulo II
convocou a IX Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos para tratar da
vida religiosa e fazer uma espécie de balanço sobre o lugar que é chamada a
ocupar na vida e na missão da Igreja.
Na “Exortação Apostólica sobre a vida
consagrada”, Vita consecrata
(25.03.1996), duas observações se impõem: a afirmação enfática da origem
monástica de toda a vida religiosa e nela, a primazia da vida de união com
Deus, que somente dá sentido tanto à prática dos conselhos como à consagração
da vida pelos votos (cf. VC, 6).
Depois, à luz desse critério, indica
como solução para as dificuldades que hoje enfrentam todas as formas de vida
consagrada, sua justificação a partir da total gratuidade do dom de si mesmo a
Deus, muito além de qualquer utilidade que possa ter para a Igreja ou para a
sociedade (cf. VC, 104).
Propõe
assim a universalização do critério de buscar antes de tudo a Deus,
indicado na regra monástica de são Bento (cf.
c. 58), por exemplo, como critério de toda vocação autêntica à vida
religiosa de um modo geral.
Em continuidade com a Exortação
Apostólica de 1996, o Papa Francisco acaba de promulgar o Ano da Vida
Consagrada, cuja abertura, no primeiro domingo do Advento deste ano, foi
celebrada com uma importante “carta às pessoas consagradas”, em que destaca dois aspectos, que são
características da tradição carmelita, tal qual a interpreta Teresa:
A centralidade de Deus, confessada na
base de toda vida cristã e consagrada, entendida a partir de Jesus, da
humanidade crucificada do Verbo Encarnado, como se exprimia Teresa, e
sustentada pelo encontro pessoal com Jesus, que com o Pai e o Filho “moram” no
mais íntimo do coração.
Para renovar o presente e olhar para futuro,
Francisco acentua a necessidade de voltar ao passado e recobrar a atitude de
encontro com Jesus que somente explica a vida e a missão dos apóstolos.
Em consequência, a Carta é dirigida a
cada uma das pessoas consagradas, onde quer que estejam, posicionamento que
corresponde às primeiras palavras da fórmula de vida de Alberto, proposta aos
eremitas do Monte Carmelo:
Muitas
vezes e de muitos modos os Santos Padres estabeleceram como cada um – qualquer
que seja o estado de vida a que pertença ou a forma de vida religiosa que tiver
escolhido – deve viver em obséquio de Jesus Cristo e servi-lo fielmente com
coração puro e reta consciência.
Nessa direção, tão cara à tradição
carmelita, explica-se o Caminho de
Teresa. Mais do que a institucionalização de uma forma reformada de vida
carmelita, o Caminho é uma pedagogia
da intimidade com Deus a que são chamados todos os cristãos e que deve ser a
principal característica da vida consagrada.
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