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domingo, 17 de junho de 2012

Profetas de fraternidade: num mundo dividido e injusto.

Frei Bruno Secondin O.Carm.

            1. Vamos partir de uma página da Bíblia: 1Rs 17,17-24. Trata-se de um momento difícil para Elias, quando morre o menino da viúva de Sarepta. Nesta cena podemos ver realizar-se uma profunda conversão de Elias: através da provocação desta morte e das exprobrações da viúva, Elias deve aprender a enfrentar o insucesso, a solidarizar-se com os pobres, a mostrar um novo rosto de Deus: será o rosto da compaixão e da solidariedade, e é isto que convencerá a mulher de que Elias é profeta de Deus.
            Nestes anos tem acontecido forte recuperação da dimensão profética da Vida Consagrada: passando de uma concepção de "profecia" num sentido muito espiritual - o profeta como homem de Deus, orante, solitário, sofredor - para uma concepção de profecia mais comprometida com os sofrimentos da História, como testemunho de esperança e de uma outra história, a história da justiça, da libertação, da esperança.

            2. A Exortação do Papa deu grande relevo à categoria da profecia e à missão profética da Vida Consagrada. Vinte e oito vezes se encontra este vocábulo, mas sobretudo dois parágrafos inteiros são explicitamente dedicados a ilustrar a natureza profética da Vida Consagrada e à importância desta caraterística para o mundo atual (VC 84-85). Já por este fato material se vê que realmente havia a intenção de dar importância a este aspecto. Importância ainda maior ressalta, adiante, da união da profecia com o martírio (VC 86), da profecia com a libertação (VC 57b), da profecia com o tema dos desafios históricos (VC 88-92), da profecia com "um mundo dividido e injusto" (VC 51).
            Não nos podemos deter a analisar todos os textos sobre o profetismo - cf. o capítulo específico no meu O Perfume de Betânia (Loyola 1997) - porém é do meu agrado salientar e fazer observar que o Profeta Elias é evocado como exemplo clássico do profetismo da Vida Consagrada. E a descrição do Profeta não se faz somente de acordo com os temas da tradição antiga, mas também segundo as novas leituras sobre o empenho de Elias em favor da justiça e dos direitos dos pobres. Esta alusão do Papa nos dá coragem para caminharmos mais além, isto é, a termos presentes todas as grandes figuras "proféticas" da História e também da nossa história. E ainda nos encoraja a unirmos - como, de resto, se faz na América Latina - profecia e martírio, profecia e movimento feminino (cf. VC 57b), profecia e cultura (VC 80a), profecia e fraternidade (VC 85a), profecia e contestação intra-eclesial (VC 84b e 85b), etc.
            Para mim é muito inspirador ligar o tema da profecia com o conteúdo do parágrafo VC 51: "A fraternidade num mundo dividido e injusto". Nesta página não se encontra o vocábulo "profecia", mas o sentido geral é mesmo o de profecia. Já o título é em si mesmo muito bonito e inspirativo, mas em seguida se fala também de "diálogo" sempre de novo reaberto, de função de caridade e diálogo em contextos de ódio étnico e loucuras homicidas; fala-se de lógica de vida e de alegria, de esperança e bem-aventuranças, como um dinamismo que impele ao amor de oblação. Fala-se de ídolos do nacionalismo e de globalização dos problemas, aos quais devemos responder com a fraternidade, a abertura, a criatividade, sem perder a própria identidade.

            3. Seguindo a Exortação e as suas linhas, queremos revelar uma orientação mais geral sobre a tipologia desta dimensão profética.
            Trata-se de uma qualidade teológica e não de um estilo puramente funcional. É uma participação em Cristo e na sua vida e testemunho: o seu foi um testemunho messiânico, profético, libertador. Tal participação é comum a todos os cristãos (VC 46), mas logo se diversifica conforme os carismas e os ministérios eclesiais, e deve tender a fazer da Igreja inteira uma comunidade autêntica e significativa. A substância deste "ministério profético é relembrar e servir ao plano de Deus a respeito dos homens" à luz das Escrituras; mas acrescenta o texto: "como emerge também da leitura atenta dos sinais da ação providente de Deus na História" (VC 73a).
            A escola da profecia consiste na escuta intensa da Palavra de Deus. Somente uma experiência profunda de Deus, um generoso seguimento de Cristo, uma abertura à voz do Espírito Santo, conjugados com a leitura e o discernimento dos sinais dos tempos, dos apelos de Deus através das situações históricas, podem conduzir a "agir de acordo com os seus planos com uma inserção ativa e fecunda nas vicissitudes do nosso tempo" (VC 73a). O profeta não é alguém que só vê as coisas de Deus, tornando-se estranho à História, mas, por Ele seduzido e condicionado como Jeremias, vê Deus ativo e presente no meio da História, como juiz e guia (VC 19b), e se põe ao serviço da sua verdade com franqueza e liberdade (VC 85a). O próprio radicalismo no seguimento de Cristo é fundamental para uma autêntica profecia (VC 84a).
            O texto traz duas imagens significativas, que podemos recuperar, a fim de compreendermos as duas faces da dimensão profética: "um subir ao alto da montanha" e "um descer da montanha" (VC 14c; cf.40b e 75c). Trata-se de entrar em profunda intimidade com Deus no alto do monte da sua glória por meio do seu Filho, e de descer para o vale a fim de "viver com Jesus as fadigas dos desígnios de Deus" (VC Ibid) e lutar contra todo indício de escravidão ao maligno (cf. Mt 17,20), "para libertar a História de tudo quanto a deturpa" (VC 75c) e recuperar a imagem de Deus deformada nos rostos desfigurados de tantos oprimidos (VC 75d).

            4. O estilo do profeta e da profecia passa pela proclamação verbal e pelos gestos de vida, pelo testemunho dos bens futuros (VC 23 e 59) e pela difusão da "mensagem de libertação (...), promovendo mentalidades e condutas conformes com as intenções do Senhor" (VC 57d). Silêncio e solidão, fraternidade e diaconia, antecipação e interpelação, denúncia e intercessão: muitas são as mediações para pôr em ação os deveres proféticos. Eles se desenvolvem tanto dentro da Igreja, intimando-a a uma generosa e criativa fidelidade, quanto na sociedade e dentro de uma cultura, tornando-se aguilhão e "fermento evangélico, capaz de purificá-la e fazê-la desenvolver-se" (VC 80a).
            Por isso o texto insiste em dar grande importância ao discernimento dos sinais dos tempos, conforme o carisma específico: trata-se de intuir os apelos de Deus e os desafios dos tempos, para elaborar "novas respostas aos novos problemas" (VC 73b). "Desta maneira a Vida Consagrada não se limitará a ler os sinais dos tempos, mas contribuirá também para elaborar e executar novos projetos de evangelização em vista das situações hodiernas" (VC 73d).
            Estreita é na verdade a ligação, que o Papa estabelece entre função profética e presença na História: ao lado da "profunda experiência de Deus", o profeta deve "tomar consciência dos desafios do seu tempo, recolhendo o seu sentido teológico profundo, mediante discernimento operado com a ajuda do Espírito Santo" (VC 73a). Aparece como coisa própria do profeta o encargo de discernir, a capacidade de saber "ler por dentro e através" das vicissitudes, das tragédias e dos anseios do povo, em vista de um plano de Deus, que germina dentro da História. Por isto o profeta deve ter um senso histórico realista, para que possa acolher os sinais de Deus, que vêm de baixo, ter intuição dos caminhos novos de esperança e liberdade, prevenir sucessos nefastos, fruto de decisões enganosas. É o profetismo da companhia, da solidariedade, da busca de sentido e de esperança.

            5. Nesta linha o texto aplica a perspectiva profética aos grandes valores fundamentais da Vida Consagrada: castidade, pobreza, obediência, fraternidade. E fala de grandes desafios e provocações, entrelaçados com as próprias provocações culturais da cultura hedonista, de um materialismo ávido de possuir e da exasperação da liberdade (cf. VC 87-91). Este modo de falar é em parte inovador, porque subtrai do enclausuramento no privado e no intimístico os grandes valores dos votos religiosos, para encorajar uma correlação deles "com os desafios de sempre, que pela sociedade dos nossos tempos se colocam de formas novas e, talvez, mais radicais" (VC 87a).
            Esta des-privatização da consagração segundo os conselhos parece-me uma das propostas mais originais e proféticas do texto todo e orienta rumo a um duplo efeito. Antes de tudo adverte que não se trata somente de rememorar valores evangélicos ou espirituais, mas também de reagir contra "os contravalores" ou desafios que brotam da cultura contemporânea, e põem em crise uma concepção auto-exaltatória e centralizada na vivência intimística dos três conselhos evangélicos. E, ainda, porque exige que os próprios modos de viver estes valores evangélicos se meçam, se estruturem e se confrontem com os desafios e sensibilidades culturais das pessoas do nosso tempo por meio de uma interpelação realmente eficaz.

            6. Parece-me que a missão profética, para a qual o Papa convocou os consagrados, não pode ser construída por baixo do vácuo, em conceitos abstratos e celestiais, mas "como um sinal e profecia para a comunidade dos irmãos e para o mundo" (VC 15c). É, além do mais, uma resposta generosa, feita de "discernimento e audácia, de diálogo e provocação evangélica" (VC 80b). Com outras palavras, "a fidelidade dinâmica e criativa" (cf. VC 37) torna-se profecia, testemunho, missão e, até mesmo, martírio heróico (VC 86) nestes nossos anos de 90. Parece-me que a situação real, que estamos vivendo, nos esteja pedindo novo método na profecia, para se oferecer aos homens o testemunho da "benignidade e humanidade do nosso Salvador, Jesus Cristo" (Tt 3,4). Uma profecia que saiba enfrentar...

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