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segunda-feira, 13 de outubro de 2014

800 ANOS DE SANTO ALBERTO: Frei Fernando Millán (3ª Parte)

UM OLHAR SOBRE A ITÁLIA: Chegando a Nápoles (1ª Parte)

A PALAVRA DO FREI PETRÔNIO, Nº 708. Frei Bruno Secondin.

O carmelita na América Latina.

*Dom Frei Vital Wilderink, O. Carm. In Memoriam.

A nova Ratio da Ordem que trata da formação no Carmelo descrevendo-a como um processo de transformação, coloca a contemplação no coração do carisma carmelitano. É precisamente o segredo da viagem que continua, pois ninguém se põe em caminho se o objetivo final da caminhada não estivesse de alguma maneira presente desde os primeiros passos.
A viagem é feita dentro da história em que nos encontramos inseridos, no meio do povo. A própria viagem toma-se missão. A dificuldade que muitos sentem é como ligar este cerne do carisma que é a contemplação ou experiência de Deus com os desafios dessa história, no nosso caso, com a realidade da América Latina. Continua persistente, também entre nós, um certo dualismo. Mesmo fazendo uma leitura sócio-pastoral da Igreja tropeçamos em fenômenos que fazem perceber a dificuldade de ligar fé e vida, revelação e experiência humana, Esta dificuldade provém em grande parte da imagem de Deus que não passa pelo filtro do nosso tempo. É preciso reconhecer que muita coisa de positivo foi feito para desfazer essa mentalidade dualista, principalmente através da pastoral bíblica (círculos bíblicos), pela teologia de libertação, na prática das comunidades de base, para mostrar que não se pode separar a revelação de Deus da caminhada do povo. O povo de Israel descobriu a presença de Deus na libertação da escravidão do Egito. E os profetas sempre insistem nessa manifestação de Yahweh quando o povo se torna infiel a essa aliança estabelecida com Ele.
"Como nós carmelitas deveríamos situar-nos frente à realidade que nos envolve na América Latina?" Faço minha esta pergunta feita na carta de quem me convidou para participar deste encontro. A resposta pode parecer simplista ou até um círculo vicioso: fazer com que a questão de Deus permaneça central na nossa existência. Não se trata em primeiro lugar da questão sobre um Ser supremo. A questão de Deus está ligada à questão da realidade. Se a questão de Deus deixa de ser central, ela será substituída pela problemática que nos envolve. A questão que se coloca é do sentido da vida, do destino da terra, da necessidade ou não de um fundamento. Perguntamos simplesmente qual é para cada um de nós a última questão, ou por que esta questão não é colocada. Mas para poder admitir a questão e refletir sobre ela, há necessidade de um silêncio interior, ou como diz a Regra de uma pureza de coração. Sem esse preliminar nem se percebe de que se trata. Já na Idade Média falava-se da necessidade do olho da fé É o órgão da
faculdade que nos dá acesso a uma dimensão que transcende, sem negar o que captam o olho dos sentidos e o olho da inteligência.
O discurso sobre Deus é radicalmente diferente de outros discursos, pois Deus não é um objeto. Do contrário ele seria um ídolo. Nenhum instrumento pode localizar Deus, nem a teologia acadêmica. Pode haver especialistas em teologia ou mesmo, em espiritualidade e mística. Não há, porém, cursos de especialização em Deus. A única mediação somos nós mesmos. Santo Tomás já dizia: "A criatura é a mediação entre Deus e o nada". Jamais podemos colocar Deus do nosso lado contra os outros. Talvez um texto de São Bernardo possa ilustrar o que acabamos de afirmar. Num sermão sobre o Cântico dos Cânticos ele confessa que recebeu com certa freqüência a visita do Verbo, mas que não soube explicar como Ele entrou. Por onde entrou? Ou será que Ele não entrou, visto que não vem de fora? Pois Ele não é nenhuma das coisas que estão fora de nós. Também é certo que não veio de dentro de mim, porque Ele é bondade, e bem sei que em mim não existe nada de bom. Daí eu me elevei acima de mim mesmo, mas o Verbo está mais além. Intrigado, sondei o que está abaixo de mim, mas Ele está em maior profundidade. Olhando para fora de mim, concluí que está além de tudo o que do lado de fora fica o mais longe de mim. E olhando para dentro de mim, que a sua presença é mais interior que o meu íntimo. E assim compreendi a verdade daquilo que eu tinha lido: "Nele vivemos, nos movemos e somos" (At 17,28).
Não é possível falar de um Deus puramente transcendente. Seria inclusive uma coisa supérflua, e mesmo, contraditória. Por isso o deísmo, herança recebida do Iluminismo, não nega a existência de Deus como Ser supremo, mas não admite a sua revelação porque é o próprio homem que determina o lugar que Deus pode ocupar. Aos poucos Deus vai se tornando uma hipótese inútil.
Mas Deus se revelou e, portanto, se engajou na história dos homens. A revelação é essencialmente Deus que se doa a nós. É o acontecer de um encontro. E neste encontro não atingimos algo de Deus, um aspecto ou um segmento do seu mistério. O que Deus revela é o seu "coração". Ao mesmo tempo, porém, Deus permanece sempre maior do que o nosso coração, Ele será sempre um Deus escondido, Ele é mais do que a sua revelação. Esse mais não deve ser pensado em termos quantitativos, mas significa que Deus não se torna objeto da revelação. Deus permanece o sujeito da revelação e como tal transcende a sua revelação, é anterior a ela. Deus é o mistério maior que não se esgota na sua relação reveladora. Além disso, não podemos aduzir nenhuma razão que explica ou justifica a revelação de Deus. É o seu "desígnio secreto" (Ef 1,9). "Ele nos amou primeiro" (1 Jo 4,10). A gratuidade do amor de Deus deixaria de ser gratuidade se pudéssemos explicá-la. Vale aqui a declaração de P. Evdokimov, teólogo ortodoxo: "Não é o conhecimento que ilumina o mistério, é o Mistério que ilumina o conhecimento".
Nenhuma linguagem humana é capaz de descrever o mistério de Deus. O que faz entender porque a Regra fala em dois parágrafos sobre o silêncio, não só como exercício ascético para chegar à pureza do coração, mas também como matriz de toda palavra autêntica. O que faz pensar no que escreveu santo Ireneu: "Do silêncio primordial surgiu o logos". No silêncio se entrelaçam o tempo e a eternidade. Uma vida de silêncio não é a mesma coisa que o Silêncio da Vida. O mesmo santo Ireneu escreve sobre essa Vida: "A glória de Deus é a Vida do homem, e a vida do homem é conhecer a Deus". A primeira parte deste texto foi muito citada em ambientes de pastoral social: a glória de Deus é a vida do homem. Omitindo a segunda parte surge de novo um certo dualismo entre fé e vida, entre revelação de Deus e caminhada do povo. Neste caso a opção pelos pobres, aos excluídos corre o perigo de ser reduzida a uma mera obrigação ética. "Tudo o que vocês fizerem ao menor de meus irmãos, e a mim que o fizestes". É uma afirmação ontológica da presença de Cristo no outro. Jesus manifesta nessa tomada de posição parcial, a universalidade do desígnio de Deus. Cristo não é símbolo para a realidade, mas da realidade. A evangélica opção preferencial se situa no nível do que Raimon Panikkar chama de cristofania. Por Cristo, com ele e nele, todas as dimensões da realidade se juntam: "Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito de tudo o que existe" (10 1,2). O universo inteiro é chamado a participar da vida trinitária em Cristo e por Cristo. O que dá uma perspectiva profunda ao "viver em obséquio de Jesus Cristo" da Regra. . Volta aqui a contemplação como cerne do nosso carisma. Penso que sem esse cerne não encontramos uma resposta à pergunta que me foi feita na carta mencionada: "Como nós carmelitas deveríamos situar-nos frente à realidade que nos envolve na América Latina?"
A questão de uma vida de silêncio e do Silêncio da Vida pode parecer uma espécie de fuga do mundo, um viver no abstrato. Neste sentido ouve-se freqüentemente a crítica: basta de belas teorias, precisamos da prática. Cabe fazer aqui uma distinção entre o que é urgente e o que é importante. O urgente com suas características de imediato desvia a nossa atenção daquilo que é importante. Se o urgente não é importante nós nos lançamos numa prática contraproducente. Se o importante não é urgente mergulhamos numa teoria errônea: o importante será uma simples abstração. No urgente destacamos o fator do tempo, no importante acentuamos o fator do peso. A sabedoria conste em combinar o urgente com o importante. É a arte de fazer calar as atividades da vida que não são a Vida. Não são as atividades que produzem o ativismo, mas a falta de silêncio interior. Ativismo é como a gravidez psicológica: seus efeitos visam o presente. A gravidez real se dá no presente mas, não para o presente. Freqüentemente agimos a partir de atributos que configuram a nossa personalidade: sou professor, diretora de um colégio, empresário, operário, pároco, superior, etc. É assim que somos identificados, é assim que os olhos dos outros se fixam em nós. Quem se identifica exclusivamente a partir dessas atribuições, estas freqüentemente começam a sufocar-lhe a identidade profunda. De certa maneira deveria haver um despojamento do conjunto dessas atribuições para poder chegar ao Silêncio da Vida. Enfocando o relacionamento que deve existir entre o prior e os irmãos, Alberto ofereceu aos eremitas do Monte Carmelo uma pista para chegar a esse despojamento.
Tu, irmão B. e seja quem for indicado Prior depois de ti, tenhais sempre em mente e cumpram na prática o que o Senhor diz no evangelho: Todo aquele que entre vós quiser tornar-se o maior, seja o vosso servidor, e quem quiser ser o primeiro, seja o vosso empregado.
E vós, os demais irmãos, honrai humildemente o vosso Prior, pensando, mais do que nele, em Cristo que o colocou acima de vós, e que diz aos que estão à frente das igrejas: Quem vos ouve, é a mim que ouve; quem vos despreza, é a mim que despreza, a fim de que não sejais julgados como réus por menosprezo, mas possais merecer por obediência a recompensa da vida eterna.
Seria empobrecer o conteúdo do texto citado fosse reduzi-lo a uma exortação piedosa ou moral. Como em toda a Regra do Carmelo, também aqui aparece a tensão que existe entre o urgente e o importante, entre prática e teoria. Já no primeiro parágrafo da sua exposição, em que fala da eleição do Prior, Alberto insiste na obediência que cada um dos irmãos deve prometer ao que tiver sido eleito, e no empenho de cumprir na verdade da prática o que prometeu. É claro que na prática podem surgir abusos e comportamentos imaturos de ambas as partes. O que, porém, não invalida a perspectiva cristocêntrica que a Regra abre também para o relacionamento mútuo entre o Prior e os demais irmãos. O essencial é a obediência ao que ressoa além do meu horizonte. Trata-se da "salvação no Senhor" que Alberto deseja aos carmelitas já no início da sua carta. Salvação é "participar da natureza divina"(2 Pd 1,4) por Cristo. É precisamente nisto que consiste o mistério envolvido em silêncio desde sempre, mas agora revelado em Jesus (Rm 16,25) que veio para que todos tenham Vida, e a tenham plenamente (Jo 10,10).
Muitas vezes identificamos a Vida com as atividades da vida e nos alienamos da nossa própria fonte estabelecendo uma dicotomia entre o fundamental ou essencial e o relativo. O essencial não seria essencial se não o descobríssemos a partir do relativo. O fato de vivermos no tempo, a nossa vida se desenvolve ao longo de uma linha temporal. A própria consciência que temos das coisas é marcada pelo tempo. Além disto, pelo fato de vivermos no espaço a nossa consciência é atingida pelo parcial e pelo distante que supõe o caráter material da realidade. Isto faz com que tudo em nós tenda para algo mais que não se estenda pelo tempo e pelo espaço. Surgem assim as interrogações fundamentais: de onde viemos e aonde vamos? São questões que sempre permanecem abertas, pois nenhuma resposta nossa é capaz de exauri-Ias. O desconhecido permanece e não se deixa manipular. E ao inverso, o relativo só pode ser relativo porque existe uma relação a partir do essencial. Teresa de Ávila o diz às suas filhas: Deus se faz encontrar também na cozinha no meio das panelas. E outro escritor que compara o homem e a mulher casados às duas margens de um mesmo rio. Não se trata, portanto de negar a importância das atividades e ocupações da vida. Não podemos viver sem sentir, sem amar, sem comer, sem trabalhar. Os parágrafos que a Regra dedica à refeição e ao trabalho, não são apenas de natureza disciplinar: apontam para o essencial. Agora sem o silêncio dos sentidos e do intelecto, o olho dá fé fica atrofiado e não conseguimos nos abrir à Vida que é anterior às suas expressões nas nossas diversas atividades. Lembro-me aqui de Tito Brandsma que sabia combinar o urgente com o importante e abrir-se ao Silêncio da Vida. Era um homem que se situava junto à Fonte. Sabia unificar-se por dentro e por isso estava inteirinho na sua cela, no atendimento aos humildes, aos estudantes, aos jornalistas, aos nazistas que o interrogavam e o maltratavam.

*Dom Frei Vital Wilderink, O Carm, foi vítima de um acidente de automóvel quando retornava para o Eremitério, “Fonte de Elias”, no alto do Rio das Pedras, nas montanhas de Lídice, distrito do município de Rio Claro, no estado do Rio de Janeiro. O acidente ocorreu no dia 11 de junho de 2014. O sepultamento foi na cidade de Itaguaí/RJ, no dia 12, na Catedral de São Francisco Xavier, Diocese esta onde ele foi o primeiro Bispo.