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sexta-feira, 3 de outubro de 2014

A Carmelita Missionária: Epifania de uma identidade.

*Dom frei Vital Wilderink, O. Carm. In Memoriam.

"Sem mim, não podeis fazer nada" (Jo 15,5). Expressão paradoxal que, aparentemente, denota uma falta de identidade própria.  A psicologia poderia comentar: a pessoa que se encontra em tais condições ainda não se encontrou a si mesma.  De fato, hoje deve haver muitas pessoas assim, que encontram na moda a única evidência convincente. E, permanecendo ainda no nível da psicologia, podemos acrescentar: faltou a tais pessoas um encontro vivo.  Quem não se depara com uma presença viva que suscita  uma atração e nos provoca, não vai descobrir seu próprio coração" sede das nossas exigências e opções fundamentais.   Não faltam na nossa época moderna e pós-moderna tendências e realidades que prolongam a escravidão, o sem-sentido que impedem o agir verdadeiramente libertador.
O projeto "Rumo ao novo milênio" em preparação ao Jubileu da Encarnação do Filho de Deus, é um projeto de evangelização, de epifania da identidade. É um projeto de restauração da humanidade, de reparação que encontra em Cristo sua referência viva. É um desafio porque a cada passo esbarramos com um poder que tenta atrofiar o desejo humano, "andando em derredor como um leão que ruge, procurando a quem devorar" (1 Pd 5, 8).  As palavras da carta de Pedro, inseridas na Regra do Carmelo, não perderam a sua atualidade.  Basta constatar as situações das nossas sociedades em nível político, sócio-econômico e cultural. Um historiador do século XX concluía sua obra mais recente: "Se a humanidade quer ter um futuro reconhecível, não pode ser pelo prolongamento do passado ou do presente. Se tentarmos construir o terceiro milênio nessa base, vamos fracassar".  O escritor em questão prescinde de quaisquer critérios hauridos numa fé religiosa. No entanto, as suas argumentações e conclusões baseadas em ciências sociais e econômicas, não deixam de questionar a nossa fé cristã. O mistério da Encarnação de Deus na precariedade da historia humana, faz com que o cristianismo seja uma realidade voltada para o futuro porque mais centrado numa presença do que numa utopia. É desta Presença que se alimenta a identidade espiritual da Carmelita missionária e a sua esperança que deverá impedir que a sua ação missionária se limite a uma pastoral de simples manutenção.
Madre Maria Crocifissa vivia de uma presença.  Presença que nela provocava experiências místicas de encontro com Cristo, seu Amado.  Encontro que lhe fazia compreender melhor a situação daqueles que vivem sem sentido.  E nesse encontro ela acompanhava o seu Amado até a sua paixão redentora. É neste ponto que ela se faz solidária com os vencidos do mundo e se acende a sua sensibilidade profética diante do mal. É deste seu encontro com Jesus que brota o seu desejo de reparação que sobe até Deus que se envolve na historia e no destino da humanidade, sofre com seus desvios, mas não a abandona.  Madre Crocifissa vivia apegada aos sinais da Presença do Senhor.  Se ela os encontrava na Eucaristia, no Coração de Jesus, em Maria, nos Santos, marcados sem dúvida pelo contexto eclesial de sua época, é porque a totalidade de sua vida quotidiana era atingida pela presença do Senhor.

A Carmelita missionária, filha de Madre Crocifissa, só encontrará a sua identidade espiritual no encontro com o Senhor.  Trata-se de uma experiência de fé viva, não de uma prática devocional.  No fundo, trata-se de fazer ressoar a pergunta feita por Jesus a seus discípulos: "Para vós, quem sou eu?".  Ligada a esta pergunta, existe uma outra: o que significa crer em Jesus Cristo hoje? O homem e a mulher de hoje, (e não há razão para não identificar-nos com eles), se encontram numa situação muito semelhante à do cego de nascença (Jo 9.1-41). Jesus se dirige a ele: "Tu crês no Filho do Homem?". É melhor ter a simplicidade do mesmo cego: "Mas, quem é, Senhor, para que eu creia nele?". É só assim que começamos a crer. É preciso reconhecer que uma configuração histórica do cristianismo (também aquela da Madre Crocifissa) parece estar se esgotando e com ela a plausibilidade social que servia de suporte a uma maneira de crer, de viver e de transmitir a fé. A questão da identidade espiritual da Carmelita missionária se coloca hoje em termos diferentes.  Mas sempre vale como lei universal: a pessoa torna-se presente a si mesma num encontro. Estamos agraciados pela presença de Deus, mas não é fácil percebê-1a.  Aderir à pessoa de Jesus Cristo deixou de ser algo "evidente".  Somos afetados por uma situação de desamparo.  Tem-se a impressão de que uma porta se interpõe entre a presença de Deus e a nossa condição e situação atuais. "Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir minha voz e abrir a porta, eu entrarei na sua casa e tomaremos a refeição, eu com ele e ele comigo" (Ap 3,20). Se a porta nos oculta a presença, será que ela pode converter-se em lugar onde ressoa o chamado, em ocasião de nossa resposta e disponibilidade?
Não vamos descrever detalhadamente as dificuldades que o nosso tempo tem para descobrir a presença de Deus. Basta lembrar-nos do fenômeno da secularização que apagou em extensas zonas da vida pessoal e social os sinais da presença de Deus que, ao longo da historia, o homem vinha descobrindo. A razão tornou-se a medida das coisas; o que levou a um desencantamento do mundo e fez o homem escravo do outro homem.  Esse desencanto dificulta enormemente a percepção dos elementos como símbolos de uma realidade de outra ordem. O desencanto oculta as dimensões mais profundas, o lado inefável das coisas que antes levavam o homem a dar um rosto à presença do Transcendente.  A secularização da cultura é um processo que vai penetrando também na consciência do homem.  Ao declarar a autonomia da ordem social, da ordem da razão e da ordem ética, o homem se faz surdo a todo chamado religioso e fica "sem noticias" de Deus.
O silêncio de Deus adquiriu nos últimos tempos uma nova forma.  Para muitos os gritos dos oprimidos eram um rumor da presença de Deus.  Hoje, cada vez mais, nos acostumamos ao clamor das vítimas de toda sorte de violência e de injustiça. Penso no continente africano tão visivelmente marginalizado porque não traz interesses para o sistema reinante.  Penso nos meninos da rua, nos que morrem por balas direcionadas ou perdidas nas ruas do Rio de Janeiro.  Penso em adversários políticos que se eliminam mutuamente... Não vale a pena dar-se ao trabalho de identificar os desonestos e corruptos porque tudo termina em "pizza" mesmo!  Há portas largas que se escancaram para o não-sentido.  Portas que, ao mesmo tempo, abrem campos para restaurar a humanidade:
"Assim diz o Senhor: No tempo da graça eu te escutei, no dia da salvação eu te ajudei. Eu te guardei e coloquei como aliança entre o povo, para reergueres o país, devolveres as propriedades arrasadas, para dizeres aos cativos: Saí livres!, aos presos em cárcere escuro: Vinde para a luz" (Is 49,8).
"Recapitular tudo em Cristo" diria São Paulo (Ef 1, 10).  Trata-se de centrar em Cristo todos os seres. Foi esse o projeto programático da vida de Madre Crocifissa.  Está aí o segredo da reparação em que insiste no seu diário espiritual e nas suas cartas.  Ela se deixa atingir, ela primeira, por esse centrar-se em Cristo.  Percebe com lucidez o quanto ela mesma necessita. É nisto que ela se empenha com sua oração, suas mortificações.  Não há nenhum aspecto da sua vida que pode ficar fora desse movimento.  Esforçada, firme também com suas filhas, ela sabe ao mesmo tempo, que a iniciativa desse movimento para Cristo pertence à misericórdia de Deus.
Seria interessante pesquisar como, mesmo nas peculiaridades pessoais da Madre Crocifissa, ressoa aqui a influência de Sta Teresinha.  Não é sem razão que o nome dessa jovem carmelita francesa figura no próprio título da Congregação. Oferecer-se como vítima tem nas duas carmelitas matizes diferentes, pelo menos enquanto pude depreender dos escritos de ambas.  Madre Crocifissa também fala constantemente em "offrirsi vittima assieme alla Prima Vittima d'Amore". Ela se sente vítima enquanto unida a Cristo vítima, considerado na sua Paixão, sempre em vista da reparação.  Seguindo a espiritualidade da sua época, a reparação é vista na perspectiva da justiça divina.  Esta reparação encontra a sua fonte sacramental no Coração eucarístico de Jesus.  Mas o que motiva o seu desejo de reparação é sempre o amor, amor que nos seus escritos assume as características de um amor esponsal.  Faltam-nos os dados para poder acompanhar Madre Crocifissa, até a sua morte em 4 de julho de 1957, nesse seu itinerário de amor reparador.
Teresa de Lisieux morre jovem, muito jovem, com apenas 24 anos de idade.  Um ano antes de sua morte, ela escreve a sua irmã Marie du Sacré-Coeur: "No coração da Igreja, minha Mãe, eu serei o amor".  Levando em consideração o clima jansenista que se respirava na sua época, também no Carmelo de Lisieux, as suas palavras denotam um conhecimento surpreendente de Deus e da Igreja.  Teresa tem uma única preocupação: a união com Deus união de amor na oferta de si mesma em resposta ao dom de Cristo.  Como Madre Crocifissa ela se sente arrastada por esse oceano de amor sempre em movimento, amor que só deseja doar-se.  Também Teresa se une ao próprio sofrimento ao Cristo sofredor. Como Madre Crocifissa, ela sente um grande desejo de trabalhar pela conversão dos pecadores.  Ela vivia numa época em que o racionalismo e o cientificismo espalhavam uma descrença agressiva e um anti-clericalismo sarcástico.  Teresa sofre, entrando ela mesma nas trevas, na noite da fé, sentando-se à mesa com os pecadores.  Mas ela não cessa de amar o Esposo, na própria aceitação da sua ausência.
*Dom Frei Vital Wilderink, O Carm, foi vítima de um acidente de automóvel quando retornava para o Eremitério, “Fonte de Elias”, no alto do Rio das Pedras, nas montanhas de Lídice, distrito do município de Rio Claro, no estado do Rio de Janeiro. O acidente ocorreu no dia 11 de junho de 2014. O sepultamento foi na cidade de Itaguaí/RJ, no dia 12, na Catedral de São Francisco Xavier, Diocese esta onde ele foi o primeiro Bispo.

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