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sexta-feira, 25 de setembro de 2015

*Um desafio à cristologia

Dom Vital João Wilderink, OCarm.
*In Memoriam

Em outubro de 1932, o Padre Tito Brandsma foi eleito reitor da universidade católica de Nijmegen. No dies natalis da universidade, ele fez um discurso sobre o conceito ou imagem de Deus. O discurso conheceu, mesmo depois da sua morte, repetidas edições porque conserva uma atualidade surpreendente.  Na época a formação teológica trazia o carimbo da neo-escolástica, caracterizada por uma linguagem especulativa e abstrata. Falava-se de Deus como se tratasse de uma espécie de realidade eterna, atemporal e imutável sobre a qual a nossa busca de peregrinos não tinha muito a dizer. Insistia-se, sem dúvida, na prática das virtudes, mas, como Tito dizia no seu discurso, não sem perigo de reduzir a vida espiritual a uma prática exterior. Para Tito, porém, Deus não independe de formas humanas de conhecimento que são marcadas pelo tempo e pelo contexto. Neste ponto ele insiste na necessidade de uma abertura em relação a novas evoluções na espiritualidade.
Ele começa o seu discurso dizendo: “Entre as muitas questões que eu me coloco, há uma que prende mais a minha atenção: é o enigma que o homem de hoje, tão convencido e orgulhoso do seu progresso, se afaste em tão grande número de Deus. Porque a imagem de Deus ficou tão obscurecida que a tanta gente não chega a dizer mais nada? Creio que seja  dever nosso olhar em torno a nós para esse fenômeno da negação de Deus. Não, porque devemos em primeiro lugar assumir uma atitude de defesa já existe apologia demais, mas, em vista desse fenômeno, deixar-se motivar para fazer conhecer a imagem de Deus em novas formas”.
O que Tito Brandsma procurava fazer era que aprofundar a fé submetendo as suas intuições ao exame crítico do intelecto e da sabedoria da tradição. Não por interesse próprio ou para ser original, mas para desembocar numa corrente que flui pelas artérias profundas do corpo da realidade. Sabemos que, entre nós aqui na América Latina, surgiu a partir de uma reflexão sobre a realidade, uma espiritualidade de libertação. Se espiritualidade é um processo que tem a ver com uma relação nossa com o Absoluto, é imprescindível ver a nossa inserção no mundo e no universo. Não podemos dizer que a plenitude do ser humano não tem nada a ver com essa realidade. Afinal somos um ícone do real.
            Ecclesia semper est reformanda. Também o corpo doutrinal, na sua tradição cristológica apela para uma reforma. É uma tarefa de grande responsabilidade uma vez que os dogmas estão entre eles intrinsecamente conectados. Não podemos passar com descuido sobre a rica herança teológica de dois milênios.
De outro lado há uma outra constatação feita inclusive por grandes estudiosos, de que o mundo se encontra diante de um dilema de proporções planetárias que exige uma mudança radical de "civilização", de sentido do humano, ou provocará uma catástrofe de proporções cósmicas. Isto exige um esforço inter-cultural para fazer um primeiro passo para uma conversão marcada pela esperança.
Não há espiritualidade cristã, nem carisma carmelitano quando se  passa por cima da condição humana na sua dimensão mais profunda e menos condicionada pelas vicissitudes históricas. Existe no ser humano um desejo de plenitude e de vida, de felicidade e de infinito, de verdade e de beleza que vai além das contingências religiosas e culturais.Para nós essa plenitude tem um nome: Jesus Cristo.
*Retiro da Província Carmelitana de Santo Elias. 28 de julho a 01 de agosto-2008. Belo Horizonte-MG.
*Dom Frei Vital Wilderink, O Carm, foi vítima de um acidente de automóvel quando retornava para o Eremitério, “Fonte de Elias”, no alto do Rio das Pedras, nas montanhas de Lídice, distrito do município de Rio Claro, no estado do Rio de Janeiro. O acidente ocorreu no dia 11 de junho de 2014. O sepultamento foi na cidade de Itaguaí/RJ, no dia 12, na Catedral de São Francisco Xavier, Diocese esta onde ele foi o primeiro Bispo.


A PALAVRA... Nº 1002. Só sei que sou Carmelita...

FREI PETRÔNIO: Pensamento do Dia. (SEXTA, 25).

Íntegra do discurso do Papa Francisco ao Congresso Americano

Na quinta-feira, 24 de setembro, o Papa Francisco proferiu seu discurso ao Congresso Americano, em Washington.

Eis o discurso.
Senhor Vice-Presidente,
Senhor Presidente da Câmara dos Representantes,
Distintos Membros do Congresso,
Queridos Amigos!

Sinto-me muito grato pelo convite para falar a esta Assembleia Plenária do Congresso «na terra dos livres e casa dos valorosos». Apraz-me pensar que o motivo para isso tenha sido o facto de também eu ser um filho deste grande continente, do qual muito recebemos todos nós e relativamente ao qual partilhamos uma responsabilidade comum.
Cada filho ou filha duma determinada nação tem uma missão, uma responsabilidade pessoal e social. A vossa responsabilidade própria de membros do Congresso é fazer com que este país, através da vossa actividade legislativa, cresça como nação. Vós sois o rosto deste povo, os seus representantes. Sois chamados a salvaguardar e garantir a dignidade dos vossos concidadãos na busca incansável e exigente do bem comum, que é o fim de toda a política.
Uma sociedade política dura no tempo quando, como uma vocação, se esforça por satisfazer as carências comuns, estimulando o crescimento de todos os seus membros, especialmente aqueles que estão em situação de maior vulnerabilidade ou risco. A atividade legislativa baseia-se sempre no cuidado das pessoas. Para isso fostes convidados, chamados e convocados por aqueles que vos elegeram.
O vosso trabalho lembra-me, sob dois aspectos, a figura de Moisés. Por um lado, o patriarca e legislador do povo de Israel simboliza a necessidade que têm os povos de manter vivo o seu sentido de unidade com os instrumentos duma legislação justa. Por outro, a figura de Moisés leva-nos directamente a Deus e, por consequência, à dignidade transcendente do ser humano. Moisés oferece-nos uma boa síntese do vosso trabalho: a vós, pede-se para proteger, com os instrumentos da lei, a imagem e semelhança moldadas por Deus em cada rosto humano.
Nesta perspectiva, hoje quereria dirigir-me não só a vós mas, através de vós, a todo o povo dos Estados Unidos. Aqui, juntamente com os seus representantes, quereria aproveitar esta oportunidade para dialogar com tantos milhares de homens e mulheres que se esforçam diariamente por cumprir uma honesta jornada de trabalho, por trazer para casa o pão de cada dia, por poupar qualquer dólar e – passo a passo – construir uma vida melhor para as suas famílias. São homens e mulheres que não se preocupam apenas com pagar os impostos, mas – na forma discreta que os caracteriza – sustentam a vida da sociedade. Geram solidariedade com as suas actividades e criam organizações que ajudam quem tem mais necessidade.
Quereria também entrar em diálogo com as numerosas pessoas idosas que são um depósito de sabedoria forjada pela experiência e que procuram de muito modos, especialmente através do voluntariado, partilhar as suas histórias e experiências. Sei que muitas delas estão aposentadas, mas ainda activas e continuam a empenhar-se na construção deste país. Desejo também dialogar com todos os jovens que lutam por realizar as suas grandes e nobres aspirações, que não se deixam extraviar por propostas superficiais e que enfrentam situações difíceis, tantas vezes resultantes da imaturidade de muitos adultos. Quereria dialogar com todos vós, e desejo fazê-lo através da memória histórica do vosso povo.
A minha visita tem lugar num momento em que homens e mulheres de boa vontade estão a celebrar o aniversário de alguns americanos famosos. Apesar da complexidade da história e da realidade da fraqueza humana, estes homens e mulheres foram capazes, com todas as suas diferenças e limitações, de construir um futuro melhor com trabalho duro e sacrifício pessoal – alguns à custa da própria vida. Deram forma a valores fundamentais, que permanecerão para sempre no espírito do povo americano. Um povo com este espírito pode atravessar muitas crises, tensões e conflitos, já que sempre conseguirá encontrar a força para ir avante e fazê-lo com dignidade. Estes homens e mulheres dão-nos uma possibilidade de ver e interpretar a realidade. Ao honrar a sua memória, somos estimulados, mesmo no meio de conflitos, na vida concreta de cada dia, a haurir das nossas mais profundas reservas culturais.
Quereria mencionar quatro destes americanos: Abraham Lincoln, Martin Luther King, Dorothy Day e Thomas Merton.
Este ano completam-se cento e cinquenta anos do assassinato do Presidente Abraham Lincoln, o guardião da liberdade, que trabalhou incansavelmente para que «esta nação, com a protecção de Deus, pudesse ter um renascimento de liberdade». Construir um futuro de liberdade requer amor pelo bem comum e colaboração num espírito de subsidiariedade e solidariedade.
Todos estamos plenamente cientes e também profundamente preocupados com a situação social e política inquietante do mundo actual. O nosso mundo torna-se cada vez mais um lugar de conflitos violentos, ódios e atrocidade brutais, cometidos até mesmo em nome de Deus e da religião. Sabemos que nenhuma religião está imune de formas de engano individual ou de extremismo ideológico. Isto significa que devemos prestar especial atenção a qualquer forma de fundamentalismo, tanto religioso como de qualquer outro género. É necessário um delicado equilíbrio para se combater a violência perpetrada em nome duma religião, duma ideologia ou dum sistema económico, enquanto, ao mesmo tempo, se salvaguarda a liberdade religiosa, a liberdade intelectual e as liberdades individuais. Mas há outra tentação de que devemos acautelar-nos: o reducionismo simplista que só vê bem ou mal, ou, se quiserdes, justos e pecadores. O mundo contemporâneo, com as suas feridas abertas que tocam muitos dos nossos irmãos e irmãs, exige que enfrentemos toda a forma de polarização que o possa dividir entre estes dois campos. Sabemos que, na ânsia de nos libertar do inimigo externo, podemos ser tentados a alimentar o inimigo interno. Imitar o ódio e a violência dos tiranos e dos assassinos é o modo melhor para ocupar o seu lugar. Isto é algo que vós, como povo, rejeitais.
Pelo contrário, a nossa resposta deve ser uma resposta de esperança e cura, de paz e justiça. É-nos pedido para fazermos apelo à coragem e à inteligência, a fim de se resolverem as muitas crises económicas e geopolíticas de hoje. Até mesmo num mundo desenvolvido aparecem demasiado evidentes os efeitos de estruturas e ações injustas. Os nossos esforços devem concentrar-se em restaurar a paz, remediar os erros, manter os compromissos, e assim promover o bem-estar dos indivíduos e dos povos. Devemos avançar juntos, como um só, num renovado espírito de fraternidade e solidariedade, colaborando generosamente para o bem comum.
Os desafios, que hoje enfrentamos, requerem uma renovação deste espírito de colaboração, que produziu tantas coisas boas na história dos Estados Unidos. A complexidade, a gravidade e a urgência destes desafios exigem que ponhamos a render os nossos recursos e talentos e nos decidamos a apoiar-nos mutuamente, respeitando as diferenças e convicções de consciência.
Nesta terra, as várias denominações religiosas deram uma grande ajuda na construção e fortalecimento da sociedade. É importante que hoje, como no passado, a voz da fé continue a ser ouvida, porque é uma voz de fraternidade e de amor que procura fazer surgir o melhor em cada pessoa e em cada sociedade. Esta cooperação é um poderoso recurso na luta por eliminar as novas formas globais de escravidão, nascidas de graves injustiças que só podem ser superadas com novas políticas e novas formas de consenso social.
Penso aqui na história política dos Estados Unidos, onde a democracia está profundamente radicada no espírito do povo americano. Qualquer actividade política deve servir e promover o bem da pessoa humana e estar baseada no respeito pela dignidade de cada um. «Consideramos evidentes, por si mesmas, estas verdades: que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que, entre estes, estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade» (Declaração de Independência, 4 de Julho de 1776). Se a política deve estar verdadeiramente ao serviço da pessoa humana, segue-se que não pode estar submetida à economia e às finanças. É que a política é expressão da nossa insuprível necessidade de vivermos juntos em unidade, para podermos construir unidos o bem comum maior: uma comunidade que sacrifique os interesses particulares para poder partilhar, na justiça e na paz, os seus benefícios, os seus interesses, a sua vida social. Não subestimo as dificuldades que isto implica, mas encorajo-vos neste esforço.
Penso também na marcha que Martin Luther King guiou de Selma a Montgomery, há cinquenta anos, como parte da campanha para conseguir o seu «sonho» de plenos direitos civis e políticos para os afro-americanos. Aquele sonho continua a inspirar-nos. Alegro-me por a América continuar a ser, para muitos, uma terra de «sonhos»: sonhos que levam à acção, à participação, ao compromisso; sonhos que despertam o que há de mais profundo e verdadeiro na vida das pessoas. Nos últimos séculos, milhões de pessoas chegaram a esta terra perseguindo o sonho de construírem um futuro em liberdade. Nós, pessoas deste continente, não temos medo dos estrangeiros, porque outrora muitos de nós éramos estrangeiros. Digo-vos isto como filho de imigrantes, sabendo que também muitos de vós sois descendentes de imigrantes. Tragicamente, os direitos daqueles que estavam aqui, muito antes de nós, nem sempre foram respeitados. Por aqueles povos e as suas nações, desejo, a partir do coração da democracia americana, reafirmar a minha mais alta estima e consideração. Aqueles primeiros contactos foram muitas vezes tumultuosos e violentos, mas é difícil julgar o passado com os critérios do presente. Todavia, quando o estrangeiro no nosso meio nos interpela, não devemos repetir os pecados e os erros do passado. Devemos decidir viver agora o mais nobre e justamente possível e, de igual modo, formar as novas gerações para não virarem as costas ao seu «próximo» e a tudo aquilo que nos rodeia. Construir uma nação pede-nos para reconhecer que devemos constantemente relacionar-nos com os outros, rejeitando uma mentalidade de hostilidade para se adoptar uma subsidiariedade recíproca, num esforço constante de contribuir com o melhor de nós. Tenho confiança que o conseguiremos.
O nosso mundo está a enfrentar uma crise de refugiados de tais proporções que não se via desde os tempos da II Guerra Mundial. Esta realidade coloca-nos diante de grandes desafios e decisões difíceis. Também neste continente, milhares de pessoas sentem-se impelidas a viajar para o Norte à procura de melhores oportunidades. Porventura não é o que queríamos para os nossos filhos? Não devemos deixar-nos assustar pelo seu número, mas antes olhá-los como pessoas, fixando os seus rostos e ouvindo as suas histórias, procurando responder o melhor que pudermos às suas situações. Uma resposta que seja sempre humana, justa e fraterna. Devemos evitar uma tentação hoje comum: descartar quem quer que se demonstre problemático. Lembremo-nos da regra de ouro: «O que quiserdes que vos façam os homens, fazei-o também a eles» (Mt 7, 12).
Esta norma aponta-nos uma direcção clara. Tratemos os outros com a mesma paixão e compaixão com que desejamos ser tratados. Procuremos para os outros as mesmas possibilidades que buscamos para nós mesmos. Ajudemos os outros a crescer, como quereríamos ser ajudados nós mesmos. Em suma, se queremos segurança, demos segurança; se queremos vida, demos vida; se queremos oportunidades, providenciemos oportunidades. A medida que usarmos para os outros será a medida que o tempo usará para connosco. A regra de ouro põe-nos diante também da nossa responsabilidade de proteger e defender a vida humana em todas as fases do seu desenvolvimento.
Esta convicção levou-me, desde o início do meu ministério, a sustentar a vários níveis a abolição global da pena de morte. Estou convencido de que esta seja a melhor via, já que cada vida é sagrada, cada pessoa humana está dotada duma dignidade inalienável, e a sociedade só pode beneficiar da reabilitação daqueles que são condenados por crimes.
Recentemente, os meus irmãos bispos aqui nos Estados Unidos renovaram o seu apelo pela abolição da pena de morte. Não só os apoio, mas encorajo também todos aqueles que estão convencidos de que uma punição justa e necessária nunca deve excluir a dimensão da esperança e o objectivo da reabilitação.
Nestes tempos em que as preocupações sociais são tão importantes, não posso deixar de mencionar a Serva de Deus Dorothy Day, que fundou o Catholic Worker Movement. O seu compromisso social, a sua paixão pela justiça e pela causa dos oprimidos estavam inspirados pelo Evangelho, pela sua fé e o exemplo dos Santos.
Quanto estrada percorrida neste campo em tantas partes do mundo! Quanto se fez nestes primeiros anos do terceiro milénio para fazer sair as pessoas da pobreza extrema! Sei que partilhais a minha convicção de que se tem de fazer ainda muito mais e de que, em tempos de crise e dificuldade económica, não se deve perder o espírito de solidariedade global. Ao mesmo tempo, desejo encorajar-vos a não esquecer todas as pessoas à nossa volta encastradas nas espirais da pobreza. Há necessidade de dar esperança também a elas. A luta contra a pobreza e a fome deve ser travada com constância nas suas múltiplas frentes, especialmente nas suas causas. Sei que hoje, como no passado, muitos americanos estão a trabalhar para enfrentar este problema.
Naturalmente uma grande parte deste esforço situa-se na criação e distribuição de riqueza. A utilização correcta dos recursos naturais, a aplicação apropriada da tecnologia e a capacidade de orientar devidamente o espírito empresarial são elementos essenciais duma economia que procura ser moderna, inclusiva e sustentável. «A actividade empresarial, que é uma nobre vocação orientada para produzir riqueza e melhorar o mundo para todos, pode ser uma maneira muito fecunda de promover a região onde instala os seus empreendimentos, sobretudo se pensa que a criação de postos de trabalho é parte imprescindível do seu serviço ao bem comum» (Enc. Laudato si’, 129). Este bem comum inclui também a terra, tema central da Encíclica que escrevi, recentemente, para «entrar em diálogo com todos acerca da nossa casa comum» (ibid., 3). «Precisamos de um debate que nos una a todos, porque o desafio ambiental, que vivemos, e as suas raízes humanas dizem respeito e têm impacto sobre todos nós» (ibid., 14).
Na encíclica Laudato si’, exorto a um esforço corajoso e responsável para «mudar de rumo» (ibid., 61) e evitar os efeitos mais sérios da degradação ambiental causada pela actividade humana. Estou convencido de que podemos fazer a diferença e não tenho dúvida alguma de que os Estados Unidos – e este Congresso – têm um papel importante a desempenhar. Agora é o momento de empreender acções corajosas e estratégias tendentes a implementar uma «cultura do cuidado» (ibid., 231) e «uma abordagem integral para combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da natureza» (ibid., 139). Temos a liberdade necessária para limitar e orientar a tecnologia (cf. ibid., 112), para individuar modos inteligentes de «orientar, cultivar e limitar o nosso poder» (ibid., 78) e colocar a tecnologia «ao serviço doutro tipo de progresso, mais saudável, mais humano, mais social, mais integral» (ibid., 112). A este respeito, confio que as instituições americanas de investigação e académicas poderão dar um contributo vital nos próximos anos.
Um século atrás, no início da I Grande Guerra que o Papa Bento XV definiu «massacre inútil», nascia outro americano extraordinário: o monge cisterciense Thomas Merton. Ele continua a ser uma fonte de inspiração espiritual e um guia para muitas pessoas. Na sua autobiografia, deixou escrito: «Vim ao mundo livre por natureza, imagem de Deus; mas eu era prisioneiro da minha própria violência e do meu egoísmo, à imagem do mundo onde nascera. Aquele mundo era o retrato do Inferno, cheio de homens como eu, que amam a Deus e contudo odeiam-No; nascidos para O amar, mas vivem no medo de desejos desesperados e contraditórios». Merton era, acima de tudo, homem de oração, um pensador que desafiou as certezas do seu tempo e abriu novos horizontes para as almas e para a Igreja. Foi também homem de diálogo, um promotor de paz entre povos e religiões.
Nesta perspectiva de diálogo, gostaria de saudar os esforços que se fizeram nos últimos meses para procurar superar as diferenças históricas ligadas a episódios dolorosos do passado. É meu dever construir pontes e ajudar, por todos os modos possíveis, cada homem e cada mulher a fazerem o mesmo. Quando nações que estiveram em desavença retomam o caminho do diálogo – um diálogo que poderá ter sido interrompido pelas mais válidas razões –, abrem-se novas oportunidades para todos. Isto exigiu, e exige, coragem e audácia, o que não significa irresponsabilidade. Um bom líder político é aquele que, tendo em conta os interesses de todos, lê o momento presente com espírito de abertura e sentido prático. Um bom líder político não cessa de optar mais por «iniciar processos do que possuir espaços» (Exort. ap. Evangelii gaudium, 222-223).
Estar ao serviço do diálogo e da paz significa também estar verdadeiramente determinado a reduzir e, a longo prazo, pôr termo a tantos conflitos armados em todo o mundo. Aqui devemos interrogar-nos: Por que motivo se vendem armas letais àqueles que têm em mente infligir sofrimentos inexprimíveis a indivíduos e sociedade? Infelizmente a resposta, como todos sabemos, é apenas esta: por dinheiro; dinheiro que está impregnado de sangue, e muitas vezes sangue inocente. Perante este silêncio vergonhoso e culpável, é nosso dever enfrentar o problema e deter o comércio de armas.
Três filhos e uma filha desta terra, quatro indivíduos e quatro sonhos: Lincoln, a liberdade; Martin Luther King, a liberdade na pluralidade e não-exclusão; Dorothy Day, a justiça social e os direitos das pessoas; e Thomas Merton, capacidade de diálogo e abertura a Deus.

Quatro representantes do povo americano.
Concluirei a minha visita ao vosso país em Filadélfia, onde participarei no Encontro Mundial das Famílias. É meu desejo que, durante toda a minha visita, a família seja um tema recorrente. Como foi essencial a família na construção deste país! E como merece ainda o nosso apoio e encorajamento! E todavia não posso esconder a minha preocupação pela família, que está ameaçada, talvez como nunca antes, de dentro e de fora. As relações fundamentais foram postas em discussão, bem como o próprio fundamento do matrimônio e da família. Posso apenas repropor a importância e sobretudo a riqueza e a beleza da vida familiar.
Em particular quereria chamar a atenção para os membros da família que são os mais vulneráveis: os jovens. Para muitos deles anuncia-se um futuro cheio de tantas possibilidades, mas muitos outros parecem desorientados e sem uma meta, encastrados num labirinto sem esperança, marcado por violências, abusos e desespero. Os seus problemas são os nossos problemas. Não podemos evitá-los.
É necessário enfrentá-los juntos, falar deles e procurar soluções eficazes em vez de ficar empantanados nas discussões. Correndo o risco de simplificar, poderemos dizer que vivemos numa cultura que impele os jovens a não formarem uma família, porque lhes faltam possibilidades para o futuro. Mas esta mesma cultura apresenta a outros tantas opções que também eles são dissuadidos de formar uma família.
Uma nação pode ser considerada grande, quando defende a liberdade, como fez Lincoln; quando promove uma cultura que permita às pessoas «sonhar» com plenos direitos para todos os seus irmãos e irmãs, como procurou fazer Martin Luther King; quando luta pela justiça e pela causa dos oprimidos, como fez Dorothy Day com o seu trabalho incansável, fruto duma fé que se torna diálogo e semeia paz no estilo contemplativo de Thomas Merton.
Nestas notas, procurei apresentar algumas das riquezas do vosso património cultural, do espírito do povo americano. Faço votos de que este espírito continue a desenvolver-se e a crescer de tal modo que o maior número possível de jovens possa herdar e habitar numa terra que inspirou tantas pessoas a sonhar.
Deus abençoe a América!

TRÍDUO A SANTA TERESA DE LISIEUX: 3º Dia.


* Dom Frei Vital Wilderink, O Carm, In Memoriam.

Terceiro dia. Tema: O amor de Deus e do próximo

Acolhida
1. Criar um bom ambiente, dando as boas-vindas e colocando as pessoas à vontade.
2. Canto inicial. Sugestão: “Toda a Bíblia é comunicação”. Durante o canto são introduzidas a Bíblia e, em seguida, uma imagem de Santa Teresinha, e colocadas sobre uma mesinha no meio de grupo.
3. O presidente ou coordenador da celebração apresenta brevemente o assunto que vai ser refletido, meditado e rezado neste terceiro dia da novena.
4. Os participantes invocam a luz do Espírito Santo.

O caminho do amor
            Não há dúvida: o amor é a experiência mais universal, mais alta, doce e difícil do ser humano. Ela se reveste de diversos aspectos e dimensões,  de degraus e etapas, de diversas motivações e expressões. Mesmo inconsciente no início, é uma energia primordial que procura alcançar seu objetivo que é de ser aceito como bebê, criança, adolescente, jovem, adulto. É como um anseio do próprio desenvolvimento, sempre acompanhado de um apetite de prazer. Primeiro no plano biológico e psíquico, depois, com o nascer da consciência e do conhecimento, no nível  do afeto da alegria de ser aceito, respeitado e querido como gente. A busca da realização humana em todos seus aspectos sempre está ligada ao respeito da dignidade da pessoa. Do contrário, haverá uma quebra, uma ferida, uma diminuição da responsabilidade mútua que é inerente ao amor. Querer-se bem, querer o bem do outro é uma caminhada difícil que exige uma transformação do nosso eu para abrir o espaço para o amado. A experiência nos ensina que esse mesmo eu é frequentemente da sua própria prisão a vigia mais eficiente.
.           Do momento em que o ser humano faz sua entrada na terra, já no seio materno, manifesta-se nele uma energia primordial que o impulsiona para seu desenvolvimento. É uma força orgânica, biológica e psíquica que, como princípio de prazer, vai em busca de uma afirmação. Mas no ser humano não existe apenas um anseio pelo prazer. Esta aspiração se entrelaça com outro desejo forte: que me aceitem como gente. Querer ser aceito e respeitado é a primeira expressão da dignidade humana.  É toda uma trajetória, que se estende, de modo diferenciado, ao longo  dos anos da vida. e que vai configurando a relação existencial do ser humano  com o ambiente e seu próprio estado vital. Tudo isto ressoa, de maneira dificilmente discernível, na sua consciência e vai plasmando a afetividade do sujeito. O afetivo está presente em todos os setores e dimensões da vida de uma pessoa. No seu caminho de amadurecimento cabe-lhe não só interpretar os seus afetos, mas também tomar uma atitude diante delas.
            Algumas reminiscências que Teresinha guardou da sua infância esclarecem, de modo mais concreto, como isto se deu na vida dela. Ela tinha quatro anos e oito quando sua mãe morreu de câncer. Entre a mãe e a filha existia uma relação afetiva muito forte. Apenas podemos conjeturar o quanto a falta da afeição materna prejudicou a criança na sua evolução psicológica.  Teresinha tornou-se retraída, com uma sensibilidade à flor da pele. A nova e confortável residência em Lisieux para onde a família se mudou, era o ninho que lhe dava ainda certa segurança. O que faz uma criança nestas condições? Chora para atrair a atenção. Mesmo com seus 12 a 13 anos de idade, Teresinha não consegue vencer a sua sensibilidade infantil. “Era realmente insuportável” como comentará mais tarde. Mesmo o horizonte religioso, àquela altura já presente na sua consciência, não conseguia curá-la de sua hipersensibilidade. Às vezes procurava cumprir certas tarefas domésticas às escondidas, “unicamente por amor de Deus”. Mas quando os familiares  não manifestavam nenhum agradecimento ou elogio, as lágrimas da Teresinha já começavam a rolar.
            Mas na Festa do Natal de 1886, acontece o que Teresinha chamará de “a graça de sua conversão completa”. A família voltava da Missa do Galo. Chegando em casa, as crianças corriam para a lareira para pegar seus sapatos cheios de  presentes natalinos. O costume continuava mas só para  Teresinha, que uma semana depois faria quatorze anos! O pai, cansado com a Missa da meia noite, se irritou quando viu os sapatos  da sua filha caçula na lareira. Ainda fora da sala, Teresinha escutou o comentário mal humorado de seu querido pai: “Felizmente que esta vai ser a última vez!” As lagrimas já começaram a brilhar nos olhos da Teresa. Ela subiu a escada para tirar o chapéu. Deixemos que ela mesma conte: “Celina também estava bem a ponto de chorar, pois me queria muito bem e compreendia minha mágoa: “Ó Teresa, disse-me ela, não desça. Seria muito penoso ir neste momento ver o que há nos teus sapatos”. Teresa, porém, já não era a mesma. Jesus tinha transformado o seu coração. Depois de sufocar minhas lágrimas, desci lépida a escadaria. A comprimir as batidas do coração, peguei meus sapatos, coloquei-os diante do papai, e fui tirando alegre todos os objetos, com ar feliz, como o de uma rainha. Papai ria-se, tinha também recuperado a alegria, e Celina estava sob a impressão de um sonho!”.
            Constata-se que, quando o sujeito se vê forçado a reprimir uma tendência, esta é estimulada não somente pela presença de seu objeto conatural, mas também por efeito de um estímulo que encaminha para o objeto por uma associação às vezes casual. Desta maneira aparecem reações agressivas ou alterações nervosas no comportamento. De outro lado, o ser humano é capaz de interromper, por um ato de vontade, a sequência entre uma necessidade sentida e a sua satisfação. Por esta capacidade, exercitada ou não, o ser humano pode subtrair-se na sua conduta à direção do prazer e da dor. Aqui a razão entra no campo afetivo como outro princípio de ação e faz tomar distância do próprio ambiente de vida conseguindo assim impor o seu domínio.  Apresenta-se neste caso algo que possui um alcance maior que a simples necessidade: é o desejo. Os limites do desejo humano não se definem. Cada desejo aponta para um além. Se não fosse assim não haveria renovação do nosso ritmo vital. A nossa vida ficaria presa ao instante das necessidade percebida. Seria o tédio. ”O vento sopra para o sul, depois gira para o norte e, girando e girando, vai dando as suas voltas. Todos os rios correm para o mar, e o mar nunca transborda; embora cheguem Ao fim do seu percurso, os rios sempre continuam a correr”(Ecl 1, 6-7). Como ser pensante abre um parêntese, intercala um espaço não previsto, entre a sucessão das necessidades e suas satisfações. É um “silêncio” certamente não de agrado à sociedade de consumo e à lógica da eficiência do mercado.
            A afetividade humana tem na condição biológica o seu ponto de partida, seu primeiro suporte. Mas não se reduz a estímulos instintivos. Os sentimentos e emoções humanas superam a mera reação biológica. A afetividade humana, com suas duas vertentes, animal e racional, é fundada na unidade da consciência. O que implica na necessidade de uma disciplina pessoal e de uma opção que supõe uma visão do sentido da vida. Na visão da fé cristã, o homem não é uma “paixão inútil”. Reconhece, sim, que a sua existência tem um caráter dramático devido a uma deviação originária.
            No ser humana a afetividade se fundamenta tanto sobre a corporeidade como sobre a racionalidade. O que implica nele uma passividade em relação às suas necessidades e aspirações. Isto não só no âmbito biológico, mas também no nível do seu intelecto uma vez que a vida racional se abre para um horizonte de certo modo infinito. Se o ser humano, a partir dessas suas características fundamentais, não fosse “alvo”, não haveria ressonância de nada na sua consciência, ressonância que precisamente constitui a instância afetiva. Nem haveria, por conseguinte, um estímulo para o agir humano, que pressupõe, por sua vez, uma capacidade de discernir. A questão do discernimento será sempre complexa por causa da junção paradoxal da receptividade passiva e da atividade desbravadora. A repercussão afetiva de uma situação corresponde a condições objetivas ou é efeito de uma emotividade subjetiva?  É provável que haja sempre uma combinação dos dois fatores com um leque muito variável de proporções.
            Considerando a abertura universal da nossa inteligência, não se pode excluir da afetividade do ser humano em relação a Deus. Os escritos da tradição da fé judaico-cristã possuem uma linguagem claramente afetiva. Não aparece neles um Deus descoberto por filósofos a partir das aspirações transcendentes, mas de um Deus que Ele mesmo toma a iniciativa de ir ao encontro do homem. É o Deus que se revela, que estabelece uma aliança com o homem: é um Deus de amor.
            Apela-se à razão para negar objetividade a essa visão. Em defesa de uma explicação geral e objetiva do real, elaboram-se teorias com pretensões de filosofias universais, que tornam desnecessário qualquer outro nível de pensamento. São teorias que, excluindo a metafísica, explicam cientificamente a origem do real, até chegar a um ponto que lhes é cientificamente inatingível. Ponto onde adivinham uma necessidade, um acaso, enfim algo sem razão. Colocando o irracional como fundamento, fazem desabar sua própria construção racional, uma vez reduzem a própria razão a um produto casual do irracional. A fé cristã não interrompe a linha do racional pois coloca no princípio o Verbo, a força criadora da razão no princípio de todas as coisas.  Não se vê como declarar irracional o terreno em que os argumentos científicos e o próprio pensamento filosófico não conseguem penetrar. A fé cristã dá a esse terreno o nome de mistério, não porque deixa de optar pela primado do racional sobre o irracional, mas porque para ela a razão verdadeira é o amor e o amor é a razão verdadeira. Amor e razão coincidem. Há algo de irracional em negar que na sua unidade eles são as o verdadeiro fundamento e objetivo do todo o real. 
            Para a fé cristã Deus é um Deus que se revela ao homem entrando na sua história.  Revelação que atinge no mistério da Encarnação seu ponto mais alto. Deus assume em Cristo um coração humano. As manifestações afetivas do Coração de Cristo são sentimentos divinos: sua bondade, sua misericórdia, mas também seu medo e sua angústia. Santa Teresinha escreve: “Como é linda a nossa religião, em vez de restringir os corações (como imagina o mundo), eleva-os e torna-os capazes de amar, de amar com amor quase infinito”.   De fato, a revelação de Deus visa uma participação à sua vida divina. Assim afirma a segunda carta de Pedro: “O seu divino poder nos presenteou com tudo o que contribui para a vida e para a piedade, mediante o conhecimento daquele que nos chamou por sua glória e poder. Por sua glória e poder, ele nos presenteou com os bens prometidos, os maiores e mais valiosos, a fim de que vós vos tornásseis participantes da na-tureza divina, fugindo da corrupção que a concupiscência espalha no mundo”(2 Pd 1,3-4).  Santa Teresinha pedirá na sua oblação ao amor misericordioso de Deus que ele deixe transbordar em sua alma as ondas de infinita ternura que estão encerradas nele.  As expressões utilizadas por Teresa já manifestam a sua reação afetiva à iniciativa do amor misericordioso de Deus.
            Teresa se deixa monopolizar por esse amor infinito de Deus que nela se reveste de uma forte acentuação cristológica.  Trata-se de um conhecimento experiencial que a faz falar e agir. É neste olhar amoroso fixado em Jesus que se encontra o segredo do seu ardor missionário, do seu desejo de fazer com que Deus seja amado. Não é um sonho infrutífero. Ela encontrou nisto a sua missão na Igreja. Missão que ela traduz concretamente no dia-a-dia de seus relacionamentos humanos no espaço restrito do Carmelo de Lisieux. Em virtude desse dinamismo do amor, desencadeado pela iniciativa de Deus, Teresa se vê realizando todas as missões particulares que para ela são suscitadas pela mesma iniciativa divina. Mas ela descobre que a impossibilidade de ampliar o alcance de espaço e do tempo, não restringe a universalidade  da sua vocação que se deixa absorver pelo amor de Deus. Em agosto de 1897, diante de uma imagem de Joana d’Arc na prisão, ela afirmará: “Os santos encorajam também a mim, na minha prisão. Eles me dizem: ‘Enquanto estiveres acorrentada, não poderá cumprir tua missão; mais tarde, porém, após a tua morte, será a hora de teus trabalhos e conquistas’”.
            A pertença a Cristo conferida no batismo produz uma conformação real, uma relação de filho de Deus, condição que não pode deixar de ressoar na consciência traduzindo-se afetivamente. Assumir esta filiação significa tomar consciência da necessidade de uma entrega à vontade do Pai que “sabe que precisais de tudo isso”(Mt 6, 32). À medida que esse espírito filial crescer e se fortalecer, a apreensão diante do juízo, sempre presente no horizonte da consciência pecadora, vai se dissolvendo diante da confiança: “No amor não há temor. Ao contrário, o perfeito amor lança fora o temor, pois o temor implica castigo, e aquele que teme não chegou à perfeição do amor” 1Jo 4, 18).
            O evangelho de Jesus Cristo é uma revelação do amor, Amor que é o próprio Deus. Por isto, “quem permanece no amor, permanece em Deus e Deus permanece nele” ( 1Jo 4,16). A caridade como amor teologal, nos faz amar. Retifica, confirma, universaliza e diviniza a nossa capacidade de amar. O nosso próximo não nos oferece simplesmente uma ocasião para amar a Deus. Ele é amado, estimado e querido em si mesmo, enquanto participa do amor que vem de Deus. A caridade descobre essa amabilidade que o próximo tem em si, leva a ver o próximo em Deus, na inefável condescendência do Amor divino.
  
O amor na Bíblia
Introdução à leitura do texto bíblico.
A caridade como plenitude do amor unifica a pessoa por dentro. Por isto só uma pessoa que ama é capaz de sair de si mesmo, sem alarido, como canta São João da Cruz:
Em uma noite escura, às escuras, segura, com ânsias, em amores inflamada, pela secreta escada disfarçada, ó ditosa ventura!          ó ditosa ventura! Saí sem ser notada,            em trevas e em celada, ‘stando já minha casa sossegada,            ‘stando já minha casa sossegada.
Ao sair, não tem a impressão de ter deixado algo para trás pela simples razão de “a amada no Amado (estar) transformada” sem impressão de ter deixado um bem para trás pela simples razão de “a amada no Amado (estar) transformada”, como canta São João da Cruz. É uma sedução que paradoxalmente intensifica a liberdade, a espontaneidade e a responsabilidade daquele que ama. É vocação de todos nós caminhar para esta perfeição do amor.

Perguntas para a reflexão:
•Cada um comenta um pouco o diálogo entre Jesus e o jovem rico.
•Em que sentido o convite de Jesus ao jovem pode e deve ser aplicado a nós?

 Teresa, Doutora do Amor.
            Em 1998 Teresa de Lisieux foi proclamada Doutora da Igreja pelo Papa João Paulo II. Já no pontificado de Pio XI que a canonizou em 1925, houve tentativas de conceder a Santa Teresinha o título de Doutora da Igreja. Malgrado sua profunda devoção à nova Santa que ele chamava de  “Estrela do meu Pontificado”, Pio XI não atendeu a essa expectativa. O motivo? Porque se tratava de uma mulher. Mais tarde, duas outras santas mulheres receberam o título: Santa Teresa de Ávila e Santa Catarina de Sena. Hoje existe um movimento para que uma terceira carmelita, Edith Stein, seja proclamada doutora da Igreja. A condição feminina parece hoje um elemento até favorável para mostrar que a Igreja não é machista.
            Doutor da Igreja é um título oficialmente dado pelo Magistério da Igreja a certos escritores notáveis, tanto pela santidade de vida quanto pela importância e ortodoxia de sua doutrina. Sem dúvida, houve outros que ao longo dos séculos seguiram o pequeno caminho, como a Virgem Maria, mas devemos reconhecer que foi Santa Teresinha que lhe deu um brilho e uma influência universal. Pode-se perguntar o que existe de próprio na doutrina teresiana. Vários aspectos poderiam ser apontados, mas o centro é, sem dúvida, o amor. Amor, palavra muitas vezes banalizada. Teresa lhe devolve a sua seriedade ao fazer dele a sua própria vocação. Ela tornou-se Doutora do Amor.
A caridade deu- me a chave de minha vocação. Compreendi que, se a Igreja tinha corpo, composto de vários membros, não lhe faltava o mais necessário, o mais nobre de todos. Compreendi que a Igreja tinha coração, e que o coração era ardente de amor. Compreendi que só o amor fazia os membros da Igreja atuarem, e que se o amor se extinguisse, os apóstolos já não anunciariam o Evangelho e os mártires se recusariam a derramar  seu sangue. Compreendi que o amor abrange todas as vocações, alcançando todos os tempos e todos os lugares. Numa palavra é terno. Então no transporte de minha delirante alegria, pus-me a exclamar: Ó Jesus, meu amor, minha vocação, encontrei-a afinal: MINHA VOCAÇÃO É O AMOR.
            Amor será também a última palavra que ela pronuncia na sua agonia: “Oh! eu o amo!... Meu Deus... eu vos amo!...”.   Desde cedo, antes de entrar na sua adolescência, Teresa “sentia o desejo de amar só a Deus, de não encontrar alegria senão nele”.   Já no fim da vida, o mesmo desejo, amadurecido e purificado pelo sofrimento: “Vós o sabeis, ó meu Deus, nunca desejei outra coisa senão amar-vos, não cobiço outra glória. Vosso amor sempre me preveniu desde a infância, comigo cresceu, e agora se tornou um abismo, cuja profundeza não sei calcular. Amor atrai amor. Por isso, meu Jesus, o meu se atira em vossa direção, querendo atestar o abismo que o empuxa, mas infelizmente não representaria sequer uma gota de orvalho, diluída no oceano! Para vos amar como vós me amais, ser-me-ia necessário lançar mão de vosso próprio amor”. 
            Poderíamos perguntar se Teresa em todas essas declarações de amor, não manifesta uma ilusão de estar abrigada numa torre de marfim, fechada no seu eu que ela projeta num amor de Deus. Não faz lembrar Teresinha menina, que em passeio vespertino, segurando a mão de seu pai pedia-lhe que a guiasse?  “Então, não querendo ver nada desta terra mesquinha, sem olhar onde punha os pés, erguia a cabecinha bem alto para o ar, e não me cansava de contemplar o azul do céu estrelado!”   A autenticidade do nosso amor a Deus não se manifesta na qualidade do nosso amor aos outros nas realidades concretas onde se desenvolve a nossa existência? Certo, Teresa nunca deixou de sonhar com o dia em que estaria reunida com toda a sua família no Céu. Saudades sublimadas do tempo de sua infância?  É descobrindo o amor de Deus que Teresa faz o caminho de volta, da fugacidade do tempo e de todas as coisas para a preciosidade do momento presente: “Que me importa, Senhor, se no futuro há sombra? Rezar pelo amanhã? Minha alma não consente! Guarda meu coração puro! Cobre-me com tua sombra. Agora, no presente!”  Se penso no amanhã, temo ser inconstante, vejo nascer em meu coração a tristeza e o enfado. Eu quero, Deus meu, o sofrimento, a prova torturante agora, no presente!”
Teresa saiu do seu eu com seus inúmeros desejos de tira-gosto. O que sobrou foi o desejo do desejo de amar a Deus.  Suas três irmãs de sangue, carmelitas no mesmo mosteiro, se reuniam junto à cama da caçula da família. Escutemos o diálogo: “O que você quer que digamos hoje?... A melhor coisa seria não dizer absolutamente nada, porque, para dizer a verdade, não há nada para dizer. Tudo já foi dito, não é? Teresa fez um lindo sinalzinho com a cabeça: Foi!... Sofro somente um instante. Nós nos desanimamos e desesperamos apenas por pensarmos no passado e no futuro”.   Quem tem consciência de morar no amor de Deus, tem outra maneira de relacionar-se com o tempo. Não faz as coisas para poder fazer outras. Ele é o que faz.  
            A confiança e o abandono nas mãos de Deus e o sentir-se amada por Ele é em Teresa a fonte do amor aos outros. Deus é a única opção de Teresa. Mas o amor entre os dois não é um diálogo fechado. O mundo está presente nele. É um diálogo no tempo e na história que encontra a sua fonte no mistério da Encarnação, e, de modo denso, no mistério da Paixão de Cristo. “Como a torrente, lançando-se com ímpeto no oceano, arrasta após si tudo quanto encontra de passagem, assim também, ó meu Jesus, a alma que imerge no ilimitado oceano de vosso amor, arrebata consigo todos os tesouros que possui... Senhor, vós o sabeis, não tenho outros tesouros senão as almas que vos aprouve unir à minha. Tais tesouros, fostes vós que mos confiastes”. Teresa não seleciona as almas. É verdade que ela pensa nos pequenos. Ficaria até feliz se Deus pudesse encontrar almas que, em relação a ela, ganhassem em pequenez porque o critério será sempre a misericórdia divina. Pois foi do agrado do Pai revelar estas coisas aos pequeninos (Mt 11, 26).  Teresa recorre frequentemente às cartas de São Paulo. Também no tema da misericórdia de Deus, ela se reconhece no Apóstolo dos Gentios: “Jesus não chama os que disso são dignos, mas o que são de seu agrado, ou conforme diz São Paulo: ‘Deus tem compaixão de quem lhe apraz, e faz misericórdia a quem Ele quer aplicar misericórdia. Isto, portanto, não depende de quem quer, nem de quem corre, mas de Deus que se compadece”(Rm 9, 15-16).
O pensamento de Teresa não é arbitrário, mas atinge o mistério insondável da salvação. Por isso mesmo descobre a sua vocação de amor no coração da Igreja, como uma vocação profundamente apostólica: “Tenho vocação de ser apóstola... Quisera percorrer a terra, apregoar teu nome, e cantar em terra de infiéis tua gloriosa Cruz. Mas, ó meu Bem-Amado, uma única missão não me seria bastante. Quisera anunciar, ao mesmo tempo, o Evangelho pelas cinco partes do mundo até as ilhas mais remotas... Quisera ser missionária não só por alguns anos, mas quisera sê-lo desde a criação do mundo, e sê-lo até a consumação dos séculos... Mas, acima de tudo, quisera, ó meu amado Salvador, por ti quisera derramar meu sangue até a última gota...”.
De novo surge a tentação do ceticismo para quem a linguagem e a empolgação  de Teresa pode parecer uma fuga da vida cotidiana que ela levava no Carmelo de Lisieux. Ambiente em que não faltavam relacionamentos eivados de autoritarismo, mesquinhez e ciúme, que facilmente aumentam o volume da sua ressonância afetiva quando o espaço do mosteiro é reduzido pelo clausura, mas habitado por um número não pequeno de religiosas. As “alfinetadas” de que Teresa fala, fazem sonhar com horizontes mais amplos.  Mas o horizonte de Teresa não é feito de um sonho, mas é “o próprio Jesus, esta divina realidade” como ela sublinha. Ainda postulante, ela escreve para sua irmã Celina: “Antes de morrer pela espada, morramos às alfinetadas”.   As renúncias não procuradas que a cada momento se apresentam no relacionamento com as irmãs, principalmente no trato com as noviças por cuja formação Teresa é responsável, fazem-lhe descobrir e também ensinar melhor o seu pequeno caminho de amor. Teresa não quer saber de gestos heroicos de santidade. Para ela o ponto de referência é Jesus, que ela quer seguir amando. Jesus, o Filho de Deus que veio para fazer a vontade do Pai. Vontade que consiste em dar ao mundo o Filho, e nele o amor do Deus-Trindade. Um mês antes de sua morte, perguntaram-lhe se ficaria contente se soubesse que dentro de alguns dias iria morrer, ou se preferiria receber um aviso de que o seu sofrimento iria aumentar durante um longo período ainda. A resposta de Teresa: “Oh! não, absolutamente, não ficaria mais contente. A única coisa que me deixa contente é fazer a vontade do bom Deus”.  
Quando Teresa fala, reagindo às observações das suas irmãs que cuidam da enferma, as suas palavras não armam ao efeito. Seus comentários às admiradoras de sua paciência, beleza ou santidade, revelam um senso de humor que desloca a atenção para o seu Amado: “Bom, tanto melhor! Mas gostaria que o bom Deus o dissesse”.  

Celebremos o Amor de Deus
Santa Teresinha é Doutora do Amor que quer se doar. É a missão que ela descobriu.  
             
Quando ela começa a escrever a história de sua alma, ela afirma: “Só vou fazer uma coisa: começar a cantar o que devo repetir eternamente: As Misericórdias do Senhor!!!”.  Na segunda página do seu caderno, ela explica: “Compreendi que o amor de Nosso Senhor revela-se tanto na alma mais simples, que em nada resiste à sua graça, como na alma mais sublime. Na realidade, é próprio do amor rebaixar-se. Se todas as almas parecessem com as dos santos doutores que iluminaram a Igreja com a luz da sua doutrina, parece que Deus não desceria bastante ao vir até o coração deles. Mas criou a criança que nada sabe e só emite fracos gritos, criou o pobre selvagem que só tem como guia a lei natural e é até o coração deles que se digna descer; são as suas flores do campo cuja simplicidade O encanta... Descendo assim, Deus mostra sua infinita grandeza. Assim como o sol ilumina ao mesmo tempo os cedros e cada florzinha, como se ela fosse única sobre a terra, assim Nosso Senhor se ocupa particularmente de cada alma como se não houvesse outra igual. Como na natureza, todas as estações são determinadas de modo a fazer desabrochar, no dia marcado, a mais humilde margarida, assim tudo corresponde para o bem de cada alma”.

Preces
3. Em forma de prece vamos agradecer a Deus o dom que Ele nos fez em Santa Teresinha que, através da sua vida, nos apontou o caminho do amor.
4. Ler juntos as palavras de Jesus que foram escritas para todos nós:  “Assim como meu Pai me amou, eu também amei vocês. Se vocês obedecem aos meus mandamentos, permanecerão no meu amor, assim como eu obedeci aos mandamentos do meu Pai e permaneço no seu amor. Eu disse isso a vocês para que minha alegria esteja em vocês, e a alegria de vocês eja completa. O meu mandamento é este: amem-se uns aos outros, assim como eu amei vocês”(Jo 14, 9-12).

Rezar o Pai Nosso.

Oração:
Ó Deus, criador de todas as coisas, volvei para nós o vosso olhar e, para sentirmos em nós a ação do vosso amor, fazei que vos sirvamos de todo coração, como nos mostrastes pelo exemplo de Santa Teresinha. Por nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, na unidade do Espírito Santo.

*Dom Frei Vital Wilderink, O Carm- Eremita Carmelita- foi vítima de um acidente de automóvel quando retornava para o Eremitério, “Fonte de Elias”, no alto do Rio das Pedras, nas montanhas de Lídice, distrito do município de Rio Claro, no estado do Rio de Janeiro. O acidente ocorreu no dia 11 de junho de 2014. O sepultamento foi na cidade de Itaguaí/RJ, no dia 12, na Catedral de São Francisco Xavier, Diocese esta onde ele foi o primeiro Bispo.

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

FREI PETRÔNIO: Pensamento do Dia. (QUINTA, 24).

*TRÍDUO A SANTA TERESA DE LISIEUX: 2º Dia.


*Dom Frei Vital Wilderink, O Carm, In Memoriam.

Segundo dia. Tema: A fundamental experiência da esperança

Acolhida
   1. Criar um bom ambiente, dando as boas-vindas e colocando as pessoas à vontade.
   2. Canto inicial. Sugestão: “A Ti, meu Deus, elevo meu coração”. Durante o canto são introduzidas a Bíblia e, em seguida, uma imagem de Santa Teresinha, e colocadas sobre uma mesinha no meio de grupo.
   3. O presidente ou coordenador da celebração apresenta brevemente o assunto que vai ser refletido, meditado e rezado neste segundo dia da novena.
   4. Os participantes invocam a luz do Espírito Santo.

A esperança que nos faz caminhar
            O ser humano, no seu viver e conviver, é movido por desejos e projetos.  É um dinamismo que sempre está presente, não só de modo consciente, mas também no plano inconsciente e pré-consciente. Já atua no ser humano ainda no seio materno.   Graças a ele abrem-se as possibilidades da realização humana. Mas nem sempre os desejos encontram as portas abertas. Diversos fatores levam também a portas fechadas. As possibilidades de êxito não excluem de antemão os fracassos. A esperança conta sempre com o desafio. Do contrário seria como um relógio que indica inexoravelmente todas as horas até que se apresenta um desgaste do mecanismo ou da pilha. O relógio não convive com esses defeitos. A esperança visa o “dar certo” na vida, mas sabe dar sentido a eventuais fracassos. Até podemos dizer que se alimenta dos fracassos, integrando-os na caminhada para o bom êxito. É que o dinamismo da esperança humana carrega em si uma certeza prática, justificada  pela inteligência e pela experiência da vida. Sem isto, facilmente se revela como ilusão. A experiência nos ensina que muitas promessas neste mundo transformaram a vida de uma pessoa, de uma família, ou mesmo da sociedade em pesadelo, desfazendo sonhos de felicidade. 
            A esperança cristã é a firme confiança de obter a felicidade prometida por Deus. Ela é uma das três virtudes teologais: o próprio Deus é a sua origem seu motivo e seu objeto. Fundada na fé, a esperança se apoia na certeza da promessa e da ajuda da graça divina. A virtude da esperança responde ao desejo de felicidade que Deus colocou no coração humano criado por Ele. Por isso, não rejeita as esperanças que inspiram a  caminhada do homem neste mundo. A esperança assume as nossas atividades, purificando-as para que sejam orientadas para a felicidade que só Deus pode dar. Como Deus é maior do que o nosso coração, a esperança é a confiança de obter também tudo o que nos conduz à felicidade divina: a graça e a perseverança até o fim.

A Bíblia nos fala da esperança

1. Introdução à leitura de alguns textos bíblicos
            A fé, a esperança e a caridade estão intimamente interligadas. Quando Deus, revelando-se em Jesus Cristo, nos convida a crer nele,  ele se apresenta como quem merece confiança, suscitando em nós uma esperança. Esta esperança não se baseia nos nossos méritos, mas no amor com que Deus nos ama. O nosso amor a Deus faz crescer a fé e a esperança. E quanto maior for a nossa fé e a nossa esperança no poder e na misericórdia de Deus, tanto mais recebe-se dele.
2. Canto: “Eu confia em Nosso Senhor, com fé esperança e amor”
3. Leitura do texto da Bíblia: Mt 5, 1-11.
4. Momento de silêncio.

5. Perguntas para a reflexão:
•O que chamou mais a sua atenção nas Bem-aventuranças proclamadas por Jesus? Por que?
•“Só Deus satisfaz”. Está de acordo com estas palavras de Sto Tomás de Aquino?  Como conciliar essa afirmação com os nossos engajamentos, compromissos e atividades terrestres?

Teresa: uma “Teóloga” da esperança
            O ser humano tem uma tendência natural à sua melhor realização.  Neste sentido ele se define pelo desejo, pela esperança. A experiência nos mostra que essa busca de felicidade descamba freqüentemente para um egoísmo. Numa sociedade de consumo comandada pelo sistema econômico neo-liberal, o individualismo encontra um terreno particularmente propício, cuidadosamente  regado pela mídia. Não faltaram outras pessoas ou correntes que procuraram abranger sociedades inteiras num vasto movimento de esperança inspirado por determinadas ideologias, como o comunismo ou vários modelos de nacionalismo. Mas também nestes casos os quadros da felicidade prometida acabaram despencando.
            A França, na época em que Teresa viveu, era caracterizada por um ateísmo e virulento anticlericalismo., especialmente entre as elites intelectuais. Como podia seu ingresso num convento de clausura ser um gesto de esperança? Não era antes uma fuga, uma evasão egoísta mascarada por pensamentos piedosos sobre a salvação dos pecadores?  Afinal, em que consistia a esperança de Teresa de Lisieux? Que a justiça de Deus acertasse as contas com os que não acreditavam nele?  Sim, a justiça de Deus estava na mira da Carmelita porque contempla e adora as suas perfeições  divinas através de sua infinita misericórdia: “a própria justiça (talvez mais do que qualquer outra) se me afigura revestida de amor”.   Não é na situação deplorável do mundo que ela fixa seu olhar: “meus desejos, minhas esperanças, vão às raias do infinito”.  A esperança da Teresa é realmente teologal. vai ao seu verdadeiro ponto de apoio. Ela não parte de uma espécie de pressuposição de que um número de criaturas humanas sofrerá a condenação eterna, como determinadas interpretações teológicas do mistério da predestinação apregoavam. Este fatalismo não aparece no vocabulário de Teresa, permeado pela certeza da gratuidade da infinita misericórdia divina. Para a sua ousadia temerária não há como não apostar nesta última.
            Aqui aparece, talvez, um traço característico da visão feminina do mistério de Deus à qual, durante séculos, foi vedado o acesso ao pensamento teológico elaborado pelos homens. Não é isto que ela deixa entrever quando constata que Deus é pouco amado na terra ...mesmo pelos padres e religiosos?   Teresa desejou ser identificada ao Amor. O amor não seria amor se não fosse uma sede de expansão, de doação.  Por isto a esperança alarga seus horizontes à medida que nos animam os sentimentos de Cristo (cf. Fl 2,5): “Cristo que morreu por nós quando éramos ainda pecadores”(Rm 5,8). Já na sua adolescência Teresa, apelando à misericórdia de Deus revelada na Paixão e Cruz de Jesus, se empenhara na conversão de Pranzini, cujo processo de condenação pela justiça francesa havia acompanhado através da imprensa. Foi “meu primeiro filho”,  como ela comentaria  mais tarde. Sempre serviço da misericórdia divina, ela adotará outros pecadores. E quando, na Festa da Santíssima Trindade, em 1896, se oferece a Deus como vítima do seu amor misericordioso, ela faz um ato de esperança cega. Ela a justifica  dirigindo-se a Deus: “Ó luminoso farol  do amor, sei como achegar-me até a ti, descobri o segredo de apossar-me de tua chama”.   Familiarizada com as cartas de Paulo apóstolo, Teresa escreve: “Não deixava de esperar contra toda esperança”.  Certamente, ao citar estas palavras, não previa o alcance delas quando sua esperança, durante a prolongada provação da fé, vai estender-se a todos os pecadores. Nesta longa noite Teresa mergulha na experiência da escuridão daqueles que não acreditam no Céu.  Privada  da alegria que lhe era proporcionada pela esperança da proximidade do Céu, ela compartilhava a condição dos pecadores, unia-se a eles. Mesmo assim recebe esta provação como um dom pelo qual Cristo a associa à obra da redenção e à esperança da sua fecundidade: “Senhor, vossa filha  compreendeu vossa luz divina. Pede-vos perdão em lugar de seus irmãos. Pelo tempo que quiserdes, aceita comer o pão da dor, e da mesa coberta de amargura, onde comem os pobres pecadores, não quer levantar-se antes do dia que determinardes”. 
Teresa se compara aqui a uma criança na estação ferroviária, esperando seus pais que devem acomodá-la dentro de trem. Mas eles não chegam, e o trem parte! E ela acrescenta: “mas haverá outros trens, não perderei todos...”.  Teresa não perdeu a esperança. Contudo, esta esperança ficou como que desativada. Ela doou a sua força para outros, para os inúmeros outros. Ela se lançou no insondável mistério do Amor de Deus para amar com esse Amor o mundo.

Cantar a nossa esperança
1. Canto: “Segura na mão de Deus”.
  
2. A esperança é a força que nos faz caminhar. Pois, como diz S. Paulo, “é na esperança que fomos salvos. Ora, aquilo que se tem diante dos olhos não é objeto de esperança: como pode alguém esperar o que está vendo? “(Rm 8, 24). Mas  a esperança não é simplesmente desejar uma coisa a receber mais tarde, enquanto ficamos aguardando de braços cruzados.. A esperança já vai mudando a pessoa nas suas atitudes por dentro e por fora. Teresa o diz da seguinte maneira: “Sejais vós mesmo, meu Deus, minha santidade”. A esperança faz desejar Deus como fim para o qual caminhamos, mas também como motivo em que nos apoiamos para chegar a esse destino. A esperança dá a Deus a primazia no processo da transformação nossa, como pessoas individuais e como comunidade. Primazia de Deus que faz pensar no papel da pobreza evangélica na nossa vida. Teresa de Lisieux viveu as Bem-aventuranças.
3. Em forma de prece agradeçamos a esperança que Santa Teresinha viveu, envolvendo a nós todos, e pedir, por intercessão dela, que Deus seja sempre mais o nosso único ponto de referência da nossa esperança.
4. Rezar um salmo. Sugestão: Salmo 27: “Deus é minha luz e salvação”.
5. Rezar o Pai Nosso.
6. Oração:
Ó Deus, que preparais o vosso Reino para os pequenos e humildes, dai-nos seguir confiantes o caminho de santa Teresinha, para que, por sua intercessão, nos seja revelado a vossa glória. Por nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, na unidade do Espírito Santo.
*Dom Frei Vital Wilderink, O Carm- Eremita Carmelita- foi vítima de um acidente de automóvel quando retornava para o Eremitério, “Fonte de Elias”, no alto do Rio das Pedras, nas montanhas de Lídice, distrito do município de Rio Claro, no estado do Rio de Janeiro. O acidente ocorreu no dia 11 de junho de 2014. O sepultamento foi na cidade de Itaguaí/RJ, no dia 12, na Catedral de São Francisco Xavier, Diocese esta onde ele foi o primeiro Bispo

*TRÍDUO A SANTA TERESA DE LISIEUX: Introdução- 1º Dia.

Dom Frei Vital Wilderink, O Carm, In Memoriam.

O que nos motiva neste Tríduo?
            A nossa memória guarda, ainda bem viva, a peregrinação das relíquias de Santa Teresinha por vários continentes e países, por ocasião de Io Centenário da morte da jovem carmelita. Também no Brasil, em 1998, a visita atingiu quase todas as dioceses. Ao que parece, os santos estão voltando para a espiritualidade hodierna. Talvez seja porque os cristãos de hoje preferem modelos concretos, personalizados. Pensar e refletir  a partir de conceitos não basta. Há um desejo de ver, de uma presença. Algo semelhante já acontecia com os primeiros discípulos de Jesus: “Mestre, onde moras?”. “Vinde e vede...”
            A verdadeira história póstuma de Teresinha é contada pelas multidões que se sentem atraídas por essa presença dela Mas é uma história que nunca será escrita. Permanecerá um segredo entre a Santa e a multidão das pessoas que vão vê-la. No entanto, a própria Teresinha, já no fim da sua vida, pressentiu a sua atuação que, depois da sua morte, se faria sentir no mundo inteiro: “Se o bom Deus atender meus desejos, meu céu se passará na terra, até o fim do mundo. Sim, quero passar meu céu a fazer o bem na terra”.
            Aqui nos confrontamos com o mistério de Santa Teresinha, que, apesar de tantos excelentes estudos e publicações, nos escapa. Escapa porque tem a ver com o mistério do próprio Deus que “amou o mundo a tal ponto que deu o seu Filho único” (Jo 3,16). Esta gratuidade da iniciativa do amor de Deus envolveu em Jesus Cristo as interrogações que a humanidade carrega.
            Na sua “História de uma alma” Teresinha nos conta como ela descobriu e se deixou tocar por esse amor gratuito de Deus. Procurou conformar sua vida com o sentir e pensar de Jesus Cristo (cf Fl 2,5). a quem acompanhou do seu nascimento em Belém até a morte no Calvário. Até o nome que assumiu na sua vida de carmelita traça esse itinerário: Teresa do Menino Jesus e da Santa Face.
            Misteriosa solidariedade esta do Filho de Deus que como Palavra de Deus assumiu a história humana com suas interrogações entre as quais ressoa o tom dominante do pecado do mundo. Teresa não foge delas. Assenta-se inclusive à mesa dos pecadores. A revelação da misericórdia de Deus em Jesus Cristo a torna amorosa e confiante, como uma criança diante do pai, mesmo quando este parece mais ausente que presente. Daí a sua declaração dois meses antes de morrer: “Sinto que minha missão vai começar, minha missão de fazer amar o bom Deus como eu o amo, de indicar às almas minha pequena trilha”.
            Esta novena pressupõem as múltiplas interrogações que estão presentes na nossa vida, na história com suas alegrias e tristezas, esperanças e angústias. Temos muito para agradecer a Deus. Mas também não nos faltam aspirações, preocupações, problemas e sofrimentos, seja no enredo da vida pessoal, seja na realidade mais ampla em que vivemos.  É possível que, às vezes,  enxerguemos as coisas de uma maneira distorcida; o que já é uma causa de sofrimento.  A nossa fragilidade manifesta-se freqüentemente na própria autosuficiência
            Fato é que há inúmeras situações que nos levam a questionar  a vida que temos. Mas, se questionamos, deve haver alguma coisa que para nós está fora de discussão. Qual é este horizonte? É importante descobrir o que realmente está em jogo nas nossas interrogações e na resposta que esperamos. Muitos dentre nós irão participar desta novena para pedir uma graça de Deus por intercessão de Santa Teresinha. Afinal, foi ela mesma que nos motivou: “Quão infeliz não serei no céu, se não puder promover pequenas alegrias aos que amo”. A simplicidade destas palavras poderia dissimular a importância e qualidade dessa declaração. É preciso interpretá-la  na perspectiva do testemunho da vida de Teresinha como aparece nos seus escritos. O que ela quer é cantar a misericórdia divina cuja ação soberana ela descobre tanto no conjunto como nos detalhes de sua vida, tanto nos acontecimentos felizes como nas situações dolorosas.
            Possa esta novena contribuir para simplificar também o nosso olhar que descobre tudo, em Deus e na história, sob a luz da misericórdia divina. Se nossos problemas não têm bom enfoque, dificilmente encontraremos boa solução para eles.
            O que está em jogo, também nesta novena, é a nossa renovação espiritual. Teresa do Menino Jesus e da Santa Face entende disto porque se encontra na encruzilhada das questões essenciais no nosso tempo. Não é sem razão que ela foi proclamada Doutora da Igreja.

Como fazer a novena?
            Há várias maneiras de fazer a novena: em pequenos grupos, na igreja com maior número de fiéis, individualmente. Cada maneira tem uma dinâmica diferente. Apresentamos algumas sugestões para a celebração em pequenos grupos. É um roteiro que facilmente poderá ser modificado e adaptado segundo as possibilidades de outros ambientes.

Acolhida
   1. Criar um bom ambiente. Dar as boas- vindas. Colocar as pessoas à vontade.
   2. Introduzir a Bíblia e uma imagem ou fotografia de Santa Teresinha.
   3.  Canto de abertura
   4.  Apresentar brevemente o assunto que vai ser refletido, meditado e rezado no respectivo dia da novena.
5. Invocar a luz do Espírito Santo.
   6.  Uma pessoa do grupo, convidada com antecedência, faz uma pequena introdução ao tema do dia, com o objetivo de colocá-lo dentro da vida, de tal maneira que os participantes possam conversar sobre o assunto olhando de perto as coisas de nossa vida.
   7. Leitura do texto da Bíblia. Segue um momento de silêncio e são colocadas algumas perguntas para a reflexão.
   8. Leitura de um texto de (ou sobre) Santa Teresinha, para ver como ela viveu na sua vida o tema refletido pelo grupo.
   9. Celebrar o dom que Deus nos fez na vida e na vocação de Santa Teresinha.

Primeiro dia
Tema: A nossa vida de fé

Acolhida
   1. Criar um bom ambiente, dando as boas-vindas e colocando as pessoas à vontade.
   2. Canto inicial. Sugestão: “Em nome do Pai, em nome do Filho, em nome do Espírito Santo, estamos aqui...”. Durante o canto são introduzidas a Bíblia e, em seguida, uma imagem de Santa Teresinha, e colocadas sobre uma mesinha no meio de grupo.
   3. O presidente ou coordenador da celebração apresenta brevemente o assunto que vai ser refletido, meditado e rezado neste primeiro dia da novena.
   4. Os participantes invocam a luz do Espírito Santo.

Vamos olhar de perto a nossa vida de fé
De certos personagens que aparecem na Bíblia se diz que “andavam com Deus”, que “caminhavam na presença dele”. São expressões que indicam seu relacionamento pessoal com Deus no centro da vida e da história. “Caminhar com Deus” significa percorrer as estradas e atalhos da vida cotidiana acolhendo, além de simples sentimentos nostálgicos, o imprevisto de sua manifestação. É onde os seus pensamentos não são os nossos pensamentos, os seus caminhos não são os nossos caminhos.  “Caminhar com Deus” significa também descobrir aos poucos que Deus não existe para ajustar-se ao meu “Eu”.
            Todos somos chamados a caminhar com Deus. Mas como podemos sentir que a nossa vida é perpassada pela presença divina? É o próprio Deus que nos dá esta capacidade. Deus infunde na alma dos fiéis as assim chamadas virtudes teologais que dispõem os cristãos a viver em relação com a Santíssima Trindade . As virtudes teologais são três: a fé, a esperança e a caridade. Já imaginou como seria a nossa vida sem crer, sem esperar, sem amar? Seria uma vida sem horizonte, sem rumo, sem sentido.  Um verdadeiro buraco! As virtudes teologais se referem diretamente a Deus como sua origem, motivo e objeto. Elas abrem horizontes sempre mais amplas para a nossa vida.
            A fé é o princípio, o fundamento e a fonte da salvação. A salvação consiste em ser verdadeiros filhos de Deus, em participar, como criaturas, da vida da própria Trindade. É ter a vida eterna em nós. É realmente uma Boa Nova!  Mas é preciso lembrar que esta iniciativa de Deus de dar-nos poder de nos tornarmos filhos dele implica a nossa conversão: “Convertei-vos e crede no Evangelho”. Não pode haver alegria antes da conversão. Na caminhada com Deus sempre ressoa a nossa humilde prece: “Senhor, tende piedade de nós...”.
            A fé é entregar-se livremente a Deus. É uma entrega total, pois pela fé cremos em Deus. Cremos em tudo o que ele disse e  revelou, e que a Igreja nos propõe para crer. É que Deus é a própria verdade. A fidelidade a essa entrega nos faz procurar conhecer e fazer a vontade de Deus. Fazendo o contrário, a fé vai morrendo, porque a sua dinâmica que anima e caracteriza o agir moral do cristão vai diminuindo e desaparecendo. Por isto o apóstolo Tiago escreve na sua carta: “A fé sem obras é morta” (Tg 2,26). Ficando privado da esperança e do amor, o dom da fé  permanece, a não ser que se peca contra a própria fé. Cria-se, porém, uma situação muito precária. Há cristãos que perdem a fé como se perde um objeto. Aos poucos a fé desaparece como o verniz numa porta que fica exposta às intempéries.
            Um cristão cuja fé é morta, continua a crer no que Deus revelou em Jesus Cristo, mas a sua fé não incide na sua vida, como fonte de sentido, de orientação e de santidade. Por isto é  bom lembrar que a revelação de Deus não se reduz a um conjunto de verdades, de conhecimentos transmitidos. A revelação é em primeiro lugar Deus que se doa à nós. A revelação é um encontro que nos introduz num “cara a cara”.

A Bíblia nos fala da fé
1. Introdução à leitura do texto.
            Os evangelhos nos dizem que ter fé é garantia de mudança da história, porque “em verdade vos digo: se tiverdes fé do tamanho de um grão de mostarda, direis a esta montanha: ‘Vai daqui para lá’ e ela irá. Nada vos será impossível” (Mt 17,20). Vamos ouvir um  texto do evangelho de Marcos inteiramente centrado no tema da fé, ou melhor, na falta de fé.
 2. Um canto de aclamação ao evangelho.
 3. Leitura do texto: Marcos,  9, 14-29.
4. Momento de silêncio.
 5. Perguntas para a reflexão:
•Qual o ponto que chamou mais a sua atenção? Por quê?
•O menino epilético do evangelho “tem um espírito mudo”. Parece que o mudismo atingiu também os discí-pulos”: não conseguirem fazer nada. Ficaram olhando o doente e, quem sabe, discutindo. Porque será que Jesus diz que a impotência deles é sinal de uma “geração sem fé”?
           
Fé: a aposta e o combate de Teresa
Recebemos o germe da fé no batismo. Ele vai se desenvolvendo num ritmo que varia de pessoa para pessoa. É um processo, sempre vulnerável, que depende também de fatores interiores e exteriores à pessoa, positivos ou negativos. Basta pensar na educação, no ambiente familiar, social e cultural, nos condicionamentos afetivos e psicológicos de quem caminha. Mas a fé é sempre um “caminhar com Deus” a quem cabe a iniciativa constante. Na história de uma vida, defrontamo-nos sempre com o mistério insondável do Deus que “nos amou primeiro”.
            Aderir a Cristo não é simplesmente uma questão de sentimentos ou de um sistema de pensamento, nem mesmo de um código de moral. No cristão de fé madura, é o centro de gravidade de sua própria vida que se desloca. A fé atinge a sua própria razão de ser, de viver, de servir, de sofrer, de esperar e de amar. Por isto quando a fé é testada, purificada no crisol da vida, o cristão sente-se ameaçado no equilíbrio de seu ser, como um barco  que vai a pique. Assim aconteceu com o profeta Elias que acabou com o culto dos falsos deuses no Monte Carmelo, favorecido pela rainha Jezabel. Quando ela prometeu vingar-se, Elias, tomado de medo, fugiu para o deserto. Caminhou sempre na presença do Deus vivo, combatendo com grande ardor a idolatria. Agora sente-se questionado profundamente na visão que tinha das coisas, nos valores que motivavam todas as fibras de seu ser a serviço do verdadeiro Deus. O deserto que não oferece nada a que possa agarrar-se, parece até zombar-se dele: para que serviu todo esse seu zelo?  Exausto pelo cansaço e pela falta total de motivação, o profeta cai debaixo de um junípero.
 “Pediu a morte, dizendo ‘Agora basta, Iahweh! Retira-me a vida, pois não sou melhor que meus pais’...Mas eis que um Anjo o tocou e disse-lhe: ‘Levanta-te e come’. Abriu os olhos e eis que, à sua cabeceira, havia um pão cozido sobre pedras quentes e um jarro de água. Comeu e bebeu e depois tornou a deitar-se. Mas o Anjo de Iahweh veio pela segunda vez, tocou-o e disse: ‘Levante-te e come, pois do contrário o caminho te será longo demais’. Levantou-se e, depois, sustentado por aquela comida, caminhou quarenta dia e quarenta noites até à montanha de Deus, o Horeb” (1 Reis, 19, 4-8).
A fé é uma entrega, é uma aposta total. Quem com esta disposição caminha com Deus, vai descobrindo que Deus é diferente do que pensávamos, que Ele é maior que o nosso coração. Quanto mais profundamente  a fé penetrar na alma do cristão, tanto mais ele se sentirá sacudido nos fundamentos do seu ser. O seguimento de Jesus Cristo não tem um itinerário pré-programado como o peregrino tinha imaginado. Para cada cristão chega a hora de deixar as redes e o barco de seus de seus planos.
            O caminho da fé não é igual para todos. Cada um tem sua história. Se há homens e mulheres que nele chamam a nossa atenção pelo testemunho da sua aventura, é para o bem de todos nós. Eles nos lembram que a fé é um desafio, e que só pode existir verdadeiro desafio quando se mergulha no essencial da vida. Santa Teresinha é uma dessas testemunhas cuja grandeza consiste em ter descoberto um “pequeno caminho inteiramente novo” feito para os simples e os pequenos.
            O ambiente da família em que Teresinha nasceu e cresceu ofereceu, sem dúvida, um solo favorável para o desenvolvimento do germe da fé que ela recebeu no batismo, em 4 de janeiro de 1873. A cultura religiosa de uma família da burguesia francesa do fim do século XIX, não deixará de marcar o estilo dos seus escritos que transbordam de diminutivos e imagens nem sempre ao gosto da nossa época. Estilo que durante muito tempo escondeu para muitos o verdadeiro rosto desta Santa que revolucionou a espiritualidade cristã deslocando o eixo da vocação à santidade da “perfeição” à comunhão com Deus.
            Teresa era uma menina sensível. Muito emotiva e dotada de uma imaginação viva, que observa e registra tudo que vê, ela chora frequentemente. Há um quê de altivez e teimosia nessa criança. A impaciência e a cólera não lhe são estranhas. Mais tarde, com vinte e dois anos de idade, a carmelita irmã Teresa reconhecerá que estava longe de ser uma menina sem defeitos. Ela não era santa, mas tornou-se santa. Bem podia ter tomado na vida um caminho oposto:
 “Não tenho, portanto, nenhum mérito em me não ter entregue ao amor das criaturas, uma vez que só fui preservada pela grande misericórdia do Bom Deus ... Reconheço que, sem Ele, poderia cair tão baixo com Santa Madalena... Não ignora também que a mim Jesus perdoou mais do que a Santa Madalena, pois me perdoou por antecipação, porquanto me impediu que caísse. Oh! pudera explicar o que sinto!” 
    Nos defeitos existe sempre algo de positivo que deve ser burilado. A pequena Teresa sabia o que queria. Decidida como era, não lhe assentava a beatice. Ainda pequena, refletia sobre o poder de Deus, gostava de pensar no céu. À sua maneira ela faz pequenos sacrifícios. Seu desejo, não isento de birra infantil, é “dar prazer a Jesus”.
            Em 1887, os jornais franceses acompanharam o caso de Henrique Pranzini, que, acusado de assassinatos, fora condenado à morte pelo tribunal.  Teresa, assume o criminoso como seu pecador rezando e fazendo sacrifícios pela sua conversão do assassino impenitente. Às escondidas, ela percorre ansiosamente as páginas do jornal para saber como foi a morte dele. Declarou a Deus que acreditaria no seu perdão concedida a Pranzini mesmo se este “não se confessasse nem manifestasse alguma sombra de arrependimento, tanta era a minha confiança na infinita misericórdia de Jesus”..A única coisa que ela pedia era um  “sinal” de arrependimento. Isto lhe daria coragem para continuar a rezar pelos pecadores. As lágrimas de Teresa rolaram quando leu a reportagem da execução: já no patíbulo para ser guilhotinado, Pranzini arranca das mãos do sacerdote o crucifixo beijando três vezes as Sagradas Chagas.
            A “teimosia” e o caráter decidido de Teresinha encontram aos poucos um leito na sua vida de fé. Insiste junto às autoridades da Igreja, subindo a escada da hierarquia até o Papa Leão XIII, a permissão de entrar no Carmelo de Lisieux com quinze anos de idade. As lágrimas continuam a aparecer quando recebe respostas negativas ou evasivas. Mas tudo isto não abalava sua fé, mesmo diante da falta de sensibilidade humana do superior do Carmelo, ferrenho opositor à entrada de Teresa no Carmelo. No momento da sua entrada  no mosteiro o sacerdote, como delegado do Bispo diocesano, não lhe poupou palavras duras. Dirigindo-se à comunidade das carmelitas, assim se expressou: “Faço votos que esta criança de quinze anos, cuja entrada desejaram, não decepcione suas esperanças. Mas chamo a sua atenção que, se acontecer o contrário, a responsabilidade é toda das senhoras”.
            Em uma das suas cartas, o apóstolo Paulo escreve: “Sei em quem pus minha fé”(2Tm 1,12). Isto jamais poderia dizer da  fé que alguém pode pôr em uma pessoa humana. A fé cristã é um entregar-se incondicionalmente a Deus e crer absolutamente no que ele diz. Cremos em Deus porque é Deus.  Ele revela e não pode nem enganar-se e nem enganar-nos. A fé está acima da razão humana embora entre uma e outra jamais possa haver uma real oposição. Sempre, porém, há uma tendência de transformar a fé, a sua certeza e as verdades nela contidas, em propriedade nossa. Por isto o crescimento na fé não acontece sem uma purificação. A fé passa por fases de desapropriação que não são as mesmas para todos nós. Para Teresa de Lisieux a provação da fé foi muito profunda. Mas foi, provavelmente, indispensável  - Deus o sabe -  para testar a sua espiritualidade pessoal a fim de que tivesse credibilidade na Igreja inteira: a espiritualidade das mãos vazias. Teresa chegou à convicção de que aquilo que é realmente importante para a uma vida santa não nos advém de práticas e realizações extraordinárias, mas nos cai nas mãos por pura graça de Deus.
            Desde a Páscoa de 1896 a vida de Teresa é marcada por uma profunda crise de fé. Desde pequena a Céu tinha sido seu grande ponto de referência. Era sua felicidade. Houve tempos em que o desejo do céu  na sua vivência da fé fora tão sensivelmente consoladora, que ela pensou ter alcançado em alguns momentos a perfeita felicidade: “a dúvida não era mais possível, já a fé e a esperança não eram mais necessárias”.
            A educação religiosa recebida no ambiente familiar não foi estranha a esse pensamento constante do céu. A própria mãe de Teresa interpreta seu papel no sentido de “educar muitos filhos para o céu”. O senso religioso no lar está permeado pelo  desejo do céu. Daí a insistência numa vida que possa merecê-lo. Orientação arriscada para quem ainda não chegou a descobrir a terra. É preciso andar na ponta dos pés para não se manchar e desmerecer o prêmio do céu. Teresinha contará mais tarde como ela, com seus doze anos de idade, se viu assaltada por escrúpulos: “É preciso ter passado por esse martírio para compreendê-lo bem, dizer o que sofri durante um ano e meio ser-me-ia impossível. Todos os meus pensamentos e as minhas mais comezinhas atividades se tornavam para mim motivo de perturbação”. 
            Em 7 de julho de 1895 - ela já vive sete anos no Carmelo - irmã Teresa se oferece como vítima ao Amor Misericordioso de Deus. “Terminado o exílio da terra, espero ir gozar convosco na Pátria. Eu não quero acumular merecimentos para o Céu. Quero trabalhar por vosso único amor, com o único objetivo de dar-vos prazer, de consolar vosso Sagrado Coração e de salvar almas que vos amem eternamente.              
            No entardecer da vida comparecerei diante de vós de mãos vazias, pois não vos peço, Senhor, para contar  minhas obras. Todas as nossas justiças têm defeitos aos vossos olhos.  Quero, pois, revestir-me de vosso própria justiça, e receber de vosso amor a eterna posse de Vós mesmo. Não quero outro trono nem outra coroa senão Vós mesmo, ó meu Bem-Amado!
            O tempo nada conta aos vossos olhos. Um único dia é como se fossem mil anos. Podeis, portanto, preparar-me num instante para comparecer à vossa presença”.
As perspectivas do seu desejo do Céu mudaram, como mudou a linguagem. Desapareceram as tensões nervosas, a angústia da vida. Ela opta pela vida, no que der e vier, pois sabe que o Céu consiste em amar a Deus. Neste ponto as análises psicológicas, bem aplicáveis a Teresinha, criança e adolescente, começam a gaguejar. Não que isto leva a constatar uma ruptura na vida da Santa, entre um antes e depois. A própria Teresa não se teria dado o trabalho de escrever as reminiscências da sua infância e juventude a pedido de Madre Inês, sua irmã mais velha e Priora do Carmelo de Lisieux. Nessas memórias ela descreve a matéria utilizada por Deus para dar forma à sua vocação e missão na Igreja. Para um verdadeiro artista até o material insignificante pode ser bem vindo para fazer uma obra prima. Para Teresa essa obra prima consiste no Amor do próprio Deus que atinge e envolve a sua alma fazendo irromper nela as torrentes de infinita ternura que nele se comportam, e assim a torna mártir de seu amor.  Nesse ano de 1896, a fé de Teresa, feita de entrega incondicional ao Amor de Deus, torna-se uma fonte de água viva num conhecimento experiencial desse mistério: “Não tenho mais desejo algum a não ser o de amar a Jesus a mais não poder".  Isto lhe deixa no mais íntimo do coração uma paz humilde e profunda.
            A fé viva, acesa ao ponto de transbordar num único desejo de amar a Jesus até a loucura,  torna Teresinha interiormente unificada. Nem a consciência da sua pequenez e fragilidade elimina essa coerência interior. “Jesus soube satisfazer plenamente todos os meus desejos! ... Desvaneceram-se meus desejos de criança.... Já não desejo tampouco, nem o sofrimento nem a morte. No entanto, amo ambas as cousas. O que, porém, me atrai é unicamente o amor. ...Agora, o que me guia é só o abandono, já não tenho outra bússola”.  Mas o Amor amado, é o Amor absoluto. Deus só pode ser Deus. O Amor quer tudo. Haverá uma bússola adequada fora dele?  Poderá Deus dar menos que Deus?  “Deus amou o mundo a tal ponto que deu o seu Filho único, para que todo o que nele crer não morra, mas tenha vida eterna” (Jo 3,16). O amor de Deus revelou-se no amor de Jesus. Teresa gravou num tabique na sua cela as seguintes palavras: “Jesus é meu único amor”. É sempre Jesus que atrai a agulha de sua bússola. Nisto ela parece confirmar as palavras de Jesus, anunciando o poder de sua morte e ressurreição: “Quando eu for elevado da terra, atrairei todos a mim” (Jo 12, 32).É olhando para o crucifixo que ela segurava nas suas mãos que Teresa morreu dizendo: “Meu Deus, eu vos amo”.
            Em Teresa concretizou-se o apelo universal à santidade. Ela definiu sua missão na terra como no Céu da seguinte maneira: “Amar Jesus e o fazer amar”. A atração que Jesus exerce sobre todos os seres humanos pelo seu Espírito, presente em todos os tempos e todos os lugares, Teresa a vê como a atração do Amor. É uma mensagem universal que toca o coração humano. Através de todas as épocas e todas as culturas, o Amor, que  criou e redimiu esse coração, é a única força capaz de atrai-lo  em profundidade. Durante os últimos dezassete meses de sua vida Teresinha fez as provas finais para o seu doutorado na Igreja:  Doutora no Amor de Cristo que ultrapassa todo conhecimento (cf  Ef 3, 19). Foi uma prova do corpo e da alma.
            Foi na noite de 2 para 3 de abril de 1896. Era Quinta Feira Santa. Teresa tinha ficado em adoração do Santíssimo até meia noite. Apenas repousou a cabeça no travesseiro de sua cama, ela sentiu uma golfada subindo até aos lábios. Na noite seguinte novos escarros de sangue. Nem Teresa nem a comunidade das irmãs tinha suspeitado de que ela já estava, há mais tempo, atingida pela tuberculose. “Minha alma encheu-se de grande consolação. Estava intimamente persuadida de que Jesus no dia do aniversário de sua Morte, me queria fazer ouvir um primeiro chamado. Era como que um murmúrio suave e distante a anunciar-me a chegada do Esposo”.   Mas quase ao mesmo tempo começam a surgir dúvidas: E se o Céu não existir?  Aparecem as torturas da alma. A idéia do Céu que durante a sua vida tinha dado tanta alegria, se torna agora fonte de luta e de trevas.  A própria Teresa comenta: “Essa provação faz-me perder tudo quanto encontraria de satisfação natural no desejo que tinha do Céu. ... Desejos altaneiros, já não os tenho, senão o de amar, até morrer de amor”.   A noite da fé acrescida a uma impotência física lhe faz sentir toda a sua vulnerabilidade. As coisas mais insignificantes tornam-se insuportáveis. O que causa outros sofrimentos morais a Teresa que sempre procurou traduzir sua grande sensibilidade em delicadeza para com todas as irmãs da comunidade. Não faltam tentações de desespero que chegaram até a vertigem do suicídio. “Como tudo isto é estranho e incoerente!”, exclama Teresa. ‘’E difícil, senão impossível, descrever a provação da fé numa alma. Para a própria Teresa permanecia um mistério. Ela tenta dar uma descrição comparando-se com alguém que, nascido num país envolto em denso nevoeiro, nunca viu a natureza risonha, inundada, transfigurada pelo sol coruscante. No entanto, desde criança, só ouviu falar.
            No tempo em que a ideia do Céu constituía sua felicidade, Teresa  não podia imaginar que houvesse pessoas sem fé. Agora ela se sente equiparada a elas e pede em nome dela mesma e em nome desses seus irmãos: “Tende piedade de nós, Senhor, porque somos pecadores”.   A crise pela qual ela passa a faz sentar junto com os pecadores e incrédulos, com os excluídos, pedindo a Deus que o Céu, fechado para ela na sua noite escura, possa abrir-se para todos.
            Teresa sabe que não há argumentos ou outra ajuda do lado de fora que possam mantê-la de pé nessa provação. Quando uma das religiosas pretende dar-lhe força e coragem lendo alguns textos bonitos, ela reage simplesmente: “É como se você cantasse”. Mas Teresa também compreende que ela não está dispensada de prestar “obediência à fé” (Rm 16,26) em que ninguém pode substituí-la. A fé é vida divina que só se fortalece a partir de dentro. E, na escuridão da noite, Teresa renova constantemente sua fé, como adesão total, apoiando-se unicamente na Palavra de Deus. É assim que ela declara: “Nunca me apoio nos meus próprios pensamentos; sei muito bem que sou fraca”. Fraqueza reconhecida diante de Deus em que se manifesta a força da graça.

Agradecer o dom da fé que Deus
  1. Canto: “Vem e mostrarei”
   2. Olhando para a vida de Santa Teresinha, o que Deus está pedindo de mim e de nós como comunidade?
   3. Colocar em forma de prece o nosso agradecimento a Deus pelo dom da fé e pelo exemplo que Santa Teresinha nos deu.
   4. Rezar um salmo. Sugestão: Salmo 16: “Guarda-me, Deus, pois eu me abrigo em ti”.
   5. Rezar o Pai Nosso.
   6. Oração:
Deus de infinita bondade, abris as portas do vosso Reino aos humildes e simples. Dai-nos a graça de seguir com confiança o caminho traçado por Santa Teresinha, para que também a nós se revele a glória da vossa Face. Por Cristo nosso Senhor.

*Dom Frei Vital Wilderink, O Carm- Eremita Carmelita- foi vítima de um acidente de automóvel quando retornava para o Eremitério, “Fonte de Elias”, no alto do Rio das Pedras, nas montanhas de Lídice, distrito do município de Rio Claro, no estado do Rio de Janeiro. O acidente ocorreu no dia 11 de junho de 2014. O sepultamento foi na cidade de Itaguaí/RJ, no dia 12, na Catedral de São Francisco Xavier, Diocese esta onde ele foi o primeiro Bispo.