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quarta-feira, 25 de abril de 2018

OS VOTOS EVANGÉLICOS- Pobreza, Castidade e Obediência- Um chamado à transformação.


Frei Quinn R. Conners, O. Carm.
Os três votos professados por religiosos e religiosas estão enraizados nas Escrituras. Eles são uma expressão dos valores do Evangelho. Contudo, eles se encarnam num determinado momento histórico, refletindo assim as necessidades e as esperanças psicológicas e espirituais das pessoas e do tempo em que vivem. Nossa discussão sobre cada um dos votos partirá de suas raízes espirituais ou teológicas.
Reconhecemos que os votos não são entidades autônomas. Cada voto tenta exaltar um lado distinto da vida humana, dos valores evangélicos, da vida cristã e carmelitana. No entanto, cada voto está relacionado intimamente ao outro. A partir de nossa breve abordagem histórica, veremos que antigamente todos os votos estavam subordinados ao voto de obediência. Este inter-relacionamento dos votos fica evidente quando tentamos descrever cada um deles.

POBREZA: A matéria bruta em transformação

Ao contrário da obediência, encontrar as raízes bíblicas da pobreza exige algum esforço. Obediência é uma palavra bíblica bem comum, enquanto que pobreza ocorre com menos frequência. Contudo, a chave para a pobreza é a consciência de que ela deve estar enraizada na fé e no amor que nos une a Deus. De fato, num sentido bíblico a pobreza e a obediência estão intimamente relacionadas. Se obediência é o compromisso de ouvir a voz de Deus, a pobreza é o compromisso de responder a esta voz.
Em geral, as Escrituras olham a pobreza de um modo bem prático. Basicamente, os bens materiais são apresentados de uma maneira positiva. Eles são um dom de Deus, reflexo da criação de Deus. Por outro lado, a pobreza e a espoliação não são boas. Elas representam uma distorção da bondade de Deus. Portanto, um dos compromissos da Aliança era que todos mereciam atenção: ninguém deveria passar necessidades, ninguém deveria ser pobre. Quando Lucas retrata a comunidade de Jerusalém após a Páscoa, ele a descreve precisamente nestes termos como a realização da comunidade ideal ansiada por Israel: “Todos os que abraçaram a fé eram unidos e colocavam em comum todas as coisas... conforme a necessidade de cada um” (At 2,44-45).
Contudo, Israel e as igrejas do Novo Testamento também conheciam a tentação em ter tantos bens. As divisões entre os ricos e os pobres emergiram desde cedo na história de Israel. Eventualmente vozes proféticas, de Elias a Jeremias, surgiam contra os ricos e poderosos porque eles maltratavam os indefesos. Amós e Oséias denunciavam os ricos por ignorarem os pobres.
Assim, surgem duas correntes bíblicas sobre os bens nas escrituras hebraicas e persistem até o Novo Testamento. Primeiramente, os bens são bons quando servem como instrumentos e expressões da dignidade humana que recebemos como filhos de Deus. Em segundo lugar, numa comunidade baseada na fé em um Deus que é misericordioso e compassivo, ninguém deveria sofrer com a falta de alguma coisa.[i]
O Novo Testamento também tem uma visão prática dos bens. Uma grande riqueza é vista com ceticismo que nasceu da experiência. Jesus viveu num tempo onde existia uma grande divisão entre ricos e pobres. Ter muitos bens exige sua atenção nas coisas, não em Deus. “Onde está o seu tesouro, está o seu coração”. As pessoas que possuem muita colheita necessitam construir muitos celeiros, em vez de pensarem sobre o destino de suas almas. Aqueles que pisam em Lázaro e em suas feridas para entrarem nos salões do banquete estão também muito preocupados para ouvirem a voz da profecia. Aqueles que encontram conforto e poder naquilo que possuem podem estar cultuando a riqueza como se fosse seu Deus.
Estes são os exemplos de Jesus sobre riqueza e bens. Eles são pragmáticos e baseados na experiência. “Algumas de suas intuições mais explícitas sobre os bens são estabelecidas no contexto de metáforas sobre viagens”.[ii]  Carregue apenas um cajado. Muita riqueza é simplesmente muita bagagem. O jovem rico foi embora muito triste – tinha muita bagagem. Zaqueu, buscando a aprovação de Jesus, dá metade de suas riquezas.
Caminhar nas pegadas de Jesus é uma jornada de fé e de serviço. Devemos estar livres para esta jornada. Esta realidade influencia as parábolas de Jesus sobre os bens:
“Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga. Pois, quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la, mas quem perde a sua vida por causa de mim e da Boa Notícia, vai salvá-la. Com efeito, que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro, se perde a própria vida?” (Mc 8,34-36).
Quando os discípulos hesitam, imaginando que se arriscaram muito, Jesus lembra mais uma vez o chamado da liberdade:
Pedro começou a dizer a Jesus: “Eis que nós deixamos tudo e te seguimos”. Jesus respondeu: “Eu garanto a vocês: quem tiver deixado casa, irmãos, irmãs, mãe, filhos, campos, por causa de mim e da Boa Notícia, vai receber cem vezes mais. Agora, durante esta vida, vai receber casas, irmãos, irmãs, mãe, filhos e campos, junto com perseguições. E, no mundo futuro, vai receber a vida eterna” (Mc 10,28-30).
O pensamento de Jesus é claro: “O que chamamos de pobreza evangélica é aquilo que os evangelhos chamam de colocar de lado qualquer coisa que nos impeça de seguir Jesus. Jesus era totalmente livre, livre para seguir a orientação do Espírito, livre para trilhar pelas margens da sociedade de seu tempo, livre para estar em comunhão com os pobres, livre para tocar naqueles que precisavam de cura, livre para acolher a raiva e a violência, livre para ouvir a voz de Deus”.[iii]
A Bíblia fala positivamente do pobre, mas não da pobreza. Os pobres são o objeto da compaixão de Deus e, por isso, deveriam ser do interesse do povo de Deus. Aos olhos da Bíblia os pobres têm uma vantagem sobre os ricos: é menos provável que eles sejam seduzidos por uma profusão de bens. Por estarem indefesos e vulneráveis sua única força é Deus.
Assim, as raízes bíblicas da pobreza são simples. Bem-aventurados os pobres porque deles é o reino de Deus. Bem-aventurados os que têm fome de Deus e de seu reino que colocam de lado todos os empecilhos, toda bagagem e seguem Jesus para a realização de suas esperanças.
Existem duas motivações bíblicas óbvias para deixarmos de lado os bens. Primeiro, o voto de pobreza nos permite a liberdade de colocarmos o excesso de nossos bens à disposição dos necessitados. Segundo, o voto nos torna livres daquelas posses que poderiam nos impedir de seguir Jesus.[iv]
Na Regra, a pobreza aparece no n. 12. A visão é aquela das primeiras comunidades apostólicas cujo objetivo é preservar o bem comum. A pobreza em si não é o ideal. O bem de todos os irmãos e irmãs é o ideal. Portanto, partilhamos o que temos uns com os outros de modo que ninguém tenha necessidade de qualquer coisa.
Contudo, o bem comum em si não é um tipo de comportamento nivelador ou cego de modo que a singularidade de cada pessoa se perca ou desapareça sob uma monotonia ou uniformidade superficial. O objetivo de partilhar todas as coisas em comum é colocado no contexto onde também saibamos reconhecer as necessidades individuais – “conforme cada qual estiver precisando, levando-se em consideração as idades e as necessidades de cada um”.[v]  A Regra nos desafia a assumir nossa responsabilidade em determinar o que precisamos e avaliá-las no contexto das necessidades da comunidade.
O voto, em seu ideal e em sua realidade, nos une à esfera econômica da vida humana. Cada ser humano estabelece algum tipo de relacionamento com o mundo econômico. Universalmente as pessoas tendem a medir o sucesso na vida através deste relacionamento. O que eu ganho na esfera econômica? De quantas maneiras posso ser dominado pelo mundo que me rodeia? A minha doação é benéfica ou maléfica, libertadora ou escravizante?
Ao professarmos a pobreza não escapamos destas perguntas e da luta que elas representam. Estamos simplesmente dizendo que, através de nossa profissão para ser verdadeiramente humanos, queremos partilhar o que temos, viver simplesmente, desenvolver um espírito de desprendimento e sermos solidários com os necessitados e pobres de fato.

Partilhar
Partilhar não significa necessariamente dar um testemunho poderoso, mas é uma prática que nos une e nos ensina sobre nossa dependência de Deus e dos outros. A solidão e a indiferença mútua que experimentamos algumas vezes na vida comunitária estão muitas vezes relacionadas com questões envolvendo os bens comunitários. Muitos bens e conveniências pessoais embaralham nossas mentes e nossos corações e nos afastam de qualquer necessidade sentida na vida comunitária. A necessidade de partilhar nossos bens, de chegar a um acordo em nossas preferências, de estar satisfeitos com o bem-estar comum – tudo isso proporciona várias oportunidades para aquele apoio e desafio que são a essência da vida comunitária. A partilha dos bens por sua vez, proporciona um meio de também partilhar os interesses, as preocupações, as memórias, as aspirações e a oração.

Viver de modo simples
Viver de modo simples em nosso mundo consumista é um grande desafio. Muitos bens materiais podem nos provocar o esquecimento de quem nos fez e do porquê estamos aqui. Uma vida mais austera abre perspectivas, novas ou esquecidas no conhecimento de Deus. Libertados das distrações e da busca ilusória de nossos pequenos confortos e luxos, permanecemos diante de Deus um pouco mais como somos – como seres humanos com fome de Deus, necessitados da misericórdia de Deus, nunca realizados ou satisfeitos a não ser em Deus (vacare Deo).
A austeridade de vida nunca é fácil para um indivíduo ou para uma comunidade. Cada grupo etário, cada tipo de personalidade, cada cultura humana tem seus pontos fortes e suas fraquezas neste domínio. É um desafio avaliar continuamente nosso estilo de vida, com respeito uns pelos outros e fazer cada vez as mudanças necessárias que nos levarão para mais perto de Deus, dos outros e do povo de Deus ao nosso redor.

Ser desapegado
O voto de pobreza sem uma simplicidade material é certamente considerado suspeito. Contudo, a observância fiel do voto não pode ser medida em termos puramente econômicos. O significado mais profundo de nosso voto de pobreza nos desafia a um desapego, tanto espiritual como material. Nos capítulos 1-8 de seu livro Noite Escura, João da Cruz descreve enfaticamente a transformação a qual Deus nos chama através deste espírito de desprendimento.
Freqüentemente, de modo inconsciente e sutil, possuímos (ou somos possuídos por) funções, hábitos, tarefas, pessoas e lugares. É normal para nós reafirmarmos nossos sentimentos de segurança e de auto-estima em tarefas especiais, às quais nos apegamos tenazmente, ou em rotinas e práticas que canonizamos desnecessariamente, ou em instituições que controlamos, ou em lugares especiais dos quais pensamos não poder nos afastar. Tais ligações são geralmente o resultado de grande dedicação e compromisso. Mas o compromisso paralisa quando não está aberto à mudança. O que começou como um bem torna-se prejudicial – para nós pessoalmente e para a missão de nossa comunidade. Ele nos impede de ouvir novos chamados e de experimentar novos desafios. Nossa ligação excessiva com um bem muitas vezes não nos deixa livres para muitos outros bens.
Tais ligações com coisas não-materiais são difíceis de se identificar e de se enfrentar. Freqüentemente os outros as percebem em nós antes do que nós mesmos. O espírito de obediência nos desafia a ouvir os outros quando eles nos questionam. O espírito de pobreza nos desafia a deixar tais posições e nos promete uma nova liberdade.

Ser solidário
A pobreza voluntária não pode estar separada ou independente da pobreza involuntária experimentada por tanta gente do povo de Deus em nosso planeta. Se estamos realmente caminhando nas pegadas de Jesus, então o interesse dele pelos pobres, pelos sofredores e fracos de nosso mundo deve tornar-se também nosso. Jesus viveu no meio de pessoas que eram consideradas impuras: publicanos, pecadores, prostitutas, leprosos (Mc 2,16. 1,40; Lc 7,37). Ele reconheceu a riqueza e o valor que os pobres possuíam (Mt 11,25-6; Lc 21,1-4). Ele os proclamou felizes porque o Reino é deles, dos pobres (Lc 6,20: Mt 5,3). Ele definiu sua missão como “anunciar a Boa Notícia aos pobres” (Lc 4,18). Ele mesmo viveu com os pobres, sem possuir nada, nem mesmo uma pedra onde repousar a cabeça (Lc 9,58). Ele ordenou, a quem quisesse segui-lo, que escolhesse Deus ou o dinheiro (Mt 6,24). Ele ordenou fazer uma opção pelos pobres (Mc 10,21). Como realizamos isto?
Em primeiro lugar, um grande desafio para nós é redirecionar nosso trabalho nos ministérios atuais. Justiça para os pobres – aquela justiça que é “parte essencial do evangelho”[vi]  – deveria ser uma preocupação em tudo o que realizamos. Quando trabalhamos entre os saciados e os ricos, o desafio é motivá-los a ajudar, a ampliar seu pensamento e a estimular sua boa vontade. Os trabalhos em nossas paróquias, escolas, etc., precisam envolver também os participantes ricos, para que eles possam experimentar realmente os problemas dos pobres e dos marginalizados.
Um segundo caminho é nossa própria experiência direta, trabalhando com os pobres. Conviver e olhar nos olhos, uns dos outros, é absolutamente necessário. Podemos não resolver os problemas das pessoas, mas podemos aprender a ficar mais perto e a sentir mais profundamente as dores daqueles que não receberam tantos privilégios quanto nós. O tempo real que gastamos trabalhando lado a lado, muitas vezes nos abre os olhos e os corações para os problemas. Assim, o processo para crescer no amor de Jesus pelos pobres é, paradoxalmente, aprender como ser pobre com os próprios pobres. Eles podem nos formar na dependência radical em Deus que este voto testemunha.
Provavelmente o modo mais importante de viver este voto é ser solidário com os pobres. A carência material é um mal. Não queremos idealizá-la, mas superá-la tão eficazmente quanto possível. Não podemos fingir sermos exatamente como os pobres. Mas podemos conhecê-los e partilhar seus interesses e seus fardos mais plenamente. Nossa educação e influência como religiosos podem ajudar a dar voz e compreensão à luta dos pobres. A experiência única que eles têm de Deus e da divina providência é um presente para nós. Temos muito a dar e a receber uns aos outros. Este é o significado da solidariedade – “permanecemos juntos como Maria permaneceu com João aos pés da cruz e experimentamos uma nova fonte de poder”.[vii]  Tal postura é observada em nossa tradição carmelitana. Estaremos realmente próximos de Jesus na medida em que experimentarmos esta transformação em nossa solidariedade para com o pobre. Quanto mais estivermos perto dos pobres, experimentaremos esta transformação em nosso relacionamento com Jesus.

CASTIDADE: Um Amor Transformador
A Bíblia tem uma visão muito positiva da sexualidade. Não no seu sentido romântico, mas como uma expressão humana vital do poder criador de Deus. A visão bíblica era “crescer e multiplicar”. Por isso, as crianças – especialmente o filho, numa cultura de aldeia patriarcal – eram não apenas um sinal de bênção e de segurança, mas uma expressão de obediência.
A infecundidade e a esterilidade, por outro lado, eram uma maldição e um motivo para alguém ser ridicularizado. A Bíblia não traz hinos sobre a virgindade e poucas palavras de elogio à vida celibatária. Mais típico é o doloroso quadro de Ana, desfeita em pranto ao orar no santuário de Silo, implorando a Deus para livrá-la da vergonha da esterilidade. Então, onde encontramos um fundamento bíblico para o voto de castidade?
Desde o início da história cristã, aqueles que escolheram a castidade celibatária recorreram a dois textos como a base bíblica para esta decisão. Mateus 19 e 1Coríntios 7. Em Mateus, Jesus proclamou seu ensinamento sobre o matrimônio e aparentemente anulou a possibilidade do divórcio. Os discípulos atordoados dizem a ele: “‘Se a situação do homem com a mulher é assim, então é melhor não se casar’. Jesus respondeu: ‘Nem todos entendem isso, a não ser aqueles a quem é concedido. De fato, há homens castrados, porque nasceram assim; outros, porque os homens os fizeram assim; outros, ainda, se castraram por causa do Reino do Céu. Quem puder entender, entenda’” (Mt 19,10-12). Ainda que o estudo bíblico moderno sugira que esta passagem está mais relacionada com o casamento do que com o celibato, muitos sentem que ela ainda é um importante indício para um fundamento bíblico do voto.[viii]
Nesta passagem de Mateus, a frase chave é por causa do Reino do céu. A noção sugerida no texto grego não é a de que alguém se torna eunuco para ir para o Reino, mas que o reino fez algo para que a pessoa se tornasse um eunuco. “Em outras palavras, a lei de Deus – Deus – apodera-se de uma pessoa com uma paixão tão forte, tão dominante que ela toma conta da vida desta pessoa, a leva a uma decisão que a Bíblia dificilmente pode contemplar (e diante da qual os discípulos hesitam)”.[ix]
Na passagem de 1Coríntios, Paulo tem um enfoque semelhante. Ao nos aproximarmos do fim dos tempos, “quem não tem esposa, cuida das coisas do Senhor”. Ele diz isso a eles não para armar uma cilada, mas “para que possam permanecer sem distração junto ao Senhor” (1Cor 7,32-35). Assim, um enfoque semelhante é dado: a castidade celibatária torna-se uma opção cristã apenas porque a ardente paixão por Deus toma conta da vida da pessoa.
Tal fundamento lógico tem uma base espiritual sólida. As pessoas estéreis que lamentam seu vazio e sua esterilidade descobrem que Deus preenche suas vidas. Deus tira a vergonha de Ana; Deus sopra vida no útero de Isabel; e o Espírito de Deus leva vida ao útero de Maria. A única paixão que pode substituir a paixão do amor sexual é a paixão da fé. Assim, as escrituras sugerem que o voto de castidade, como os votos de obediência e de pobreza, “tira seu significado radical do vibrante elo primordial entre Deus e o fiel”.[x]
A Regra primitiva não menciona a castidade ou o celibato. Ela assume que a obediência no seguimento de Cristo ipso facto significa viver uma vida casta. A castidade é mencionada especificamente na adaptação da Regra pelo papa Inocêncio.[xi]  Pouco mais é escrito, a não ser na passagem do n. 19. O objetivo da Regra é tentar estabelecer estruturas (por exemplo, silêncio, jejum, autoridade) que sustentarão o discipulado fundamental que os carmelitas buscam. Caminhar nas pegadas de Jesus nos chama para aquela busca concentrada do reino de Deus que o voto de castidade possibilita e testemunha.
O celibato consagrado, ao qual o voto de castidade nos chama, é um aspecto da vida religiosa que é distinto do caminho para o qual todos os discípulos são chamados. O celibato religioso foi descrito por Sandra Schneiders[xii]  como um ícone, uma abertura no mistério de Deus. Este mistério nunca é plenamente revelado nem compreendido. Contudo, ele transmite aquele Deus misteriosamente presente no mundo. O amor celibatário na sua melhor forma evangeliza por sua absorção total em Deus, e por sua inclusão e seu extravasar do eu no outro. O celibato consagrado aponta para a irrupção do reino de Deus e para a totalidade de suas exigências.
A castidade celibatária trata da esfera pessoal ou doméstica de nossas vidas. Aqui o sucesso ou a realização na vida é muitas vezes medido em termos de relacionamentos íntimos. Que tipo de companheiros tenho e o que significo para eles? Quem conheço e como? Como me relaciono comigo mesmo e com meu corpo? Meus relacionamentos humanos e íntimos são libertadores ou escravizantes de alguma forma?
Ao professar a castidade celibatária, os religiosos não escapam destas questões e da genuína luta humana que elas representam. Ao professar buscar este relacionamento exclusivamente com Deus em sua vida, a pessoa não evita a profunda solidão ou o vazio que o fato de estar sem um parceiro permanente, ou uma família, carrega em si. Na verdade, a experiência da castidade celibatária é a de trabalhar com este vazio durante toda a vida da pessoa. Não é necessário dizer que existem muitos outros tipos de relacionamentos e de responsabilidades que aparecem em nosso caminho através da liberdade que o voto de castidade nos dá. Mas podemos esperar que nosso desejo e nossas necessidades por relacionamentos humanos serão, pelo menos às vezes, particularmente intensos.
Os religiosos que não vivem um amor intenso por Deus encontrarão o vazio esmagador. Freqüentemente eles procuram outras compensações: carreira, trabalho, conforto, bens, relacionamentos que comprometem potencialmente seu voto. Outros ficam deprimidos e retraídos na comunidade, severos e frios no ministério. Este é um voto perigoso. David Fleming, S.M., afirma: “Nenhum nível de maturidade, nenhuma técnica de desenvolvimento humano e religioso, nenhuma combinação de ministério e de amizade nos isolarão da dor e do desafio do celibato por causa do Reino”.[xiii]
Que oportunidades na vida religiosa estão disponíveis para nos ajudar a viver este voto com integridade, humanidade e generosidade? Para viver a castidade celibatária os religiosos devem crescer na compreensão de sua corporeidade, devem desenvolver uma abertura para o relacionamento na sua comunidade e nos ministérios e devem viver uma vida de contínua oração.

Nossa Corporeidade
No passado, numa tentativa de incentivar a castidade, parte de nossa formação religiosa voltou-se para um tipo de angelismo. Nem sempre houve um reconhecimento e uma apreciação positiva das necessidades de nossos corpos.
Quando nos relacionamos com outras pessoas, sempre o fazemos através de nosso corpo. É importante para nós voltar ao contato com a expressão natural do corpo e não negar seu valor como parte da criação de Deus. O voto de castidade não elimina nossa expressão corporal.
Sentir e tocar (um tapinha nas costas, um abraço, um aperto de mão caloroso, um beijo) são uma parte natural do relacionamento humano. As culturas variam muito no significado de tais gestos, mas em toda cultura o corpo exerce um papel importante ao expressar calor e afeição. Quando se reprime a expressão corporal somos tentados à sensualidade e ao erotismo compulsivos que poderiam ser expressos, por exemplo, na masturbação compulsiva ou no vício da pornografia. A melhor ajuda para a castidade não é a inibição, mas um zelo contínuo e respeitoso por nossas necessidades físicas e psíquicas. Este zelo se manifesta em comportamentos como: uma dieta saudável, exercícios regulares, repouso adequado, relaxamento e recreação. Quando este zelo é parte da vida celibatária, nossos corpos se tornam parte de uma pessoa madura, percebida como um todo, como um canal de encanto e de graciosidade.
Um respeito maduro e equilibrado por nossos corpos é parte do agradecimento pela criação da santidade unificada à qual somos chamados. Tais atitudes sustentam nossa vivência do voto em vez de miná-la. Elas são ajudas importantes à castidade. O voto de castidade não é um voto de ignorar o corpo. “Ele é certamente um voto onde se canalizam as energias criativas e significativas de nossos corpos para a vida de santidade”.[xiv]
Para viver o voto de castidade devemos crescer na aceitação e no respeito de nossos corpos. Este crescimento inclui aceitação e respeito por nossa sexualidade e por nossos desejos sexuais. Um desafio quando se busca integrar o próprio desejo por uma união sexual com outra pessoa, desejo este que pode ser muito poderoso. No entanto, tais desejos são parte da ação de Deus em nós. Eles não podem ser negados ou ignorados sem nos causarem problemas mais profundos. É valioso para nós refletirmos se existe um medo exagerado ou um puritanismo sobre a dimensão do corpo em nossas vidas. Em vez de reprimir qualquer interesse ou atenção pelo corpo humano (o nosso próprio corpo ou o corpo de outra pessoa), devemos aprender a sermos gratos e felizes por esta parte da criação de Deus. O resultado pode ser um relaxamento maior e uma atenção maior ao que nosso corpo nos diz sobre o todo de nossa natureza corpo-espírito. Se isto ocorreu, então de fato, seremos mais plenamente templos do Espírito Santo.

Relacionamentos em Comunidade e Ministérios
A intimidade humana é essencial para vivermos uma vida de castidade celibatária. Ser íntimo é deixar outra pessoa participar de nossa vida de tal modo que sua presença se torna uma parte do que somos. Isto aprofunda nossa auto-estima. A intimidade envolve uma certa morte para o eu e amar nosso próximo como a nós mesmos. Os relacionamentos são complicados e não saímos bem deles sem cicatrizes. Já que a intimidade é perigosa, temos muitas maneiras de nos proteger e de nos defender contra ela. Contudo, alguns relacionamentos íntimos são necessários para uma vida plenamente integrada e generosa.
Evidentemente a intimidade na vida religiosa é mais difícil do que na vida do leigo. Quanto mais próximos ficamos de uma pessoa, mais difícil é deixá-la ir. Contudo, o amor celibatário, em sua universalidade, implica na disposição de deixar muitas pessoas entrarem em nossas vidas mas também na boa vontade de deixá-las sair. Já que o processo de deixar partir é muito doloroso, os religiosos podem ter a tendência de desenvolver uma forte resistência à qualquer tipo de intimidade.
Além disso, a intimidade por sua própria natureza pede uma expressão física. Assim, o desenvolvimento da intimidade dentro de uma comunidade religiosa celibatária ou num ambiente ministerial pode criar, às vezes, uma tensão com respeito à expressão física que também será dolorosa e difícil de ser tratada. O que fazer? O caminho mais fácil seria evitar a intimidade em vez de desenvolver atitudes e comportamentos apropriados para a intimidade celibatária. Para evitar a intimidade usamos a repressão e a compensação que são reações psicologicamente doentias. O que ocorre então é o retraimento da intimidade e o investimento de nossa auto-estima em coisas, não em pessoas: trabalho, papéis, funções, realizações, conforto, etc.
Jesus não tinha medo da intimidade. Ela estava presente em muitos de seus relacionamentos: com os discípulos, com Marta e Maria, com Lázaro. A intimidade, incluindo a intimidade com o próprio Senhor, é um fato marcante nas vidas de muitos santos como Teresa e João da Cruz. O ideal deste voto é valorizar a intimidade com muitas pessoas, especialmente com os menores: os pobres, os doentes, as crianças, os deficientes. Assim, a vivência da intimidade dentro de uma vida religiosa celibatária torna-se um compromisso de solidariedade com os pobres, os sofredores, os marginalizados.
O religioso celibatário pode viver uma genuína vida de intimidade. Mas a consciência da sexualidade deve estar integrada com o desejo de viver o amor universal, integrador, redentor e piedoso de Cristo.

Oração
A experiência religiosa, cultivada numa vida consistente de oração, é a chave para a vivência significativa da castidade. Deus é o relacionamento permanente e mais importante em nossas vidas. Assumir o voto significa que nenhum ser humano é mais importante para nós do que Deus. É claro que este fato é verdadeiro para todos os seres humanos, mas a vida religiosa estimula a experiência de nossa solidão fundamental, tornando-o mais evidente e óbvio.
Uma vida de oração proporciona a oportunidade de experimentar este Deus que nos chamou a partilhar nosso eu com todos. Vamos para Deus com a experiência deste chamado em todas as suas ramificações: alegria e sofrimento, intimidade e vazio. Este tipo de vida é assumido adequadamente apenas na fé, certos de que Deus nos transformará. Apenas Deus fará de nosso coração uma fonte doadora de vida, desinteressada, aberta ao amor universal.
Uma vida de oração permite que continuemos a crescer nesta transformação e conscientização. Ser fiel à oração proporciona a oportunidade de estar em contato com o desejo que temos por Deus e com o desejo de Deus por nós assim como com as racionalizações e compensações que desenvolvemos para preencher a solidão. Basicamente, oramos porque sabemos que precisamos de Deus. Precisamos que Deus nos preencha e transforme nosso amor, para que ele possa ser libertado para interesses mais amplos e vastos em nosso mundo.
A castidade celibatária é um dom no qual crescemos. É um processo de crescimento perpétuo, não um voto que é medido apenas pelo fato de sermos ou não castos. É verdade que a atividade genital é algo que fazemos ou não. Mas, além disso, este voto é um chamado viver apenas para Deus, crescendo em nossos relacionamentos, tanto com companheiros religiosos como com o povo a quem servimos, buscando a integração mais profunda de todas as dimensões de nossa humanidade, canalizando nossas tendências para a sexualidade e criando relacionamentos que sejam um dom genuíno e saudável do eu para outras pessoas. Tudo isto exige crescimento constante e é uma experiência contínua que levamos a Deus em nossa oração.
Deus transforma nosso amor pelo bem do reino. Deus usa nosso amor para transformar o mundo. Este processo não é angelical. É humano. Oramos como pessoas corporificadas. Oramos com as experiências de relacionamentos que temos em comunidade e no ministério. Levamos todas estas experiências para nosso relacionamento com Deus e é lá que elas são transformadas na energia e na generosidade que Deus necessita no nosso mundo.






OBEDIÊNCIA- A Escuta como Transformação

A forma mais radical de obediência na Bíblia é a escuta fiel da voz de Deus que vem a nós através da comunidade, através de nossos mestres e líderes e através dos fatos da história. Deuteronômio 6,4-9 é a expressão perfeita da virtude bíblica da obediência.
Ouça, Israel! Javé nosso Deus é o único Javé. Portanto, ame a Javé seu Deus com todo o seu coração, com toda a sua alma e com toda a sua força. Que estas palavras, que hoje eu lhe ordeno, estejam em seu coração. Você as inculcará em seus filhos, e delas falará sentado em sua casa e andando em seu caminho, estando deitado e de pé. Você também as amarrará em sua mão como sinal, e elas serão como faixa entre seus olhos. Você as escreverá nos batentes de sua casa e nas portas da cidade.
Este credo, o famoso Shema, capta concisamente a noção judaica de como a vida dos judeus é totalmente centrada em Deus. Por Israel estar tão convencido da presença amorosa de Deus na história, por estar tão agarrada à realidade de Deus, sua única resposta é aquela de obediência reverente e de abertura confiante na direção amorosa de Deus feitas diariamente.
As grandes figuras do Antigo Testamento nos mostram que este tipo de obediência é um desafio. O exemplo de obediência radical destas figuras pode coexistir com a confusão e a ira diante dos caminhos misteriosos de Deus. Por exemplo, Moisés, que tira suas sandálias em reverência diante da presença de Deus na sarça ardente, também pode quebrar as tábuas de Deus com ira diante da estupidez do povo de Deus e dos confusos caminhos de Deus. O Salmista, cuja poesia lírica louva o poder e a grandeza criadora de Deus, também pode captar a raiva e a frustração diante das exigências de Deus. Jeremias, o profeta que fala de Deus como um fogo ardente em seus ossos, também pode chamar Deus de um rio enganador que corre para o deserto apenas para desaparecer em terras áridas. A obediência é uma experiência humana e multidimensional.
No Novo Testamento, Jesus se torna a plena expressão da obediência. Ele conhecia o poder da fé bíblica. Jesus foi o único Filho em quem Deus permaneceu. Ele foi plenificado com o Espírito de Deus, buscando muitas vezes a comunhão silenciosa com seu “Abba”. No evangelho de João ouvimos muitas vezes sua confiança de conhecer Deus e de ser conhecido por Deus. Contudo, antes do mistério da paixão e da morte, Jesus também se tornou o Filho obediente de Deus, enquanto esbravejava contra a escuridão e o silêncio da voz de Deus: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Sl 22,1).
Jesus lutou para ser fiel ao Pai: “Embora sendo Filho de Deus, aprendeu a ser obediente através de seus sofrimentos” (Hb 5,8). Ele fez muitas orações para se tornar capaz de conquistar esta posição (Hb 5,7; Lc 22,41-6). Mas ele não foi conquistado. Ninguém, nenhuma autoridade em qualquer época foi capaz de interferir neste segredo mais profundo de Jesus. Aqueles que tentaram interferir chocaram-se com uma parede impenetrável. Ele foi obediente até a morte, e morte de cruz (Fl 2,8).
A comunhão entre Jesus e o Pai não foi automática, mas sim o fruto da luta que Jesus travou dentro de si mesmo para obedecer ao Pai em tudo e para estar sempre unido a ele. Jesus disse: “Eu não posso fazer nada por mim mesmo. Eu julgo conforme o que escuto” (Jo 5,30). “O Filho não pode fazer nada por sua própria conta; ele faz apenas o que vê o Pai fazer” (Jo 5,19). Como e onde Jesus viu e ouviu o que o Pai queria dele? Como a vontade do Pai se manifestou a Jesus?
Em primeiro lugar, Jesus descobriu a vontade do Pai assumindo sua condição de pobre. O que para alguns era a condenação do destino, para Jesus era a manifestação da vontade do Pai. Jesus nasceu pobre. Continuar ao lado dos pobres foi a decisão do Filho querendo ser obediente ao Pai até a morte e “morte na Cruz”.
Em segundo lugar, Jesus descobriu a vontade do Pai nas Sagradas Escrituras e na história de seu povo. Jesus buscou as Escrituras como a fonte da autoridade (Lc 4,18). Ele se orientou através das profecias do Servo de Deus e do Filho do Homem para realizar sua missão como Messias (Mc 1,11; 8,31). Foi nas Escrituras que ele encontrou as respostas contra as tentações que experimentou. “Não faço nada por mim mesmo, pois falo apenas aquilo que o Pai me ensinou” (Jo 8,28). A Boa Nova do Reino foi e continua sendo, antes de mais nada, a face do Pai a ser revelada ao povo, especialmente aos pobres.
Assim, a obediência bíblica é elaborada no contexto das escolhas da vida real. O sofrimento, as frustrações, a aridez espiritual, são preços a serem pagos. Mas o povo das Escrituras apega-se ferozmente à sua fé na realidade da presença de Deus na história, sua história pessoal.
Os carmelitas entram nesta tradição bíblica da obediência em seu voto. Pelo voto, que está enraizado no chamado para a obediência absoluta dirigida igualmente a cada cristão no batismo, o religioso carmelitano situa seu total compromisso com a vontade de Deus no contexto de uma comunidade que caminha nas pegadas de Jesus Cristo.
A Regra (n.º 22 e n.º 23) propõe como assumir esta obediência. Alberto se refere ao ofício do prior, que é apresentado primeiramente no n.º 4. Aqui o ofício do prior foi estabelecido num nível estrutural para a boa ordem da comunidade. Contudo, nos nn. 22 e 23 o prior e a comunidade têm que descobrir Cristo na “mútua co-responsabilidade da obediência”.[xv]  Alberto nos recomenda ver Jesus Cristo como o único centro de nossas vidas. Permanecer em nossas celas é “permanecer na vinha”. Aprendendo a não possuir nada, experimentamos como Jesus não possuía lugar para recostar sua cabeça. Celebrando juntos a Eucaristia, nos tornamos pedras vivas com Cristo como a pedra fundamental. Quando nos reunimos no capítulo e na correção fraterna, ele está em nosso meio.[xvi]  Basicamente, somos obedientes ao poder do Espírito de Cristo manifestado em nós mesmos, em nossa comunidade e sob sua liderança.
No nível do humano, o voto de obediência levanta a questão de como usamos nosso poder e nossa liberdade, tanto comunitária como pessoalmente. A última metade do século XX viu a queda do patriarcado como vimos nos anos 60 e 70 com as revoltas estudantis, nos blocos comerciais unindo muitas nações ocidentais, o fim dos regimes coloniais, militares e outros regimes repressores e o crescimento do feminismo. Concomitantemente, este período também testemunhou um individualismo excessivo e uma obsessão pela auto-realização, especialmente no hemisfério ocidental, que causou forte impacto em muitas partes do mundo.
Estes fatores históricos e culturais influenciam nossa compreensão e o exercício do poder,[xvii]  a esfera política da vida, que interfere no voto de obediência. Ao assumir este voto nos confrontamos com as mesmas perguntas que qualquer outro ser humano faz. Que poder tenho sobre os outros? Que esforço comum posso utilizar? Qual minha contribuição para a vida da sociedade e da comunidade? Qual minha influência em determinar direções comuns? Embora todos os cristãos se engajem nestas questões, o contexto em que elas se realizam varia muito. Para os religiosos, o contexto é a comunidade com a qual estão comprometidos.
Professando a obediência os religiosos dizem que querem usar sua capacidade de dialogar com os outros na busca pela vontade de Deus. O poder deles é mais humano e eficaz quando ouvem e agem de acordo com as inspirações pessoais que Deus lhes oferece. Estas inspirações vêm através de muitos meios. Basicamente, a obediência vem pela ponderação da Palavra de Deus e pelos sinais da presença de Deus em nosso mundo, de acordo com nossos irmãos e irmãs no Carmelo e com aqueles que escolhemos para liderar a comunidade.
Em primeiro lugar, a obediência exige um confronto contínuo com a Palavra de Deus. As Escrituras, refletidas individual e comunitariamente, nos dão acesso à revelação da presença de Deus no meio das comunidades judeu-cristãs do passado. É a revelação de como Deus se comunicou com seu povo e é uma fonte de discernimento da presença de Deus entre nós hoje. Devemos conhecer as Escrituras com nossos corações e nossas mentes para penetrar no coração e na mente de Deus.
Em segundo lugar, a vontade de Deus também está presente nos sinais dos tempos. A meditação da Palavra de Deus deve ser feita no contexto de nossa realidade para conhecermos a vontade de Deus. Nossas circunstâncias históricas devem dialogar com as Escrituras, para discernirmos o lugar para onde a obediência nos chama. Estas circunstâncias históricas têm muitos níveis: o individual/pessoal, o apostólico, a comunidade local e provincial, as lideranças locais e provinciais e o social. Qualquer uma destas áreas pode exigir mais atenção e significado numa determinada hora, dependendo da situação. Então a obediência se torna mais desafiadora e o discernimento da vontade de Deus requer maior disciplina e humildade.
Num terceiro ponto vemos que a obediência se realiza no diálogo com nossa comunidade e sua liderança. O chamado para a vida comunitária é fundamental para o carisma carmelitano. Desse modo, acreditamos que o Espírito de Deus se move através da voz coletiva da comunidade e daqueles que escolhemos para liderá-la. Qualquer discernimento da vontade de Deus deve incluir necessariamente nossa escuta da comunidade. Além disso, a obediência religiosa pode ser um verdadeiro testemunho evangélico, pela compreensão do poder que ela transmite, especialmente em nossas estruturas governamentais. Muitas comunidades, principalmente as congregações femininas, estão trabalhando rumo a estruturas mais participativas. Surgem novos modelos de governo, tais como grupos regionais que se encontram regularmente, capítulos onde todos os membros participam ativamente, líderes engajados num processo comunitário de tomar decisões. Desta forma, eles revelam uma maneira diferente de exercer o poder e a autoridade, longe do antigo modelo hierárquico e patriarcal. Estes modelos participativos permitem que cada membro possa discernir a vontade de Deus assim como exercer o poder coletivo na comunidade.
A liderança em tais modelos é realmente um chamado ao serviço (Lc 22,26-27). Ela exige um novo jeito de administrar a complexidade da vida religiosa, a habilidade em conduzir a atenção da comunidade para uma visão partilhada que unirá os esforços individuais, inspirados pela missão da província e da comunidade local, e a capacidade de formular estratégias para alcançar tudo isso.[xviii]  Esta liderança pede a habilidade de entender as estruturas subjacentes, os modelos e as forças que devem ser avaliados para se ir de um ponto ao outro.
Finalmente, a obediência é realmente o cultivo de uma união amorosa com Deus. Esta união se torna a base de todas as nossas escolhas que, por sua vez, nos une profundamente com Deus. Ao estarmos conscientemente mais unidos com Deus, começamos a ver tudo com os olhos de Deus e a buscar a verdade no amor. Em muitas circunstâncias pode existir apenas uma escolha para nós. No entanto, em outras situações podem existir várias escolhas. Nem sempre existe uma escolha que é melhor do que as outras. Nem é o caso de Deus ter pré-julgado o que devemos fazer. Buscar a vontade de Deus, obedecer a Deus é fazer as escolhas e tomar a decisão mais amorosa que podemos em qualquer momento. A longo prazo, a obediência consiste formalmente no como e no porquê fazemos uma certa escolha, em vez de o que realmente escolhemos.[xix]
Como carmelitas caminhando nas pegadas de Jesus Cristo, a obediência deveria nos levar à liberdade para escolher a vida como Jesus o fez. Em qualquer circunstância em que ele se encontrava – na festa de casamento em Caná, com a samaritana junto ao poço, na morte de seu amigo Lázaro ou na sua própria morte – ele escolheu fazer a vontade de seu Pai, mesmo quando ele não a compreendia. O contexto no qual buscamos a vontade de Deus é essencialmente contemplativo. É um meio de sondar e procurar, um modo de escutar e de orar que é transformador. Os anseios do Espírito de Deus em nós, a comunidade, a liderança comunitária, o povo e o tempo ao qual servimos, deveriam nos levar a uma maior generosidade e liberdade, para melhor testemunharmos a presença amorosa de Deus no mundo.



[i]  D. Senior, C. P. “Vivendo neste ínterim: princípio bíblico para a vida religiosa”. Em P. Philibert, O.P., (ed.), Vivendo neste ínterim. Mahwah, NJ: Paulist Press, 1994, p. 63.
[ii]  Senior, p. 64.
[iii]  Ibid.
[iv]  Senior, p. 65.
[v]  RA 12.
[vi]  Justiça no Mundo, Declaração do Sínodo dos Bispos, 1971.
[vii]  D. A. Fleming, S.M. Anotações do peregrino: uma experiência de vida religiosa. Maryknoll, NY: Orbis, 1992, p. 35.
[viii]  Senior, p. 66.
[ix]  Ibid.
[x]  Ibid, p. 67.
[xi]  RA, 19.
[xii]  Schneiders, pp. 114-136.
[xiii]  Fleming, p. 39.
[xiv]  Fleming, p. 44.
[xv]  Kees Waarjman, O.Carm., A identidade carmelitana a partir da perspectiva da Regra, 13º Conselho das Províncias (Nantes). Publicações Carmelitanas: Melbourne, 1994, p. 48.
[xvi]  Ibid., pp. 48-49.
[xvii]  Congregação para Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica. Diretivas sobre a formação nos institutos religiosos, # 12. Origens, 19 (20 de março de 1992).
[xviii]  D. Nygren e M. Ukeritis, ‘O futuro das ordens religiosas nos Estados Unidos’. Origens 22 (1992), 267. Os autores relatam que a incapacidade de formular uma estratégia para alcançar um propósito ou uma missão é a fraqueza mais surpreendente entre os líderes atuais.
[xix]  S. M. Schneiders, I.H.M. Odres novos: Reimaginando a vida religiosa hoje. Mahwah, NJ: Paulist Press, 1986, p. 142.