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sexta-feira, 7 de setembro de 2012

CNBB: FÉ E POLÍTICA.


A VIDA COMUNITÁRIA NO CARMELO TERESIANO

Salvador Ros García

Se perguntássemos a santa Teresa que experiência ela teve de vida comunitária, e como esta influenciou em sua vida espiritual, ela começaria, com quase certeza, respondendo-nos que não teve mestres, nem formadores, nem amigos que nela introduzissem: “Eu não encontrei mestre - digo confessor que me entendesse -, embora procurasse durante vinte anos, depois do que estou a dizer. Isto fez-me muito dano e voltar muitas vezes atrás e até de todo me perder” (V 4,7).  “Creio que se tivesse tido mestre ou pessoa que me avisasse para fugir das ocasiões...” (V 4,9). “Todo mal estava em não poder eu furtar-me de todas as ocasiões e nos confessores que ajudavam pouco (V 6,4). “Grande mal é ver-se sozinha uma alma entre tantos perigos (...) Porque para cair tinha muitos amigos que me ajudassem; mas para levantar-me via-me tão só que agora me espanto ao ver que nem sempre estava por terra, e louvo a misericórdia de Deus, pois só ele me estendia a mão” (V 7, 20-22).

                Como se vê, a lembrança da falta de um orientador é uma constante, semelhante a uma fibra solta e dolorida que pulsa no interior do seu relato biográfico. Essa carência foi real: se  observarmos  o resumo que ela própria faz de seu noviciado e da comunidade da Encarnação, nos damos conta que não menciona, em nenhum momento,  o nome de uma mestra ou de uma priora que lhe tenha marcado significadamente. Somente recorda-se de uma amiga passageira e ninguém mais (cf. V 3,2; 4,1): nem os amigos que a acompanharam, nem sequer um sacerdote dentre os mais de 15 confessores que frequentaram o Mosteiro da Encarnação e que a ajudaram. Isso durou quase 20 anos (dos 20 aos 39 de idade) até que, por fim, aparece alguem disposto a estender-lhe a mão. É Francisco de Salcedo, um leigo, ao que chama “o cavaleiro santo”, e de quem exclama emocionada e agradecida: “que grande coisa é entender uma alma”

                Apesar disso, o panorama não foi tão obscuro como parece. Ela mesma revela, em seguida, uma confidência surpreendente: “uma coisa posso dizer com verdade: Sua majestade (Deus) foi sempre meu mestre. Seja Ele bendito! Muita confusão é para mim poder dizer isto com verdade” (V 12,6). Disse isso em meio ao que é mais amargoso do relato da sua experiência de solidão e carência, em um constraste tão chamativo que se torna intencional, justamente para acentuar ainda mais este segundo plano que é a fonte de seu carisma e de seu magistério.

1.  A experiência na encarnação (1535-1562)

                Quando, na madrugada de 02 de novembro de 1535, Teresa saiu da casa paterna para ser monja no Convento da Encarnação, “onde estava aquela minha amiga” (V 4,1), tal convento se encontrava em livre expansão demográfica, num processo de crescimento de mais de 30 professas em 1536, de 65 em 1545, de mais de 150 em 1562, até chegar inclusive a 180[1]. Contrariamente, as rendas comuns estavam em diminuição e eram mal administradas, tornando-se insuficientes para satisfazer a necessidade daquele mundo heterogênio e crescente. Como consequência, o mosteiro oferecia um espetáculo chocante: de um lado as monjas pobres, do refeitório e dormitório comum, que passavam fome, e de outro, as senhoras privilegiadas, que dispunham de recursos próprios e que viviam magnificamente em suas celas de aluguel vitalício, com capacidade para manter criadas, talvez alguma escrava, alojar parentes e com um estilo de vida exatamente igual ao secular[2].

                Diante de tal situação de pobreza comunitária, em contraste com a riqueza individual de algumas, uma alternativa encontrada era a de amenizar a superpopulação do mosteiro através de saídas frequentes, às vezes de longa duração, motivada por aparente mendicância, por imperativos de gratidão ou expectativas de ajuda que não sempre se cumpriam. Isto era possível porque no Convento da Encarnação “não se prometia clausura” (V 4,5). Consequentemente, a dependência afetiva gravitava mais em torno da vida extra-conventual, o que tornava impossível a vida comunitária intra-conventual. De fato, as próprias constituições do mosteiro manifestam também estas mesmas carências, comuns à mentalidade da época: não se tinha em conta o número de monjas nem os critérios de idoneidade para a vida comum; a oração mental não se apresentava como ato da comunidade; não existia a recreação comunitária nem se prescreviam outros encontros para o diálogo fraterno[3].

                Obrigada ou de boa vontade, Teresa se viu envolvida nesse ambiente e viveu esta realidade: passou longos momentos no locutório a falar com algum cavaleiro da aristocracia local (V 7,7); esteve fora do mosteiro durante a prolongada e aguda enfermidade que a deixou paralítica aos seus 25 anos, e que a fez acorrer à curandeira famosa de Becedas, por-se em contato com o sacerdote enfeitiçado, convencer-se da miséria da medicina de seu tempo e de que podiam mais os terapeutas do céu, em especial o valoroso São José (V 6,5-8). Falecido o seu pai em 1543, Teresa teve que tomar conta de sua irmã Joana, que residiu com ela até seu casamento; foram frequentes as estadas na casa de seu tio Francisco Alvarez de Cepeda; fez com Joana uma peregrinação votiva a Guadalupe, com desvios bem aproveitados; esteve anos e anos com sua amiga íntima dona Guiomar de Ulloa; teve que ir a Toledo, por ordens do Provincial para consolar a aristocrata viúva dona Luisa de la Cerda (V 34-35). Com tudo, deve-se dizer que tais saídas tornaram-se proveitosas, pois graças a elas pôde entrar em contato com ideias e personagens decisivos: São Pedro de Alcântara, São Francisco de Borja, etc.

                Seus encontros, fruto das saídas do convento, somados a sua sensibilidade às correntes reformistas, possibilitaram a gestação e o nascimento da ideia reformadora (cf. V 32,10). Todavia, não se deve esquecer que foi do Carmelo da Encarnação que veio a inspiração aos textos institucionais primitivos, bem como as próprias monjas que alimentaram as primeiras fundações descalças. Mesmo assim, essa herança ou elementos de continuidade não podem encobrir os muitos outros aspectos transcendentais que dotaram o projeto teresiano de um espírito novo e inconciliável com o vivido na encarnação – espírito e mosteiro que, sem dúvida, traumatizaram Teresa, apesar das contínuas desculpas que demonstra sem cessar (cf. V 37,9-10).

2. O ideal reformador (1562-1567)

                No começo, o projeto teresiano carecia de um programa inicial concreto. Parece que, inicialmente, dois foram os motores propulsores: a simpatia com os movimentos reformistas, de observância frente aos conventuais (V 32,10), e o incômodo gerado pelo estilo de vida generalizado na Encarnação, “que eu já não sabia como viver quando aqui me meti” (V 37,9-10). Isso porque, ainda que se falasse do slogan reformista de volta às origens, chama a atenção que o ponto de referência, a assim chamada Regra Primitiva, tenha sido descoberta por Teresa quando se achava em Toledo, e a edificação do modesto edifício de São José em Ávila, já iniciada (V 35, 1-2; 36, 26). Tampouco se sabe exatamente quando apareceu no horizonte teresiano a outra integrante substancial: a imagem triste e deformada dos “luteranos”. Quando ela reflete sobre o assunto, anos mais tarde, mistura tempos e elementos de um projeto impreciso, que iria se materializando pouco a pouco, por sua própria dinâmica interna e a imposição de circunstâncias externas, em um todo homogênio, especialmente sensibilizada e convencida de que no trabalho eclesial podia ser mais eficaz a batalha silenciosa de mulheres orantes que os gigantescos e ideológicos exércitos armados de Felipe II, de cujo fracasso seria ela, precisamente, uma previsora perspicaz (cf. CP  3,1-2).

                Porém, o que sabemos com certeza é que, em torno a ela se fora formando um grupo de pessoas espirituais, impactadas com sua experiência e sua palavra. Primeiro foi um pequeno grupo de amigos, “os cinco que no presente nos amamos em Cristo” (V 16,6-7). Teresa, ao lhes falar de sua oração, da ação de Deus, se conectava com o mais profundo de cada um deles e despertava forças escondidas. Um deles, o dominicano Pedro Ibáñez, atestou: “É tão grande o aproveitamento de sua alma, nestas coisas, e a boa edificação que dá com o seu exemplo, que mais de quarenta monjas cuidam, em sua casa [no Mosteiro da Encarnação], de grande recolhimento... E digo, por certo, que tem feito proveito a muitas pessoas, e eu sou uma delas” [4].

                Daí que, ao fundar sua primeira comunidade, o Convento de São José de Ávila, Teresa tenha começado estabelecendo algo que naquela época tornava-se arriscado, uma novidade perigosa: a comunicação espiritual em grupo. Reuniam-se para “poder falar de Deus” (com Ele e d’Ele), ou seja, para orar e comunicar-se.  Uma comunidade orante, porém não somente de recitação orante, mas de persuasão à experiência, pois esta, semelhante à caridade, cresce ao ser comunicada (V 7, 22; 17, 5). Isso, naqueles tempos difíceis, naquele ambiente inquisitorial de suspeita institucionalizada (V 33,5), era realmente perigoso, pois havia se estabelecido um estado de opinião que associava quase instintivamente o círculo de mulheres espirituais com o fenômeno dos iluminados e com a heresia luterana.

                Apesar disso, Teresa propunha essa experiência a suas monjas no Caminho de Perfeição: “Por isso, filhas, procurai que todas as pessoas com quem tratardes –se estiverem bem dispostas e vos tiverem alguma amizade – percam o receio de buscar tão grande bem [a oração]; e por amor de Deus vos peço: nas vossas conversações tende sempre em vista o proveito dos que vos falam, pois vossa oração há de visar o bem das almas. Já que o haveis de pedir sempre ao Senhor, não ficaria bem, irmãs, senão o procurásseis por todos os modos (...) Pode acontecer que seja necessário dispor o ânimo de vosso parente, ou irmão, ou pessoa conhecida, mediante essas frases e expressões de afeto, sempre agradáveis à natureza. Assim vos darão ouvidos e aceitarão uma verdade. Não raro uma boa palavra – como dizem – dá mais resultado que muitas de Deus e abre o caminho a estas (...) Todos sabem que sois religiosas e que tendes vida de oração. Não se passe pela ideia dizer: “não quero  que me tenham em boa conta”. Em honra ou descrédito para a comunidade, redundará aquilo que virem em vós. E mal é que pessoas tão obrigadas a falar senão em Deus, como as monjas, tenham por lícito usar de dissimulação em tais circunstâncias, a não ser alguma vez para conseguir maior bem. Este é o vosso trato e modo de falar. Quem quiser ter relações convosco , aprenda-o (...) Se vos julgarem grosseiras, pouco perdereis! Se hipócritas, ainda menos. Saireis ganhando, porque não virá procurar-vos senão quem souber a vossa língua (...) Se os que falarem convosco quiserem aprender vossa linguagem, contai-lhes as riquezas que se ganham em aprendê-las. Disto não vos canseis. Insisti com piedade e amor, fazendo também oração, para que lhes seja proveitoso; e já que não tendes missão de ensinar, entendendo eles o grande lucro deste caminho, procurem mestre que os instrua.  Não seria pequena mercê, se o Senhor vos desse graça para despertar em alguma alma o desejo deste bem (CP.V 20, 3-6).

                Já antes, no brevíssimo texto das Constituições que ela escreveu para sua primeira comunidade, e que o Pe. Rubeo aprovou em abril de 1567, havia-o formulado também deste modo: “Uma vez ao mês, todas as irmãs prestem contas, à priora, de como aproveitaram a oração e como Nosso Senhor as conduz; pois sua majestade lhe dará luz para que as guie, caso não vão bem; e fazer isso é útil para a prática da humildade e mortificação e para muito aproveitamento” (Const 41). Convém recordar que quando Teresa escreve isso, a priora da comunidade é ela; portanto, o referido texto é simples codificação do que toda a comunidade praticava sob sua direção[5].

                Por outra parte, o projeto teresiano – aquele círculo de mulheres orantes –  estava cheio de sinais inovadores e de clamoroso protesto. Representava, em primeiro lugar, um desafio contra o ambiente marginalizador das mulheres, consideradas então como um estorvo, como um mal necessário, e que, apesar disso, eram mais adiantadas que os homens nos caminhos do espírito, com havia dito Frei Pedro de Alcântara à Teresa, que o cita favoravelmente para afirmar sua convicção pessoal (cf. V 40,8); e isso em uma Igreja necessitada de tudo e em tempos em que não se podia dar ao luxo “de desprezar ânimos virtuosos e fortes, ainda que de mulheres” (CP.E 4,1)[6]. Em segundo lugar, o novo estilo de vida implantado no Convento de São José era também um desafio aos convencionalismos sociais da mentirosa honra, encobridora de outros interesses, identificada com as conotações de linhagem e da pureza de sangue – protesto teresiano que se materializou com a absoluta igualdade e trato de suas monjas (CP.V 4,7), a extirpação de títulos e preferências (CP.V 7,10), “pois aquela que for de família mais nobre, seja a que menos tenha na boca o nome do pai” (CP.V 27,6), e com o trabalho manual por norma e sem exceções (Const 22).

                Este novo estilo de vida comunitária de São José de Ávila, em um convento menor e acolhedor, frente ao enorme e impessoal da Encarnação, de ambiente de oração e de vida alegre, sem as tensões e ressentimentos sociais do anterior, impactou de tal maneira o geral Rubeo, quando o visitou em abril de 1567, que “alegrou-se de ver a maneira de viver” (F 2,3), “e com a vontade que tinha de que fosse mais adiante o que tinha começado, deu-me completa autorização para que se fizessem novos mosteiros” (F 2,3); além disso, aprovou as constituições que ela mesma lhe apresentou e nas que figuravam as seguintes características: uma comunidade pequena, seleta e culturalmente bem formada (n.8)[7], “integradas por pessoas de oração e bom entendimento” (n. 1-2;21;42), exercitada nas virtudes teologais (n. 40), de trabalho e austeridade (n. 9-13;22;24), em um clima de liberdade (n. 7;17), de fraternidade (n. 21-23;28-29), de recreação (n. 26-28) e comunicação espiritual (n. 7; 40-41), de estrita igualdade, sem privilégios nem discriminações por diferenças sociais ou questões de dotes (n. 21-22;30). Finalmente, um estilo que poderia resumir-se em sua palavra de ordem predileta: “perfeição com suavidade” (V 36,29; 11,16; Carta a Isabel de Santo Domingo, 12 de maio de 1575, 3)[8].

  3. “Nosso estilo de irmandade e recreação” (1568-1582)

O conteúdo desta típica expressão teresiana é o que também ela quis inculcar a Frei João da Cruz, seu jovem candidato, ainda estudante e tentado a fugir para a cartuxa, quando o levou consigo à fundação de Valladolid, no verão de 1568, e o introduziu na vida de comunidade,  naqueles dias sem clausura em que se preparava a casa, a fim de que aprendesse “ sobre o nosso modo de proceder, para que ele entendesse bem tudo quanto se referia à mortificação, ao estilo de nossa irmandade e à recreação em comum. Porque fazemos tudo com tal moderação que a recreação serve apenas para que as irmãs reconheçam suas falhas e tenham um pouco de alívio para suportar o rigor da Regra” (F 13,5).

                Talvez convenha aclarar que “entender as faltas das irmãs”, nas recreações, não quer dizer observar imperfeições, mas sim carências, ou seja, as necessidades das irmãs[9]. E, para isso, precisamente, era útil a recreação comunitária, novidade teresiana que não existia no Mosteiro da Encarnação, e que ela introduziu em dois momentos diários, depois do almoço e depois das completas e oração (Const. 26-28), e para o qual não duvidou em modificar a Regra, atenuando a prescrição do silêncio durante o dia e atrasando o tempo de “silêncio maior” (Const. 7 e 28; carta a Maria de São José, 8 de novembro de 1581,20)[10].

                Ainda assim, convém advertir também que o termo “mortificação”, no léxico teresiano, não equivale a penitências e asperezas externas, mas à oração e virtudes, como ela mesma deixou bem claro quando teve que explicar as razões de sua oposição a reformar mosteiros alheios:  “Acerca do mosteiro da condessa, não sei que dizer, porque embora há muito se fale nisso, confesso a Vossa Senhoria: antes quisera fundar, desde o começo, quatro dos nossos de monjas, porque em quinze dias fica assentado nosso modo de viver, e as que entram não fazem mais do que seguir o que veem nas que já estão. É mais fácil do que adaptar essas benditas, por santas que sejam, à nossa maneira de proceder. Falei a duas em Toledo; vejo que são boas, e, no seu gênero de vida, vão indo bem; além disso, asseguro, não sei como me atreveria a tomá-las a meu cargo, porque me parece vão mais por via de aspereza e penitências que por mortificação e oração” (Carta a Dom Antônio de Bragança, 02 de janeiro de 1575,8)[11]

                Assim, frente ao isolamento e o rigor medievais da cartuxa, que buscava Frei João, Teresa quis inculcar a seu candidato um modelo de vida comunitária resumido em um moderno estilo de irmandade, de recreação e comunicação: “Ele era tão bom que mais podia eu aprender com ele do que ele aprender comigo. Minha intenção, porém, não era essa e sim mostrar-lhe a maneira de proceder das irmãs” (F 13,5). Um estilo que implica três elementos: a) as coisas referentes à mortificação (vida teologal); irmandade e recreação (vida fraterna em um ambiente propício à essa oração tão sua, não só de recitação orante, mas sim de indução à experiência, ou seja, para orar e comunicar-se); d) e tudo com moderação, com suavidade “de modo a não afligir demais o natural” ( F18, 6; Carta a Dom Teutonio de Bragança, 3 de julho de 1574, 4).

                Anos mais tarde, outro bom conhecedor do espírito teresiano, o Padre Jerônimo Graciano, ponderava a importância que dava a fundadora a esse dado da comunicação espiritual: “Ó Jesus, com quanto rigor e cuidado a madre Teresa de Jesus fazia suas religiosas guardarem uma constituição a elas posta, e que suas preladas dessem conta de seu espírito. E quanto proveito achou certa alma que, tendo repugnância a isto, por ser tentada contra seu superior, ao lhe mandarem dar conta de seu espírito, o fez, embora lhe custasse muito”[12].

                Porém, para ver realmente o ideal comunitário de Santa Teresa, as características da comunidade teresiana, o melhor documento, sem dúvida, é o Caminho de Perfeição, onde explicita seu ideal contemplativo ao serviço da Igreja (CP.V 1,5; 3,6.10), o exercício das virtudes teologais, amplamente desenvolvidas (CP.V 4-15), e toda uma gama de atitudes do melhor humanismo. Vale como exemplo o resumo que faz ao final do livro, no capítulo 41, onde recorda a suas monjas o princípio de “quanto mais santas, mas conversáveis”, e convida a “andar com uma santa liberdade” – nem “encolhidos” nem “oprimidos” – , a “ser afáveis,  agradar e contentar as pessoas com quem conversamos”. Tudo isso com expressões transbordante de humanismo e desmascaradoras de toda falsa experiência de Deus que “encolha a ânima e o animo)”.

“Assim não vos acanheis porque, se a alma começa a se encolher, é coisa muito má para tudo quanto é bem e às vezes dão em ser escrupulosas, e aqui a tendes inabilitada para si e para os outros e, mesmo que não dê nisto, será boa para si, mas não levará muitas almas para Deus, pois veem tanto constrangimento e aperto (...). E daqui vem outro dano, que é julgar a outros: como não vão pelo vosso caminho, mas com mais santidade para dar proveito ao próximo, tratam com liberdade e sem esses encolhimentos e assim logo vos parecerão imperfeitas. Se têm alegria santa, parecerá dissipação, principalmente às que não temos letras, nem sabemos no que se pode tratar sem pecado. É coisa muito perigosa e andarem em tentação contínua e de muito má digestão porque é em prejuízo do próximo. E pensar que, se não vão todos pelo mesmo modo, encolhidos, não vão tão bem, é muitíssimo mal”. (...) Assim, irmãs; tanto quanto puderdes, sem ofensa de Deus, procurai ser afáveis e entender de modo com todas as pessoas que convosco tratarem, a que amem a vossa conversação e desejem a vossa maneira de viver e de tratar, e não se atemorizem e amedrontem da virtude. A religiosas importa muito isto: quanto mais santas, mais conversáveis com vossas irmãs. E, ainda que sintais muito pesar se todas as suas conversas não vão como vós as quereríeis, nunca vos esquiveis, se quereis que aproveitem e quereis ser amadas por elas. É isto o que muito devemos procurar: ser afáveis e agradar e contentar às pessoas com quem tratamos, especialmente às nossas irmãs. (...)

Assim, pois, filhas minhas, procurai entender de Deus, em verdade, que Ele não olha a tantas minúcias como pensais e não deixeis que se vos tolha a alma e o ânimo, pois com isso se poderão perder muitos bens. Mas, intenção reta, vontade determinada, como tenho dito, de não ofender a Deus! Não deixeis encurralar a vossa alma: em lugar de achar santidade, ganhará muitas imperfeições que o demônio lhe porá por outras vias e, como já disse, não  aproveitará nem para si nem às outras tanto quanto poderia.” (CP.V 41,5-8)

 Conclusão

                Permita-me, para terminar, insistir em um aspecto do carisma e da comunidade teresiana que considero de capital importância e de grande atualidade. Refiro-me a seu caráter mistagógico, a essa capacidade de impacto, de persuasão à experiência, pois foi isso que ela fez com seus próprios escritos –não só informar sobre o Mistério, senão, sobretudo, introduzir nele – , e o que quis instaurar em suas comunidades. Uma mistagogia explícita, com recursos à iniciação, proposta de forma concreta, respondendo à dificuldades e estímulos para aspirar a suas formas mais perfeitas[13].

              Não faz muito tempo que o tema da experiência de Deus estava restrito ao âmbito excepcional dos fenômenos místicos e inacessível fora deles. Uma das grandes falhas da teologia pós-tridentina da Graça, e causa, por sua vez, de outras deficiências de dita teologia, foi essa visão negativa ao abordar o tema da experiência de Deus, ou pior ainda, haver suposto que o tema estava definitivamente explicado, só que negativamente: não há nem pode haver experiência da graça. Isso até que a genialidade religiosa – mais que a genialidade teológica – de Karl Rahner começou a rever essa falsa evidência e a questioná-la: “se se tivesse apresentado a vivência mística separada dos seus fenômenos marginais, teríamos compreendido melhor que estas experiências não são absolutamente acontecimentos que estejam mais além dos cristãos normais. Teríamos compreendido que o testemunho dos místicos acerca de suas experiências místicas se refere a uma experiência que cada cristão, inclusive cada homem, pode experimentar, porém que, com frequência omite ou se reprime. De qualquer forma, é válida a afirmação de que existe a mística e de que não está tão longe de nós como somos tentados a supor”[14].

                A questão é que hoje, diante do fenômeno da descrença e das dificuldades na transmissão da fé, é mais urgente que nunca promover uma pastoral da experiência de Deus. Como? Não pelo caminho do convencimento, das ideias e das lições teóricas. Tampouco pelo suposto “contágio” ao que com frequência se acorre em determinadas pastorais, porque o contágio supõe uma forma de transmissão que não passa pela razão nem pela liberdade do contagiado, e uma adesão racional e livre como a fé requer o assentimento racional e o consentimento livre por parte do destinatário.  A pastoral da experiência de Deus supõe a mistagogia, ou seja, a iniciação, o acompanhamento por parte de alguém (pessoas, comunidades) que haja passado por essa experiência.

                Quando Teresa definiu sua comunidade como “colégio de Cristo” (CP.E 20, 1; CV 27, 6), não foi só por uma idealização dos tempos apostólicos ou uma pretendida volta a essas origens míticas, mas sim porque dita comunidade tem a missão fundamental de ser, antes de mais nada, sacramento, relato e rosto de Deus. Se todas as tarefas pastorais da Igreja têm que ter algo de processo mistagógico,  poderíamos dizer que a tarefa primordial e  insubstituível das comunidades teresianas consiste nisto: iniciar e acompanhar na experiência do Mistério, ser lugares onde se vive e se comunica a experiência de Deus, onde se oferece a ajuda de mestres, de peritos nas coisas de Deus.
1-Quales los valores basicos para una comunidad, según Santa Teresa?
2-Quais os valores básicos para uma comunidade, segundo Santa Teresa?
3-Quales son las dificultades reales que tenemos para vivir estos valores?
4-Quais são as dificuldades reais que temos para vivermos estes valores?
5- Como S. Teresa viveria hoy con nosotros la vida comunitária-fraterna, como base también de toda misión ?
6-Como Santa Teresa viveria conosco hoje a vida comunitária-fraterna, como base também de toda missão?
Bibliografia

 - A. RUIZ, Un estilo de hermandad, Burgos 1981; E. RENAULT, «Genèse et évolution de l.esprit apostolique chez Thérèse d.Avila», en Revue d.Histoire de la Spiritualité 53 (1977) 95-116.

- J.MURILLO, La comunidad en Teresa de Jesús, Vitoria 1982; ID., «Comunidad (en Santa Teresa de Jesús)», en T. Álvarez (dir.), Diccionario de Santa Teresa, Burgos, pp. 148-156; G.

- POZZOBON, La comunità teresiana. Genesi e formulazione, Roma 1979; Id., «La comunità teresiana, una significativa esperienza di comunione ecclesiale», en Teresianum 33 (1982) 515-585;

- S. ROS, «El carisma del Carmelo vivido e interpretado por Santa Teresa», en La recepción de los místicos Teresa de Jesús y Juan de la Cruz, Salamanca 1997, pp. 537-572; ID., «El carisma mistagógico de Santa Teresa», en Revista de Espiritualidad 66 (2007) 419-443.


[1] Segundo dados da própria autora: cf . F 2,1;  carta a uma aspirante, fim de maio de 1581,2.
[2] Remetemos à documentação publicada por  O. STEGGINK, «Santa Teresa y el Carmelo femenino anterior», en  Experiencia y realismo en Santa Teresa y San Juan de la Cruz,Madrid 1974, pp. 70-98; ID., Arraigo e innovación, Madrid 1976, pp. 51-68; T. ÁLVAREZ, «La visita del Padre Rubeo a las Carmelitas de la Encarnación de Ávila (1567)», en Monte Carmelo 86 (1978) 5-48; 269-280.
[3] Texto publicado por SILVERIO DE SANTA TERESA, «Constituciones del convento de la Encarnación de Ávila que se observaban viviendo allí Santa Teresa de Jesús», em Biblioteca Mística Carmelitana (= BMC), t. 9, pp. 481-523.
[4]  Cf. Dictamen del P. Pedro Ibáñez, en BMC, t. 2, pp. 131-132.
[5] Anos mais tarde, ao refazer o texto constitucional, acrescentou: “Entenda-se que ao prestar contas as noviças à mestra, e as demais religiosas à priora,  da oração e seu aproveitamento, que se faça de maneira que elas não sejam constrangidas a  tal coisa, mas que por sua própria vontade percebam  o muito aproveitamento espiritual  que disto receberão” (Constituições de 1581, cap. 14, n. 4 )
[6] Aspecto resaltado por historiadores e teresianistas: cf. T. ÁLVAREZ, «Santa Teresa y la polémica de la oración mental. Sentido polémico del Camino de Perfección», en IV Centenario de la Reforma Carmelitana, Universidad de Barcelona, 1963, pp. 39-61; ID., «Santa Teresa y las mujeres en la Iglesia. Glosa al texto teresiano de Camino 3», en Monte Carmelo 89 (1981) 119-132; T. EGIDO, «Santa Teresa y su condición de mujer», en Surge 42 (1982) 255-275; S. ROS, «Santa Teresa en su condición histórica de mujer espiritual», en Revista de Espiritualidad 56 (1997) 51-74.
[7] Seu número ideal era de 13 monjas, como o pequeno “colégio de Cristo” (os 12 apóstolos com Jesus), “porque, tendo tomado a opinião de muitas pessoas, cheguei à conclusão de que convém ser assim; e tenho visto por experiência que, para manter o espírito agora reinante (...) não podem ser em maior número” (V 36,29), pois “onde há poucas, há mais conformidade e quietude” (F 2,1), e “onde são tão poucas, pede a razão que sejam bem escolhidas” (Carta a dona Maria de Mendoza, 7 de março de 1572, 14).
[8] Escrevia o Padre Graciano em 1611, evocando a figura da Santa: «Tenía hermosísima condición y tan apacible y agradable, que todos los que la comunicaban y trataban con ella llevaba tras sí y la amaban y querían, aborreciendo ella las condiciones ásperas y desagradables que suelen tener algunos santos crudos, con que se hacen a sí mismos y a la perfección aborrecibles» (BMC, t. 16, pp. 499-500). E Maria de São  José em 1585, recordando a origem de sua própia vocação: “ O Senhor me chamou à religião vendo e conversando com nossa Madre e suas companheiras, que moviam as pedras com sua admirável vida e conversação. E o que me fez segui-las foi a suavidade e grande discrição de nossa boa Madre. Creio verdadeiramente que, se os que têm ofício de levar a alma a Deus usassem o projeto e a habilidade que aquela santa usava, levariam muitas mais almas” (MARÍA DE SAN JOSÉ (SALAZAR), Libro de Recreaciones, n. 2, em Escritos Espirituales, ed. Simeón de la Sagrada Familia, Roma 1979, pp. 63-64).
[9] Assim o explica T. ÁLVAREZ, «El estilo de hermandad y recreación que tenemos juntas», em Monte Carmelo 100 (1992) 149-158
[10] Sabemos também como protestou quando algum visitador propôs que as monjas e os frades não tivessem recreação nos dias que comungavam: Se as irmãs não hão de ter recreações nos dias em que comungam, eles, os Padres, que dizem Missa cada dia, nunca a deveriam ter. E se os sacerdotes não observam isto, para que o hão de observar os pobres dos outros (Carta ao P. Graciano, 19 de novembro de 1576, 2).
[11]  Sejam vistos  outros textos similares onde o termo «mortificação»  está associado a oração e virtudes:
V 23, 9.16; Carta a Dom Lourenço de Cepeda, 23 de dezembro de 1561, 3; Carta a Maria de São José, 11 de novembro de 1576, 13; F 6, 9; 14, 11; 18, 5-8; 24, 6; 6M 8, 10; 7M 4, 14.
[12] J. GRACIÁN, Dilucidario del verdadero espíritu, en BMC, t. 15, p. 114.
[13] Ver «El carisma mistagógico de Santa Teresa», em Revista de Espiritualidad 66 (2007)
419-443.
[14] K. RAHNER, Experiencia del Espíritu, Madrid 1977, pp. 25-26.

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terça-feira, 4 de setembro de 2012

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Solidão a dois é mais dolorosa

O pior sentimento é o que se sente quando se está acompanhado
         Não sei o autor desta frase, mas sem dúvida é alguém que já esteve sozinho em uma relação que supostamente deveria ser a dois. Solidão é um sentimento forte, traz dor, tristeza e por isso também buscamos ao outro, para não ficarmos solitários em nossos próprios pensamentos, em nossa vida, em nossos egoísmo excessivo. Agora, imagine se sentir sozinha mesmo com alguém ao seu lado...a propósito, como está seu relacionamento?
Se ela apenas bate a cabeça ou resmunga algo indecifrável enquanto você fala do seu dia, ou se ele parece estar no mundo da lua enquanto você conta sobre o seu sentimento, sim, você pode estar no ritmo dos solitários acompanhados. E, acreditem, não é nada divertido  um tango dançado só.
O amor é algo a ser vivenciado a dois. A troca de sentimento, o companheirismo, a parceria. Se está disposto a namorar, tem que saber que deverá de comprometer com o outro. Não adianta assumir algo apenas para dizer que está junto. A isso se chama comodismo. Também não é apenas se relacionar quando se está frente a frente, beijando, abraçando e ao sair da companhia esquecer do outro, sem lembranças, carinho, mensagens, sinais de afeto, a isso se chama sadismo.
Você é o passivo, o sádico ou aquele que tem respeito por uma relação? Se Reflita sobre em que direção está andando sua relação. Se os olhos não batem, as cabeças rebatem e a solidão lhe acompanha mais que o seu parceiro, há algo fora de lugar, será o egoísmo de uma das partes ou falta de amor-próprio?
Homens e mulheres continuam neste ninho vazio muitas vezes por medo do que encontrarão estando apenas na própria companhia. Se você é um destes, a reflexão deve ser ainda mais profunda, a auto-estima não deve estar tão em alta quanto deveria, ou talvez nem exista mais, sufocada entre a passividade e o medo de arriscar viver.
Faça uma reflexão necessária, para você e para aquele que não aguentará muito tempo sua passividade e ausência. Para ajudar, lembre de Nietzsche "Odeio quem me rouba a solidão sem em troca me oferecer verdadeira companhia" e faça alguém feliz - longe ou perto de você.
Fonte: http://www.alagoasweb.com

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segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Carlo Maria Martini: Entrevista.

Entrevista realizada com o Cardeal em 2010
Quando fixamos a data do nosso encontro, o cardeal Carlo Maria Martini me disse que o tema sobre o qual desejava que se desenvolvesse nossa conversação era o da Ressurreição. Fiquei um tanto espantado e até preocupado e lhe fiz observar que sobre aquele argumento teríamos muito pouco a nos dizer. Se há um ponto sobre o qual o não crente não tem nenhuma possibilidade de contato com um cristão douto como Martini é precisamente aquele. Mas, o cardeal insistiu. “Verá – me disse – que nós dois teremos muitas idéias a compartilhar sobre aquele argumento. De resto, a Ressurreição é a tempo o fulcro de minha vida e tenho muita vontade de discuti-lo com você”
Encontramo-nos aos 10 de maio passado em Galarate, na casa de repouso da Companhia de Jesus, onde Martini mora há alguns anos, após os meses passados em Jerusalém. Em dois anos esta é a terceira vez que vou procurá-lo. Entrementes nos escrevemos e sentimos e agora estamos em confidência. Eu o estimo muito e creio que ele também gosta de mim.
O tempo - é verdade - passa com grande rapidez, mas ele não me pareceu mudado. A voz se debilitou, sim, é menos sonora ou eu estou mais duro de ouvido. Aproximamos um pouco mais as poltronas sobre as quais estávamos sentados. A reportagem é de de Eugenio Scalfari, publicada no jornal La Repubblica, 13-05-2010. A tradução é de Benno Dischinger.
"Você escreveu um livro recentemente", me disse ele.
Sim, "Uma viagem na modernidade". Temo que, se tiver vontade de lê-lo, não estará de acordo sobre muitas coisas.
Não esteja tão certo disso: entre um crente como eu e um não crente como você os pontos de encontro são muitos, como já o verificamos.
É verdade – respondi – porém você me propôs um tema, a Ressurreição, que tem mais o aspecto de um desafio do que de um terreno de encontro. Quem, como eu, não crê no além-mundo, muito menos crê na Ressurreição de Jesus e na nossa. Você, no entanto, vê no Ressurrecturis o fulcro de sua vida espiritual. Pode explicar-me a razão? No fundo se trata de um milagre. Eu pensava que você fosse antes cético sobre os milagres.
A Ressurreição de Cristo não é um milagre. O Deus que através do Filho assumiu natureza humana, após a morte sobre a cruz reassume sua natureza divina e imortal.
Entendo. Mas, a ressurreição dos mortos? Aquilo é um milagre.
É um mistério, um mistério da fé. Você me perguntou por que ela representa, para mim e para toda a comunidade dos fiéis, o fulcro de nossa vida. Procurarei explicá-lo. A Ressurreição dos mortos é um fato historicamente positivo. O Espírito ressurge em todos nós. Ressurge a cada dia, ressurge quando oramos, quando nos comunicamos comendo o pão e bebendo o vinho do Senhor, quando ressurgem em nós a caridade e a esperança do futuro, tanto o terreno quanto o extraterreno. A história do mundo não seria aquela que é se a esperança não alimentasse os nossos esforços e a caridade não iluminasse a nossa vida cotidiana. A Ressurreição do Espírito é a chama que impulsiona as rodas do mundo. Você pode imaginar um mundo sem caridade e sem esperança?
Não o imagino de fato. Mas, esperança e caridade iluminam também a vida dos não crentes ou pelo menos a de muitos deles. Nós não temos necessidade da fé, e o amor do próximo, a meu ver, deriva de um instinto que opera em cada um de nós. É o instinto da vida, o instinto da sociabilidade, o instinto da sobrevivência da espécie.
Você pensa que aquele instinto esteja sempre presente em cada indivíduo?
Penso que esteja sempre latente, mas sempre em contraste com o amor de si próprio. A vida não é senão um eterno contraste entre estes dois elementos. A vida humana se apóia sobre a dinâmica destes dois elementos.
Cada vez que o amor do próximo vence sobre o egoísmo do amor de si, aquele é o momento no qual o Espírito ressurge. O fato que você o chame de instinto não muda a tessitura da vida: para mim é a ressurreição.
Mas não a ressurreição dos mortos.
Aquilo é um mistério da fé, um a mais que nos ajuda. Eu não o chamo de milagre, chamo-o necessidade. A necessidade de viver com caridade e esperança.
Cardeal Martini: você conheceu o teólogo Hans Küng? Conhece sua teologia?
Estávamos nós dois no Concílio Vaticano II. Temos a mesma idade, éramos então muito jovens, da mesma idade do papa Wojtyla. Depois o encontrei várias vezes, discutimos com freqüência, temos um bom relacionamento”.
Küng faz uma afirmação muito clara em seu último livro. Diz que a fé ilumina a vida, mas que, para atingir a fé, se requer uma condição preliminar: é necessário acima de tudo amar a vida. Amá-la com um amor profundo. O amor pela vida é uma condição não suficiente, mas necessária para a maturação da consciência. Você está de acordo com esta posição?
Sim, estou de acordo com Küng. Penso também eu que seja preciso amar profundamente a vida para ser depois iluminados pela graça e pela fé.
Tudo está em entender o que se entende quando se diz "amar profundamente a vida".
Você, o que pensa sobre isso? O que quer dizer?
Penso num amor responsável. Penso numa vida que não humilhe a vida dos outros, não lhe cause dano, mas antes a enriqueça de sentimentos e amadureça a humanidade que está em cada um de nós.
Este é também o meu pensamento de cristão. O amor pela vida concebido deste modo é precisamente a condição necessária, embora insuficiente, que pode conduzir à fé. Ou então, parar naquela etapa inicial.
Uma etapa imperfeita? Não perfeitamente madura?
Entendi que lhe custava muito responder a esta minha pergunta. Depois ele disse com um sopro de voz: “Uma gota de divino existe em cada homem. Somos as folhas dessemelhantes de uma única árvore. Não compete a mim distinguir as folhas mais bem sucedidas. Cristo disse: não julgueis”.
Chovia a cântaros do lado de fora da janela. Trouxeram as pílulas para o cardeal e uma taça de chá para mim. As cortinas sobre os vidros eram adornadas com um recamo que me recordou minha casa de infância e a imagem de minha mãe. As preces que ela me fazia recitar às noites antes do sono. Pensei que os fiéis, os que crêem, aqueles verdadeiros, tinham permanecido um pouco crianças, mas depois afastei rapidamente aquele pensamento. Te sentes superior? Disse-me ele. És pó e pó voltarás a ser, por isso ele tem razão: não julgar. Eu lhe disse: “Na ressurreição não creio, mas creio no Gólgota”.
"Estava para lhe perguntar isso. Diga-me".
"Creio no Gólgota porque ali foi celebrado o sacrifício de um justo, de um débil, de um pobre. Aquele sacrifício se repete a cada dia e é o verdadeiro e único pecado do mundo: o sacrifício, a aniquilação, a humilhação do pobre, do débil, do justo. O Gólgota configura o pecado do mundo".
O cardeal olhou-me como se olha um catecúmeno, um olhar que me pareceu uma carícia. Notei que tinha um tique freqüente no olho esquerdo, seguidamente o fechava, mas quando o reabria era ainda mais expressivo que o outro. Creio que fosse o efeito de sua síndrome parkinsoniana, a mesma enfermidade do papa Wojtyla.
Depois ele me disse: “Sim, o Gólgota representa o pecado do mundo. Às vezes a Igreja se ocupa de demasiados pecados e nem todos na Igreja sabem e sentem que aquele é o único, verdadeiro pecado: a aniquilação, a humilhação, o desconhecimento do próprio semelhante, tanto mais se é débil, se é pobre, se é excluído. E, se é um justo. Um que jamais faria coisas que humilham a dignidade da pessoa. O Gólgota deveria ser o início de um percurso penitencial que dura toda a vida”.
Esta frase me golpeou; eu não tinha pensado num percurso penitencial. Quem estava envolvido naquele percurso de penitência? Perguntei-lhe e respondeu: “Todo o mundo”.
Mas, o vosso Cristo não tinha vindo para anunciar a salvação? Um pacto renovado entre o Senhor e os homens?
Exatamente. Trouxe a consciência do pecado que fora cometido e a necessidade de expiá-lo através da penitência.
Num outro encontro nosso você me falou da necessidade para a Igreja de revisitar o sacramento da confissão. Há um nexo entre aquele seu desejo e o que agora me disse?
A confissão deve ser para os cristãos o início de um percurso penitencial que dura toda a vida. Se o pecado é aquele que definimos como o verdadeiro pecado do mundo, a expiação não requer somente o ressarcimento material do dano; a expiação comporta muito mais: comporta a reeducação do pecador, a descoberta, de sua parte, de uma vida diversa. É a descoberta da alegria e do gáudio que aquela vida nova e diversa infunde em sua alma.
Cardeal, tem presente o romance Ressurreição de Tolstoi?
Tem razão de recordá-lo. Aquele romance conta exatamente aquele percurso. O protagonista era um rico e jovem senhor que se aproveita e estupra um menor. Passam os anos e no fim o protagonista perdeu todo o seu patrimônio e é condenado e deportado à Sibéria, mas em sua consciência abriu caminho o sofrimento pelo que cometeu e a necessidade de expiá-lo. Quando a expiação toca o cume, sua alma se abre à consolação e à alegria.
Você recordou Tolstoi; também Manzoni conta um processo análogo e a alegria que provém da expiação. O inominado, seu arrependimento, o afã de expiar e a paz da alma que provoca a expiação.
"A pedofilia é um desses pecados?"
(Eu ainda não tinha introduzido aquele tema, pois me parecia que fosse embaraçoso para um purpurado enfrentá-lo num colóquio com quem exerce profissão de jornalismo. Mas, num certo sentido era ele que me aduzira o tema. De fato respondeu sem hesitação).
“A pedofilia é o mais grave dos pecados, não humilha somente a pessoa e o débil, mas viola precisamente o inocente. Acrescento: nos casos que se verificaram na Igreja os culpados são precisamente sacerdotes e bispos que têm como primeira tarefa a de educar os jovens e os jovenzinhos e devem, por conseguinte, relacionar-se com eles para cumprir seu magistério. Pode haver pecado mais grave do que este?”
A Igreja todavia condena o pecado mas perdoa o pecador. Não há aí contradição? O Papa assumiu um comportamento bastante rigoroso nestes últimos meses e até impôs um critério de transparência, convidando os bispos e os párocos a informarem a autoridade judiciária, distinguindo o crime do pecado. Gostaria de entender se isso tudo representa uma inovação do direito canônico.
Não me ocupo de direito canônico porque neste caso ele tem bem pouco relevo. Quanto à denúncia do crime à autoria judiciária, direi que se trata de um ato absolutamente devido, pois a pedofilia é um grave crime em todos os códigos do mundo e é perseguido. Mas, tratando-se em geral de pessoas avançadas em anos, é lícito prever que a pena infligida pela autoridade judiciária teria uma execução relativamente breve. Em todo o caso, não é esse o ponto. Retorno ao tema da penitência e da expiação. Perdoa-se o pecador que cumpre um percurso penitencial que durará quanto dura sua vida terrestre. A expiação deve ser tão intensa que encha aquela alma e a faça assumir a tarefa de ressarcir quem sofreu o abuso. Digo ressarcir, mas não me refiro a um ressarcimento material que também é devido. Refiro-me a uma relação de almas. A alma do pecador não terá outro fim senão redimir-se, ressarcir os sentimentos violados, ressurgir. Somente desse modo encontrará a paz e a alegria.
(Ele falara tudo num alento, gesticulando e agitando-se sobre sua poltrona. Também a voz subira de tom, tanto que depois se abandonou arquejante e fechou por um momento os olhos. Seu assistente, um jovem padre com fisionomia inteligente e modos cheios de atenção, assomou pela segunda vez: aquela pausa em nossa conversação talvez o tivesse alarmado. “Talvez esteja cansado”, disse, mas naquela altura o cardeal fez um gesto para dizer que de fato não estava cansado e queria continuar).
Perguntei-lhe se houvera na história da Igreja santos que antes tinham sido pecadores. “Muitos”, respondeu. “O fato mais significativo de sua vida tem sido precisamente sua conversão do pecado à graça da fé junto ao início daquele percurso penitencial que os acompanhou até a morte”.
 Solicitei-lhe alguns nomes. “Menciono-lhe um por todos: o fundador de nossa Companhia, Santo Inácio. Contou-o ele próprio, pecou muito e fortemente, para dizê-lo com Lutero: sua conversão foi total, sua expiação longuíssima, acompanhada por um amor pela vida e pelas obras entre as quais precisamente a fundação de uma Companhia que após 400 anos é ainda uma das pilastras de nossa Igreja”.
(Havia passado mais de uma hora e entendi que nosso encontro se encaminhava ao fim, mas ainda tinha muitas coisas a perguntar. Em particular, havia um tema que eu tinha a peito: a relação entre a missão pastoral da Igreja e sua organização institucional e hierárquica. Em suma: a Igreja como missão e a Igreja como centro de poder).
Recorda, cardeal Martini? Você me contou, num encontro anterior, que no início do Conclave que elegeu há cinco anos o atual Pontífice, o senhor recordou aos seus co-irmãos reunidos na Sistina que o Conclave devia eleger o Bispo de Roma. O Papa tem de fato aquela função enquanto Bispo de Roma e como tal deve sempre permanecer. O senhor não me explicou então o sentido daquele seu discurso, me quer dizê-lo agora?
O sentido pode resultar obscuro para quem não atua na Igreja e para a Igreja, mas para nós é claríssimo. Os bispos são os sucessores dos apóstolos e a eles Jesus ditou uma só missão: ide e pregai aos povos a verdade, a caridade, difundi o Verbo, indicai o caminho. Esta é a missão dos Bispos, pastores de almas. Mas Jesus sabia que aquela missão devia ser encerrada numa bainha que lhe protegesse a essência e a preservasse no decurso dos séculos e dos milênios. Aquela que você chama instituição é precisamente a bainha organizacional, as Congregações, a Cúria, as finanças, os tribunais eclesiásticos. Servem para preservar a missão pastoral que representa a essência da Igreja.
O Papa é o Bispo de Roma e é o chefe da missão pastoral e da instituição. E então?
O Papa é o Bispo que senta sobre a sede que foi de Pedro. A missão pastoral é sua tarefa prevalente. O fato de que seja também um teólogo ou um diplomata ou um organizador é secundário. É e deve ser acima de tudo um pastor de almas que exerce aquela vocação junto com todos os outros Bispos.
Todavia, para grande parte de sua história, a Igreja foi sobretudo dominada pelo poder da instituição, e os Papas foram chefes de Estado e até guerreiros. O poder temporal sobrepujou a missão pastoral.
Não penso que a tenha sobrepujado, mas certamente aconteceu que o poder e sua conservação tenham tido uma importância excessiva e a missão pastoral tenha sofrido os contragolpes.
Ainda é assim também hoje?
Estes defeitos ainda subsistem, o poder temporal, em outras formas, é ainda uma tentação no interior da Igreja. Mas aquilo que nós chamamos o povo de Deus, os fiéis, o clero com cura de almas, as associações e o voluntariado católico, constituem a verdadeira bainha de custódia de nossa essência.
Eu lhe faço uma última pergunta, porque estou abusando de seu tempo. A Igreja, para cumprir sua missão, deve ter contatos com os poderes públicos que encontra em seu caminho. Talvez encontre regimes de ditadura e tirania, e outras vezes regimes democráticos. São formas políticas indiferentes para a Igreja ou ela é chamada a fazer uma escolha entre elas?
 A Igreja deve fazer uma escolha, embora ela deva incluir sistemas políticos estranhos à sua concepção. Até é próprio, nos territórios onde a liberdade e a igualdade são negadas, que o testemunho da Igreja se torna precioso. Mas, para mim não há dúvida: a Igreja que reivindica a liberdade religiosa, por isso mesmo compartilha princípios de liberdade, de igualdade, de inclusão, de respeito da dignidade das pessoas. Estes princípios valem, devem valer também no interior da Igreja, onde o Papa exerce sua missão junto ao Episcopado e ao povo de Deus, nas várias formas conciliares que nossa organização prevê.
 
(O encontro tinha terminado. O jovem sacerdote entrara novamente para ajudar o cardeal a levantar-se. Eu lhe disse: “Da próxima vez quero vê-lo pular corda”. Olhou-me sorrindo e disse: “Volte logo”. Depois me acariciou a face com um toque rápido. Fiz o mesmo com ele. Estávamos os dois um pouco comovidos. Lá fora continuava chovendo).