Philippe Artières
Ttradução, Dora Rocha.
Imaginemos por um instante um lugar onde tivéssemos conservado todos os arquivos das nossas vidas, um local onde estivessem reunidos os rascunhos, os antetextos das nossas existências. Encontraríamos aí passagens de avião, tíquetes de metrô, listas de tarefas, notas de lavanderia, contracheques; encontraríamos também velhas fotos amarelecidas. No meio da confusão, descobriríamos cartas correspondências administrativas e cartas apaixonadas dirigidas à bem-amada, misturadas com cartões postais escritos num canto de mesa longe de casa ou ainda com aquele telegrama urgente anunciando um nascimento. Entre a papelada, faríamos achados: poderia acontecer de esbarrarmos com nosso diário da adolescência ou ainda com algumas páginas manuscritas intituladas “Minhas lembranças de infância”.
Esse lugar, podemos apenas imaginá-lo, pois se, como observava G. Perec, “existem poucos acontecimentos que não deixam ao menos um vestígio escrito”. Se Quase tudo, em algum momento, passa por um pedaço de papel, um folha de bloco, uma página de agenda, ou não importa que outro suporte ocasional sobre o qual vem se inscrever, numa velocidade variável e segundo técnicas diferentes, de acordo com o lugar, a hora, o humor, um dos diversos elementos que compõem a vida de todo dia”,1 não conservamos senão uma parte ínfima de todos esses vestígios. Por quê? Primeiro, porque a perda é induzida por certas práticas (a correspondência, por exemplo, é por natureza uma escrita perdida).
Depois, porque dessa vida de todo dia, retemos apenas alguns elementos (um diário íntimo, por exemplo, é por definição uma seleção e não é jamais. Enfim, porque fazemos triagens nos nossos papéis: guardamos alguns, jogamos fora outros; damos arrumações quando nos mudamos, antes de sairmos de férias. E quando não o fazemos, outros se encarregam de limpar as gavetas por nós. Essas triagens são guiadas por intenções sucessivas e às vezes contraditórias. Como observa mais uma vez Perec, “o problema das classificações é que elas não duram; mal acabo de impor uma ordem e essa ordem já está caduca. [...] O resultado de tudo isso são categorias realmente estranhas: por exemplo, uma pasta cheia de papéis diversos na qual está escrito ‘A classificar’; ou então uma gaveta com a etiqueta ‘Urgente 1’ sem coisa alguma dentro (na gaveta ‘Urgente 2’ há fotos antigas, na ‘Urgente 3’, cadernos novos). Resumindo”, conclui Perec, “eu me viro.”2 Passamos assim o tempo a arquivar nossas vidas: arrumamos, desarrumamos, reclassificamos.
Por meio dessas práticas minúsculas, construímos uma imagem, para nós mesmos e às vezes para os outros. Analisar esse “virar-se” é “interrogar o que parece ter deixado para sempre de nos espantar. Nós vivemos, decerto, respiramos, decerto; andamos, abrimos portas, descemos escadas, nos sentamos à mesa para comer, nos deitamos na cama para dormir. Como? Onde? Por quê?” Refletir sobre esse “virar-se” é em suma falar de uma coisa comum, perseguir esse infra-ordinário, desentocá-lo, dar-lhe sentido e talvez entender um pouco melhor quem somos nós.
Mas é também, segundo Michel de Certeau, analisar uma arte de fazer. Ou seja,
“dentre os procedimentos populares (minúsculos e cotidianos) que brincam com os mecanismos da disciplina e se conformam a eles apenas para superá-los, quais ‘maneiras de fazer’ formam a contrapartida, do lado dos consumidores (ou ‘dominados’?), dos procedimentos mudos que organizam a ordenação sociopolítica.”4 Estudar a constituição pessoal de arquivos de vida é nesse sentido “exumar as formas sub-reptícias que assume a criatividade dispersa, tática e manipuladora dos grupos ou dos indivíduos presos doravante nas malhas da vigilância. A rede de uma antidisciplina”.
Pois, por que arquivamos nossas vidas? Para responder a uma injunção social. Temos assim que manter nossas vidas bem organizadas, pôr o preto no branco, sem mentir, sem pular páginas nem deixar lacunas. O anormal é o sem-papéis. O indivíduo perigoso é o homem que escapa ao controle gráfico. Arquivamos portanto, nossas vidas, primeiro, em resposta ao mandamento “arquivarás tua vida” e o farás por meio de práticas múltiplas: manterás cuidadosamente e cotidianamente o teu diário, onde toda noite examinarás o teu dia; conservarás preciosamente alguns papéis colocando-os de lado numa pasta, numa gaveta, num cofre: esses papéis são a tua identidade; enfim, redigirás a tua autobiografia, passarás a tua vida a limpo, dirás a verdade. Mas não arquivamos nossas vidas, não pomos nossas vidas em conserva de qualquer maneira; não guardamos todas as maçãs da nossa cesta pessoal; fazemos um acordo com a realidade, manipulamos a existência: omitimos, rasuramos, riscamos, sublinhamos, colocamos em exergo certas passagens. Num diário íntimo, registramos apenas alguns acontecimentos, omitimos outros; às vezes, quando relemos nosso diário, acrescentamos coisas ou corrigimos aquela primeira versão.
Na correspondência que recebemos, jogamos algumas cartas diretamente no lixo, outras são conservadas durante um certo tempo, outras enfim são guardadas; com o passar do tempo, muitas vezes fazemos uma nova triagem. O mesmo acontece com as nossas próprias cartas: guardamos cópia de algumas, seja em razão do seu conteúdo, seja em razão do seu destinatário. Numa autobiografia, a prática mais acabada desse arquivamento, não só escolhemos alguns acontecimentos, como os ordenamos numa narrativa; a escolha e a classificação dos acontecimentos determinam o sentido que desejamos dar às nossas vidas.
Dessas práticas de arquivamento do eu se destaca o que poderíamos chamar uma
intenção autobiográfica. Em outras palavras, o caráter normativo e o processo de objetivação e de sujeição que poderiam aparecer a princípio, cedem na verdade o lugar a um movimento de subjetivação. Escrever um diário, guardar papéis, assim como escrever uma autobiografia, são práticas que participam mais daquilo que Foucault chamava a preocupação com o eu. Arquivar a própria vida é se pôr no espelho, é contrapor à imagem social a imagem íntima de si próprio, e nesse sentido o arquivamento do eu é uma prática de construção de si mesmo e de resistência.
Escolhi também simbolicamente os arquivos pessoais de um criminoso para insistir nos objetivos individuais de uma tal prática. O arquivamento do eu não é uma prática neutra; é muitas vezes a única ocasião de um indivíduo se fazer ver tal como ele se vê e tal como ele desejaria ser visto.
Arquivar a própria vida, é simbolicamente preparar o próprio processo: reunir as peças necessárias para a própria defesa, organizá-las para refutar a representação que os outros têm de nós. Arquivar a própria vida é desafiar a ordem das coisas: a justiça dos homens assim como o trabalho do tempo.
Por outro lado, o caso desse criminoso oferece, graças aos documentos que foram
conservados, a possibilidade de mostrar que o arquivamento do eu é uma prática plural e incessante. No seu último ano de vida, Nouguier multiplica e modifica de fato as iniciativas: ele escreve um diário e redige várias autobiografias. Pois não arquivamos nossas vidas de uma vez por todas. Incessantemente, até o último momento, nossos arquivos estão sendo refeitos. Nossa intenções mudam em função de fatores pessoais mas também externos. Os arquivos de Nouguier são nesse sentido um palimpsesto. São arquivos sucessivos e de vártios tipos, cada um com funções diversas. O interesse do caso de Nouguier está em que a sua prisão teve como consequência a acumulação e a conservação das suas diferentes maneiras de arquivar a sua vida. O caso de Nouguier permite portanto, apreender a história completa da relação que ele mantém com os seus papéis e restituir o discurso que ele emite sobre a sua prática e notadamente as dificuldades que ele encontra.
Com essa escolha de uma prática de arquivamento do eu primeiro espontânea e depois sob encomenda, eu quis insitir também no papel central do destinatário e das condições de produção do arquivo. Uma parte dos arquivos pessoais do prisioneiro era dirigida ao professor Lacassagne. Sempre arquivamos as nossas vidas em função de um futuro leitor autorizado ou não (nós mesmos, nossa família, nossos amigos ou ainda nossos colegas). Prática íntima, o arquivamento do eu muitas vezes tem uma função pública. Pois arquivar a própria vida é definitivamente uma maneira de publicar a própria vida, é escrever o livro da própria vida que sobreviverá ao tempo e à morte.
Eu quis mostrar, por fim, que a constituição pelo indivíduo de arquivos pessoais, longe de restringir e de circunscrever, é formidavelmente produtiva. Enquanto alguns poderiam crer que essa prática participa de um processo de sujeição, ela provoca na realidade um processo notável de subjetivação. Pois, finalmente, a fim de arquivar a sua vida, Nouguier inventa uma forma profundamente original, constrói para si mesmo uma identidade a partir e em torno das representações que eram feitas dele. Forçado arquivar a sua vida, ele imaginou um discurso híbrido que resiste à interpretação. Em suma, um dispositivo de resistência.
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