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terça-feira, 7 de julho de 2015

UMA PRESENÇA AMOROSA: MARIA E O CARMELO (1ª Parte).


Christopher O’Donnell, O. Carm.

A Mariologia carmelitana- Uma palavra de admoestação
Nos estudos carmelitanos devemos sempre nos preocupar com o que é afirmado precisamente sobre a palavra “Carmelita”. Já que a Ordem não tem um fundador, de certo modo sempre existiu um problema de identidade. Em tais circunstâncias é natural que os carmelitas busquem enfatizar o que é deles.                 
Contudo, o erro seria afirmar que aquilo que é autenticamente carmelitano não deveria ser também partilhado por outras famílias religiosas.Um modo de buscar uma identidade carmelitana é eliminar do conjunto tudo o que é encontrado em outras ordens religiosas e identificar o restante como sendo “carmelita”. Assim, deveríamos buscar o que é exclusivo aos carmelitas na espiritualidade e na devoção. Um dos resultados seria ignorar as Escrituras, os sacramentos, os dogmas, os votos, já que são comuns a toda Igreja. Mesmo admitindo que poderia existir alguma compreensão específica carmelitana para alguns desses pontos como, por exemplo, os votos, permanece verdadeiro que o que é partilhado com a Igreja sobre obediência, pobreza e castidade será mais importante para a vida dos carmelitas do que aquilo que poderia pertencer somente à Ordem.
Se buscássemos no que é especificamente carmelitano naquilo que não é encontrado em outras ordens religiosas, terminaríamos com alguns hinos ou textos espirituais como o Flos carmeli, e uma determinada visão de Elias e de Maria – o que não é histórico em qualquer sentido moderno. Em vez disso, nosso objetivo é examinar toda a vida mariana da Ordem, sem estarmos interessados com o que possa ser partilhado com outras ordens.
            Façamos uma analogia. Três construtores podem receber materiais idênticos para construírem uma casa de um andar. Os mesmos materiais podem ser usados para construir uma casa com espaço suficiente para a sala-de-estar, outra com quartos espaçosos, a terceira com uma cozinha maior. Utilizando os mesmos materiais, até mesmo mais ou menos a mesma quantidade, poder-se-ia conseguir três casas bem diferentes. O que é diferente é o foco dos construtores e a disposição do mesmo material.
            Os mesmos elementos principais podem ser encontrados na mariologia das ordens medievais. Nossa tentativa será buscar a experiência carmelitana de Maria. O conjunto será genuinamente carmelitano, apesar de diversos componentes serem partilhados. É importante termos ideia sobre a cultura de nossa antiga mariologia e, como esse material não é muito acessível, começamos com um breve esboço da mariologia medieval.

A Mariologia Medieval
Vamos começar pelo século XIII, quando a Ordem migrou para a Europa. Foi o século dos grandes escolásticos, da conclusão de muitas catedrais, de uma enorme agitação intelectual, de novas formas de vida religiosa, dos escritos místicos notáveis e de grande transformação cultural e social. A mariologia medieval tanto refletiu esse tempo empolgante, quanto deu sua própria contribuição para este desenvolvimento.
Falamos das grandes catedrais medievais. Cada qual tinha seu esplendor próprio de arte mariana. Os grandes vitrais de Chartres e de outras igrejas transmitiam a história da salvação no Antigo e no Novo Testamento, dando um lugar importante a Maria, que era vista como pré-figurada no Antigo Testamento e apresentada como o centro da história da salvação do Novo Testamento.

Doutrina
As grandes verdades sobre Maria foram defendidas no século XIII. O dogma de sua Maternidade Divina tem sido celebrado desde o Concílio de Éfeso (431). A Assunção de Maria está presente na liturgia desde o século VI e sua festa litúrgica teve uma oitava a partir de Leão IV (+ 855). A Virgindade Perpétua de Maria é questão pacífica desde o tempo do Concílio não-ecumênico Lateranense de 649. O quarto Concílio Lateranense usou a frase “Maria sempre virgem” em sua fórmula do Credo para os albigenses e cátaros. Acreditava-se também na Imaculada Conceição, mas muitos teólogos tinham sérias reservas, principalmente os seguidores de Tomás de Aquino. Sua festa começa a ser celebrada na liturgia a partir do século XII. Foi o papa siro-siciliano Sérgio (+ 701) quem estabeleceu uma procissão solene em Roma para quatro grandes festas marianas: o Nascimento de Maria (08 de setembro), a Apresentação (02 de fevereiro), a Anunciação (25 de março) e a Assunção (15 de agosto).
Além dessas verdades de fé, existia uma ampla crença em outras verdades sobre Maria. Em distintos lugares encontramos importantes afirmações sobre a união de Maria com seu Filho na Redenção. Em São Bernardo e, mais tarde, em Santo Alberto Magno e em São Boaventura, encontramos esboços da doutrina da mediação de Maria. O Memorare, atribuído a São Bernardo, tem algumas frases dele mesmo, apesar de em sua forma atual ser do século XV ou mesmo anterior. A maternidade espiritual de Maria, afirmando que ela é nossa Mãe e Mãe da Igreja, foi ensinada com muito mais clareza a partir do século XI, quando teólogos como Anselmo de Lucca (+ 1086) e Rupert de Deutz (+ 1130) começaram a aprofundar a verdade latente na cena aos pés da cruz relatada por João (19,25-28a). A apresentação de Maria como Rainha já estava presente com freqüência nos sermões e nos hinos do século VI. Foi encontrada há muito tempo nas liturgias, tanto do Oriente quanto do Ocidente e tornaram-se marcantes no século XIII.

Devoção
Quando olhamos para as orações e devoções marianas no século XIII encontramos uma grande riqueza. Já existiam então muitos santuários e lugares de peregrinação marianos. Por exemplo, na Inglaterra foram fundados dois antigos santuários: Walsingham (1061) e Glastonbury (do século VII, reconstruído em 1186). O santuário de Einsiedeln, na Suíça, data do século X. Poemas em língua vernácula são encontrados especialmente a partir da metade do século XII.
Existiam muitas devoções a Maria naquele tempo. A coleção de orações de diversos tipos começou no período carolíngio. Uma das mais conhecidas era o Livro das Orações Sagradas (Libellus sacrarum precum), datado do final do século IX, contendo várias orações marianas. Mais tarde, encontramos os Livros das Horas, cuja essência foi o Pequeno Ofício da Bem-aventurada Virgem. Sua origem foi uma devoção adicional (cursus) acrescentada ao Ofício canônico assim como aos ofícios votivos da Bem-aventurada Virgem, que surgiram com os carolíngios. Este material foi reorganizado por São Pedro Damião (+ 1072) e recomendado por ele para uso diário.
Existiam muitos hinos e orações marianas circulando no século XIII, que foram incorporados à liturgia e às orações comunitárias carmelitanas. A primeira parte da Ave Maria já existia mais ou menos a partir do século VII. Era um elemento do Pequeno Ofício e foi recomendada por Pedro Damião para recitação freqüente. O acréscimo do nome “Jesus” pode vir do tempo de Urbano IV (+ 1264), mas a segunda parte da oração (“Santa Maria...”) é do século XV. Os hinos comuns durante esse período incluíam o Ave maris stella que data do século IX. As quatro grandes antífonas marianas já eram conhecidas: Alma redemptoris mater (século XII), Salve regina (talvez do século XI), Ave regina caelorum (século XII) e o Regina coeli (provavelmente do século XIII).
Outras formas mais populares de oração foram encontradas nesta época. As ladainhas marianas surgem mais ou menos no século XI com a Ladainha de Loreto, datando do final do século XII, com 73 invocações. Uma ladainha irlandesa com 76 invocações pode datar do século XII. Da mesma forma, saudações a Maria, muitas vezes repetidas 150 vezes correspondendo ao Saltério (Grusspsalter), começaram a ser usadas a partir de 1130. Estas últimas teriam dado origem ao Rosário, que tomou sua forma atual no começo do século XV. Coleções das Alegrias (cinco) e Dores (sete) de Maria (Marienklagen) também são do século XII. A grande seqüência Stabat Mater é provavelmente do final do século XIII, talvez do franciscano Jacopone da Todi (+ 1306). O costume de dizer três Aves Marias à noite pode datar do século XI. Gregório IX (+ 1241) ordenava que os sinos tocassem para que o povo pudesse oferecer as Aves Marias às Cruzadas. A primeira coleção de legendas sobre Maria apareceu no século XI, o Liber de miraculis santae Dei genetricis Mariae.
As vidas de Maria, muitas vezes baseadas vagamente nos Ofícios, tornaram-se populares no século XII. Irmandades marianas são encontradas a partir da primeira metade do século XIII, especialmente na França e na Itália.
Uma importante área de interesse para a antiga mariologia carmelitana foi ressaltada por E. Boaga. Ela lembra o número de santuários e de lugares sagrados na Palestina que foram associados à Maria nas escrituras, nos apócrifos e nas tradições orais.[i]  Posteriormente, eles nos ajudarão a compreender mais plenamente o significado da escolha de Maria como Protetora do oratório do Monte Carmelo.

A Escravidão de Maria
Finalmente, podemos lembrar o surgimento, no século XI, do que se chamaria mais tarde de “escravidão de Maria”. São Bernardo, por exemplo, chamava-se de pajem de Maria (servuli). Isso pode ser significativo para a difundida idéia carmelitana da vassalagem, que encontraremos posteriormente.

Não só os carmelitas
Como veremos, os carmelitas que foram para a Europa assumiram muitas dessas práticas e crenças existentes. Se nos restringirmos a estudar apenas o que é carmelitano, corremos o risco de subestimar e mesmo de negligenciar uma parte considerável de nossa herança mariana. Em vez disso, devemos tentar ver toda vida mariana dos primeiros frades carmelitanos, das quais apenas algumas partes serão específicas deles mesmos.
Existem diversos paralelos com outras ordens, tais como os cistercienses,[ii]  os cônegos premonstratenses[iii]  e, é claro, os dominicanos.[iv]  Precisamos em primeiro lugar, levantar a questão da identidade carmelitana, descrita particularmente nas primeiras Constituições e títulos da Ordem.

O Século XX
No século XX tivemos o chamado “Movimento Mariano”, um tempo de grande entusiasmo, congressos, escritos, crescimento devocional.[v]  Esse tempo culminou na definição do dogma da Assunção (1950) e no Ano Mariano (1954). Depois disso houve um declínio, apesar do significativo ensinamento do Vaticano II. Com o importante documento de Paulo VI, Marialis cultus (1974) e de João Paulo II, Redemptoris Mater (1987) houve uma gradual recuperação. A partir da metade de 1970 houve uma abundância de trabalhos eruditos, essenciais sob todos os aspectos, de mariologia.[vi]
Na ordem, o ano de 1950 também foi um clímax do século XX com o caloroso endosso do Escapulário por Pio XII na carta Neminem profecto latet.[vii]  Mas os anos seguintes testemunharam algum declínio e falta de energia da parte da Ordem. A historicidade da visão do Escapulário foi submetida a um minucioso exame. Apesar da evidência desta visão ser considerada inadequada por severos estudiosos como Jean de Launoy (+ 1678) e Herbert Thuston (+ 1939), suas opiniões não influenciaram muito a apreciação que a Ordem tinha do Escapulário. Mas os valentes esforços de B. M. Xiberta em defender a autenticidade da visão do Escapulário[viii]  foram gradualmente colocados em dúvida. Foram feitas afirmações mais específicas, que não confortaram aqueles cuja tranqüila certeza anterior sobre a visão do Escapulário tinha sido perturbada.[ix]  O Privilégio Sabatino, baseado numa suposta visão de João XXII foi considerado como uma mentira medieval.[x]  No Próprio da Missa Carmelitana de 1972 não houve festa ou memorial para Simão Stock. A revisão inicial do Calendário para a Igreja Universal, posteriormente, omitiu a festa de Nossa Senhora do Monte Carmelo.
Mas também houve uma recuperação, um tanto irregular, da consciência mariana carmelitana datando do capítulo geral extraordinário de 1968. Tal capítulo apresentou Maria nos termos do Vaticano II e defendeu o significado do Escapulário.[xi]
Estas questões encontram-se por trás do capítulo geral de 1971 e são, de certo modo, percebidas em alguns encontros do conselho das províncias, congregações gerais e capítulos. A revisão do Missal Romano em 1969 restaurou a celebração de Nossa Senhora do Monte Carmelo. Para a Ordem Carmelitana a Missa e o Ofício de São Simão Stock foram reintegrados pela Santa Sé em 1979.
Junto a esses desenvolvimentos podemos ver na bibliografia anual no Carmelus que tem havido um crescente interesse na mariologia carmelitana e nos escritos realizados pelos membros da Ordem sobre a Virgem Maria. Em 1989 aconteceram três congressos marianos na Ordem: no Centro Santo Alberto em Roma, Sassone fora de Roma e Nova Iorque. Uma conferência em Reno (1998) foi celebrada pela grande família carmelitana nos Estados Unidos.
Portanto, o tempo atual é apropriado para abordarmos novamente o carisma mariano da Ordem e para apresentá-lo em termos apropriados à Igreja contemporânea. Esse breve trabalho quer examinar as origens e o desenvolvimento do carisma mariano carmelitano. Depois, apresentará a reflexão sobre Maria nos documentos oficiais da Ordem desde o Vaticano II, antes de esboçar algumas perspectivas mariológicas contemporâneas, dentro das quais teremos que expressar nosso carisma. (Continua na 2ª parte)



[i]  E. Boaga, “Irigini Mariane dei carmelitane”, Marianum 53 (1991) 183-198.
[ii]  Ver G. Vitti e M. Falletti, “La devozione a Maria nell’Ordine Cistencense”, Marianum 54 (1992) 287-348.
[iii]  Ver N. L. Reuviaux, “La dévotion à Notre Dame dans l’Ordre de Prémontré” em H. du Manoir, ed., Maria: Etudes sur la sainte Vierge. 8 vols. (Paris: Beauchesne, 1949-1971) 2: 713-720.
[iv]  Ver A. Duval, “La dévotion mariale dans l’Ordre des Frères Prêcheurs” em Du Manoir, Maria 2:737-782.
[v]  Roschini, Maria 4:425-495; R. Laurentin, La question mariale (Paris: Seuil, 1963) = Mary’s Place in the Church (London: Burns and Oates, 1965) cap. 2.
[vi]  Ver subsídio anual de E. R. Carroll em Marian Studies.
[vii]  AAS 42 (1950) 390-391.
[viii]  De visione sancti Simonis Stock (Roma: Carmelite Institute, 1950).
[ix]  C. P. Ceroke, “The Credibility of the Scapular Promise”, Carmelus 11 (1964) 81-123.
[x]  L. Saggi, La “Bolla sabatina”: ambiente, texto, tempo (Roma: Carmelite Institute, 1967); cf. Carmelus 13 (1966) 245-302; 14 (1967) 63-69.
[xi]  AOC 27 (1968) 45, 51.

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