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sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

AS CARACTERÍSTICAS DA MÍSTICA (1ª Parte)

Dom Vital João Wilderink, OCarm.
A experiência mística só acontece em pessoas concretas, pessoas que têm as suas limitações, seus problemas, suas alegrias e tristezas. Não são pessoas exóticas. O exotismo sempre recorre a métodos,  lança mão de todo um instrumental. Se alguma coisa de “extraordinário” possa existir no místico, é a sua receptividade, sua atitude de mãos abertas e vazias. Atitude preliminar que não traduz nenhuma exigência com respeito à própria experiência mística. Teresa de Ávila escreve: “Quando Sua Majestade o quer, nos ensina o todo num instante de uma maneira que me espanta”.[1] É a partir dos escritos que os místicos nos deixaram que é possível descrever, de certa maneira, as características da experiência mística.  Descrições que não são categóricas no sentido de não admitir nenhum variável. A leitura de textos místicos é muitas vezes difícil porque neles está descrito o que não foi escrito.
Um conhecimento sem mediações
Nas experiências relatadas no Prólogo e em outras experiências semelhantes, as coisas já conhecidas revelam uma realidade que é maior. Realidade que se desvela como se fosse ao clarão de um relâmpago, mas que vem do interior.  É um conhecimento por uma presença. Não é um conhecimento adquirido através dos  sentidos, ou do discurso, dos conceitos ou das imagens. É uma presença direta e sem mediações. Não é só conhecimento, é vida. É que as palavras de Deus são obras.[2]
Talvez o fenômeno tenha mais clareza para nós quando se trata de uma experiência semelhante em pessoas que alimentam sua vida com as verdades da fé cristã, embora Deus não se deixe condicionar na sua iniciativa de amor por nada e ninguém. Hadewijch de Antuérpia dizia que Deus pode escolher até pecadores e pessoas a-religiosas. Aliás, quem teria coragem de colocar-se completamente fora dessas categorias! Mas há pessoas que buscam a presença de Deus e tentam ser fiéis a Ele, com todas as dificuldades que têm em manter a sua fé. De repente, Deus está ali! Não que tenham pensado nele com maior intensidade ou que tenham provado um amor mais profundo por Ele. Mas elas sentem, como um raio que lhes atravessa, algo de estranho, de completamente novo. Parece que um muro desabou. Assim aconteceu com Dag Hammarskjoeld  que foi secretário geral das Nações Unidas nos anos 50. Depois de sua morte num desastre de avião, encontraram no seu apartamento em Nova York seu diário espiritual. Em uma das páginas ele escreve: “... naquele momento eu vi que o muro nunca tinha existido, que o  ‘inaudito’ se encontra aqui e agora, não outra coisa, que ‘o sacrifício’ está aqui e agora, sempre e em toda parte;  só isto: estar entregue ao que Deus - em mim - dá de si mesmo a si mesmo”.[3]
Nos exemplos citados a experiência mística é descrita como um conhecer a Deus sem mediações, sem idéias ou conceitos. Normalmente o conhecimento que o ser humano tem de Deus sempre é através de algo que não é Deus. Qualquer um, dotado ou não, precisa sempre de indicações, de sinais. Pode haver momentos em que sentimos uma consolação, uma alegria profunda rezando ou refletindo diante de Deus. Mas é algo que sentimos por Deus, não de Deus como sendo o Outro. Continua havendo como que um biombo entre Deus e o ser humano em busca de Deus. Na experiência mística essa mediação é afastada. Este tipo de encontro com a presença de Deus é tão novo, tão incomparável que, de início,  pode assustar e provocar dúvidas. Mas no seu interior profundo o místico tem uma certeza: “É Deus!”. É uma primeira característica da experiência mística. Santa Teresa de Ávila a descreve com a vivacidade que lhe é peculiar:
No princípio, atingiu-me uma ignorância de não saber que Deus está em todas as coisas, e que, como Ele me parecia estar tão presente, eu achava ser impossível. Eu não podia deixar de crer que Ele estivesse ali, pois achava quase certo que percebera a sua presença. Os que não tinham letras me diziam que Ele só estava ali mediante a graça. Eu não podia acreditar nisso, porque, como digo, sentia a Sua presença. Por isso ficava aflita. Um grande teólogo da Ordem do glorioso São Domingos me tirou dessa dúvida, ensinando-me que o Senhor está presente e se comunica conosco, o que me trouxe imenso consolo.[4]
A experiência mística faz perceber, sentir diretamente a presença de Deus. Isto não significa que se trata de um conhecimento claro. Por isto o termo conhecimento talvez não seja o mais adequado. Dizer que o místico tem consciência da presença direta de Deus elimina um pouco a noção de categorias que sempre acompanham o conhecimento humano. A percepção mística vai além de categorias e referências, mesmo doutrinais e teológicas. Na reflexão dos próprios místicos sobre a sua experiência encontramos constantemente uma teologia negativa. Falam de trevas, da nuvem do não-saber, ou, como diz João da Cruz: “Estando a alma naquele excesso de altíssima sabedoria de Deus, toda a sabedoria humana torna-se evidentemente baixa ignorância”.[5] Mais forte ainda é a expressão do Pseudo-Dioníso: ”Deus é tudo aquilo que é e nada daquilo que é”.[6]

A passividade     
A descrição do primeiro traço característico da experiência mística já deixa prever um segundo: ela é fruto de uma iniciativa gratuita de Deus. Não é uma conquista humana, de emoções intensas ou de uma intensa atividade intelectual, nem  mesmo de uma conduta moral exemplar. A experiência mística é um sofrer a irrupção de Deus (patiens Deum). É a passividade mística. Por isto o Mistério só é compreendido na medida em que Ele se deixa compreender. Não é o conhecimento que ilumina o Mistério, é o Mistério que ilumina o conhecimento, inclusive o conhecimento da fé. Essa passividade já tem uma raiz na própria fé enquanto virtude teologal, dom de Deus. A experiência é mística quando a iniciativa e o conduzir pertencem ao Outro. Por esta razão na mística afetiva (o Amado é meu e eu sou do Amado) o caráter passivo da experiência aparece mais claramente. O mesmo pode ser dito da mística da glória que em certos místicos se entrelaça com a mística do amor.[7]
A “passividade” não tem nenhuma conotação de não-liberdade humana. O receber não é menos livre que o fazer. Receber de Deus é fonte de liberdade. Não existe apelo mais exigente à liberdade humana que a gratuidade de Deus porque ela é transformadora. É permitir a Deus que Ele seja Deus na nossa vida. Nesta perspectiva Teresa de Lisieux  se expressa numa oração: “Para amar-vos como me amais, preciso tomar de empréstimo o vosso próprio amor”.[8]
A passividade indica que o místico já não é o centro da sua própria existência e percebe que é movido por Deus. Não há dúvida que ele mesmo pode ter feito um trabalho (ascese) para reduzir esse ego-centrismo que comanda sua vida cotidiana. Não se trata só de um egocentrismo em sentido moral, mas da tendência das faculdades humanas sempre ativas em buscar e apropriar-se os seus objetos específicos. O toque divino atinge além do domínio do ego, um ponto ou uma região que nos escritos dos místicos recebe vários nomes de acordo com a visão que têm da estrutura da psique humana: essência da alma, centro da alma, núcleo definitivo do ser humano. Mas a presença mística de Deus é pura gratuidade. Ela nunca é fruto de uma preparação ascética, mesmo realizada com a ajuda da graça de Deus, embora nos escritos dos grandes místicos a mística apareça freqüentemente como coroação de uma caminhada, nunca, porém, como fruto e prêmio.
Na mística da criação a passividade é menos acentuada. Nela há um despertar de uma consciência à medida em que o místico desce no fundo do seu próprio ser, que tem como o outro lado da medalha, o Ser Incriado. O indizível e o arrebatador deste experiência têm conotações diferentes.[9] 
União com Deus
A presença de Deus percebida na experiência mística envolve o místico de tal maneira  que desaparece a relação sujeito-objeto, entre o que vê e o que é visto. Esta união ou unidade mística  é o terceiro e mais importante traço característico. União essa que não pode ser descrita porque não é alcançada pela atividade das faculdades humanas (sentidos, intelecto, vontade). A própria fonte original da ação humana é deslocada em Deus. É por isto que o místico entra numa nuvem escura: “É no silêncio que se aprendem os segredos destas trevas... que brilha com a luz mais fulgurante, enche de esplendores mais belos da beleza as inteligências que sabem fechar os olhos”.[10] É um descer no abismo do amor. A descrição desta união com Deus é feita pelos místicos em linguagem simbólica. Há imagens e expressões que aparentemente desfazem a distinção entre Deus e a criatura., embora não seja esta a intenção dos próprios místicos. É conseqüência da limitação inerente a qualquer expressão por ser uma incarnação imperfeita do inexprimível. Mas por  isto mesmo vale a pena ser dita.


[1] Livro da vida, 12, 6, Obras Completas, São Paulo, Ed. Loyola, 1995.
[2] Ibidem, 25,18.
[3] Merkstenen, Brugge-Utrecht, 1965, p. 104. Citado por Paul Momaers, em Wat is Mystiek, pp. 45-46.
[4] Livro de vida, cap. 18, 15, em Obras Completas, São Paulo, Ed. Loyola, 1995, pp.117-118.  No seu escrito Cuentas de conciencia (66,10) Santa Teresa afirma que é impossível duvidar da presença das três Pessoas divinas. Presença que traz tantos bens que não é necessário tecer considerações para saber que Deus está ali.
[5] Cântico espiritual, Canção XXVI, 13. São Paulo, Ed. Paulinas, 1980, p.183.
[6] Citada por Jean Daniélou no prefácio do seu livro Dieu et nous, na coleção Livre de vie, Paris, 1956.
[7] “No estado de matrimônio espiritual de que vamos falando, quando a alma chega a este grau, embora não tenha ainda a perfeição e amor que terá na glória, contudo, há nela uma viva imagem e vislumbre daquela perfeição, a qual é totalmente inefável” (João da Cruz, Cântico espiritual, XXXVIII, 4). No Diário Espiritual de Maria Crocifissa Cúrcio, Fundadora das Carmelitas Missionárias de S. Teresa do Menino Jesus, aparece em muitas páginas essa passagem da mística do amor para a mística da glória.
[8] Teresa do Menino Jesus e da Sagrada Face,  Obras completas, Edições Loyola,, São Paulo, 1997, p.262. Manuscrito C 35f.
[9] Kees Waaijman, Spiritualiteit, pp. 846-847.
[10] Dionísio Areopagita Teologia mística, I,1. Citado por João Paulo II na alocução catequética em 19.01.2000, em L’Osservatore Romano, ed. portuguesa, 22.01.2000.

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