A MÍSTICA NO SÉCULO XX: TEORIAS E EXPERIÊNCIAS.
A presença de São João da Cruz
Foi o teólogo K.Rahner quem previu para o próximo século uma tipologia de homem religioso mais disponível para a experiência mística. O teólogo jesuíta não estava prevendo a chegada de um grande número de místicos excepcionais, mas antes uma vida cristã (ou melhor, simplesmente religiosa ou piedosa - em alemão, der Fromme-), na qual a fé intensamente vivida torna-se transparência mediante o amor. Não sabemos se terá razão.
Com certeza, porém, podemos afirmar que hoje muitos são os sintomas de uma "nova fase" para a mística e de uma nova sorte para os místicos, ainda que a sua fisionomia pluridimensional exija percorrer muitas linhas para encontrar o seu "centro"[2].
Descoberta do Misticismo
Paradoxalmente está o pós-moderno redescobrindo e revalorizando a religião e a própria mística[3]. Não como um salto "além-fronteiras", mas como a plenitude da existência e da própria fé, a profundidade da sua autenticidade. Também sobre este ponto K.Rahner parece ter tido uma intuição muito boa: de fato para ele "a mística na sua própria natureza específica é um íntimo, essencial momento da fé", e assim "o místico não está sobre um degrau acima do crente"[4].
Quanto a esta "persistência do misticismo"[5] já há quem se preocupe, suspeitando de uma "volta do sagrado irracional e doentio"; um outro lê aí uma "fuga" coletiva, provocada pela necessidade de certezas e soluções imediatas, que a sociedade complexa já não fornece mais. O recurso à "mística" e ao "misticismo" estaria revelando um desfalecimento das esperanças e uma impotência dos projetos: o curto-circuito da fé estaria provocando "fortes emoções" sem história e oferecendo o justo "álibi" para se subtrair às complexas solidariedades históricas.
Para os psicanalistas, desde sempre, são os místicos apenas vítimas de figuras paternas opressivas, de regressão à infância, de histérico narcisismo. Mais do que linguagem festiva da fé[6], a experiência "mística" parece-lhes uma literatura de evasão nevrótica ou valsa religiosa para os aposentados da história.
Mas esta posição crítica e de suspeitas não está mais na moda, embora seja ainda hoje lamentável a credulidade fácil neste terreno. Com efeito mística e misticismo demonstram muito grande "in", isto é, "estar na crista da moda"; são palavras suntuosas, sedutoras: fazem parte daquele processo de nova sedução, que a religião parece ter em todas as culturas. Ainda não estamos na invasion des mystiques, mas sem dúvida já domina certa mania de experiências vertiginosas, vitalísticas, talvez gnósticas e até mesmo exotéricas.
Pode-se ver aí uma espécie de consumismo religioso, de efeito imediato, sem paciência nem profundidade. Uma sondagem entre os adultos americanos atestava que em 1974 mais de 40% dentre eles pensavam ter tido alguma experiência mística: sensações de luz, amor, comunhão, eternidade. Uma pesquisa Gallup de 1976 descobria que 16% estavam entregues a uma disciplina mística, com prevalência das religiões orientais ou de cura espiritual.
Quem teria esperado por isso nem que seja somente há uns cem anos? O século passado, como tendência cultural geral, não tinha muita simpatia pela mística nem pelas experiências dos místicos. Numerosos eram então os estudos médico-positivistas, que viam os místicos como exaltados, caracteriais, epiléticos, histéricos. Também, como reação contra tais interpretações "redutoras", nasceu entre os católicos um interesse novo pelo patrimônio histórico e pelos percursos antropológicos dos místicos.
É no último decênio do século passado - existe aqui também uma ligação cronológica, mas apenas casual, com o anterior centenário da morte de João da Cruz - que entre os teólogos e historiadores católicos começa uma nova, científica e também robusta pesquisa sobre a mística. E veremos logo os pontos-chaves do seu desenvolvimento.
Para os teólogos protestantes, ao contrário, o juízo a respeito da mística permanecerá decididamente negativo, ao menos até os anos 60. Depois andou mudando. Mas alguma desconfiança sempre perdura por causa da suspeita de que o desejo de posse de Deus prevaleça sobre o encontro nu e fiducioso com o Deus que salva livremente.
I. Traços históricos
Da "querelle mystique" à "vida espiritual"
Não pretendo traçar a história da palavra mística e dos seus derivados e conexos: o caos semântico por todos conhecido acompanha a natureza ambígua, selvagem e paradoxal das palavras dos próprios místicos[7].
Sabe-se que, tanto pela sua origem (grega e extrabíblica) como pela tradição semântica dos séculos, a palavra "mística" tem uma poderosa polivalência de conceitos e se presta a mil usos. O século XVII inventou o substantivo mística; o século XVIII, o termo misticidade; o século XIX, o neologismo misticismo. O nosso século fala de neomística, mística não-cristã, mística selvagem e usa abundantemente o termo substantivo "mística" com referência a coisas muito pouco religiosas, como mística revolucionária, do esporte, da luta de classes, do feminismo e até do sexo e de outras coisas mais.
Bastaria então apenas este aceno à invenção recente dos neologismos para se entender como é preciso ser cauteloso; e tanto mais, ao interpretarmos com termos nossos aquilo que nos séculos passados era chamado com outros vocábulos. São João da Cruz, por exemplo, não somente não usa nenhum dos três substantivos acima citados (mística, misticidade, misticismo); mas também, até quando usa o adjetivo místico/a (dez vezes apenas[8], e Teresa só três), pretende dizer "contemplativo", ou então "espiritual".
Dois textos fundamentais devem ser citados como terminus a quo do despertar dos estudos sobre mística: o Traité de la vie intérieure[9] de A.Meynard em 1885 e Les degrés da la vie spirituelle de A.Saudreau em 1896. Propõem uma doutrina sobre a mística - que depois completarão com outras obras científicas[10] - baseada na convicção de que toda a vida espiritual tem um desenvolvimento unitário, desde os graus mais baixos até o vértice, que é a contemplação infusa. A mística é, portanto, essencial para a santidade, caminho obrigatório para todos, e a contemplação adquirida não teria existência nem fundamento. O movimento antimístico espanhol do século XVI e a escolástica barroca teriam sido a causa da "alteração" desta doutrina "tradicional".
Esta posição entrava claramente em conflito com a teoria clássica dos carmelitas. O primeiro a reagir em termos teológicos foi, contudo, o jesuíta A.F.Poulain, que tinha já escrito em 1893 um pequeno tratado sobre La mystique de Saint Jean de la Croix. No início deste século publica o trabalho exigente Les grâces d'oraison[11]. Poulain está mais propenso ao método positivo-indutivo e até mesmo, através de textos e documentação histórica, distingue duas formas de contemplação: uma mais ativa e uma totalmente passiva. Esta é raríssima e extraordinária, enquanto a ativa é mais freqüente e ordinária. Não é, portanto, necessário o estado místico para se chegar à perfeição.
A polêmica entre Saudreau e Poulain consumiu alguns decênios[12], e nela tomaram parte muitos teólogos famosos, por exemplo, A. M. Meynard, M. de la Taille, J. Maréchal, R. Garrigou-Lagrange, A.Gardeil, J.Arintero, J.De Guibert, A.Farges e outros. Os carmelitas certamente foram chamados em causa, mas somente num segundo momento entraram na polêmica, defendendo e ilustrando a natureza e a função da contemplação ativa ou adquirida. Descalços espanhóis e franceses distinguiram-se nesta defesa da sua posição clássica que, afinal, resultou então melhor documentada, é verdade, mas também relativizada, a favor do carácter teologal e, conseqüentemente, "gratuito" da experiência contemplativa. Gabriel de Santa Maria Madalena procurou conciliar as duas posições, defendendo a distinção de duas contemplações (segundo os textos clássicos), mas também aceitando a normalidade da contemplação mística no caminho da perfeição.
A polêmica teve como resultado positivo um grande progresso em todo o setor da mística. Veio pouco a pouco formando-se um corpus de idéias menos fragmentado sobre a verdadeira natureza dos estados místicos, sobre a relação entre vocação à santidade/perfeição, itinerário teologal e de prática de virtudes e o vértice da experiência espiritual; sobre a secundariedade dos fenômenos místicos extraordinários, sobre a superação de uma distinção/justaposição de perfeição ascética e perfeição mística e sobre a integração entre psicologia e teologia no estudo dos místicos. "Ascética e mística serão, enfim, dois modos de experimentar a mesma vida teologal. Antes, afinal, parecerá mais correto falar não de «ascética», mas de «experiência cristã», dentro da qual, e com ela homogênea, encontra lugar a experiência mística propriamente dita"[13].
Na prática, a querelle mystique serviu de precursora para o amadurecimento da teologia espiritual como disciplina teológica, no âmbito da qual foram depois enfrentadas outras modalidades da experiência mística cada vez mais emergentes.
Outra vantagem relevante arrancada da polêmica foi um cuidado muito mais sério com os textos críticos dos grandes mestres da mística: novas edições completas das suas obras, reconstrução dos contextos históricos a eles relativos, profundas pesquisas nos testemunhos contemporâneos tanto eclesiásticos como culturais.
Sobretudo, duas modalidades de interesse parecem-me ter um valor significativo: começaram a aparecer reconstruções históricas abrangentes e ao mesmo tempo eruditas e, mais ainda, ligadas a uma opção filosófica ou cultural. Para dar exemplos: os trabalhos de Pourrat (sobre a história da Espiritualidade), de Baruzi (exatamente sobre a experiência mística de São João da Cruz), de Bremond (sobre a espiritualidade francesa) são significativos nesta modalidade. Os seus textos continuam ainda hoje exemplares pela originalidade das interpretações (embora controvertidas) e pela capacidade de comunicação com os círculos culturais não eclesiásticos.
E além disto, os grandes pensadores, filósofos e teólogos não se recusaram a se confrontarem com estes testemunhos e daí nasceram propostas de avaliação construtiva ou de rejeição, também, e de crítica, que fizeram estes testemunhos sair dos círculos fechados e de elite, dando-lhes uma importância cultural nova. Estamos pensando nos trabalhos de J.Baruzi, M.Blondel, H.Bergson, A.Stolz, A.Mager, E.Gilson, M.Menéndez y Pelayo e, mais recentemente, K.Rahner, H.U.von Balthasar, Y.Congar, H. de Lubac, J.Leclercq até chegarmos a Th.Merton.
Em conseqüência disto tomou forma e consistência novo modo de posicionar todo o problema da mística, colocando-o no grande depósito da "espiritualidade": ascética e mística[14], como ciência teológica e histórica ao mesmo tempo. Vem então sendo concedida maior atenção aos múltiplos percursos (concretos, históricos, experienciais) rumo à vida cristã em plenitude e perfeição. Rigor teológico e científico de uma parte, indicações práticas para uma vivência em transformação, da outra, têm modificado profundamente a maneira de tratar o tema da mística e os seus elementos-chaves.
Temas novos e releitura
Já desde os anos 30 encontram-se traços desta releitura dos textos clássicos em perspectiva existencial; contudo ela se foi ampliando nos anos entre a guerra e o Concílio. Deixadas de lado as grandes questões teóricas, suspensas acima da história vivida e, talvez, meramente acadêmicas, iniciam-se novos caminhos de interpretação, dando-se preferência à chave hermenêutica das urgências históricas culturais. Confronta-se assim com análises detalhadas e profundas o pensamento dos místicos sobre a antropologia, o sentido da existência, as grandes categorias bíblicas, litúrgicas, cristológicas, o sentido da graça e da história, a função dos símbolos e do mistério, a corporeidade e a afetividade.
E contemporaneamente vai crescendo junto aos teólogos a convicção de que uma correta elaboração teológica das verdades da fé e do mistério da salvação não pode descuidar as contribuições da experiência espiritual e mística dos séculos. Torna-se então uma aspiração comum, embora nem sempre realização concreta bem sucedida, o recurso à tradição espiritual como a um fundamental locus theologicus.
A teologia não poderia ser plenamente eclesial, no seu sentido mais rico, se se descuidasse do aprofundamento e da interpretação das verdades da fé que se operam através do caminho da vida movida pelo Espírito e conformada ao Filho ao longo de percursos misteriosos e irradiantes.
A reviravolta antropológica que veio com o Concílio e a remexida de perspectivas e prioridades causada pela preocupação pastoral e cultural do Concílio deram ainda maior importância à experiência espiritual, incluindo a mística. Desmitificou, num primeiro momento, certos modelos clássicos de santidade e mística estereotípicos, desterrados da história, mas simultaneamente provocou uma releitura de toda a sintaxe espiritual da tradição, de modo a reexprimi-la em termos de realização, encarnados, experienciais.
De modo algum é verdade que as mudanças do Concílio tenham sujeitado a mística a atraso: apenas e acima de tudo exigiram que na mística se reflitam os grandes princípios do mistério cristão e dela brotem respostas e inspirações para o presente da História, onde se deve encarnar a Salvação. Somos devedores à mentalidade conciliar também pela volta ao vigor da preocupação "mistagógica", e os místicos - ao menos os maiores - são de bom grado chamados em causa, a fim de, como místicos, retraçarem propostas de "mistagogia" à altura de sustentar a ascensão para a verdade e de designar exigências e modalidades. A cada místico de importância se pede hoje que seja não somente testemunha, mas também mistagogo, que conduza à profundidade do mistério vivo.
Nos tempos mais recentes foram ainda deslocados para temas particulares os pontos de aprofundamento: para aqueles temas que correspondem à nova consciência, que o cristão e o homem religioso - mais genericamente - têm da história. Por isso as considerações sobre a mística tornaram-se uma reflexão sobre a analogia com a intuição profética, sobre a função da passividade e das imediações, da transformação processual, da solidariedade das criaturas, do esforço pela libertação histórica dos que são oprimidos, da reciprocidade homem-mulher e sua originalidade como homem ou mulher, da procura de sentido, dos tormentos negativos da fé.
Ultimamente, outros temas ainda, correspondentes às novas experiências humanas, começam a se apresentar: a procura da felicidade e da sabedoria, a intuição poética, a semântica da linguagem mística, a comunicação paradoxal, o silêncio como linguagem, as técnicas de iniciação, as tradições simbólicas de outras tradições místicas (não cristãs), a contribuição dos místicos para a inculturação da fé e para a Nova Evangelização, o confronto com novas religiosidades (em particular a New Age, no momento), etc.[15]
O misticismo na vida que se vive
Em substância, até aqui temos sobretudo falado de mística como tema de estudo, como riqueza espiritual histórica, que se deve interpretar e de fato é interpretada constantemente com nova sensibilidade e em âmbitos novos. A este complexo de reflexões, aprofundamentos, temas que se alargam e se entrelaçam dever-se-ia acrescentar o complemento do que se está vivendo na vida mística. Este também tem sido muito variegado e talvez até desconexo.
Usamos no início o termo misticismo e o sentido não é necessariamente negativo. Queríamos indicar esta galáxia que se compõe de pessoas concretas e de correntes religiosas, de sincera busca do divino segundo as diferentes tradições e culturas e também de curiosidade glutona e crédula por demais, de figuras ricas em experiências excepcionais e de correntes revolucionárias utópicas.
Quando estava no início a citada etapa do estudo sobre a mística, estavam já presentes novos itinerários de vida mística de carácter alternativo em relação aos modelos clássicos agora já citados e comentados. Os nomes não são de segunda ordem. Santa Teresa de Lisieux (+1897), por exemplo, Gema Galgani (+1903), Isabel da Trindade (+1906), Carlos de Foucauld (+1916), Elisabeth Leseur (+1914), Matilde Bertrand (conhecida como Lúcia Cristina, +1908), Jerônimo Jaegen (+1919). Estes e outros ainda já tinham dado consistência à nova linguagem e aberto novos caminhos para a mística cristã. Só muito mais tarde se tomará conhecimento do seu valor[16].
Mas naqueles mesmos anos estavam em ascensão as ideologias messiânicas novas, em particular a socialista e depois comunista, que delineavam no futuro um mundo novo de justiça e de liberdade popular. Estes movimentos populares tinham também, a seu modo, as suas pontinhas de mística entremeadas com a utopia e com o sonho de transformações revolucionárias. O sofrimento dos trabalhadores alcançava formas de horrível escravidão. A aspiração por uma nova sociedade bem depressa atingia - particularmente após a primeira Grande Guerra - formas de ditadura política sustentada por uma ideologia que abusava até da linguagem e dos símbolos místicos. Nazismo, fascismo e outros ismos fizeram uso e abuso de alguns módulos simbólicos e lingüísticos das correntes místicas.
A diástase, quer dizer, a falta de conjunção entre a vida e uma tematização teorética orgânica é um fato lógico, natural. Só a história e a distância decantam e ajudam o reconhecimento, mas na realidade a provocação a partir da experiência naquele momento não tinha espaço nas teorias doutrinais. Sobre o plano histórico-
social, o desmoronamento de impérios e mitologias religiosas amedrontava a muitos, sem que se pudesse entender as mudanças emergentes da época. Sobre o plano religioso, recordamos que se está no contexto do "modernismo": e assim era obrigatória a desconfiança do experimental. Mas, por sorte, havia um ou outro, que agiam de maneira diferente; quanto a São João da Cruz, por exemplo, W.James, H.Delacroix, F.von Hügel, E.Underhill.
A interferência contínua entre o experimental descritivo e o doutrinal teorético será uma conquista preciosa, que virá a partir dos anos 30 e depressa será também aplicada à história passada e à análise da documentação de cada testemunha. Esta operação - com relação a muitos místicos, inclusive São João da Cruz - permitirá a aquisição de uma chave de interpretação que recorre a duas perspectivas: 1ª a perspectiva teórico-sistemática que, como se sabe, vai ao encontro dos grandes temas ou grandes realidades - Deus, Cristo, a graça, a bíblia, o pecado, o homem, a existência, as criaturas etc.- lidos então sob a chave tomista, filosófica, metafísica; 2ª a perspectiva do devir espiritual de um projeto, com as suas etapas e condicionamentos. Aqui entram em jogo a nova antropologia, a relação natureza/graça, as pesquisas sobre a linguagem, a moderna historiografia, a contribuição da psicanálise. É esta segunda perspectiva que irá prevalecer nos decênios seguintes.
Novos paradigmas da existência
As modalidades místicas de vivência cristã nos anos entre as duas guerras e de logo após o conflito mostram que, mais do que as grandes teorias e princípios clássicos, novos paradigmas da existência estão em ação. O crescente protagonismo do laicato dava ele também os seus frutos de excelente vida espiritual e até mesmo mística. Faço apenas alguns acenos parciais: o itinerário aos limites do sentido como o da escritora Simone Weil (+1943), ou a mística do pressentimento do político Dag Hammarskjöld (+1961), a intuição cósmica dos cientistas teólogos, Teilhard de Chardin (+1955) e Serghieiev Bulgakov (+1944), ou a vida nas fronteiras da graça como para Madeleine Delbrêt (+1964), ou o abraço com outras tradições religiosas de Júlio Monchanin (+1957) e H.Le Saux (+1973) e a mediação cultural de Tomás Merton (+1968) ou ainda o esplendor da resistência espiritual no inferno do "holocausto", como aconteceu com Dietrich Bonhoeffer (+1945), Edith Stein (+1942) e Tito Brandsma (+1942) e com tantos leigos anônimos, mas cristãos de fibra.
Poder-se-iam citar muitos outros exemplos, mas espero que bastem estes acenos para demonstrar que os redutos existenciais da mística estavam alargando os seus pontos de referência, a exigir novos horizontes de significação. Notável e que merece ser recordado é o fato que todos eles praticamente nutriam uma grande admiração pelo Doutor Místico e dele recebiam influência, seja como inspiração pessoal, seja em geral, como modelo de existência cristã. Contudo a ponta de originalidade e criatividade deles será percebida à distância, nos decênios próximos de nós.
Certamente temos também percursos "místicos" mais clássicos - contemporâneos dos que acabamos de citar - ligados a formas tradicionais no caminho da oração, da ascese, do sofrimento silencioso, da solidão penitente, da devoção eucarística e cristocêntrica, do amor eclesial. Eles também fazem parte do patrimônio da vivência cristã autêntica. Entrelaçam-se velho e novo, tradicional e inédito; convivem muitas vezes justapostos, sem se fecundar. Poderiam ser citados Pio de Pietralcina (+1968), Marta Robin (+1981), João Batista Reus (+1947), Teresa Musco (+1976), Gabriela Sagheddu (+1940), provavelmente Adriana von Speyr (+1967), também[17].
Simultaneamente com todo este multiplicar-se de modelos de experiência mística e itinerários temos a brotação de numerosas correntes de gnoses vitalísticas, itinerários para iluminação interior e propostas exotéricas ou sincretistas. Andaram elas esparramando-se de maneira inimaginável, graças também à crise de valores, de identidade e de projetos da sociedade contemporânea.
É de obrigação falar sobre o fascínio do Oriente, como de uma necessidade de arrebentar a corrente da fria racionalidade do ocidente com uma nova expansão da própria consciência, por meio de uma nova harmonia entre cosmos, corpo e psique. Talvez de moda já passou a viagem geográfica até o Rio Ganges, à procura de nova identidade, mas é certo que permanece o fascínio pelas técnicas orientais de concentração e purificação. Está tendo boa execução a proposta de um sério e acolhedor confronto com as tradições ascéticas e místicas do hinduísmo e do zen-budismo, com o modelo monástico dos ashrams, com a religiosidade mais autêntica dos sábios orientais. O confronto ultimamente se extendeu também à mística do sufismo no Islã e algumas tradições místicas hebraicas como a cabala, o cassidismo, o zohar.
O nome dos grandes místicos (incluindo João da Cruz) sempre é evocado nestes itinerários gnósticos e vitalísticos e exerce comparações e confrontos, integra novas linguagens no seu sistema e novos sentidos, demonstrando semelhanças e inconciliabilidades. Não se trata, acima de tudo, de confrontos teóricos, e sim de aproximações, que pretendem ser experimentais, ao mesmo tempo que ecléticas e sincretistas, fragmentárias e tolerantes. Mais do que sobre êxitos discutíveis valeria a pena lançar a atenção sobre as pessoas que aí estão envolvidas. Trata-se de gente que de maneira sofrida vive os dissabores da crise cultural, da transformação acelerada das referências religiosas.
A perda de "sentido" na sociedade de hoje está sendo atribuída à queda dos ideais religiosos, em vista dos quais se procuram na "nova religiosidade" aquele sentido e realizações que parecem ter-se evaporado. No fundo cada crente tem a sua mística, correspondente às próprias exigências de sentido e de experiência totalizadora. O que parece caracterizar o encontro entre procura e oferta na neomística é este aspecto de totalidade. Direi que em boa parte o sucesso da proposta de "iniciação" dos recentes movimentos eclesiais - e também dos novos movimentos religiosos mais em geral - depende da capacidade de globalizar e de unificar que eles têm[18]. Entre eles é freqüente o uso da linguagem dos místicos e a própria palavra: mística. A isto não corresponde um conhecimento específico dos grandes autores, mas alguma frase de efeito tão somente.
Misticismo contemporâneo
Gostaria, enfim, de acenar para outras faixas do retorno ao misticismo nos dias de hoje.
A nebulosa da mística selvagem, por exemplo, desde as experiências com os "estados alterados da consciência", como nos moribundos, até aquelas "místicas de grupo", sobre as quais fala Carlos Costaneda nos seus romances vividos no México entre os índios, que tomam o peyotl, até os visionários de todo tipo, inclusive aqueles artificialmente fabricados por meio de drogas e outros alucinógenos (LSD). Podemos até mesmo acenar à hipótese de uma mística comunitária, que se verificaria em alguns grupos que se inspiram na espiritualidade pentecostal e neocarismática[19].
Talvez se incluíssem também as manifestações de piedade popular nas quais, no dizer de Paulo VI, encontramos "uma sede de Deus, que só os simples e pobres podem conhecer (...), e atitudes interiores raramente observadas noutra parte em grau igual" (EN 48).
No último decênio se tem insistido em reconhecer também como ambientes de "possível" experiência mística o caminho dos sofrimentos e esperanças dos pobres que, animados pela fé, estão a caminho da justiça e da libertação. Esta experiência não tem nada a ver com o ódio de classes ou uma consolação puramente
evasiva, mas é um caminho guiado pela Palavra de Deus, pela solidariedade humana concreta e pela consciência de pertencer ao povo dos pobres, que Deus ama com predileção e chama para ser o seu "povo novo"[20]. Serviço, espírito de fraternidade, parresia (uma altiva liberdade) e paciência, oração intensa e sofrimento, e até mesmo martírio, assinalam estas experiências. Afirmar que é místico o seu caminho de fé creio que em boa parte seja possível. Várias comunidades do Continente Latino-Americano demonstram já ter percorrido este itinerário de maneira corajosa, consciente, e até refletida sob certos aspectos[21]
Estamos descobrindo agora que, nas comunidades do Leste europeu, o gemido dos oprimidos e silenciados percorreu também, durante decênios, veredas místicas inéditas: as veredas da fé nua. Aquelas pessoas tiveram de navegar por mares desconhecidos, sem cartas geográficas e sem pontos de referência, por meio século esperando e até mais, animadas pela força da fé, que o fim de uma terrível noite da alma e da memória religiosa chegasse. Por enquanto só fragmentariamente são narrados os infinitos percursos da profecia, solidariedade, esperança e resistência no meio de extrema precariedade. À experiência deles como se poderia recusar o título de "mística" e o emprego da categoria de "noite dos sentidos e do espírito" ?
Sobre o misticismo contemporâneo gostaria de acenar para a consciência cósmica, prometedora e propagadora da New Age (Nova Era)[22]. É um fenômeno complexo de neognose popular e pós-moderna, um tipo de religiosidade fluida e sincretista, que faz amálgama de tradições, religiões e culturas diferentes, e entre seus pais enumera cientistas como Frijof Capra e Gregory Bateson. Poderia ser chamada religião epistemológica, capaz de exprimir a sua concepção do mundo, utilizando tanto os registros da mística católica ou ortodoxa ou ainda de uma mística alternativa e exotérica, quanto os da racionalização do mundo. Não se trata de uma religião organizada, antes rejeitam-se formas organizadas e fórmulas dogmáticas em favor de uma nova espiritualidade, que vá além dos limites religiosos e culturais para fazer nascer uma nova consciência universal.
Vai aqui um texto: "As crises da nossa época forçam as religiões do mundo a liberar uma nova forma espiritual, que há de transcender qualquer limite religioso, cultural e nacional, para fomentar uma nova consciência de unidade da comunidade humana e o nascimento de uma dinâmica espiritual, que permita encontrar uma solução para os problemas mundiais. Afirmamos a necessidade de uma nova espiritualidade despojada de todo ilhamento e orientada para o nascimento de uma consciência planetária"[23].
Na base desta nova espiritualidade colocam o contacto direto com o divino; justamente esta experiência direta, este acesso à dimensão mística e a expectativa de uma consciência cósmica, pacífica e unificadora são as suas formas mais claras. A transformação da consciência pessoal (ao chegar a era do Aquário) despertará capacidades místicas não conhecidas ou sufocadas pelas religiões tradicionais. Tais capacidades envolverão a pessoa toda (o holismo), o cosmos (a ecologia), o relacionamento homem/mulher (a feminilidade), o sagrado (a mística), a inter-humanidade (a planetariedade)[24].
II. A presença de São João da Cruz
De um modo ou de outro João da Cruz tem estado presente em toda esta evolução dos conceitos e nas múltiplas propostas existenciais. Desde a primeira fase polêmica sobre a mística até as últimas brotações experienciais dos nossos dias, encontramos sempre o seu nome apresentado como garantia de tudo o que se diz ou propõe. Às vezes criticado como testemunha de uma visão "individualística", culturalmente obsoleta, às vezes exaltado como "antecipador" do respeito pelo homem, graças ao seu processo de transformação e à originalidade do seu imaginário simbólico.
Não é possível reconstruir aqui cada uma das passagens, às vezes até surpreendentes, da história da interpretação de São João da Cruz nem a história da influência dele na questão e experiências místicas[25]. Em consonância com o momento cultural específico, também a São João se concederam atenções, que exploraram por etapas sucessivas a sua figura histórica, o seu sistema teológico, os seus processos psicológicos, os seus conteúdos antropológicos, a sua linguagem poética, a sua proposta experiencial, o seu arco-íris simbólico, as suas possibilidades de diálogo com as novas emergências humanas etc.
Uma presença constante e de qualidade
Em linhas gerais pode-se constatar que São João sempre tem impressionado pelo rigor da sua linguagem, pela acuidade das suas observações, pela qualidade, mesmo literária, dos seus escritos. Mais do que uma função de liderança na evolução inovadora do conceito e das formas de mística deste século, devemos reconhecer-lhe uma presença constante escondida debaixo do encargo de averiguar, discernir e confirmar com a sua autoridade. Pelo carácter sério, escolástico, essencial, a ele se recorre de preferência como "segunda palavra", regra correta para o discernimento, instância superior, testemunha insuspeita.
Ele, antes de tudo, tem feito parte das leituras preferidas das pessoas de cultura exigente. Verdadeira ou falsa que seja a fama de "difícil e duro" que o cerca, a leitura das suas obras certamente nunca foi muito difundida. Os estudos de muito boa qualidade que por todo este século pensadores originais lhe dedicaram, mais do que convencer a fazer uma leitura direta, talvez o que fizeram foi provocar fechamento.
Até mesmo frente à admiração e especial dependência dele, que é atestada explicitamente por figuras deste século de notável influência - desde Teresa de Lisieux e Isabel da Trindade até Carlos de Foucauld, Edite Stein, Tito Brandsma, e ainda Jacques Maritain, Simone Weil, M.Blondel, Ortega y Gasset, Teilhard de Chardin, C.Marmion, Th.Merton e outros, só para citar os que estão acima de qualquer suspeita - não direi que estes tenham impelido os leitores ou admiradores a penetrarem realmente, até o fundo, nos livros de São João da Cruz.
Nem se deve dar muito crédito a certas afirmações genéricas sobre a admiração, que este ou aquele teólogo, bispo, escritor, sobretudo líderes de movimentos eclesiais, têm pelo místico de Fontiveros. Trata-se muitas vezes de vaguíssimo conhecimento, de um reflexo da admiração por parte de um outro, de obrigatória "retórica" de fachada. E quando se trata de teólogos ocupados em muitas frentes, a leitura deles é sempre interessante, talvez até original, mas muito parcial[26]. Não devemos confundir fragmentos de conhecimento, frases ou palavras de efeito, que por toda parte se difundem - noite escura, nada, cárcere, contemplação contam-se entre elas - com o domínio da estrutura de pensamento e do processo espiritual, que caracterizam João da Cruz.
Direi que São João sempre esteve presente como ponto de referência às mais das vezes genérico, salvo algumas questões peculiares, nas quais verdadeiramente age como mestre acima dos outros. No final faremos um aceno a este ponto. Ao invés, é muito interessante anotar que no ritmo da evolução do tema sobre a mística, de que temos falado, São João vem sendo submetido a análises extremamente rigorosas para que revele o seu pensamento e a sua opinião. Neste sentido podemos dizer que São João como que joga de tabela: porque não é baseando-se em alguma indicação dele que se aprofundam certos temas, mas chamam-no à causa quando certos temas se tornam objeto de estudos e aprofundamento e não de moda passageira.
Podemos dizer que com o trabalho de Baruzi[27] se responde à exigência de uma experiência transcendente caracterizada pela solidez e pela abertura a todo o humano, além da identidade religiosa própria; com a leitura feita sob a perspectiva do neotomismo[28] pretende-se demonstrar uma robustez teológica digna de um "doutor" da Igreja; com a pesquisa sobre o contexto histórico[29] e com a edição crítica dos textos - famosa é a questão do Cântico A e B - se quer provar o desejo de tomar distância de uma hagiografia deformadora e acolher seriamente as exigências de estudos científicos[30]; com os aprofundamentos da relação entre João da Cruz e a Bíblia[31], entre ele e as outras correntes espirituais (flamenga, de Dionísio Areopagita, dos alumbrados, dos hebreus, do Islã, por exemplo)[32], e ainda da sua relação com a espiritualidade carmelita[33] e com o cristianismo primitivo etc. dava-se resposta aos alargamentos históricos e espirituais, que vinham emergindo aqui e ali e que pareciam não bem focalizados até agora quanto a João da Cruz[34].
Hoje notam-se novas pesquisas sobre a Cristologia, o Espírito Santo, a ecologia, a paz, a solidariedade com os últimos; sobre os aspectos humanos positivos, os processos de transformação da consciência, as figuras femininas, a consciência de carmelita, a forma de "leitura" da Bíblia, a angústia existencial, a cultura, até mesmo sobre a "Nova Evangelização" etc[35].
São temas interessantes, que manifestam, contudo, como algumas questões e exigências que emergem na espiritualidade - e na mística especialmente - se confrontam com ele através análises inovadoras, perguntas provocadoras, releituras cientificamente honestas.
Convocado a pronunciar-se
Não se pode dizer que a leitura ou releitura de São João tenha provocado novos interesses na espiritualidade: sempre ele foi chamado à causa a parte post: como para discernir, dirimir, declarar a sua opinião com autoridade, até para pôr às claras os seus silêncios e omissões, tendo como conseqüência a percepção da novidade de certos argumentos. E cada vez que isto aconteceu resultou não apenas um aprofundamento precioso e específico sobre a sua doutrina e experiências, mas ainda tornou-se mais sólido o tema em questão.
Na verdade é um Mestre, substancioso, essencial, mesmo se não vulgarizável com facilidade. J.D.Gaitán reconhece que os intérpretes "experimentaram sempre uma grande dificuldade na hora de saber apresentá-lo à Igreja e ao mundo"[36]. Pena que para torná-lo "apresentável", foram às vezes exageradas as suas idéias, negados os seus silêncios, ampliados os temas para ele secundários, e assim foi ele deformado para uso e abuso nosso. João da Cruz enfrentou os problemas espirituais do seu tempo, em particular alguns aspectos das experiências-vértices, discernindo e tematizando: esta é a sua característica específica e a sua grandeza também. Desistoricizá-lo, abstrair das ressonâncias histórico-existenciais e experienciais pode deformar a sua característica própria.
As últimas tendências no que se refere à mística, como acima recordamos, encontram-no ainda hoje chamado à causa. Por motivo do diálogo inter-religioso já se iniciou uma sondagem, ao menos temática, de uma correlação entre a sua doutrina, simbologia, antropologia e as outras tradições místicas. São elementos ainda fragmentários, mas também promissores[37].
As igrejas que estão procurando sair da inferioridade cultural (em todos os sentidos), onde estiveram há séculos, e exploram novos caminhos de fé, santidade e existência cristã, olham com interesse para João da Cruz. Não pretendem fazer dele um uso manipulador, antes juntam as próprias experiências e esperanças ao paradigma do carmelita, para redescobrirem consonâncias e divergências. Querem dele auferir critérios de comparação e convalidação, mas reconhecer também nas diferenças a novidade do Espírito, que está agindo na História.
Vale isto, em particular, para a América Latina, que ama salientar em São João o místico e o profeta ao mesmo tempo. E a releitura de João da Cruz em chave de "mística da libertação" está produzindo interessantes elementos de novidade, não sem os riscos de fáceis acomodações e alguma queda de qualidade[38].
A preferência de certas correntes asiáticas espirituais por certos esquemas de São João - a noite escura, o vazio e o nada, o silêncio, o não-senso, o vasto mundo simbólico, a ascese, o inefável etc. - vem igualmente motivando pesquisas e confrontos, simpatias e interesses até há pouco tempo impossíveis[39]. Aqui também se encontram vantagens e desvantagens. De uma parte não podemos interpretar muito profundamente a São João se não levarmos em conta a sua plena e consciente pertença à fé católica[40]. De outra parte, porém, devemos constatar que a estrutura antropológica de base, à qual faz ele as suas referências, permanece válida e permite, na verdade, encontros e osmoses, comparações e até explicitações originais, que são positivas para as duas partes.
Recorre-se a João da Cruz em outros ambientes culturais, para reencontrar no poeta uma modalidade de testemunho do mistério, que rompa os esquemas da racionalidade e seja um corretivo da linguagem religiosa antropomórfica ou sociológica. Deste ponto de vista os estudos sobre a sua linguagem estão levando a resultados interessantes sobre o plano da eurística, isto é, da transmissão dos textos; sobre o plano da hermenêutica - resultados até agora restritos quase somente aos textos poéticos -; sobre o plano interdisciplinar da semiologia: metáfora e símbolo são ainda um campo pouco aprofundado.
Temos citado alguns setores; poderíamos citar muitos outros. Podemos, porém, concluir que a cada nova proposta ou nova perspectiva no campo da teologia em geral e no da experiência espiritual em particular logo vem corresponder um aprofundamento de qualidade também em relação a João da Cruz. E os resultados muitas vezes são realmente contribuições para um esclarecimento mais completo e harmônico.
Contudo, não faltam nem mesmo temas, perspectivas, sensibilidades, que no corpo joanino parecem fracos, ausentes, vistos de maneira reduzida ou culturalmente superada. Isto também faz parte do diálogo sincero e constante, que São João parece conseguir entreter com os espirituais do nosso tempo. Parece que sem uma opinião dele - fosse mesmo uma reticência sua - nem sequer se pode dizer que os assuntos são tratados como se deve. Mas é importante salientar que para ser Mestre não deve ter dito a última palavra a respeito de tudo: é certo que os seus escritos foram ocasionais, de propósito parciais e incompletos, ligados à antropologia e teologia do seu ambiente. Reconhecer-lhe interesses temáticos preferenciais e ligações culturais vivas não é diminuir a importância dele, mas antes pôr na luz o que lhe é próprio e original. Enciclopedismo nunca foi originalidade.
Leituras ideológicas ligadas a um "sistema"
Na fase da recuperação da mística como valor cristão positivo, contra as interpretações, que a reduziam e às quais acenamos no início, São João é uma das testemunhas, que se apresentam em defesa da qualidade e solidez de tal experiência. A maneira de citá-lo é aquela da "mina" de sentenças oportunas, que se devem usar estrategicamente nas várias posições expostas a crítica. A escolha da impostação teológico-tomista dos grandes princípios ao descrever a vida espiritual não podia senão - com citações fragmentadas - reconduzir a estes grandes elementos toda a proposta espiritual do carmelita.
Esta leitura chamada "ideológica" - isto é ligada aos grandes temas teológico-dogmáticos ou então filosófico-metafísicos - deu contudo os melhores frutos, quando pensadores de notável capacidade analítica e de perspectivas complexas reconstruíram-lhe todo o sistema. Sobre o plano da metafísica aconteceu assim com a famosa obra de J.Baruzi[41]: um trabalho que permanece clássico, até mesmo pela originalidade das suas intuições, embora com evidentes limites. De fato provocou um interesse novo e inesperado pela leitura de João da Cruz, sublinhando a carga afetiva, que acompanha a expressão da experiência mística. Seria também para serem recordados, como modelos de leitura "sistemática", J.Maréchal, H.Bergson, M.Blondel, Ortega y Gasset. No âmbito da escolástica poderiam ser citados J.Arintero e R.Garrigou-Lagrange com os seus numerosos discípulos.
Uma espécie própria, à parte, são as introduções gerais, isto é, leituras abrangentes de toda a obra de São João da Cruz. Resulta tanto mais útil esta mediação quanto não condicionada por seleção parcial e temática[42]. Contudo esta produção esteve também sujeita à necessidade de fazer, a todo custo, concordar com os grandes temas teológicos algum pensamento, que talvez não lhes correspondia plenamente. De qualquer modo, praticamente até os nossos dias, a série das "introduções" gerais deu frutos consideráveis. E nos trabalhos mais recentes vêm freqüentemente englobados os resultados parciais, as pesquisas temáticas realizadas neste entretempo, as novas leituras. Se temos a vantagem da panorâmica mais completa e da integração harmônica e equilibrada das novas perspectivas, não se pode negar o risco de um manual enciclopédico, ou melhor, de um enchirídion onde se encontra um pouco de tudo, mas talvez escape o que é específico, que também é parcialidade, ênfase específica às vezes, omissão e silêncio em vários casos.
Esta espécie de horror vacui, quero dizer, terror por um tema não tratado ou uma perspectiva ausente, provoca releituras necessariamente forçadas. "San Juan de la Cruz no es universal a pesar de sus particularidades de fe y vocación, si no precisamente gracias a ellas. La fuerza irradiante de universalidad brota de la concreción de una experiencia concreta y depurada, pero siempre encarnada en sus propias formas. Privada de sus concreciones de fe y de vida, la experiencia mística de San Juan de la Cruz se vuelve teórica, filosófica y se degrada"[43].
Não se pode dizer que João da Cruz foi por todo este tempo o Mestre-Prínceps na amadurecida elaboração da teologia da mística. O estudo de J.Maritain[44], por mais que ofereça a proposta interessante de fazer dele un practicien, isto é um mestre da espiritualidade (imaginada como ciência prático-prática), está todavia animado pelo mesmo preconceito: o do relacionamento com os grandes sistemas (teológicos e filosóficos), que seriam princípios de comprovação.
Por isto houve acusações de psicologismo místico, uma verdadeira degradação perante a linearidade mistérica e essencial dos (Santos) Padres. Refiro-me às críticas de A.Stolz na famosa obra Teologia da Mística[45]. Ao beneditino respondeu Gabriel de Santa Maria Madalena, defendendo a legitimidade "teológica" da experiência mística de São João da Cruz, mas também pondo em relevo a importância do seu contributo quanto à introspecção psicológica e a função da afetividade. A contribuição do Pe. Gabriel foi determinante para deslocar a questão da mística longe dos horizontes metafísicos, tomísticos e filosóficos em direção aos horizontes antropológicos e às novas provocações das ciências humanas[46].
No princípio dos anos 60, por meio de uma pesquisa complexa, G.Morel[47] inovou em parte a leitura e interpretação de João da Cruz, reconstruindo o "sentido da existência" no Doutor Místico, segundo o esquema dinâmico hegeliano. Se para Baruzi a palavra-chave era "rythme" (na realidade um conceito muito fluido), para Morel a palavra-chave é lógica e movimentos. Por meio de excelentes análises fenomenológicas Morel procura demonstrar uma visão dialética do real. "A renovação é para São João da Cruz - escreve -[48] constitutivo da realidade finita: o homem não é realidade estática, mas realidade «ec-stática», em devir". Contudo o universo do idealismo absoluto não é o de São João da Cruz.
Devedoras do método das leituras sistemáticas são também todas as tentativas de confronto e analogia entre João da Cruz e outros autores ou correntes antigas ou novas. Geralmente baseiam-se sobre determinadas categorias gerais ou conceitos teóricos, para se verem as suas semelhanças, consonâncias e analogias. Os resultados certamente servem, mas não passam além de um certo valor, que é relativo.
Se as leituras sistemáticas querem tratar os escritos de São João da Cruz em termos de "idéias", há outras leituras, chamadas "simbólicas" que, ao contrário, querem descobrir "conteúdos de consciência". A categoria-chave é a do símbolo. Existe a vantagem de se poder fazer referências a uma riqueza muito mais ampla de significados e, por isso, as já numerosas análises em chave simbólica têm enriquecido a tradição das interpretações do Doutor Místico. Todavia há o risco de se abrirem para leituras totalmente arbitrárias, subjetivas, amplamente projetivas e, portanto, sem fundamento.
Está-se desenvolvendo uma última proposta de leitura: é aquela do método dinâmico-estrutural, que gostaria de elaborar uma síntese dos outros métodos a partir do princípio do processo de transformação sempre em aberto. O Instituto de Espiritualidade de Nimega é o centro mais ativo desta nova proposta. O princípio básico é este: "os textos espirituais relacionam-se primariamente com os processos de transformação e não com os conteúdos do crer, a doutrinação espiritual, a história das idéias, o sistema de valores, os comportamentos, o psiquismo ou os conteúdos da consciência. Os textos espirituais - lingüísticos ou não - são articulações de um processo dinâmico-estrutural"[49]. Mas este método também não escapa a uma acentuada subjetividade e é mesmo discutível, embora mereça muita atenção o princípio do processo aberto e infinito, do qual a linguagem revela algumas "estruturas" profundas.
Através de todas estas leituras "sistemáticas", "simbólicas" ou "estruturais", não só se torna São João da Cruz melhor compreendido na sua herança de escritor místico, mas daí derivam também elementos, que servem de paradigma para a compreensão e interpretação mística sem mais. Os estudos e as variações sobre João da Cruz, nestes últimos decênios, levaram a uma convicção inovadora, isto é: antes da teoria vem uma experiência, e esta experiência só parcialmente é capaz de ser transmitida pela linguagem. Deriva daí que se dê muita atenção aos paradoxos, aos paralelos, aos símbolos, ao discurso disperso e ao próprio "silêncio" mais do que a uma exposição discursiva, plana, cheia de argumentos.
III. Horizontes de atualidade
O êxito de São João, sem dúvida, está ligado ao tema da noite e sua simbologia; a literatura a respeito é mais do que abundante[50]. Ainda mesmo que não seja ele o criador deste símbolo, foi ele, todavia, quem ofereceu deste símbolo uma descrição ordenada e sugestiva, que até hoje ainda é atraente. Para muitos, crentes ou não, há na noite de São João da Cruz uma chave de interpretação para situações universais e substanciais da existência humana. De qualquer maneira São João também percebeu encontrar-se a tratar de um argumento "sobre o qual é muito difícil falar" (1N 7,5). "A gravidade do tema despertou a forte capacidade lingüístico-poética de Frei João, impelindo-o à criação de uma linguagem significativa e original"[51].
Leituras atualizadas da "noite"
Exatamente neste século os estudos levaram a repensar profundamente e novamente reinterpretar todo o argumento, a começar pela obra monumental de João Baruzi, Saint Jean de la Croix et le problème de l'expérience mystique[52], no qual bem umas 400 páginas tratam do díptico Subida/Noite. Após a proclamação do doutorado (1926), este tema tornou-se mais clássico ainda, mesmo porque foi posto em relação com a doutrina escolástico-tomista. A prevalência da atenção sobre o aspecto fenomenológico da mística fez o sucesso de Subida/Noite na primeira parte do nosso século, mas provocou também uma sua clara relativização na outra segunda metade. A primazia do aspecto teologal e do radicalismo evangélico acima do antropológico e filosófico levou a revalorizar as outras obras maiores, Cântico e Chama Viva, e ainda os romances, também. Mesmo assim levou a recompreender a própria compacticidade teológica da Subida e sobretudo da Noite, revalorizando-lhes a relação não tanto com a "mística" quanto com os caminhos obscuros e dramáticos da existência humana.
Muitos sugerem interpretar esta "ditosa ventura" tendo presentes as experiências vividas por São João e por aqueles que ele teve oportunidade de dirigir espiritualmente. Porém é um contexto por demais limitado e pouco pluralista. Mostra-se também redutivo o sentido de experiência somente no setor da oração, e portanto como experiência de vida mística, pois se trata, na realidade, de uma estrutura fundamental em qualquer existência cristã.
Elemento essencial da Noite em São João da Cruz é a ação de protagonista do Espírito Santo: esta ação ilumina motivações profundas, estruturas interiores escondidas. É uma verdadeira desintegração criadora, uma autêntica descida aos infernos (2N 6,6), que das bases arranca as pilastras. Não causa surpresa, portanto, que São João fale de morte viva, de situação horrível. E, de mais a mais, é uma fase necessária e obrigatória; assim ele fala no início da Subida: "geralmente deve a alma passar primeiro pelo meio de dois principais aspectos de trevas... ou noite" (1S 1,1). F.Ruiz insiste justamente em afirmar o caráter dinâmico desta Noite: "Não é paralisia, abandono, abatimento, inércia. A alma passa pelo meio da noite, e a noite, pelo meio da alma"[53]. Se assim é, então no centro de tudo não está primariamente a atividade da pessoa, mas o processo de reação teologal frente ao agir de Deus; para alcançar "um mais íntimo saber" (CB 36,12). É esta qualidade nova, mais completa, passiva e divina que se vai operando; de comunhão com Deus, mas também de relacionamentos fraternos e de oblação pelo outro.
Tende-se hoje a aplicar o processo da Noite a situações de sofrimento e desespero das pessoas em particular, mas também de grupos e da própria sociedade. O próprio Papa na sua carta Maestro en la Fe salienta esta forma de atualidade do conceito de Noite: "O Doutor Místico exige hoje a atenção de muitos crentes e não crentes para a descrição que ele mesmo faz da noite escura como experiência tipicamente humana e cristã. A nossa época viveu momentos dramáticos, nos quais o silêncio ou ausência de Deus, a experiência de calamidades e sofrimentos, como guerras ou o próprio holocausto de tantos seres inocentes, fizeram compreender melhor esta expressão, dando-lhe, além disto, um caráter de experiência coletiva aplicada à própria realidade da vida e não somente a uma fase do caminho do espírito. A doutrina do Santo é invocada hoje diante deste mistério insondável da dor humana (...). A esta experiência deu João da Cruz o nome simbólico e evocador de noite escura, com uma referência explícita à luz e obscuridade do mistério da fé"[54].
Com naturalidade se fala de noite escura quando se recorda a tragédia dos "lagers" nazistas, onde havia desaparecido todo senso de dignidade e compaixão humana, enquanto milhões de pessoas se encontravam como num túnel escuro, num caos de sofrimentos e trevas. História horrenda sepultada nas entranhas da memória coletiva e que até hoje inquieta a todos nós[55]. Usou-se a metáfora Noite Escura, ao se falar da oposição dos intelectuais americanos à guerra do Vietnã[56]; em particular o fez o famoso jesuíta Daniel Berrigan[57]. Diante do abalo e frustração das feministas frente à intransigência institucional da Igreja, uma monja carmelita usou a expressão noite escura[58]. Está-se difundindo na América Latina, a começar pelo pai da teologia da libertação, Gustavo Gutiérrez, o recurso ao vocabulário da Noite Escura, do Deserto Imenso, das Pisadas que não se conhecem, para descrever sofrimentos, injustiças, esperanças, transformações e caminhos novos de liberdade e libertação[59].
Gostaria de apresentar uma outra aplicação, que já começa a aparecer junto a algum comentarista. É uma proposta, talvez uma hipótese apenas, que deve ser verificada, pois parece-me haver muitas analogias. Falo da transformação que cada pessoa se vê na situação de sofrer e assumir, queira ou não, nas crises da meia‑idade. Somente há pouco tornou-se esta parte da vida objeto de interesse para a espiritualidade e, no entanto, trata-se de uma fase, na qual a pessoa sente-se sacudida desde as suas profundezas: no plano psíquico e físico, no sentido total da sua vida já vivida e da que ainda viverá. Trata-se de uma ruptura que esvazia e desconcerta e da qual só com uma nova síntese se sai de maneira positiva e com uma nova conversão da pessoa em todos os níveis e em todas as suas capacidades.
Muitos dos elementos, que João da Cruz põe de relevo na transformação e tribulação da noite ativa e passiva, aparecem aqui e não para alguns unicamente, mas para todos. O léxico em uso é análogo: o da noite ativa, mas também o da noite passiva[60]. Afeições, projetos, certezas, conquistas, decisões, tudo vem como colocado na ribalta, posto em dúvida, como que desapropriado. É um momento que podemos chamar de descida à mansão dos mortos e de ressurreição. A tradição espiritual fala de "segunda conversão", "segunda viagem", "pobreza radical", e "demônio do meio‑dia". Por mais que se entrelacem psiquismo e cultura, fisiologia e relacionamentos humanos, creio que podemos reconhecer que não faltam sensações mais profundas e centrais, ao menos naqueles que vivem a sua fé religiosa. "Deus aí pode introduzir a sua graça sem eliminá-las, oferecendo lugar a uma experiência teologal ou mística"[61]. Enfrentar mal esta quebra existencial, com soluções postiças ou fugas cheias de pânico, pode impedir que se realizem como pessoas amadurecidas e fazer com que permaneçam na intermediária, "nem dentro nem fora desta noite", como diz São João com propriedade (1N 14,5).
Enfim, é para mim um prazer apresentar a interpretação da Noite tecida na mensagem do Padre Geral dos Carmelitas, John Malley, intitulada Caminhando em companhia de todo homem e mulher. Diz assim: "A noite é o fim do narcisismo e da abstração, é disponibilidade para o encontro com o Outro e com os outros. É a constante adaptação do homem a Deus. Não é um breve período de crises, um intermezzo, mas uma situação permanente, porque nunca nós acabamos de nos adaptarmos à lógica divina, ao amor de Deus. Atitude crítica para consigo mesmo e perante a realidade; discernimento frente à história e dentro da história; uma consciência da relatividade das metas alcançadas, concedendo espaço para a novidade do Espírito. A noite é conseqüência do amor, é escola de amor. É o meio pelo qual se consegue uma nova consciência: tornamo-nos mais livres para Subir a Montanha sem que Nada se interponha (cf. 1S 13)"[63].
Atualidade de São João para a mística e para os místicos: alguns pontos.
Depois de ter tratado mais extensamente sobre a atualidade do tema Noite, oferecemos agora alguns breves pontos sobre outros argumentos, que mereceriam certamente um desenvolvimento mais amplo.
Por muito tempo se considerou São João como um dos mestres no âmbito da Mística graças aos seus textos, às introspecções teológicas, à descrição que faz dos elementos distintivos da experiência do divino autêntica, imediata, sublime. E assim ele permanece até hoje, ao menos para aqueles que compreendem a mística como um tema, que se deve desenvolver com argumentação lógica e clareza de passagens e "conteúdos" experienciais. Com efeito, quando os "tratadistas" da espiritualidade entram no capítulo final da mística e dos seus fautores, São João está entre os autores fundamentais, que servem de sustento.
Podemos até dizer que alguns temas não podem ser explicados sem a direção plena de João da Cruz. Limito-me a dar um elenco daquilo que todos afirmam como importante. A sua linguagem sobre as purificações ativas e passivas dos sentidos e do espírito por meio das "noites", a sua ênfase sobre a função da afetividade no processo de transformação e união com Deus, o caminho da fé mais como experiência radical do que como adesão a idéias e dogmas, a riqueza do seu léxico simbólico e parabólico e a sua capacidade de criar uma "sugestão" inspiradora, a relativização e mesmo desconfiança diante da multiforme fenomenologia corpórea ou mental dos estados místicos, o sentido da transcendência e, portanto, da incapacidade de se exprimir quando se trata dos confrontos do encontro com Deus.
Apresentemos agora alguns exemplos para demonstrar a sua possível atualidade no campo da mística e nos problemas que lhe dizem respeito.
Um exemplo: a imagem de um "Deus mudo", seja no sentido que a linguagem com que Deus se exprime é essencial e total ao mesmo tempo (cf. a famosa expressão de 2S 22,7), seja no sentido da vida de fé, que deve passar pela prova do "silêncio de Deus", que chega até às fímbrias do ateísmo, da perda de sentido da vida, da tribulação interior sem luz nem esperança. Em um contexto de experiência religiosa contaminada por muitas "mensagens" e "visões", com propostas de experiências místicas, onde a "cruz" e o "vazio" são como que expulsos a priori, São João recorda que a autenticidade do encontro com Deus é comprovada pelo que é essencial no seu divino comunicar-se, pela ausência de palavras humanas adequadas à transmissão dos conteúdos da experiência e pela presença da obscuridade dolorosa e da purificação profunda.
Exemplo, que ainda é inspirador para os dias de hoje, é o seu "procurar ajuda" nas Escrituras e na Igreja para encontrar a possibilidade de "explicar-se" com palavras: refiro-me ao famoso prólogo da Subida (prólogo nº 2). Não é tanto o cuidado de ortodoxia ou de coerência com a fé católica que está em jogo, mas muito mais uma outra verdade, quer dizer: a palavra bíblica é o lugar de origem, decisivo, no qual o Absoluto se expressa, se fez "Palavra" no tempo. O místico, portanto, não pode estar senão em conformidade com esta linguagem originária, em profunda analogia com ela e por ela intimamente condicionado: e por este caminho será autêntico. E além disto deve estar em comunhão com a grande tradição viva da Palavra, que é a vida da Igreja: assim a sua singularidade se derrama por sobre a universalidade, enquanto assume os seus horizontes e oferece a própria contribuição como parte de um organismo vivo.
Mais um exemplo ainda: o seu escrever doxologicamente. Ele escreve não em função de alguma publicação ou para testemunhar as próprias convicções teóricas ou para expor à luz as experiências próprias. Antes escreve como complementar exercício de mistagogia e direção espiritual muito específica, pressionado por exigências de fazer entender melhor aquilo que a linguagem da poesia permite intuir, mas não é capaz de explicar. Temos de recuperar esta convicção, que às vezes nos parece não positiva: João da Cruz é parcial nos seus temas e nos seus tratados, é ocasional, é incompleto. Isto porque decidiu acompanhar de maneira eficaz o desenvolvimento de situações concretas, os estados particulares desta ou daquela alma. O seu escrever é confissão mais do que teoria abstrata e, por isso, a linguagem é muitas vezes entretecida de paradoxos, parábolas, interrupções, antíteses, oximoros, suspensões.
A ligação entre poeta e escritor não é vista, antes de tudo, em termos de forma literária, mas de processos experienciais. A anchura y copia (amplitude e abundância) da experiência encontram forma principalmente numa expressão simbólica e poética, e depois, às vezes, numa explicação e numa linguagem discursivo-escolástica. Compreender de veras a São João, ou melhor, transformar-se de leitores em discípulos seus, significa repercorrer em marcha atrás o itinerário genético, isto é, da prosa para a poesia até o momento da experiência da comunhão com Deus. Trata-se de passar da posição lógica, ascética, moral para a posição estética, simbólico-poética e para a "mística" como experiência do mistério de Deus. Muito perigoso seria reduzir São João da Cruz a um manual de modo de usar; pelo contrário, ele faz solicitações para o face a face com Deus, sem redes nem anteparos, para a vertigem do encontro e as tribulações da participação da vida divina. Quanto a isto oferece uma boa contribuição o método citado da leitura dinâmica estrutural.
Como último exemplo quero acenar ao relacionamento entre São João da Cruz e Santa Teresa: histórias e historietas todos conhecemos. Gostaria de chamar a atenção para um ponto-chave diferente: Teresa de Jesus era da opinião de que muitas dificuldades na vida espiritual provêm da falta de conhecimento doutrinal por parte do diretor e, por isso mesmo, antepunha o diretor sábio ao diretor santo. João da Cruz, pelo contrário, estava convencido de que os acontecimentos lamentáveis nascem da falta de experiência autêntica. Quanto a esta visão dos fatos, cada um provavelmente partia da própria situação pessoal: João tinha feito ótimos estudos e conhecia, portanto, os riscos da ciência, que incha; Teresa era quase autodidata e padecia de um estranho fascínio pelos teólogos.
Um e outra, parece-me, tinham uma palavra de atualidade e de verdade. A devoção sem um mínimo de solidez doutrinal e teológica sofre o risco de estabelecer-se sobre veredas secundárias: e nisto Teresa tinha razão. Mas também a ciência abundante, sem o sustento de um coração cheio de amor e sem uma prática coerente e generosa, corre o risco de não ser atingida pela verdadeira moção transformadora do Espírito. Por isto João da Cruz é reabraçado não somente como "teólogo", que doutrina, mas como testemunha de uma verdade: no coração da "doutrina" não pode estar senão o processo de transformação sempre aberto a novos horizontes. E assim a sua função de mestre não é tanto a de oferecer contribuições teológicas bem tematizadas, mas a de demonstrar que a teologia verdadeira é aquela que percorre veredas desconhecidas, à escuta do Deus Mudo, e que não tem senão palavras poéticas, parabólicas e simbólicas para anunciá-Lo, mas não profana a sua comunicação com uma enxurrada de palavras humanas.
Paradoxalmente a grandeza de São João da Cruz não consiste no desdobrar-se em detalhes, mas no ter sabido esconder o mistério conhecido, no ter reconhecido e testemunhado o risco da palavra que obscurece e profana, o risco da explicação que empobrece e torna esvanecida a realidade íntima. Os seus ensinamentos sobre mística aprendem-se quando não fazemos da sua herança uma espécie de enchirídion de teologia espiritual, mas antes de tudo uma contestação da nossa necessidade de deixar claro, de explicar, de classificar tudo.
Como conclusão
Assim já o salientamos: João da Cruz foi uma presença-chave em toda a evolução dos conceitos e das perspectivas sobre mística neste século. Foi chamado à causa para defender posições clássicas ou então para desmenti-las, para justificar-se por certas omissões ou contribuir para o discernimento da validez e qualidade de novas sensibilidades espirituais. Mais do que um mestre a solicitar abertura de estradas novas, ele apareceu durante um século como "uma segunda palavra", uma instância superior boa para se fazer uma avaliação ou para submeter a novas buscas que desmentissem lacunas aparentes.
Parece-me que hoje, no final do século, João da Cruz se encontra numa posição nova: a sua linguagem poético-simbólica, até há pouco considerada secundária quanto a explicações ou comentários didascálicos, agora, pelo contrário, transforma-se na sua nova originalidade; antes mesmo, torna-se um desafio seu num mundo que sente a esterilidade da racionalização idolátrica, da linguagem positivista, e exige novas linguagens menos funcionais e mais ricas de intuição, de projetabilidade, de estupor, de indizibilidade, de simbolismos. Pelo primado que ele concede à experiência e pela sua antropologia aberta a um processo de transformação conduzida pelo amor, São João da Cruz manifesta-se como precursor antecipado de um sentido mais veraz da existência.
SUMÁRIO
Com este estudo, por ocasião do IVº Centenário da morte de São João da Cruz(1591-1991), Bruno Secondin concentra-se sobre o estado atual das reflexões teológicas sobre o misticismo. Como que oferecendo uma resposta à intuição de Karl Rahner, que prevê uma enorme abertura à experiência mística como uma característica do século, que está chegando, apresenta este estudo o desenvolvimento do "misticismo" durante o século passado e faz uma comparação com o misticismo como se está desenvolvendo na experiência cristã de hoje. Aqui se oferece um exame da influência de São João da Cruz sobre este desenvolvimento, após avaliar os vários modelos sugestivos de releitura sistemática e depois de ter feito uma crítica sobre cada um. Aqui se faz apelo à autoridade do grande místico espanhol, tendo em vista a avaliação e justificação destas novas propostas. Finalmente, é analisada também a atual apresentação do tema: "Noite Escura"; e numa derradeira síntese são identificados muitos dos elementos significativos do magistério do Santo de Fontiveros, enquanto são de maneira especial relevantes para os dias de hoje.
EPÍGRAFE
Em uma noite escura
De amor em vivas ânsias inflamada
- Oh! Ditosa ventura! -
Saí sem ser notada
Estando já minha casa sossegada.
..............................
Oh! Noite que me guiaste
Oh! Noite mais amável que a alvorada
Oh! Noite que juntaste
Amado com amada,
Amada já no Amado transformada!
APRESENTAÇÃO
"Luta e Gratuidade,
libertação e comunhão
são exigências não somente do
caminho cristão, mas também
- e por isso mesmo -
da condição humana".
"Nesta busca João da Cruz
nos recorda que a união com Deus
é a plenitude de todos os valores,
paradigma da condição humana..."
A presente obra é para nós um agradável lugar de encontro com um grande homem, mestre de vida e vida em plenitude. Do início ao fim da leitura, que nos prende com seu tom simples, coloquial e profundo, temos a certeza de estarmos colhendo flores num canteiro, onde as plantas são "híbridas", sendo a dimensão psicológica do homem o "cavalo" e a dimensão espiritual o ramo enxertado, capaz de produzir flor de rara beleza. Encontramos de verdade a psicologia a serviço da espiritualidade, e a espiritualidade - mística -, tomada como o caminho mais apto e curto para que o homem chegue à maturidade, à sua plena estatura.
Sim, o autor, no desenrolar da obra, vai-nos levando a entender a admirável e completa visão psicológica do processo espiritual do homem em busca de sua plenitude, aqui entendida como realização da sua vocação humana de ser chamado a se tornar "imagem e semelhança do próprio Criador-Deus".
Este processo - nos vai revelando o autor - consiste no longo caminho que o homem faz em busca de seu verdadeiro centro
- DEUS -, do qual se desviou pela própria condição humana: "em pecado me mãe me concebeu" [Sl 50 (51),7], e ao qual, de mil formas - necessidades insatisfeitas, inquietudes, ansiedades, bloqueios, dores, aspirações, escuridões ... - somos de novo lembrados: " Vós quereis que a verdade esteja em mim e a sabedoria me ensinais na intimidade" (Sl 50 (51),8). Encontrar esse caminho é o sentido fundamental da vida humana.
Tentativas diversas são feitas ao longo da história humana, na procura da luz no fim do túnel. Cada ciência humana tenta compreender o homem e indicar-lhe o rumo para sua plena maturidade = satisfação, realização, perfeição. Por óticas diversas é vista a multiplicidade que no ser humano produz ambigüidades e desintegração. Muitas vezes o ser humano, por teorias sociológicas, antropológicas, teológicas e sobretudo psicológicas com suas práticas conseqüentes, é reduzido a uma de suas partes que é trabalhada como se fosse o todo. E então... quanto engodo e infelicidade são produzidos!
O autor, ao tomar João da Cruz e levar-nos gentilmente a seu encontro, vai-nos revelando o coração, a experiência e a visão que este nosso irmão tem da vida e do eu humano: visão integral, ontológica e moral em acordo completo com o mistério da Revelação acontecido e acontecendo na "História da Salvação", no hoje de Deus - tempo de vida de cada criatura.
Por ser paradoxal a nossos olhos cheios de fumaça, o caminho para Deus parece complicado, e difícil o ensino de nosso Mestre, João da Cruz. Lido superficial e apressadamente, sem a devida experiência e contemplação pessoal, leva a perder a profundidade do assunto e parece algo de exótico, exotérico, complicado. No entanto, conversando conosco, o autor Wilfried Stinissen nos vai lentamente levando a compreender e saborear o fino manjar que nosso místico nos oferece, com admirável conhecimento da psicologia do mais profundo (nosso eu e suas instâncias) e das metas a alcançar para que a vida humana chegue a seu sentido mais pleno. Leva-nos a compreender o fio condutor da doutrina de São João da Cruz, ou seja o caminho do encontro com Deus; o caminho da saída do falso eu, da imagem idealizada de si mesmo, para o encontro da harmonização maior que purifica o "homem interior" e eleva o "homem exterior". É o paradoxal caminho das "negações" que, contudo, desemboca na plena humanização. É caminho paradoxal porque já plenifica o homem em cada passo feito, convidando-o a ir sempre mais além para que adquira a plenitude da maturidade humana.
O autor nos vai revelando que em João da Cruz o ponto de partida para a maturidade humano-cristã é "Deus que nos amou primeiro" e quer comunicar-nos sua vida e libertação total. Cheios de tudo aquilo que é incompatível com o amor de Deus, precisamos de "entrar" em nossas faculdades para esvaziá-las de seus ídolos, libertá-las das trevas que são as afeições às criaturas. Daí a necessidade de passarmos pelas "noites" (dos sentidos e do espírito), despojando-nos das raízes do egoísmo que nos oprimem e nos impedem de amar. O tema é amplamente tratado, com muitos exemplos ilustrativos e enriquecedores, com aproximações esclarecedoras.
A imagem da "noite escura" é lida e aplicada de forma inteligível: ao crescimento humano; à solidariedade humana; à análise da reconquista e desfrute do paraíso perdido, quando o homem se apodera do "papel divino" através de uma real e profunda identificação com o próprio ser divino.
A atualidade do tema é evidente, porque vamos também descobrir que João da Cruz é atual e importante. Ainda que os caminhos espirituais sejam diversos, o crescimento rumo à maturidade de cada ser humano obedece a certas leis humanas. João da Cruz - como o autor nos vai conduzindo a entender - conseguiu captar estas leis essenciais, próprias do processo espiritual. E, curiosamente, se quisermos partir para a admiração do fato, estas leis se aproximam muito das teorias psicológicas modernas que conduzem o homem à busca do seu eu verdadeiro. Tanto assim que nos afirma um entendido de João da Cruz: "a mística de João da Cruz não nos oferece um caminho alternativo ou substitutivo ao desejo humano da crescer e de crescer em comunhão. Mas põe-nos em guarda contra os excessos de confiança nas tendências do «sociologismo» ou do «psicologismo» com relação à liberdade interior... " Portanto, o caminho da libertação pessoal - ante-sala para a comunhão com os irmãos - não se alcança apenas com a transformação das estruturas sociais, fontes de servidão; nem pelos caminhos da psicologia tomada como chave de libertação do espírito e de comunhão com os outros. Na espiritualidade cristã, tal como nos leva a entender o autor, a partir de João da Cruz, a busca de Deus pela fé e pelo amor - ambos purificados - é garantia da realização e maturação humanas. A sociologia e a psicologia podem auxiliar neste processo. O crescimento psicológico se torna libertador apenas na medida em que purifica e liberta a fé e o amor.
Então, com certeza, o caminho libertador e humanizante do espírito humano é fruto da lenta ação do Espírito Santo, realizado na proporção em que aceitamos ser por Ele purificados, e não se alcança à força de análises ou exercícios parciais embasados em concepções unilaterais da pessoa humana. Estes exercícios podem ser úteis na sua própria esfera, ajudando a abrir o caminho para a fé. Vamos encontrar luminosamente esclarecida esta situação e teremos a alegria da verificar que o caminho espiritual é mais simples do que pensamos.
Creio que a leitura desta oobra deverá ser feita lentamente, quase como se de fato nos encontrássemos os três: João da Cruz mediado por Wilfried Stinissen e cada leitor. E neste encontro tivéssemos sede de falar, um com o outro, de nossa experiência mística, de nosso caminho rumo a Deus. Sem dúvida vamos verificar que João da Cruz parecia estar-nos ouvindo e descrevendo nossa caminhada quando escreveu a sua "Noite EScura". E Wilfried Stinissen nos parecerá ser um dos bons comunicadores que vão com muita propiedade mediando a conversa, contribuindo para que esta seja inteligível, proveitosa e saborosa. E cada um de nós terá a imensa alegria de descobrir o místico que é, vivendo no ÊXODO contínuo = luta, purificação... e na ALIANÇA = celebração, amor gratuito, presença e comunhão com Deus: " o que Deus pretende é nos tornar deuses por participação, sendo ELE por natureza, assim como o fogo converte todas as coisas em fogo ". (Max 106)
Alegremente vamos compreender a necessidade da noite purificadora, as modalidades da noite e os frutos positivos que ela mostrará: nossa integração, felicidade, alteridade, comunhão, santidade.
[21]. Cfr. G.Gutiérrez Beber do próprio poço: o itinerário espiritual de um povo Vozes Petrópolis 1987 (Trad. de Hugo Pedro Boff); Falar de Deus a partir do sofrimento do inocente - Uma reflexão do Livro de Jó Vozes Petrópolis 1987 (trad. de Lúcia Mathilde Endlich Orth); J.Sobrino Tracce per una nuova spiritualità Borla Roma 1987; S.Galilea,As raízes da Espiritualidade Latino-Americana (Os místicos ibéricos) Paulinas São Paulo 1986 (trad.Luiz João Gaio); Uma síntese: C.Maccise Lectura latino-americana de San Juan de la Cruz. Desde una perspectiva liberadora em F.Ruiz (coordenador) Experiencia y pensamiento en San Juan de la Cruz Ed.Espiritualidad Madri 1990 pgs. 271-295
[37]. São citados, principalmente, os vários estudos do jesuíta irlandês, que trabalha no Japão, William Johnston: é dele The still Point: Reflections on Zen und Christian Mysticism Harper an Row Nova York 1971. Cfr. também J.Mamic, San Giovanni della Croce e lo Zen Buddismo. Un confronto della problematica dello "svuotamento" interiore. Teresianum Roma 1982
[43]. "São João da Cruz não é universal apesar das particularidades da sua fé e vocação, mas precisamente graças a elas. A força irradiante de universalidade brota da concretitude de uma experiência sólida e depurada, mas sempre encarnada nas suas próprias formas. Privada das suas concreções de fé e vida, a experiência mística de São João da Cruz torna-se teórica, filosófica e se degrada". F.Ruiz Vida y experiencia carmelitana en los escritos de San Juan de la Cruz em O.Steggink (ed) Juan de la Cruz: espíritu de llama Institutum Carmelitanum-KOK Roma/Kampen 1991 pg.686
[47]. G.Morel Le sens de l'existence selon Saint Jean de la Croix 3 vol. Aubier Paris 1960-1961. Cfr. a recensão de X.Tiliette, Mystique et métaphysique: à propos d'un livre recent em Revue de Métaphysique et Morale, 66 (1961) pgs. 375-380. Antes de Morel, H.Samson tinha aprofundado o tema, L'esprit humain selon Saint Jean de la Croix Presse Universitaire Paris 1953.
[49]. Spiritualiteit en Mystiek in Dynamisch-Structureel Perspectief, Titus Brandsma Instituut - Nijmegen 1988 pg 24. Temos um exemplo prático na tese de láurea de A.R. Luévano, Endless Transforming Love. An interpretation of the Mystical Doctrine of Saint John of the Cross according to the Soul's Affective Relation and Dynamic Structures Institutum Carmelitanum Roma 1990
[60]. Cfr. o nosso Nuovi cammini dello Spirito. La spiritualità alle soglie del terzo millenio Paulinas Cinisello Balsamo 1990 pgs. 156-161. (Nota do tradutor: fala-se de Noite Escura e do Nada até na arte, como na pintura, escultura e mesmo na poesia. Cf. Jean-Pierre Jossua: Yves Bonnefoy et la mystique em La Vie Spirituelle 705 t.147 1993 427-439)
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