Frei Carlos Mesters, carmelita
As
fotos e os desafios
A
PROBLEMÁTICA ATUAL E SUAS CAUSAS
1. A visão integrada da Natureza
que perdemos
2. A ruptura que houve
3. Um novo ídolo
4. Interpretação errada da Bíblia
5. Uma parábola para perceber o
rumo desta reflexão
ILUMINAR
A REALIDADE COM A LUZ DA BÍBLIA
A
VISÃO INTEGRADA DA NATUREZA QUE A BÍBLIA NOS OFERECE
1. O ponto de partida: A tragédia
da destruição do meio ambiente - A tragédia do cativeiro
A crise do cativeiro, a crise
ecológica
A terrível imagem de Deus que
falsificou a visão da vida e da natureza
2. O caminho que percorreram: A
lição dos Profetas - a missão das Comunidades
1. A nova leitura da natureza
2. A redescoberta do Amor Eterno.
3. A nova imagem de Deus: Deus de
família
4. O processo da releitura e de
repensar todas as coisas
5. Os dois decálogos: da Aliança
e da Criação: "Assim na terra como no céu!"
6. A nova síntese: os dois Livros
de Deus: Natureza e Bíblia
7. A nova Missão do povo de Deus:
servir
8. Uma nova pastoral: ternura,
diálogo, reunião e consciência crítica
9. Uma nova maneira de celebrar a
vida: a lição dos salmos
3. O ponto de chegada: Jesus
confirma o caminho percorrido
*
A continuidade com a caminhada das Comunidade do AT
*
O olhar de Jesus sobre a Criação de Deus
*
a prática de Jesus confirma a tradição das Comunidades do AT
1. Jesus refaz o relacionamento
humano na base, na "Casa"
2. Recupera a dimensão sagrada e
festiva da Casa
3. Reconstrói a vida comunitária
nos povoados da Galiléia
4. Cuida dos doentes e acolhe os
excluídos
5. Recupera igualdade homem e
mulher
6. Vai ao encontro das pessoas
7. Supera as barreiras de gênero,
religião, raça e classe
*
os títulos de Jesus: um resumo do novo Caminho
Filho do homem
Servo de Deus
Redentor dos irmãos
APÊNDICE
1: Corrigir a interpretação errada da Bíblia que legitimou a agressão à
natureza
Leitura de Gênesis 1,1-2,4: a
história da Criação
Leitura de Gênesis 2,4-3,24: a história
do Paraíso Terrestre
APÊNDICE
2: Uma conversa de Deus com Adão antes da expulsão do Paraíso
APÊNDICE
3: Uma conversa entre Adão e Eva depois da expulsão do Paraíso
APÊNDICE
4: A lição dos povos indígenas
As
Fotos e os Desafios
As
fotos visualizam os grandes desafios:
1. O mundo ameaçado pelo lixo.
Como preservar o meio ambiente,
para que as gerações futuras
possam ter uma vida garantida?
2. A visão integrada da Natureza.
Como criar em nós uma nova visão
do universo como criação de Deus
e da terra como casa para todos e
todas a serviço da vida?
3. O círculo Bíblico dos pobres e
a missão do ser humano.
Como continuar acreditando
que Davi vencerá Golias,
que a mulher em dores de parto
será mais forte que o dragão,
que os dois centavos da viúva
continuam valendo mais que os milhões do ricos?
Como redescobrir nossa missão
como seres humanos neste
universo,
não como donos, mas como
servidores,
missão que deve encontrar uma
expressão concreta
nas nossas atitudes pessoais,
no relacionamento familiar e
comunitário,
na busca de Deus e na vivência da
espiritualidade
e, sobretudo, deve marcar a
missão das nossas Comunidades.
Como continuar a crer na força
criadora e renovadora da Palavra de Deus?
A
PROBLEMÁTICA ATUAL E SUAS CAUSAS
1.
A visão integrada da Natureza que perdemos
A Bíblia não tem receita pronta
para estes problemas do meio ambiente. O que nela existe é uma visão integrada
da natureza que nós perdemos e que faz muita falta. Desde a época da Bíblia até
o século XVI, dentro da visão que se tinha do mundo, o povo de Deus soube
integrar, numa harmoniosa unidade, a visão da Natureza, a vivência da fé e a
celebração litúrgica. Basta ver os relatos bíblicos e os Salmos, nos quais
terra, sol, lua, estrelas, plantas e montanhas, seres humanos, história e
criação, fé e Bíblia, tudo forma um conjunto vivo e harmonioso. A terra estava
no centro, tendo o ser humano como o dono da casa que tomava conta de tudo em
nome de Deus (cf Sl 8). Uma visão integrada semelhante marca também a cultura e
a cosmo-visão dos povos indígenas até hoje. (Veja apêndice: A lição dos
índios).
2.
A ruptura que houve
Desde o século XVII, a ciência
vem revelando uma visão nova do universo. A terra não é o centro. O sol é uma
estrela de segunda categoria da Via Láctea com seus bilhões de estrelas. Como a
Via Láctea há outras bilhões de galáxias com outras tantas estrelas. A terra
não passa de um planeta entre milhares de outros planetas. Esta descoberta
trouxe um descrédito com relação à visão do mundo que transparece na Bíblia.
Rompeu-se aquela visão harmoniosa da natureza. O ser humano já não é o centro
do cosmos, a terra deixou de ser um santuário divino. Ela já não nos fala de
Deus, nossa origem. Em vez de ser nossa casa recebida de Deus, a terra virou
mercadoria, sem espírito e sem projeto, apenas matéria bruta. Dizia o filósofo
Francis Bacon: "Cabe ao ser humano torturar a natureza, como se faz na
Inquisição, até que ela entregue todos os seus segredos". Daí vem a
agressão contra a natureza dita "selvagem" que deve ser dominada e
“civilizada”. A crise atual não é só de escassez crescente de recursos. É
também espiritual. Olhamos a natureza com um espírito errado e não nos damos
conta. É urgente criar em nós uma atitude nova frente à natureza, atitude que
nos ajude a superar a visão utilitarista e depredatória do cosmos divulgada
pelo sistema neo-liberal. E neste ponto, a Bíblia é de grande ajuda. (L.Boff,
Folha de São Paulo, junho de 2012)
3.
Um novo ídolo
O sistema neoliberal criou um
ídolo, diante do qual se sacrifica a vida e em defesa do qual se desintegra a
natureza, destruindo rios, plantas, animais, florestas e mares. Este ídolo é o
lucro, necessário para o sistema poder funcionar e sobreviver. Como todos os
ídolos, tem os seus templos (Shoppingcenters), suas festas e celebrações, seus
sacerdotes e funcionários. Na Bíblia, do começo ao fim, desde Gênesis até o
Apocalipse, o que mais se combate é o ídolo, o falso deus, que impedia o acesso
do povo ao Deus vivo e verdadeiro e que legitimava o domínio arbitrário do rei
sobre a vida e as consciências das pessoas, desumani¬zando a vida. A luta dos
profetas em defesa da vida contra os ídolos e os desmandos da monarquia pode
oferecer uma motivação mais profunda para o esforço de tantos movimentos que
combatem o ídolo do sistema neoliberal, lutam pela preservação do equilíbrio
ecológico e acreditam que outro mundo é possível.
4.
Interpretação errada da Bíblia
Na raiz do atual desequilíbrio
ecológico e da depredação da natureza está também uma interpretação errada da Bíblia.
Nós cristãos, em nome da Bíblia, legitimamos a agressão à natureza. O livro de
Gênesis traz a ordem de Deus: “Dominai a terra e submetei-a!” (Gn 1,28-29;
2,15; 9,1-3; Eclo 17,4; Sab 9,2; 10,2; Dan 3,37-38). Durante séculos, nós nos
comportamos como se tivéssemos a liberdade, recebida de Deus, para fazer com a
natureza o que bem entendêssemos. E o resultado é o atual desequilíbrio: a
poluição ameaçando a vida no planeta que volta a ser um caos “sem forma e
vazio” (Gn 1,2); o irmão matando o irmão, Caim matando Abel (Gn 4,1-16); a
violência, pior que de Lameque (Gn 4,17-24); a manipulação da religião que dá
origem ao Dilúvio (Gn 6,1-7); uma nação dominando a outra, criando a confusão
da Torre de Babel (Gn 11,1-9).
Se no passado usamos a Bíblia
para legitimar a exploração da Terra, temos de voltar à Bíblia para corrigir a
visão errada e aprender com ela como respeitar melhor a natureza. É
significativo o gesto do índio que devolveu a Bíblia ao Papa João Paulo II:
“Leve de volta este livro, porque ele é a causa do nosso extermínio!” De fato,
legitimada pelo livro de Josué, foi feita a invasão das Américas. E, legitimada
pela Bíblia, foi realizada a política do Apartheid na África do Sul. Ambas
provocaram um desequilíbrio populacional perverso e anti-evangélico. Hoje, em
nome da Bíblia, continua depredação da natureza.
5.
Uma parábola para perceber o rumo desta reflexão
João teve que ir à rodoviária
para receber a irmã do seu avô. Visto que não conhecia a pessoa, deram-lhe uma
foto. Quando chegou o ônibus, João foi conferindo as pessoas, fotografia na
mão. Só um "pequeno" detalhe. A foto era de 45 anos atrás. No fim,
por último, sai do ônibus uma senhora já de idade. João pergunta, mostrando a
foto: “Por acaso, a senhora viu se esta pessoa estava no ônibus?” Ela olhou,
sorriu e disse: “Sou eu!” João olhou a pessoa, conferiu com a foto e disse: “A
senhora pode enganar os outros, mas não a mim!” Deixou a dona na rodoviária,
voltou para casa e disse: “Pai, ela não chegou não. Acho que perdeu o ônibus!”.
Foi a foto antiquada que impediu a João de reconhecer a tia na rodoviária. Nós
temos muitas fotos antiquadas de Deus na cabeça que bloqueiam tudo e nos
impedem de reconhecer a presença de Deus na rodoviária da vida. E às vezes, é
esta visão antiquada que leva a pessoa a legitimar posições contrárias à
preservação da natureza.
ILUMINAR
A REALIDADE COM A LUZ DA BÍBLIA: A VISÃO INTEGRADA DA NATUREZA QUE A BÍBLIA NOS
OFERECE
1-
O ponto de partida
A
tragédia da destruição do meio ambiente
- A tragédia do cativeiro
A mensagem e o texto final do
encontro dos bispos da Amazônia pelos 40 anos da Caminhada desde o encontro de
Santarém em 1972 descreve os vários aspectos da tragédia da agressão ao
meio-ambiente e as conseqüências para a vida dos povos da Amazônia. As perguntas
são muitas e muito sérias: Humanamente falando uma comunidade ribeirinha, uma
tribo indígena, os pequenos grupos de migrantes que vieram de longe: qual a
força que eles tem para enfrentar o agronegócio? Como eles podem impedir a
agressão que sofrem da invasão progressiva das suas terras e o desmatamento
crescente? E nós que estamos aqui reunidos, como podemos impedir a caótica
urbanização em torno das cidades? Vamos poder resistir à expansão do sistema
capitalista? Qual o nosso futuro? Existe futuro? Os outros nos perguntam:
"O que vocês querem e pretendem?"
Na época do cativeiro da
Babilônia, o pessoal de Nabucodonosor dizia ao povo de Deus: "Qual é esse
Deus de vocês? Onde está esse Deus? Existe?" Fica a pergunta muito antiga
e muito atual: Davi vai conseguir enfrentar Golias? Os dois centavos da viúva
continuam valendo mais que o milhão dos ricos? A mulher em dores de parto é
capaz de enfrentar hoje o Dragão? Como enfrentar esta crise?
A
crise do cativeiro, a crise ecológica
Uma crise de fé é como o cupim
que vai entrando nas vigas do telhado. Bem devagar! O dono da casa não se dá
conta, nem presta atenção. Vai vivendo despreocupado; a tudo desatento. De
repente, um temporal cai sobre a casa e o telhado desaba. Desaba de repente,
sim, mas é por causa da falta de cuidado do dono da casa que já vinha de longe.
E o dono deu a culpa ao carpinteiro: “Mau serviço!”
Assim aconteceu com o povo de
Deus. Desatento de tudo, permitiu que o cupim de uma falsa imagem de Deus fosse
comendo por dentro a viga da sua fé. Ao longo dos 400 anos da monarquia (de
1000 a 600 aC), Javé, o Deus libertador, foi sendo reduzido à imagem de um
Deus-Quebra-Galho, em tudo identificado com os interesses da monarquia,
contrários aos interesses da vida do povo e do objetivo do Êxodo. Os profetas
alertavam sobre o perigo, mas ninguém lhes dava atenção, pois havia muitos
falsos profetas que diziam o contrário (Jr 28,1-11; Ez 34,1-10). Os Reis
manipulavam a Aliança em favor dos seus próprios interesses comerciais. As
conseqüências desta infidelidade progressiva foram aparecendo na desarrumação e
desintegração da vida do povo. Apareceram o empobrecimento, a opressão e a
desumanização.
Uma última tentativa para evitar
o desastre iminente foi a reforma chamada Deuteronomista: ou mudamos ou
morremos. Resolveram mudar e proclamaram a reforma, iniciada por Ezequias e
assumida com força pelo rei Josias. Esta reforma visava levar o povo de volta à
observância da Lei. O acento caía na observância, na responsabilidade do povo.
A insistência na observância era tão forte que se chegou a dizer ao povo: Agora
vai depender só de vocês. Diante de vocês está a opção de escolher entre a vida
e a morte, entre a bênção e a maldição: "Vejam! Hoje eu estou colocando
diante de vocês a bênção e a maldição. A bênção, se vocês obedecerem aos
mandamentos de Javé seu Deus, que eu hoje lhes ordeno. A maldição, se não
obedecerem aos mandamentos de Javé seu Deus" (Dt 11,26-27). O capítulo 28
de Deuteronômio enumera as bênçãos como fruto da observância fiel (Dt 28,1-14) e
os males como fruto das transgressões e da infidelidade (Dt 28,15-68). Coisas
terríveis e castigos inacreditáveis são enumerados para obrigar o povo a
observar a lei e, assim, evitar o desastre da desintegração. Prevaleceu o medo
do castigo sobre a vontade de servir por amor. Não mudaram a imagem de Deus que
tinha falsificado tudo.
Algo semelhante está acontecendo
conosco. Desde o Século XVII, o cupim da descrença foi comendo por dentro a
visão que tínhamos de Deus e da natureza. A visão ingênua de fé foi
desaparecendo como neve diante do sol e em muitos a religiosidade foi secando.
A terra deixou de ser uma revelação de Deus, e virou mercadoria. A vida foi se
secularizando. De repente, o telhado desabou: apareceu a poluição, os desastres
ecológicos. Porém, apesar de todos os avisos e ameaças, não nos convertemos.
Haja visto Rio +20! Faltou e falta o "espírito", falta senso de
humanidade, de serviço, de doação. O ídolo do lucro não o permite.
Também na Bíblia, apesar de todos
os avisos e ameaças, eles não deram conta de observar a lei. Com a morte de
Josias em 609 aC. morreu também a reforma. No mês de agosto de 587 aC,
Nabucodonosor veio e tudo foi destruído (2Rs 25,8-12; Jr 52,12-16). Perderam
tudo aquilo que, até àquele momento, havia sido a expressão visível da presença
de Deus: O Templo foi incendiado (2Rs 25,9). A Monarquia já não existia (2Rs
25,7). A Terra passou a ser a propriedade dos inimigos, (2Rs 25,12; Jr 39,10;
52,16). Os sinais tradicionais da presença de Deus foram destruídos como copo
de vidro que se quebra em mil pedaços (Jr 18,1-10). Deus parecia estar longe e
já não lhes mostrava mais o seu rosto (Sl 10,1; Sl 12,2-4; 27,9; 30,8; 69,18;
80,4).
Diante desta terrível situação de
destruição e abandono, o povo concluiu: colhemos o que plantamos. Não adianta
chorar leite derramado. Abrimos as comportas e a água invadiu e destruiu tudo.
Nós quebramos o contrato com Deus, e sobre nós caíram as maldições previstas no
contrato (cf. Dt 28,15-68). Rompemos com Deus, e ele rompeu conosco conforme
tinha avisado tantas vezes (cf. Dt 6,14-15; 9,11-14.19; 11,16-17). Foi uma
total “secularização” da vida. O cupim foi avançando e, de repente, veio a
tempestade do cativeiro e tudo desabou! Deram a culpa ao Criador: “Mau
serviço!”
A
terrível imagem de Deus que falsificou a visão da vida e da natureza
Esta situação de desespero e de
desencanto está expressa, com todas as letras, na 3ª Lamentação. (Lam 3,1-18).
A terrível imagem de Deus que transparece nas entrelinhas deste lamento é a de
um deus vingativo que só quer castigar e não oferece futuro, nem desperta
adoração:
“Eu sou o homem que conheceu a
dor de perto, sob o chicote da sua ira. Ele (Deus) me conduziu e me fez andar
nas trevas e não na luz. Ele volve e revolve contra mim a sua mão, o dia todo.
Consumiu minha carne e minha pele, e quebrou os meus ossos. Ao meu redor, armou
um cerco de veneno e amargura, me fez morar nas trevas como os defuntos,
enterrados há muito tempo. Cercou-me qual muro sem saída, e acorrentado, me
prendeu. Clamar ou gritar de nada vale, ele está surdo à minha súplica. Com
pedra cercou a minha estrada, distorceu o meu caminho. Ele foi para mim como
urso de tocaia, um leão de emboscada. Desviou-me do caminho, me despedaçou e
deixou inerte. Disparou seu arco, fez de mim o alvo de suas flechas. Em meus
rins ele cravou suas flechas, tiradas de sua aljava. Eu me tornei uma piada
para todos os povos, a gozação de todo o dia. Encheu meu estômago de amargura,
embriagou-me de fel. Fez-me dar com os dentes numa pedra, estendeu-me na
poeira. Fugiu a paz do meu espírito, a felicidade acabou. Eu digo:
"Acabaram minhas forças e minha esperança em Javé". (Lam 3,1-18).
Quem tem esta imagem de Deus na
cabeça e no coração, sente-se rejeitado para sempre. Se for esperar por Deus na
rodoviária da vida com esta foto na mão, nunca irá encontrá-lo. Pois este Deus
não existe! A falsa (antiquada) imagem do deus-quebra-galho impedia o povo de
opinar corretamente sobre a tragédia do cativeiro. É trágica a afirmação de
Isaías: "Sua mente enganada o iludiu, de modo que ele não consegue salvar
a própria vida e nem é capaz de dizer: "Não será mentira isso que tenho
nas mãos?" (Is 44,20). Eles eram incapazes de descobrir a mentira que os
impedia de enxergar (cf. Jr 6,15).
Qual a falsa imagem de Deus que
hoje está por detrás da agressão à natureza do sistema neo-liberal e da lenta e
progressiva secularização da vida dos últimos duzentos anos? Qual a imagem de
Deus que estava por de trás da leitura errada da Bíblia legitimando a
depredação da natureza? Qual a imagem de Deus que está por de trás do progresso
da ciência? Muitos cientistas se dizem ateus. Talvez tenham razão, pois o Deus
que eles dizem não existir de fato não existe. Saramago que se dizia ateu disse
esta frase: "Deus é o silêncio do Universo; o ser humano é o grito que
tenta interpretar o silêncio".
2-O
caminho que percorreram
A
lição dos Profetas - a missão das Comunidades: A lenta descoberta do novo
horizonte sobre a Natureza
Como sair daquela escuridão? Qual
o caminho? Como sair da atual escuridão? Numa situação dessas já não adiantam
raciocínios e argumentos de cabeça. O que fez cair a ficha e abriu um novo
horizonte foi o testemunho profético das Comunidades que souberam redescobrir e
assumir a Boa Nova de Deus para a vida humana. Aqui está uma luz para ajudar na
definição da missão das nossas Comunidades.
Naquele tempo, como hoje, muitos
se acomodaram no cativeiro, abandonaram a fé em Javé e aderiram ao Deus de
Nabucodonosor ou ao deus do sistema neoliberal. Outros não quiseram aceitar a
realidade dura do cativeiro e se agarraram ao passado. Preferiram lutar pelo
retorno ao tempo dos reis: restaurar tudo do jeito que era antes. As
comunidades dos discípulos e discípulas de Isaías, porém, enfrentaram o desafio
da dura realidade do cativeiro: O que será que Deus está querendo dizer a nós
por meio desta escuridão terrível de total abandono de Deus em que nos
encontramos aqui no cativeiro?
Eles procuraram e encontraram uma
luz. Não a luz de sempre, aquela do fim do túnel! Encontraram uma luz
diferente, que existia dentro do próprio túnel, mas que eles nunca tinham
enxergado. Agora, os olhos se abriram e o que parecia ser a ausência de Deus
era a sua presença. Aquilo que parecia escuridão era mais claro que o sol do
meio dia (Sl 139,12). A escuridão era luminosa. A ausência de Deus era a sua
presença! Tudo mudou. É o que vamos ver agora. Pois algo semelhante já está
acontecendo hoje.
As comunidades dos discípulos e
discípulas de Isaías não eram de muita gente nem chegaram a ter uma influência
direta nos esferas do poder depois que Neemias e, em seguida, Esdras assumiram
a liderança (445 e 392 aC). Mas elas continuaram bem vivas ao longo dos séculos
como movimento popular, como resistência escondida, desde o cativeiro do século
VI aC até a chegada do Novo Testamento. Mais ou menos como as nossas
comunidades eclesiais de base, desde os anos 50 até hoje. Eram homens e
mulheres, casados e solteiros, rapazes e moças, jovens e velhos. Seus escritos
foram nos capítulos 40 a 66 do livro do profeta Isaías e formam um ponto alto
na história do povo do Antigo Testamento. Sua luz, seu vigor e sua influência
transparecem também nos escritos sapienciais (Jó, Cantares e Qohelet), nas
novelas populares (Rute, Jonas, Judite, Ester, Tobias) e no movimento
apocalíptico. Foi na meditação dos escritos de Isaías que Jesus encontrou as
palavras para apresentar sua missão na comunidade de Nazaré (Lc 4,18-19 e Is
61,1-2).
É esperançoso ver como, sob o
estímulo dos profetas, do mais fundo do fundo do poço daquele terrível
cativeiro, renasceu a esperança, e apareceu um novo caminho. As Comunidades
redescobriram a presença libertadora de Deus na natureza e na vida e
reencontraram o sentido da sua missão como Povo de Deus. Vamos ver de perto os
pontos principais que marcaram o caminho das Comunidades daquele tempo, pois
elas são de grande alcance para a missão das nossas CEBs hoje. Pode haver
alguma repetição no que vou dizer, pois se trata de aspectos diferentes de uma
mesma experiência de Deus, da vida e da natureza:
1.
A nova leitura da natureza
2.
A redescoberta do Amor Eterno.
3.
A nova imagem de Deus: Deus de família
4.
O processo da releitura e de repensar todas as coisas
5.
Os dois decálogos: da Aliança e da Criação: "Assim na terra como no
céu!"
6.
A nova síntese: os dois Livros de Deus: Natureza e Bíblia
7.
A nova Missão do povo de Deus: servir
8.
Uma nova pastoral: ternura, diálogo, reunião e consciência crítica
9.
Uma nova maneira de celebrar a vida: a lição dos salmos
1.
A nova leitura da natureza
Naquele desespero generalizado, o
profeta Jeremias soube reencontrar motivos de esperança. É como se dissesse:
“Vocês dizem que Deus já não cuida de nós; que deixamos de ser povo de
Deus!" Eu afirmo que Ele não nos abandonou. E sabem por quê? É que o sol
vai nascer amanhã. Nabucodonosor pode ser forte, mas ele não consegue impedir o
nascimento do sol amanhã.
“Assim diz Javé, aquele que
estabelece o sol para iluminar o dia e ordena à lua e às estrelas para
iluminarem a noite, aquele cujo nome é Javé dos exércitos: quando essas leis
falharem diante de mim - oráculo de Javé -
então o povo de Israel também deixará de ser diante de mim uma nação
para sempre!” (Jr 31,35-36). “Se vocês
puderem romper a minha aliança com o dia e com a noite, de modo que já não
haverá mais dia nem noite no tempo certo, também será rompida a minha aliança
com o meu servo Davi” (Jr33,20-21).
Jeremias ajudou o povo a ler a
natureza com um novo olhar de fé. Era nos fenômenos da criação que ele via um
sinal da presença de Deus e da sua fidelidade para com o povo: na seqüência
inalterada dos dias e das noites; no sol que se levantava todos os dias sobre a
cidade destruída; na lua minguante e crescente; na alternância das estações do
ano: primavera, verão, outono e inverno; nas chuvas, nas plantas e sementes,
etc. Tudo isto era para Jeremias um sinal da certeza de que Deus continuava
fiel ao seu povo e de que Ele não havia rompido sua aliança, como alguns
andavam dizendo (cf. Is 49,14). A natureza tornou-se sinal transparente da
presença gratuita de Deus no meio do seu povo.
A certeza do nascer do sol não
depende dos poderes deste mundo, nem da observância da lei, mas está impressa
na lógica da criação. É pura gratuidade, expressão do bem-querer do Criador. É
promessa que não falha. Nós podemos romper com Deus, mas Deus não rompe
conosco. Cada manhã, através da seqüência dos dias e das noites, ele nos fala
ao coração: “Como é certo que eu criei o dia e a noite e estabeleci as leis do
céu e da terra, também é certo que não rejeitarei a descendência de Javé e de
meu servo Davi.” (Jr 33,25-26). É deste olhar sobre a natureza que vai nascer o
texto de Gênesis que descreve a criação do mundo.
PERGUNTAS:
E hoje, qual o novo olhar nosso
sobre a natureza para fazer reverter o olhar de agressão que legitima e
favorece a sua depredação? Como fazer com que a terra, em vez de ser uma
mercadoria sem vida e sem projeto a serviço do ídolo do lucro, possa ser
experimentada como companheira na preservação da vida para todos?
2. A redescoberta do Amor eterno.
Foi nesta mesma situação escura
sem horizonte, que os profetas desenterraram a raiz do amor fiel de Deus.
Jeremias traz esta frase: “Eu amei você com amor eterno; por isso conservei o
meu amor por você” (Jr 31,3). E esta outra afirmação de Isaías: “Num ímpeto de
ira, por um momento eu escondi de você o meu rosto; mas agora, com amor eterno,
volto a me compadecer de você, diz Javé, seu redentor” (Is 54,8). Foram os
profetas, sobretudo Jeremias, Oséias e Isaías, que souberam redescobrir esta
dimensão do amor gratuito de Deus (cf. Is 41,8-14; 49,15;Jr 31,31-37; Os 2,16).
Nas entrelinhas destas frases, a
gente adivinha a seguinte descoberta. É como se Deus, o namorado, dissesse ao
povo, sua namorada: “Depois de tudo que você fez, você já não mereceria ser
amada. Mas meu amor por você não depende do que você fez por mim ou contra mim.
Quando comecei a amar você, eu o fiz com um amor eterno. Por isso, apesar de
tudo que você me fez, apesar de todos os seus defeitos, eu gosto de você, eu
amo você para sempre! “Eu amei você com amor eterno; por isso conservei o meu
amor por você” (Jr 31,3). "Pode a mãe se esquecer do seu nenê, pode ela
deixar de ter amor pelo filho de suas entranhas? Ainda que ela se esqueça, eu
não me esquecerei de você" (Is 49,15).
E a gente se pergunta: “Então, o
que houve para Deus falar assim? Qual foi a quebra que houve? E em que consiste
esse amor eterno de Deus? Eles descobriram que a história não tinha começado
com a imposição de leis que pediam observância. Muito antes da entrega da lei
tiveram a revelação do amor de Deus na aliança com Noé, na promessa feita a
Abraão e Sara e na libertação da escravidão do Faraó. Libertando o povo, Deus
lhe revelou seu amor, conquistou um título de propriedade. É como se dissesse:
“Agora você é meu!” (Is 43,1). “Agora, vocês são o meu povo e eu sou o Deus de
vocês” (cf. Ex 19,4-6; 24,8).
A redescoberta da certeza do amor
maior e eterno de Deus devolveu ao povo a auto-estima, ajudou-o a superar o
sentimento de culpa e levou-o a dar uma resposta de amor na observância dos Dez
Mandamentos ou, como eles diziam, das Dez Palavras (cf. Dt 4,13; 10,4). Fizeram
a Aliança: "Faremos tudo o que Javé mandou e obedeceremos!" (Ex
24,73). Amor mútuo! A palavra amor em hebraico é hêsed. A tradução mais correta
é “amor fiel”. Agora sabem que nada, nem mesmo o fracasso, pode separá-los do
amor de Deus (Is 40,1-2ª; 41,9-10.13-14; 43,1-5; 44,2; 46,3-4; 49,13-16;
54,7-8; etc; cf. Rom 8,35-39).
PERGUNTAS:
Como acontece hoje esta
redescoberta do amor de Deus? O último censo revelou que os crentes cresceram
mais de 20% e que o números dos católicos diminuiu. Muitos crentes foram
católicos e, como eles dizem, se converteram: "Descobri Jesus e me converti!'
Será que nós nos deixamos questionar, ou minimizamos esta redescoberta do amor
como coisa subjetiva? Será que sabemos despertar este amor por Jesus e pelo
pobre? Sem isto, nada feito! Peruca em careca.
3.
A nova imagem de Deus: Deus de família
A desintegração dos valores da
época da monarquia criou uma conjuntura nova, diferente. Lá no cativeiro, os
valores que antes faziam parte da vida já não existiam: a posse da terra, o
templo, as peregrinações, o culto, o sacrifício, o sacerdócio, a monarquia, o
rei. Nada disse tinha sobrado. No cativeiro, o único espaço de uma relativa
autonomia e liberdade que ainda sobrava para o povo era o espaço familiar: o
pai, a mãe, o marido, a esposa, um irmão ou irmã, o mundo pequeno e frágil da
família, da “casa”.
Ora, foi neste pequeno espaço da
família, da “casa”, clã, da pequena comunidade, que renasceu nos discípulos de
Isaías uma nova experiência de Deus. A nova imagem de Deus, transmitida por
eles, reflete este ambiente familiar da Casa. Deus é Pai (Is 63,16; 64,7), é
Mãe (Is 46,3; 49,15-16; 66,12-13), é Marido (Is 54,4-5; 62,5), é o parente
próximo (goêl ou irmão mais velho) (Is 41,14; 43,1). Javé, o Deus que antes
estava ligado ao Templo, ao culto oficial, ao sacerdócio, ao clero, à
monarquia, agora está perto deles, “em casa”; casa pequena, quebrada e,
humanamente falando, sem futuro, mas Casa, e não Templo. Não retomaram as
imagens religiosas antigas, mas usaram imagens novas tiradas da vida familiar e
comunitária.
Eles humanizaram a imagem de Deus
e sacralizaram a vida, a família, a pequena comunidade, como o espaço do
reencontro com Deus. Deus agora se esconde e se revela (cf. Is 45,15) onde
antes ninguém o procurava: em casa, no relacionamento diário familiar, nas
pequenas comunidades de base, no meio do povo exilado e excluído! É a renovação
das igrejas na América Latina a partir das Comunidades Eclesiais de Base. Foi a
partir deste mundo pequeno e limitado da “casa”, sem prestígio e sem poder, que
tudo renasceu e continua renascendo, até hoje.
PERGUNTAS:
Qual a imagem renovada de Deus
que hoje anima nossas CEBs? Também hoje, há muitas imagens de Deus dentro da
mesma igreja: Comunidades Eclesiais de Base, Opus Dei, Neo-Catecumenos,
Movimento Carismático, Focolarini, Congregação Mariana, Apostolado de Oração,
Fé e Política, tantos! Qual a imagem que melhor nos aproxima de Deus e da nossa
missão? Que mais nos ajude a sermos fiéis ao que Deus nos pede na atual
situação em que nos encontramos?
4. O processo da releitura e de
repensar todas as coisas
A nova maneira de olhar a
natureza, a redescoberta do amor eterno e o reencontro com Deus em
"casa", na pequena comunidade, deram olhos novos para entender de
maneira nova o sentido de tudo que tinham vivido no passado. Começaram a reler
tudo: a natureza, a história, a política, a criação, o passado e o presente e,
assim, começaram a reintegrar todos os aspectos da vida desintegrada do povo
exilado. Foi um longo processo de séculos. A expressão final desta releitura,
iniciada no cativeiro é a própria Bíblia.
Eles começaram a relembrar as
histórias do seu passado, não para aumentar a saudade, mas para transformar a
saudade em esperança: “Deus não nos abandonou. A caminhada continua! Estamos
refazendo a história”. Lembram a aliança de Deus com Noé (Is 54,8-9) e o
chamado de Abraão e Sara (Is 51,1-2; 41,8): "Nós somos hoje Abraão e
Sara!". Lembram sobretudo o Êxodo: o fim da escravidão (Is 40,2); o
caminho pelo deserto (Is 40,3); o cântico novo à beira do Mar Vermelho (Is
42,10); a travessia pela água (Is 43,2); a água que brota do chão seco (Is
44,3); a efusão do Espírito (Núm 11,17.25; Is 44,3); etc. "Estamos
envolvidos num novo Êxodo, muito maior que o primeiro (Is 43,16-19).
Eles começam a reler os valores
da vida que no passado tinham orientado o povo. Mantêm as mesmas palavras, mas
dão a elas um novo sentido e as colocam numa nova perspectiva. Eis alguns
exemplos:
* O povo de Deus já não é uma
raça, pois agora também os estrangeiros fazem parte (Is 56,3.6-7).
* O templo já não será só para os
judeus, mas será casa de oração para todos os povos (Is 56,7).
* O culto é universal, pois os
estrangeiros dele participam (Is 56,6-7).
* O sacerdócio não é só de Levi
pois estrangeiros receberão o mesmo sacerdócio (Is 66,20-21).
* O reino já não é a monarquia de
Davi, mas sim o Reino Universal do próprio Deus (Is 52,7; 43,15).
* O messias, (ungido) não é só o
rei davídico, mas também Ciro, o Rei dos persas (Is 45,1; 44,28).
* A eleição já não é um
privilégio, mas sim um serviço a ser prestado a toda a humanidade (Is 42,1-4).
* A missão não é o povo ser um
grupo separado, mas ser “Luz das Nações” (Is 42,6; 49,6)
* A lei de Deus não é só de
Israel, ela será de todos os povos que
nela encontram uma luz (Is 2,1-5).
* Jerusalém não é capital de
Judá, mas sim o centro de peregrinação para todos os povos (Is 60,1-7).
A nova experiência de Deus, de um
lado, ajudou-os a perceber os erros e enganos da ideologia do tempo dos reis; e
de outro lado, foi fonte de criatividade para repensar, um por um, todos os
valores do passado, libertá-los dos erros e das limitações, adaptá-los à nova
situação. Atualizaram a fotografias antiquadas e foram capazes de reconhecer
Deus na rodoviária da vida.
PERGUNTAS:
Como fazer hoje esta releitura
tão importante, tão necessária e tão urgente? Os bispos fizeram uma bonita
releitura dos últimos 40 anos de caminhada. Sem memória do passado, não há
horizonte do futuro. Como ajudar o povo das CEBs a fazer esta releitura? Qual a
tarefa da teologia nesta releitura? Há muitas tentativas, mas nem todas nascem
da redescoberta do amor de Deus no mundo complexo de hoje. Nem todas nascem do
diálogo sincero.
5. Os dois decálogos: Aliança e
Criação: "Assim na terra como no céu!"
De todos os livros da Bíblia, os
capítulos 40 a 66 do livro de Isaías são os que mais usam a palavra criar, mais
de vinte vezes! É a nova compreensão da ação criadora de Deus. O verbo BARÁ
(criar) indica a qualidade da ação com que Deus acompanha e cuida do seu povo.
Deus cria o universo e a terra; cria também o povo e o Êxodo (Is 43,15). Tudo é
fruto da ação criadora. “Javé que te criou, aquele que estendeu os céus e
fundou a terra?”(Is 51,12). Ele liberta, salva e conduz o povo com um poder
criador (Is 40,25-31). Por isso, nada, ninguém é capaz de impedir a sua
realização: nem Nabucodonosor, nem a nossa infidelidade!
Ação salvadora e ação criadora se
identificam. O Deus que chama Abraão é o Deus Criador. O Deus que cria o mundo
é o Deus que chama Abraão. Iluminação mútua entre Criação e Salvação. É a mesma
ação. Ao lado das Dez Palavras (Dez Mandamentos) que estão na origem da
Aliança, eles começam a dar atenção às Palavras Divinas que estão na origem das
Criaturas. Ao lado da Lei da Aliança, descobrem a Lei da Criação. A Lei de Deus
entregue ao povo no Monte Sinai tinha no seu centro as Dez Palavras divinas da aliança
(Ex 20,1-17; Dt 5,6-22). Da mesma maneira, a narrativa da Criação tem no seu
centro Dez Palavras divinas. O autor que fez a redação da narrativa da Criação
(Gn 1,1-2,4ª) teve a preocupação em descrever toda a ação criadora de Deus por
meio de exatamente Dez Palavras. Ele repete dez vezes a expressão “e Deus
disse”:
1.
Gn 1,3 E Deus disse: haja luz
2.
Gn 1,6 E Deus disse: haja
firmamento
3.
Gn 1,9 E Deus disse: as águas se
juntem e apareça o continente
4.
Gn 1,11 E Deus disse: a terra produz
verde
5.
Gn 1,14 E Deus disse: haja luzeiros
6.
Gn 1,20 E Deus disse: as águas
produzam seres vivos
7.
Gn 1,24 E Deus disse: que a terra
produz seres vivos
8.
Gn 1,26 E Deus disse: façamos o ser
humano
9.
Gn 1,28 E Deus disse: sejam fecundos
10.
Gn 1,29 E Deus disse: dou as ervas para
vocês comer.
E
Deus disse
Como fez para o seu povo, assim
Deus faz para as criaturas: fixou para elas “uma lei que jamais passará” (Sl
148,6). Dez vezes Deus falou e dez vezes as coisas começaram a existir. Falou:
Luz!, e a luz começou a existir. Falou: Terra!, e a terra apareceu. Gritou os
nomes das estrelas, e elas começaram o seu percurso no firmamento. “Ele diz e a
coisa acontece, ele ordena e ela se afirma” (Sl 33,9). Pela força da sua
Palavra o Criador enfrentou a desordem do caos e fez nascer a harmonia do
cosmos.
Esta maneira de descrever a
criação é bem mais que um mero jogo de palavras. As Dez Palavras da Criação são
a expressão de uma leitura nova da natureza. A harmonia na natureza é fruto da
obediência das criaturas às Dez Palavras da Criação com que Deus enfrentou e
venceu o caos. O caos do cativeiro surgiu porque o povo não tinha observado as
Dez Palavras da Lei da Aliança. As criaturas, ao contrário do povo, sempre
observam a Lei da Criação. Por isso existe a harmonia do cosmos. No Pai-Nosso
Jesus dirá: “Seja feita a vossa vontade na terra assim como é feita no céu”.
Jesus pede que nós possamos observar a Lei da Aliança com a mesma perfeição com
que o sol e as estrelas do céu observam a Lei da Criação. Na harmonia do universo
as Comunidades descobrem como realizar sua missão. O Decálogo da Criação
descreve a ação amorosa de Deus em nosso favor, o Decálogo da Aliança descreve
como deve ser a resposta amorosa do ser humano a Deus.
A fé no Deus Criador abriu um
horizonte, cujo alcance para a vida do povo só se compara com o horizonte que a
ressurreição de Jesus abriu para os discípulos quando confrontados com a
barreira intransponível da morte. A fé na gratuidade amorosa da presença
universal de Deus nos fenômenos da Criação torna-se a infra-estrutura para a
observância dos Dez Mandamentos e fonte de uma nova Pastoral, um novo jeito de
conviver e de trabalhar com o povo.
PERGUNTAS:
Sem nos darmos conta, no
pensamento de muitos salvação e criação estão separadas: sobrenatural e
natural, graça e natureza. A vida é uma coisa e a fé é outra. Como fazer para
chegar a esta visão integrada da natureza? Qual a pedagogia e a prática para
chegar a isto?
6. A nova síntese: Os Dois Livros
de Deus: Natureza e Bíblia
A comparação é de Santo Agostinho
e exprime uma convicção profunda que vem da Bíblia e era um dos fundamentos da
maneira como os antigos Padres da Igreja faziam teologia.
1º
LIVRO: a natureza
O primeiro livro de Deus não é a
Bíblia, mas sim a natureza, o universo, a vida, o mundo, os fatos, a história.
É através do Livro da Natureza ou da Vida que Deus quer falar conosco. Deus
criou as coisas falando. Tudo que existe é a expressão de uma palavra divina,
como tão bem verbaliza o salmo: “O céu manifesta a glória de Deus, e o
firmamento proclama a obra de suas mãos. O dia passa a mensagem para outro dia,
a noite a sussurra para a outra noite. Sem fala e sem palavras, sem que a sua
voz seja ouvida, a toda a terra chega o seu eco, aos confins do mundo a sua
linguagem” (Sl 19,2-5).
Cada ser humano é uma palavra
ambulante de Deus (Gn 1,27). As crianças são palavra de Deus para os pais; os
pais são palavra de Deus para as crianças. Mas nós já não nos damos conta de
que estamos vivendo no meio do livro de Deus e que cada um de nós é uma página
viva deste livro divino. Há algo que nos impede de reconhecer a presença da
Palavra na vida, algo que “sufoca a verdade” (Rom 1,18). O que nos impede?
Santo Agostinho diz que foi o
pecado, i.é., esta nossa mania de querer dominar tudo, de tratar a natureza
como mercadoria e de achar que somos donos de tudo. Por isso, as letras do
Primeiro Livro de Deus se atrapalharam e já não conseguimos descobrir a fala de
Deus no Livro da Vida. Perdemos o olhar da contemplação, a capacidade de
admirar. Para remediar isto nasceu a Bíblia, o Segundo Livro de Deus.
2º
LIVRO: a Bíblia
A Bíblia foi escrita, não para
substituir o Livro da Vida, mas para ajudar-nos a entendê-lo melhor e a
descobrir nele os sinais da presença de Deus. Diz Santo Agostinho que a leitura
orante da Bíblia (1) nos devolve o olhar da contemplação, (2) ajuda a decifrar
o mundo e (3) faz com que o Universo se torne novamente uma revelação de Deus,
volte a ser o que deve ser “O Primeiro Livro de Deus”.
O texto da Bíblia não caiu pronto
do céu. Nasceu aos poucos, fruto da ação do Espírito de Deus e de um demorado
processo de busca do ser humano. Impelido pelo desejo de encontrar Deus nas
crises e depressões da vida, o povo foi descobrindo os sinais da sua presença
e, dentro dos critérios da cultura da época, transmitia para os filhos as suas
descobertas. Assim foi nascendo a Tradição Viva do Povo de Deus, transmitida
oralmente de geração em geração, durante séculos, desde os tempos de Abraão e
Sara.
Mas foi lá na comunidade do
cativeiro, a partir da experiência do amor de Deus, que começou a ser
articulada a redação final desta tradição oral do povo de Deus. No fim,
escreveram tudo num livro. Este livro é a Bíblia. Assim, a chave geral para
entender a Bíblia é este: Nós podemos romper com Deus. Somos fracos. Falhamos
muito. Mas Deus, ele no seu amor, nunca rompe conosco. Seu amor é eterno, nos
dá esperança e coragem para voltar.
É nesta perspectiva que devem ser
lidas e relidas, meditadas e rezadas, contadas e cantadas as histórias da
criação, do paraíso, da aliança com Noé, da chamada de Abraão e Sara, da
libertação do Egito e da conclusão da Aliança com o compromisso da observância
dos Dez mandamentos, tudo! A Bíblia traz o resultado da leitura que o povo
hebreu conseguiu fazer da vida e da natureza para descobrir nelas a fala
amorosa de Deus. Este Segundo Livro de Deus (a Bíblia), assim dizia Santo
Agostinho, ajudou o povo a entender melhor o Primeiro Livro (a Vida, a
Natureza).
PERGUNTAS:
O que fazer com a cosmo-visão
ultrapassada da Bíblia? Como ela pode nos ajudar a interpretar este universo
imenso que a ciência nos revelou? Como pode nos ajudar a enfrentar o desafio da
preservação do meio-ambiente? Aqui vale a pena retomar uma palavra de Clemente
de Alexandria, um sábio africano do século IV. Ele dizia: “Deus salvou os
judeus judaicamente, os gregos, gregamente, os bárbaros, barba¬ramente”. E
podemos continuar: “Os brasileiros, brasileiramente; os latinos, latinamente,
etc." Os judeus, os gregos e os bárbaros, cada um no seu tempo e na sua
cultura, no meio das crises, foram capazes de descobrir os sinais da presença
de Deus em suas vidas. Assim também nós, brasileiros e latinos, estamos sendo
desafiados a fazer hoje o mesmo que eles fizeram no seu tempo: descobrir a
mesma presença divina dentro da nossa realidade; expressá-la nas formas da nova
cosmo-visão; criar maneiras novas de celebrar que respondam ao desejo mais
profundo do coração humano; irradiar esta fé para os outros como uma grande Boa
Notícia para a vida humana. Em resumo: como eles, assim também nós devemos
“escrever a nossa Bíblia”, isto é, devemos imitar o povo de Deus e, como eles,
ler a nossa realidade para descobrir dentro dela os apelos de Deus e
expressá-los dentro dos critérios da nossa cultura.
7.
A nova Missão do Povo de Deus: servir
Foi neste ambiente do cativeiro,
que o povo redescobriu sua missão como Povo de Deus: não para ser chefe e
senhor, como se pretendia na época dos Reis, mas para ser servo e discípulo;
não para ser um povo glorioso, colocado acima dos outros povos, mas para ser um
povo servo, Servo Sofredor, cuja missão é revelar o amor de Deus, irradiar a
bondade de Deus, difundir a justiça, não desanimar nunca e, assim, ser a
"Luz das Nações" (Is 42,1-9; 49,1-6; 50,4-9; 52,13-53,12).
Os quatro cânticos do Servo de
Javé falam desta missão (Is 42,1-9; 49,1-6; 50,4-9; 52,13-53,12). Na figura do
Servo eles apresentam ao povo exilado um modelo de como devem entender e
realizar a sua missão como Povo de Deus. O Servo de Javé não é um indivíduo
determinado, mas sim o próprio povo. Mas que povo? É o povo do cativeiro,
descrito no quarto cântico como um povo oprimido, sofredor, desfigurado, sem
aparência de gente e sem um mínimo de condição humana, povo explorado,
maltratado e silenciado, sem graça nem beleza, cheio de sofrimento, evitado
pelos outros como um leproso, condenado como criminoso, sem julgamento nem
defesa (Is 53,2-8). Retrato perfeito de uma terça parte da humanidade de hoje!
Os quatro cânticos são uma
cartilha para ajudar o povo, tanto de ontem como de hoje, a descobrir e a
assumir a sua missão. Descrevem os quatro passos que o Servo deve percorrer
para realizar a sua missão: O primeiro cântico (Is 42,1-9) descreve como Deus
escolhe e apresenta o povo oprimido para ser o seu Servo. O segundo (Is 49,1-6)
mostra como este povo, ainda sem fé em si mesmo, vai descobrindo sua missão. O
terceiro (Is 50,4-9) relata como o povo assume a sua missão e a executa apesar
da perseguição. O quarto (Is 52,13 a 53,12) é uma profecia a respeito do futuro
do Servo e da sua missão: ele vai ser morto, mas a sua morte será fonte de
salvação para todos.
No fim, um breve resumo dos
quatro cânticos define a missão do Servo (Is 61,1-2). Foi este resumo que Jesus
escolheu para apresentar-se com a sua missão diante da comunidade de Nazaré (Lc
4,18). Jesus é o primeiro que percorreu os quatro passos até o fim. Por isso,
ele se tornou a chave principal para entendermos todo o significado e alcance
da missão do Servo, descrita no livro de Isaías.
Em Jesus, o modelo do Servo retomou
forma e vigor. Ele disse: “Eu não vim para ser servido, mas para servir e dar a
vida em resgate de muitos” (Mt 20,28). Aprendeu de sua Mãe que disse: "Eis
aqui a serva do Senhor!" (Lc 1,38). Ela o aprendeu da tradição dos Anawim
(pobres), para os quais o povo de Deus está no mundo não para dominar, mas para
servir. Eles esperavam o Messias Servidor. Foi assim que o entenderam os
primeiros cristãos. Jesus era visto por eles como o Servo de Deus (cf. At
3,13.26; 4,27.30). Ser servo ou serva de Deus era também o título com que eles
mesmos se identificavam (Rom 1,1): “servos da justiça” (Rom 6,18), “servos de
Deus” (Rom 6,22).
PERGUNTAS:
Qual a tendência que hoje
predomina na formação do clero: servir aos mais pobres ou insistir no
específico do clero? Como nós, que fazemos parte das coordenações e da animação
das comunidades, vemos a nossa missão? Como a vivemos? Este é o ponto em que
Jesus mais insistiu. O que eu faço com o poder que tenho: serviço, controle ou
autopromoção?
8. Uma nova Pastoral: ternura,
diálogo, reunião, consciência crítica
A gratuidade da presença amorosa
e universal de Deus torna-se a fonte de uma nova pastoral que, até hoje,
transparece nas linhas e entrelinhas dos capítulos 40 a 66 do livro de Isaías.
Eis alguns aspectos:
* Ternura
Para a pessoa vive machucada e
triste, na solidão do cativeiro, não bastam imposições, advertências e
preceitos, nem servem os argumentos da análise crítica da realidade, para que
ela levante a cabeça, tenha esperança e comece a enxergar a situação com esperança
renovada. É necessário, antes de tudo, cuidar das feridas do coração,
acolhendo-a com muita ternura e bondade. De fato, as primeiras palavras:
“Consolai! Consolai o meu povo!” (Is 40,1) ressoam pelas páginas do livro
inteiro, do começo ao fim.
Os discípulos e as discípulas têm
uma conversa atenciosa, cheia de ternura e consolo, de encoraja-mento e
acolhimento. “Não gritam nem apagam a vela que ainda solta um pouco de fumaça”
(Is 42,2-3). Ou seja, machucados, não machucam. Oprimidos pela situação em que
se encontram, não oprimem, mas tratam e acolhem o povo com muito respeito.
Tentam chamá-lo pelo próprio nome (Is 43,1). Usam uma linguagem simples,
concreta e direta, numa atitude de ternura nunca vista antes, que funciona como
bálsamo, e dispõe as pessoas para olhar a realidade com mais objetividade. Há
muitas expressões e imagens de ternura espalhadas pelos capítulos 40 a 66 de
Isaías: Is 40,1-2ª; 43,1-5; 44,2; 46,3-4; 49,13-16; etc. Eis um exemplo: “Tu és
o meu servo! Eu te escolhi, não te rejeitei. Não temas, porque eu estou
contigo. Não fique apavorado, pois eu sou o teu Deus. Eu te fortaleço, sim, eu
te ajudo, eu te sustento com a minha direita justiceira! ...
Não temas! Sou eu que te ajudo! Não temas, vermezinho de Jacó, meu
bichinho de Israel! Eu mesmo te ajudarei. Oráculo de Javé, teu redentor é o
Santo de Israel!”(Is 41,9-10.13-14; cf Is 54,7-8).
*
Diálogo
Nos capítulos 40 a 66, do começo
ao fim, transparece uma atitude de escuta e de diálogo. Eles conversam, fazem
perguntas, questionam, criticam, levam o povo a refletir sobre os fatos (cf Is
40,12-14.21.25-27; etc). Ensinam dialogando em pé de igualdade com o povo. Este
jeito de ensinar é próprio de quem se considera servo e discípulo e não dono da
verdade: “O Senhor me deu uma língua de discípulo para que eu saiba trazer ao
cansado uma palavra de conforto. De manhã em manhã ele me desperta, sim,
desperta meu ouvido, para que eu ouça como os discípulos” (Is 50,4)
Um discípulo não absolutiza o seu
próprio pensamento, nem impõe suas idéias autoritariamente, mas sabe ensinar
escutando e aprendendo dos outros. Eis um exemplo de como faziam: “Por que
dizes tu, Jacó, e por que afirmas tu, Israel: “O meu caminho está oculto a
Javé; meu direito passa despercebido a Deus?” Então não sabes? Por acaso não
ouviste isto? Javé é um Deus eterno, criador das regiões mais remotas da terra.
Ele não se cansa nem se fatiga, sua inteligência é insondável” (Is 40,27-28)
Por este seu jeito de conviver e
de tratar com o povo, os discípulos não só falam sobre Deus, mas também - e
isto é importante - o revelam. Eles comunicam algo daquilo que eles mesmos
vivem. Deus se faz presente nesta atitude de ternura e de diálogo. O povo se dá
conta de que o Deus dos discípulos é diferente do deus da Babilônia, diferente
também da imagem de Deus que eles ainda carregavam na memória, desde os tempos
da monarquia, de antes da destruição do Templo. Assim, aos poucos, os olhos se
abrem. O povo começa a perceber algo do novo que está acontecendo. “Não estão
vendo?”(Is 43,19)
Até hoje, estes primeiros passos
são o mais difíceis, os mais lentos e os mais importantes. Foi necessária muita
paciência da parte dos discípulos, para que aquele povo exilado se reanimasse a
crer novamente em si mesmo e em Deus, e se levantasse (Is 49,4.14).
*
Reunião
É neste mesmo período do
cativeiro que se começou a insistir de novo na observância da lei já antiga do
sábado (Is 56,2.4; 58,13-14; 66,23; cf Gen 2,2-3). Era para que o povo tivesse
ao menos um dia por semana para se encontrar, partilhar sua fé, louvar a Deus e
animar-se mutuamente. Faziam reunião de noite, fora de casa, e perguntavam:
“Levantem os olhos para o céu e observem: Quem criou tudo isso? É Aquele que
organiza e põe em marcha o exército das estrelas, chamando cada uma pelo nome.
Tão grande é o seu poder e tão firme a sua força, que nenhuma delas deixa de se
apresentar. Jacó, por que você anda falando, e você, Israel, por que anda
dizendo: “Javé desconhece o meu caminho e o meu Deus ignora a minha causa?” (Is
40,26-27)
Nestas reuniões semanais eles
refrescavam a memória (Is 43,26; 46,9), contavam as histórias de Noé, de Abraão
e Sara, da Criação, lembravam o êxodo (Is 43,16-17), apontavam os fatos da
política e perguntavam: “Quem é que faz tudo isto?" (Is 41,2). A resposta
era sempre a mesma: "É Javé, o Deus do povo, o nosso Deus!". Assim,
aos poucos, a natureza deixava de ser o santuário dos falsos deuses; a história
já não era mais decidida pelos opressores do povo; o mundo da política já não
era mais o domínio de Nabucodonosor. Por trás de tudo começam a reaparecer os
traços do rosto de Javé, o Deus do povo. A natureza, a história e a política
deixam de ser estranhos e hostis ao povo e tornam-se aliados dos pobres na sua
caminhada como Servo de Deus.
*
Consciência crítica
Foi necessária muita paciência
para que o povo exilado se reanimasse a crer novamente em si mesmo e em Deus e
se levantasse (Is 49,4.14). O desânimo era muito grande. Eles eram como o
profeta Elias deitado debaixo da árvore querendo morrer (1Rs 19,4). Até para
cantar eles tinham perdido o gosto (Sl 137,1-6). Este desânimo tinha duas
causas, ligadas entre si como os dois braços de uma balança: uma externa que,
de fora, pesava sobre eles, a saber: a destruição de Jerusalém, o exílio, a
perda de todos os apoios e direitos; a outra interna que, por dentro esvaziava
o coração: a falta de visão e de fé, o peso morto da antiga visão de Deus. Deus
parecia ter perdido o controle da situação. Nabucodonosor parecia ser o dono de
tudo. Desequilibrou-se a balança da vida!
Os discípulos e as discípulas atacam as duas causas: desfazem o peso da
opressão e enchem o vazio do coração. Para desfazer o peso da opressão eles
usam o bom senso e fazem uma análise crítica da realidade. Desmascaram o poder
que oprime e a ideologia dominante que engana. Tudo é analisado e criticado com
ironia e precisão, e confrontado com a nova visão que a fé em Deus lhes
comunica (cf. Is 40,15.17.22.23; 41, 6-7.21-29; 44, 18-20.25; 47,1-15). Para
encher o vazio do coração os discípulos ajudam o povo a ler de maneira nova o
mundo que os envolve e a perceber nele os sinais da presença amorosa de Javé
(Is 54,7-8; 55,8-11; 41,1-5; 44,27-28; 45,1-7). Eles vão descobrindo que, mesmo
presente no universo inteiro, a casa preferida de Deus é no meio do seu povo
oprimido e exilado. Deus faz opção pelos pobres: "Eu estou contigo!"
(Is 41,10). “Troco tudo por ti!” (Is 43,4) É lá que Ele deve ser procurado (Is
55,6), e é de lá que Ele quer irradiar sobre o mundo como "Luz dos
Povos" (Is 42,6).
Deste modo, enchendo o vazio do
coração (causa interna) e enfraquecendo o peso da opresso (causa externa), eles
deslocam o peso da balança. O povo se equilibra de novo na vida. Agora, já não
é a perseguição que enfraquece a fé, mas sim a fé renovada e esclarecida que
enfraquece o poder dos poderosos. A face de Deus reaparece na vida. O povo,
animado por esta Boa Notícia, desperta (Is 51,9.17; 52,1), se põe de pé (Is
60,1), começa a cantar (Is 42,10; 49,13; 54,1; 61,10; 63,7) e a resistir (Is
48,20).
PERGUNTAS:
Aqui as perguntas são simples e
evidentes: usar os quatro pontos como critério para fazer uma avaliação da
minha atitude junto ao povo e da nossa pastoral na comunidade.
9.
Uma nova celebração da vida: a lição dos salmos
O livro dos Salmos é o maior dos
livros da Bíblia. Tem 150 capítulos! Nasceu aos poucos ao longo dos séculos.
Sua redação final é de depois do cativeiro, em torno dos séculos V ou IV aC ou
mais tarde ainda. Só uma parte dos salmos está no Livro dos Salmos. A outra
parte está espalhada pela Bíblia, em quase todos os seus livros, tanto do AT
como do NT. Os Salmos são o lado orante da história do povo de Deus. Neles tem
de tudo: Lei, História, Sabedoria, Profecia. Eles revelam o olhar orante do
povo sobre a Criação de Deus. Ajudam a rezar os fenômenos da natureza.
As duas pontas do livro dos
Salmos são o Salmo 1 e o Salmo 150. Salmo 1 fala da caminhada, da prática da
justiça, da luta contra o ímpio. Salmo 150 fala da festa, da dança, da alegria.
Luta e Festa, militância e celebração, política e fé, observância e gratuidade.
Dois momentos importantes da vida. Dois pólos básicos da oração. Há pessoas que
só gostam da festa, da reza exaltada. Querem ficar no Tabor e não gostam de
descer para ir a Jerusalém. São festivos e na hora do aperto se perdem. Outros
não gostam de interromper a caminhada para subir no Tabor. Acham perda de
tempo. São mais imediatistas. O livro dos Salmos reflete os dois pólos, as duas
dimensões: celebrativa e engajada, gratuidade e observância. A oração dos
salmos é como a água do rio que percorre e fertiliza a história e a vida do
povo de Deus, do começo ao fim, desde a nascente até o mar.
Temos que recuperar a
criatividade e a capacidade de admirar. Nesse ponto, o povo da Bíblia dá lição
em todos nós. Apesar de todas as suas limitações, eles souberam ler o Livro da
vida. Souberam descobrir e cantar a beleza do Universo que revela o amor de
Deus e a grandeza do Criador. Souberam verbalizar, partilhar e transmitir suas
descobertas, enriquecendo as gerações seguintes. Os salmos são um dos exemplos
mais bonitos.
Quando um artista tem uma
inspiração, ele procura expressá-la numa obra de arte. A poesia ou a imagem que
daí resulta carrega dentro de si essa mesma inspiração. Por isso, as obras de
arte atraem e mexem tanto com as pessoas. O mesmo acontece quando lemos e
meditamos a Bíblia. A inspiração que conduziu os autores ou autoras a compor os
salmos, continua presente naquelas antigas orações. Através da nossa leitura
atenta e orante esse Espírito entra em ação e começa a atuar para revelar em
nós a mesma imagem de Deus expressa no texto. Eis alguns destes salmos:
Salmo 8:“A Tua presença irrompe
por toda a terra!” Deus se revela na natureza
Salmo 19(18):“Os céus cantam a
glória de Deus!” Eles são expressão da Lei de Deus
Salmo 46(45):“Deus é nosso refúgio
e nossa força!” Ele está conosco! Não temos medo
Salmo 104(103):“Envia teu
Espírito e tudo será criado!” A ordem da Criação vem de Deus
Salmo 136(135):“Criou o céu e a
terra! Eterno é seu amor!” Tudo é revelação do amor
Salmo 139(138):“Tu me conheces
quando estou sentado!” O Criador está presente em tudo
Salmo 148:“Aleluia! Louvai a Javé
todas as criaturas!” Convite ao
louvor universal
Estes Salmos nos dão uma idéia do
que significava para aquele povo oprimido do cativeiro a fé no poder criador de
Deus. Não era para obter informações sobre como Deus tinha criado o mundo no
passado, mas sim para saber quem era o Deus que estava com eles lá no
cativeiro, no mais fundo do fundo do poço, naquela escuridão sem luz, naquele
desânimo sem futuro, e qual o poder criador que ele usava para acompanhar o seu
povo! A redescoberta surpreendente da presença criadora da palavra de Deus
naquela vida oprimida do cativeiro desumano, sem rumo e sem sentido, foi como a
ressurreição do povo que iluminou a vida e a própria natureza! Humanizou a
Vida!
PERGUNTAS:
Tocamos aqui um dos pontos mais
importantes para a formação das Comunidades, pois é através da celebração que
se transmitem a maior parte dos valores que ela procura viver. Como rezamos?
Coomo cantamos? Como celebramos? Quais os modelos que usamos? Quais os livros
de canto que costumamos usar? É no canto que se revela e se expressa o nível de
consciência da comunidade.
3-
O ponto de chegada
Jesus confirma o caminho
percorrido
A longa caminhada das Comunidades
proféticas do Antigo Testamento com suas etapas e descobertas encontrou a sua
continuação e confirmação em Jesus, na maneira de ele viver e anunciar a Boa
Nova de Deus.
*
A continuidade com a caminhada das Comunidade do AT
Em tudo que Jesus vive, faz e ensina,
transparece uma nova experiência de Deus. Como os profetas, ele não permite que
as tradições religiosas desviem o povo da verdadeira experiência de Deus e da
vida. Ele mantém as práticas antigas, mas lhes dá um novo sentido. Assim, ele
mostra grande liberdade frente aos costumes religiosos: esmola (Mt 6,1-4),
formas de rezar (Mt 6,5-15), jejum (Mt 6,16-18), práticas da pureza legal (Mc
7,1-23), observância do sábado (Mc 2,23-28), comunhão de mesa com pagãos e
pecadores (Mc 2,15-17), Templo (Mc 11,15-17). Ele chegou a dizer que Deus pode
ser adorado em qualquer lugar contanto que seja em espírito e verdade (Jo 4,
21-24). Jesus quer que as pessoas ultrapassem a letra e percebam o objetivo da
lei que é amor a Deus e ao próximo (Mt 7,12; Mc 12,29-31). Aos que
identificavam a vontade de Deus com a letra da Lei, ele dizia: “Antigamente foi
dito, mas eu digo” (Mt 5,21-22.27-28.31-34.38-39.43-44). Para Jesus a torah
quer o bem-viver do povo: “Eu vim para que tenham vida e vida em abundância”
(Jo 10,10)
Como os discípulos e discípulas
de Isaías, Jesus defende os direitos dos pobres e reconhece neles a sabedoria
de Deus (Mt 11,25-26). Bondade, ternura e simplicidade são a característica do
jeito com que Jesus acolhe as pessoas: o velho Zaqueu (Lc 19,1-10), as mães com
crianças (Mt 19,13-14), o leproso que grita à beira da estrada (Mt 8,2; Mc
1,40-41), o paralítico de 38 anos (Jo 5,5-9), o cego de nascimento na praça do
templo (Jo 9,1-13), a mulher curvada na sinagoga (Lc 13,10-13), a viúva de Naim
(Lc 7,11-17), as crianças em todo canto (Mt 21,15-16), e tantas e tantas outras
pessoas. É o contrário da atitude dos fariseus e escribas que chamavam o povo
de ignorante e maldito e achavam que o povo não tinha nada para ensinar a eles
(Jo 7,48-49; 9,34)
Como os sábios, Jesus tinha uma
capacidade enorme para comparar as coisas de Deus com as coisas mais simples da
vida do povo. As parábolas provocam e levam as pessoas a refletir sobre a sua
própria experiência, e fazem com que esta experiência as leve a descobrir Deus
presente na vida. A parábola muda o olhar.
Todas estas atitudes de Jesus
revelavam a experiência de Deus que o animava por dentro. Ele irradiava uma
nova imagem de Deus em aberto contraste com a concepção de Deus que se
expressava nas atitudes e na estrutura religiosa oficial da época. Jesus é um
leigo que não estudou na escola oficial. Mas o povo reconhecia que nele existe
sabedoria (Mc 6,2) e ficava impressionado com o jeito que Jesus tinha de
ensinar: “Um novo ensinamento! Dado com autoridade! Diferente dos escribas!”
(Mc 1,22.27). Por isso foi perseguido pelas autoridades. Como Jó aos olhos dos
três amigos, assim Jesus aos olhos dos escribas e fariseus, era um homem sem
Deus (Jo 9,16), contrário ao Templo e à Lei de Deus (Mt 26,61).
*
O olhar de Jesus sobre a Criação de Deus
O olhar de Jesus sobre a criação
confirma o olhar que veio do AT. Eis dois textos do evangelho de Mateus. Faça
uma leitura lenta, atenta e orante destes dois textos e procure sentir neles
(1) o jeito que Jesus tinha de se relacionar com a natureza, (2) o que Jesus,
olhando a natureza, aprendeu sobre Deus e (3) qual a lição que ele tirava da
observação das criaturas para a vida em comunidade.
Mateus 5,43-48:
"Vocês ouviram o que foi
dito: Ame o seu próximo, e odeie o seu inimigo! Eu, porém, lhes digo: amem os
seus inimigos, e rezem por aqueles que perseguem vocês! Assim vocês se tornarão
filhos do Pai que está no céu, porque ele faz o sol nascer sobre maus e bons, e
a chuva cair sobre justos e injustos. Pois, se vocês amam somente aqueles que
os amam, que recompensa vocês terão? Os cobradores de impostos não fazem a
mesma coisa? E se vocês cumprimentam somente seus irmãos, o que é que vocês
fazem de extraordinário? Os pagãos não fazem a mesma coisa? Portanto, sejam
perfeitos como é perfeito o Pai de vocês que está no céu."
Mateus 6,25-34:
"Por isso é que eu lhes
digo: não fiquem preocupados com a vida, com o que comer; nem com o corpo, com
o que vestir. Afinal, a vida não vale mais do que a comida? E o corpo não vale
mais do que a roupa? Olhem os pássaros do céu: eles não semeiam, não colhem,
nem ajuntam em armazéns. No entanto, o Pai que está no céu os alimenta. Será
que vocês não valem mais do que os pássaros? Quem de vocês pode crescer um só
centímetro, à custa de se preocupar com isso? E por que vocês ficam preocupados
com a roupa? Olhem como crescem os lírios do campo: eles não trabalham nem
fiam. Eu, porém, lhes digo: nem o rei Salomão, em toda a sua glória, jamais se
vestiu como um deles. Ora, se Deus assim veste a erva do campo, que hoje existe
e amanhã é queimada no forno, muito mais ele fará por vocês, gente de pouca fé!
Portanto, não fiquem preocupados, dizendo: O que vamos comer? O que vamos
beber? O que vamos vestir? Os pagãos é que ficam procurando essas coisas. O Pai
de vocês, que está no céu, sabe que vocês precisam de tudo isso. Pelo
contrário, em primeiro lugar busquem o Reino de Deus e a sua justiça, e Deus
dará a vocês, em acréscimo, todas essas coisas. Portanto, não se preocupem com
o dia de amanhã, pois o dia de amanhã terá suas preocupações. Basta a cada dia
sua própria dificuldade”.
Como estes há vários outros
textos nos evangelhos, nos quais transparece, não só o olhar de Jesus sobre a
natureza e a vida, mas também e sobretudo o que Jesus aprendeu sobre Deus, seu
Pai, olhando e observando de perto a natureza> as flores, as crianças, as
árvores, as plantas, as sementes, o sol, os passarinhos, os ninhos, a chuva, o
fermento, o sol, a lâmpada, a vela, o juiz, os empregados, os reis, o arado no
campo, as festas de casamento, a exploração dos pobres, prepotência dos ricos,
os pastores com suas ovelhas, o pai que acolhe seus filho fugitivo, as dores de
parto, a fome das crianças que pedem pão, as pedras preciosas, tantas e tantas
coisas que fazem parte da vida e que para Jesus são revelação de Deus seu Pai,
Abba, Papai.
* a prática de Jesus confirma a
tradição das Comunidades do AT
1. Jesus refaz o relacionamento
humano na base, na "Casa"
Numa época em que a religião
oficial insistia no espaço sagrado do Templo e nas coisas ligadas ao culto,
Jesus recupera a dimensão caseira da fé. O ambiente da Casa exerce um papel
central na vida e na atividade de Jesus. Quando se fala em casa, não se trata
só da casa de tijolos ou de pedra, nem só da família pequena, mas também e
sobretudo do clã, da comunidade. Até à idade de trinta anos, Jesus viveu no
ambiente comunitário e caseiro lá em Nazaré. Durante os três anos que andou
pela Galiléia ele entrava e vivia nas casas do povo. Entrou na casa de Pedro
(Mt 8,14), de Mateus (Mt 9,10), de Jairo (Mt 9,23), de Simão o fariseu (Lc
7,36), de Simão o leproso (Mc 14,3), de Zaqueu (Lc 19,5). O oficial reconhece:
“Não sou digno de que entres em minha casa” (Mt 8,8). E o povo procurava Jesus
na casa dele (Mt 9,28; Mc 1,33; 2,1; 3,20). Quando ia a Jerusalém, Jesus parava
em Betânia na casa de Marta, Maria e Lázaro (Jo 11,3.5.45; 12,2). No envio dos
discípulos e discípulas a missão deles é entrar nas casas do povo e levar a paz
(Mt 10,12-14; Mc 6,10; Lc 10,1-9).
2.
Recupera a dimensão sagrada e festiva da Casa
Jesus, sua mãe e todos os
discípulos participam da festa de casamento em Caná (Jo 2,1-2). Jesus aceita
convite para almoçar e jantar nas casas do povo: de Simão o leproso (Mc 14,3),
de Simão o fariseu (Lc 7,36), de Marta e Maria (Jo 12,2), de um outro fariseu
(Lc 11,37; 14,12). É na sala superior da casa de um amigo que Jesus celebrou a
última páscoa com seus amigos (Mt 26,18-19). Envia os discípulos e discípulas
para reconstruir o clã nas aldeias da Galiléia nas quatro bases da vida
comunitária: hospitalidade, partilha, comunhão de mesa e acolhida aos excluídos
(Lc 10,1-9). Depois da ressurreição, Jesus entrou em casa com os dois
discípulos em Emaús e foi reconhecido por eles no gesto tão caseiro da fração do
pão (Lc 24,29-30).
3.
Reconstrói a vida comunitária nos povoados da Galileia
No antigo Israel, o clã, isto é,
a família ampliada, a comunidade, era a base da convivência social. Era a
garantia de vida para uma pessoa: garantia a terra, a proteção, a defesa, os
relacionamentos, as tradições que davam identidade a uma pessoa. Era a maneira
concreta do povo daquela época encarnar o amor a Deus e ao próximo. Defender o
clã era o mesmo que defender a Aliança entre Deus e o povo. Mas na época de
Jesus, devida à política dos romanos e ao sistema da religião oficial, a vida
comunitária estava sendo desintegrada. Mais da metade do orçamento familiar ia
para os impostos, taxas, tributos, dízimos. Tais políticas excludentes geravam
doentes, famintos, marginalizados, viúvas, órfãos, possessos, pobres. Esta
situação levava as famílias a se fecharem sobre si mesmas, impossibilitadas de
exercer seu dever de goêl, de ajuda desinteressada aos parentes do mesmo clã ou
comunidade. A própria família de Jesus queria impedir que Jesus se preocupasse
com os outros e queriam levá-lo de volta para Nazaré. Jesus reage e não quer
saber: “Quem é minha mãe e meus irmãos? É todo aquele que faz a vontade do Pai
que está nos céus” (Mc 3,34-35) Jesus alarga a família, reconstrói o clã, a comunidade.
Ele quer evitar que as famílias se fechem sobre si mesmas e, assim, desintegrem
a vida do clã, da comunidade. Por isso ele diz: "Se alguém vem a mim, e
não odeia seu pai, sua mãe, sua mulher, seus filhos, irmãos, irmãs, e até mesmo
à sua própria vida, esse não pode ser meu discí¬pulo” (Lc 14,26). Manda que as
pequenas famílias se abram para a vida em comunidade.
4.
Cuida dos doentes e acolhe os excluídos
O primeiro trabalho de Jesus foi
cuidar de doentes (Mc 1,32). Os enfermos, por causa de sua doença considerada
um castigo divino, eram afastados do convívio social, perambulando pelas ruas,
aguardando uma esmola. Ao voltar-se para os doentes, Jesus assumiu um lado da
sociedade de seu tempo. Tocando no leproso para curá-lo tanto da lepra como da
exclusão, Jesus assumiu conscientemente uma marginalização social, a ponto de
já não poder entrar nas cidades (Mc 1,45). Jesus anuncia o Reino para todos!
Não exclui ninguém. Mas o anuncia a partir dos excluídos. Ele oferece um lugar
aos que não tinham lugar na convivência humana. Com amor e carinho acolhe os
que não eram acolhidos. Recebe como irmão e irmã aos que a religião e o governo
despre¬zavam e excluíam: os imorais: prostitutas e pecadores(Mt 21,31-32; Mc
2,15; Lc 7,37-50; Jo 8,2-11); os hereges: pagãos e samaritanos (Lc 7,2-10;
17,16; Mc 7,24-30; Jo 4,7-42); os impuros: leprosos e possessos (Mt 8,2-4; Lc
11,14-22; 17,12-14; Mc 1,25-26); os marginalizados: mulheres,crianças e doentes
(Mc 1,32; Mt 8,17;19,13-15; Lc 8,2s); os colaboradores: publicanos e soldados
(Lc 18,9-14;19,1-10); os pobres: o povo da terra e os pobres sem poder (Mt 5,3;
Lc 6,¬20.¬24; Mt 11,25-26).
5.
Recupera igualdade homem e mulher
Jesus acolheu e deu continuidade
à resistência das mulheres contra a sua exclusão. A moça prostituída é acolhida
e defendida por Jesus contra o fariseu (Lc 7,36-50). A mulher encurvada é acolhida por Jesus como filha de Abraão
contra o dirigente da sinagoga (Lc 13,10-17). A mulher adúltera, acusada pelos
fariseus, não foi condenada por Jesus (Jo 8,1-11). A mulher impura é acolhida sem censura e curada (Mc 5,25-34).
A Samaritana, desprezada como herética, é a primeira pessoa a receber o segredo
de que Jesus é o Messias (Jo 4,26). A mulher estrangeira de Tiro e Sidônia é
atendida por ele (Mc 7, 24-30). As mães com filhos pequenos que enfrentam os
discípulos são acolhidas e abençoadas por Jesus (Mt 19,13-15; Mc 10,13-16). As
mulheres, que desafiaram o poder e ficaram perto da cruz de Jesus (Mt
27,55-56.61), foram as primeiras a experimentar a presença de Jesus
ressuscitado (Mt 28,9-10). Maria Madalena, considerada possessa, mas curada por
Jesus (Lc 8,2), recebeu a ordem de transmitir a Boa Nova da ressurreição aos
apóstolos (Jo 20,16-18). Contrariando um grande número de rabinos, que não
aceitavam mulheres em seus grupos de estudo, sabemos que muitas mulheres
seguiam Jesus e faziam parte da comunidade de discípulos ao redor de Jesus (Lc
8,2-3; Mc 15,40-41). Aceitar as mulheres como discípulas em igualdade dentro do
grupo não deve ter sido fácil para os discípulos (Lc 24,11).
6.
Vai ao encontro das pessoas
No lugar de encerrar-se numa
sinagoga ou numa escola e exercer o poder de um escriba, Jesus rompe este
esquema, tornando-se um pregador ambulante. Onde encontra gente para escutá-lo,
ele fala e transmite a Boa Nova de Deus. Em qualquer lugar. Nas sinagogas durante a celebração da Palavra nos sábados
(Mc 1, 21; 3,1; 6,2). Em reuniões informais nas casas de amigos (Mc 2,1.15;
7,17; 9,28; 10,10). Andando pelo caminho
com os discípulos (Mc 2,23). Ao longo do mar, à beira da praia, sentado
num barco (Mc 4,1). No deserto para onde se refugiou e onde o povo o procura
(Mc 6,32-34). Na montanha, de onde proclama as bem-aventuranças (Mt 5,1). Nas
praças das aldeias e cidades, onde povo carrega seus doentes (Mc 6, 55-56).
Mesmo no Templo de Jerusalém, nas
romarias, diariamente, sem medo (Mc 14,49)! Ele vai ao encontro das pessoas,
estabelecendo com elas uma relação direta através da prática do acolhimento.
Antes de propor ou expor um conteúdo básico doutrinário, Jesus propõe um
caminho de vida. A resposta é seguir Jesus neste caminho: “Venham para mim
todos vocês que estão cansados de carregar o peso do seu fardo, e eu lhes darei
descanso, ...aprendam de mim...” (Mt 11,28-30).
7.
Supera as barreiras de gênero, religião, raça e classe
Jesus supera as barreiras de
gênero, de religião, de raça e de classe. Jesus não se fecha dentro da sua
própria raça e religião, mas sabe reconhecer as coisas boas que existem nas
pessoas de outra raça e religião. Ele acolhe lições da parte deles: da Cananéia
(Mt 15,27-28), da Samaritana (Jo 4,31-38) e até dos Romanos (Mt 8,5-13). Ele
acolhe e conversa com Nicodemos (Jo 3,1), que era um membro da alta classe
judaica, com assento no Sinédrio. Acolhe e conversa com uma mulher samaritana
(Jo 4,7). Com esta mulher, Jesus consegue estabelecer um diálogo construtivo,
superando uma das mais difíceis barreiras, a religião. Para a samaritana Jesus
era um judeu (Jo 4,9), ou seja, um inimigo religioso, opressor dos samaritanos.
Pacientemente, Jesus teve que, desarmar a samaritana e dizer: “Mulher, eu sou
judeu, mas não sou teu inimigo!”. Para estabelecer um diálogo com ela, Jesus
começa a conversa revelando uma carência que só poder ia ser saciada com o trabalho daquela mulher: “Dá-me de beber!”
Revelar uma carência é uma boa maneira de estabelecer um diálogo! O longo
diálogo entre Jesus e a samaritana mostra o quanto Jesus estava aberto para a
presença das mulheres em seu grupo. O texto de João mostra que os próprios
discípulos ficam surpresos com o diálogo de Jesus com a samaritana (cf. Jo
4,27).
* Os títulos de Jesus: um resumo do novo Caminho
Foi esta a Boa Nova que Jesus
viveu e irradiou durante os três anos que andou pela Galiléia anunciando o
Reino de Deus. Sua mensagem desagradou aos poderosos e eles o prenderam,
condenaram e mataram na cruz. Mas Deus o ressuscitou, confirmando-o diante dos
discípulos por meio de muitas aparições (1Cor 15,3-8). Animados pelo Espírito
de Jesus no dia de Pentecostes (At 2,1-4; Jo 20,21-23), os discípulos deram
continuidade ao anúncio da Boa Nova do Reino. A força que os sustentava no
anúncio da Boa Nova está expressa neste testemunho do apóstolo Paulo: “Vivo,
mas já não sou eu, é Cristo que vive em mim" (Gl 2,20). Jesus era tudo
para eles!
Para aprofundar e expressar quem
era Jesus para eles, conservavam e divulgavam títulos, nomes e atributos. Só no
Novo Testamento mais de cem! Cada título era uma tentativa para revelar algum
aspecto da riqueza que Jesus significava para a vida deles. Os três títulos
mais antigos de Jesus estão nesta frase: “O Filho do Homem não veio para ser
servido, mas para servir e dar sua vida em resgate para muitos“ (Mc 10,45). Os
três vêm do Antigo Testamento: Filho do Homem, Servo de Deus e Redentor
(resgate) dos irmãos. Cada título revela um determinado aspecto da riqueza que
esclarece o caminho que conduz ao Bem-Viver do Reino.
Filho do homem
Filho do Homem é o título que
Jesus mais gostava de usar. Aparece mais de 80 vezes só nos quatro evangelhos!
A expressão Filho do Homem vem dos profetas Ezequiel e Daniel. Em Ezequiel, a
expressão “filho do homem” ocorre 93 vezes e acentua a condição humana do
profeta. No livro de Daniel a expressão Filho do Homem ocorre na visão dos
grandes impérios do mundo (Dn 7,1-28). Os impérios são apresentados sob a
figura de animais (Dn 7,4-8), pois são animalescos; desumanizam a vida,
“animalizam” as pessoas. O Reino de Deus é apresentado, sob a figura de um ser
humano, de um Filho do Homem (Dn 7,13). O Filho do Homem, o povo de Deus, não
se deixa desumanizar nem enganar pela ideologia dominante dos reinos
animalescos. A sua missão consiste em realizar o Reino de Deus como um reino
humano, reino que não persegue a vida, mas sim a promove! Humaniza as pessoas.
Apresentando-se aos discípulos
como Filho do Homem, Jesus assume como sua esta missão humanizadora. É como se
dissesse: “Venham comigo! Esta missão é de todos nós! Vamos juntos realizar a
missão que Deus nos entregou, e realizar o Reino humano e humanizador que ele
sonhou!” E foi o que Jesus fez e viveu durante toda a sua vida, sobretudo, nos
últimos três anos. Ele foi tão humano, mas tão humano, como só Deus pode ser
humano. Quanto mais humano, tanto mais divino! Quanto mais “filho do Homem” e
tanto mais “filho de Deus!” Tudo que desumaniza as pessoas, afasta de Deus. É
humanizando que se constrói o Bem-Viver do Reino de Deus.
Servo de Deus
Este título vem de uma profecia
de Isaías, na qual o futuro Messias é apresentado como Servo de Deus (Is
42,1-9). No tempo de Jesus, alguns esperavam um Messias Rei (Mc 15,9.32);
outros, um Messias Santo ou Sumo Sacerdote (Mc 1,24); outros, um Messias
Guerrilheiro (Lc 23,5; Mc 13,6-8), Messias Doutor (Jo 4,25), Messias Juiz (Lc
3,5-9), Messias Profeta (Mc 6,4; 14,65). Apesar das diferenças, todos eles
esperavam um messias glorioso que fizesse o povo de Deus ser grandioso no meio
dos povos. Só os pobres esperavam o Messias Servidor, anunciado pelo profeta
Isaías (Is 42,1; 49,3; 52,13), e encaravam a missão do povo de Deus, não como
um domínio, mas como um serviço à humanidade. Maria, a pobre de Javé, dizia ao
anjo: “Eis aqui a serva do Senhor!” Foi dela e dos pobres que Jesus aprendeu o
caminho do serviço.
Este povo-servo é descrito como
aquele que “não grita, nem levanta a voz, não solta berros pelas ruas, não
quebra a planta machucada, nem apaga o pavio de vela que ainda solta fumaça”
(Is 42,2). Perseguido, não persegue; oprimido, não oprime. Nele o vírus da
violência opressora dos impérios não consegue penetrar. A atitude resistente do
Servo de Javé marcou a vida de Jesus. Isaías diz do Servo “Com fidelidade ele
promove o direito, sem desanimar nem desfalecer, até estabelecer o direito
sobre a terra”(Is 42,4). Jesus percorreu
o caminho do serviço até o fim, até as últimas conseqüências. Ele definiu sua
missão: “Não vim para ser servido, mas para servir” (Mc 10,45). Ele não veio
para implantar uma nova religião, mas para trazer a dimensão de serviço para
todas as religiões. É humanizando e servindo que se constrói o Bem-Viver do
Reino de Deus.
Redentor dos irmãos
Jesus inicia a sua pregação
proclamando um novo jubileu, um “Ano de Graça da parte do Senhor” (Lc 4,19). O
objetivo do Ano Jubileu era restabelecer os direitos dos pobres, acolher os
excluídos, reintegrá-los na convivência e, assim, voltar ao sentido profundo e
original da Lei de Deus. Um dos meios para levar a bom termo o Ano Jubileu era
a lei do “Resgate” (Goêl, Redentor) (Lv 25,23-55). Jesus é o Goêl, o redentor
dos irmãos, que veio pagar o resgate, para que nós pudéssemos ser libertados da
escravidão e recuperar a vida em comunidade. Muita gente era marginalizada em
nome da Lei de Deus. Jesus, a partir da sua experiência de Deus, denuncia esta
situação que esconde o rosto de Deus para os pequenos (Mt 23,13-36). Como
redentor (goêl), irmão mais velho, ele oferece um lugar aos que não tinham
lugar. Acolhe os que não eram acolhidos e recebe como irmão aqueles que a
religião e o governo desprezavam e excluíam (Mc 3,34). Não tendo dinheiro para
pagar o resgate, ele se entregou a si mesmo, seu corpo e seu sangue, para que todos
pudessem viver em fraternidade (1Cor 11,23-26; Mc 14,22-24; Lc 22,20).
Jesus, o Redentor dos irmãos!
Este talvez seja o título mais antigo para expressar o que Jesus significa para
nós. O termo hebraico goêl é tão rico
que não tem tradução unívoca na nossa língua: redentor, salvador, libertador,
defensor, advogado, consolador, paráclito, parente próximo, irmão mais velho.
São Paulo o definiu tão bem na carta aos Gálatas: “Eu vivo, mas já não sou eu
que vivo, pois é Cristo que vive em mim. E esta vida que agora vivo, eu a vivo
pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim” (Gl 2,20). . É
humanizando, servindo e acolhendo que se recupera a Missão das Comunidades e se
constrói o Bem-Viver do Reino de Deus.
Assim se inicia a reversão da
desintegração iniciada com Adão que culminou na Torre de Babel:
* A confusão das línguas da Torre
de Babel começou a ser superada no dia de Pentecostes
* A desintegração do Dilúvio
causada pela magia começou a ser superada pela força da fé renovada
* A violência 70x7 de Lameque
começou a ser superada pelo perdão 70x7 de Jesus
* A morte da fraternidade causada
por Caim começou a ser superada pelo amor ao próximo de Jesus
* A alienação de Deus causada por
Adão e Eva é superada por Jesus que morre e ressuscita em Deus
APÊNDICE
1
Corrigir a interpretação errada
da Bíblia que legitimou a agressão à natureza
Leitura de Gênesis 1,1-2,4: a
história da Criação
Gênesis 1,1-2:
“No princípio, Deus criou o céu e
a terra. A terra estava deserta e vazia; as trevas cobriam o abismo e um vento
impetuoso soprava sobre as águas” (Gn 1,1-2).
O autor usa três imagens de morte
para descrever a situação do caos, anterior à ação criadora: Trevas, Águas,
Deserto. Trevas sem luz impedem a vida. Águas que inundam tudo matam a vida.
Deserto sem água é símbolo de morte. Estas mesmas três imagens eram usadas para
descrever a situação do povo no cativeiro.
Trevas: “Deus me fez morar nas
trevas como um defunto enterrado há muito tempo” (Lm 3,6).
Águas: “As águas subiram por cima
da minha cabeça e eu gritei: Estou perdido” (Lm 3,54).
Deserto: Isaías compara o povo no
cativeiro a um toco seco enterrada num chão deserto (Is 11,1).
A situação do povo no cativeiro
era uma situação de morte, sem futuro: trevas, águas e deserto. Qual a
esperança de um povo que vive numa situação assim de morte? Humanamente
falando, nenhuma! Mas eles descobriram uma saída! Qual?
Gênesis 1,3-13:
“Deus disse: "Luz!" E a
luz começou a existir. Deus viu que a luz era boa. E Deus separou a luz das
trevas: à luz Deus chamou "dia", e às trevas chamou
"noite". Houve uma tarde e uma manhã: foi o primeiro dia” (Gn 1,3-5).
O povo no cativeiro tinha perdida
tudo, menos uma coisa: a Palavra de Deus, que eles carregavam na memória e
meditavam nas suas reuniões. Qual a força desta Palavra? É para responder a
esta pergunta que eles contavam a história da criação do mundo. Deus cria
através da sua Palavra. A força da Palavra é irresistível. Logo no primeiro dia
da criação, gritando LUZ, a Palavra vence as Trevas (Gn 1,3-4). No segundo dia,
cria o firmamento e vence as Águas (Gn 1,6-8). No terceiro dia vence o Deserto
criando a terra e o verde (Gn 1,9-13). A palavra criadora vence a confusão do
caos e cria a ordem do cosmos. Vence a morte e cria as condições para a vida
poder aparecer.
Ora, a Palavra de Deus, aquela
mesma que venceu as trevas e transformou o caos em cosmos, continuava presente
na vida dos exilados, pois ela era meditada nas suas reuniões aos sábados. E
até hoje, ainda é esta mesma palavra criadora de Deus que nós meditamos nos
Círculos Bíblicos (cf. Is 55,10-11).
Gênesis 1,14-25:
“Deus disse: "Que existam
luzeiros no firmamento do céu, para separar o dia da noite e para marcar
festas, dias e anos; e sirvam de luzeiros no firmamento do céu para iluminar a
terra". E assim se fez. E Deus fez os dois grandes luzeiros: o luzeiro
maior para regular o dia, o luzeiro menor para regular a noite, e as estrelas.
Deus os colocou no firmamento do céu para iluminar a terra, para regular o dia e a noite e para separar a
luz das trevas. E Deus viu que era bom. Houve uma tarde e uma manhã: foi o
quarto dia” (Gn 1,14-19).
No quarto dia, a Palavra de Deus
cria as lâmpadas: o sol, a lua e as estrelas (Gn 1,14-19). No quinto dia, ela
cria os pássaros do céu e os peixes do mar (Gn 1,20-23). No sexto dia, cria os
animais que se movem sobre a terra (Gn 1,24-25). Assim, a casa ficou pronta
para receber o ser humano, o dono da casa.
Sol e lua são criaturas e não
divindades. Na Babilônia, terra do cativeiro, o Sol e a Lua eram adorados como
deuses. Por isso, o texto deixa bem claro que os astros são criaturas. Não são
divindades. São lâmpadas a serviço do ser humano, nada mais. Ajudam a marcar as
festas, as estações do ano, os dias e as noites. Assim, o texto ajudava os
exilados a adquirir uma consciência mais crítica frente à ideologia da religião
do império.
Contra a divinização dos animais.
O povo de Deus vivia num mundo em que muitos animais eram divinizados. Na
entrada principal de Babilônia, havia esculturas imensas de Karibús
(Querubins), que eram uma combinação de leão, touro, águia e ser humano. Eles
mesmos, no tempo do deserto, tiveram a experiência desastrosa do bezerro de
ouro fabricado por iniciativa de Aarão (Ex 32,4). A tendência de transformar os
animais em divindades era freqüente no antigo Médio Oriente. Por isso, o texto
insiste em dizer que, como o sol e a lua, também os bichos todos são criaturas,
dependem de Deus em tudo e estão a serviço da vida.
Gênesis 1,26-31:
“Então Deus disse: Façamos o ser
humano à nossa imagem e semelhança. Que ele domine os peixes do mar, as aves do
céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam
sobre a terra. E Deus criou o ser humano à sua imagem; à imagem de Deus ele o
criou; e os criou homem e mulher”(Gn 1,26-27)
Com uma certa solenidade, o texto
apresenta o próprio Deus falando: Façamos o ser humano à nossa imagem e
semelhança! Sugere que estamos chegando ao ponto alto da criação. O texto
acentua três aspectos:
(1) Afirma a dignidade do ser
humano. Nele existe algo de divino. Ele é feito à imagem e semelhança de Deus.
Não são os animais, nem o sol e a lua, nem o rei Nabucodonosor, nem os
poderosos que são a imagem ou representantes de Deus, mas sim o ser humano, enquanto
humano, é o representante de Deus na criação.
(2) Afirma a igualdade entre
homem e mulher, ambos são imagem de Deus. Ou melhor, não é só o homem, nem só a
mulher, mas ambos juntos, convivendo em harmonia, são imagem de Deus.
(3) Afirma a superioridade do ser
humano frente às outras criaturas, pois ele pode dominar sobre todas elas.
Porém, este domínio não significa que ele recebeu carta branca para fazer o que
bem entende nem se trata de uma dominação que usa a terra como mercadoria ou
como objeto mudo e sem vida. Mas significa que o ser humano deve imitar a
maneira como Deus exerce o seu domínio. Deus domina o universo coordenando tudo
numa harmonia admirável, preservando a ordem que favorece a vida e mantendo
afastado o caos que ameaça tudo de morte: o caos do assassinato (Caim mata
Abel: Gn 4,1-16), da vingança (Lameque vinga sete vezes: Gn 4,23-24), da
corrupção (que causa o dilúvio: Gn 6,1-8) e da exploração (torre de Babel: Gn
11,1-9). O ser humano deve tomar conta em nome de Deus, isto é, deve manter a
harmonia da criação, impedir o retorno do caos.
Gênesis 2,1-4:
“No sétimo dia, Deus terminou
todo o seu trabalho; e no sétimo dia, ele descansou de todo o seu trabalho.
Deus então abençoou e santificou o sétimo dia, porque foi nesse dia que Deus
descansou de todo o seu trabalho como criador”Gn 2,2s.
A insistência no descanso sugere
que o descanso faz parte da ação criadora. É no descanso que se alcança o
objetivo do trabalho. A finalidade última da vida humana não é o trabalho, a
produção, o lucro, mas sim o descanso com a consciência tranquila de que o
trabalho foi bem realizado. Trabalhamos para viver, e não vivemos para
trabalhar.
No cativeiro, o povo exilado era
explorado pelo trabalho escravo. Não lhes davam descanso. Deviam trabalhar de sol
a sol, sete dias em seguida, sem possibilidade de refletir e de se encontrar.
Era importante ter ao menos um dia por semana para se reunir, partilhar a vida,
louvar a Deus e animar-se mutuamente. Foi daí que renasceu a insistência na
observância do sábado: trabalhar durante 6 dias, mas no 7º dia descansar para
Deus e para a comunidade (Ex 20,8-11).
Concluindo a leitura da história
da criação
A Bíblia não quer competir com a
ciência, nem dar uma aula de cosmologia, mas sim comunicar esperança ao povo oprimido.
Para você sentir toda a força deste texto da história da criação, coloque-se na
pele do pessoal que estava lá no cativeiro, na Babilônia, capital do grande
império. Eles se sentiam como hoje se sentiria um grupo de camponeses do
interior de Minas, levados à força para viverem como varredores de rua no
centro de Nova York: outro mundo, outra terra, outra língua, outra religião,
outro jeito de viver, outros valores! A eles não interessa saber como o mundo
foi criado, mas interessa sim redescobrir a força escondida do Deus presente
que cria e recria suas vidas. Isto sim é que dará força aos mineiros que varrem
as ruas na cidade de Nova York. A Bíblia não ensina como o mundo foi criado,
mas sim como o mundo criado deve ser visto à luz da fé. A narração da criação
reflete o poder e o carinho com que Deus protege e acompanha o seu povo
exilado. É um manifesto de resistência para o povo encher-se de coragem na sua
missão.
PERGUNTAS:
1. O que mais chamou sua atenção
na maneira de a Bíblia descrever a Criação do mundo? Por que?
2. Como fazer para que nós
possamos ter em nós, hoje, a mesma atitude frente à natureza?
Leitura de Gênesis 2,4-3,24: a
história do Paraíso Terrestre
Uma chave geral para a sua
leitura e compreensão
Na história da Criação do Mundo (Gn
1,1-2,4), o povo de Deus olhava o seu passado e encontrou nele uma fonte de
resistência. Agora, na história do Paraíso Terrestre (Gn 2,4-3,23), eles
enfrentam o futuro e oferecem uma resposta para o desafio maior que os
provocava.
1. Linguagem simbólica
A linguagem da História do
Paraíso Terrestre é simples, popular. É linguagem simbólica. Diante dela não
devo perguntar: “Existiu ou não existiu?” Estas perguntas não são boas para
captar a mensagem. Quem olha a si mesmo no espelho, não pergunta: “Aquilo que
estou vendo existe ou não existe?” Olhando no espelho da história de Adão e
Eva, devo perguntar: “Será que estou transgredindo a Lei de Deus como Adão e
Eva? Será que estamos tomando conta do Jardim do jeito que Deus quer?”
2.
Época e lugar de origem
É difícil saber em que época e
lugar surgiu esta história. O contexto que nela transparece é o ambiente rural
das famílias do interior da Palestina. Nela se fala da terra, do trabalho duro
que rende pouco, da seca, da água, das plantas, dos bichos, da vida em família
com suas dificuldades, do relacionamento entre marido e mulher, da dor de
parto, do despertar para a nudez, do relacionamento com Deus.
3. Resposta para os problemas e
perguntas do povo
A maior parte das informações
dadas pela história do Paraíso vem da observação da vida de cada dia. Na sua
origem estão as perguntas que o povo se fazia ou que as crianças colocavam para
seus pais: “Pai, se Deus é bom e se nós procuramos ser bons, por que Deus nos
maltrata com tanto sofrimento? Se Deus é o criador de tudo, por que permite
tanta inimizade entre nós e os bichos? Por que o terreno da nossa roça é tão
ruim? Só dá tiririca! Pai, você trabalha o ano todo e seu trabalho rende tão
pouco! Por quê? Se Deus existe, por que ele não aparece?” Para responder a estas perguntas a respeito
dos mistérios da vida, havia as histórias e os mitos que se transmitiam nas
celebrações nos centros de romaria. Uma delas é a história do Paraíso
Terrestre.
4.
A tentação da “serpente” e a desintegração da vida
Muitas vezes, o povo não levava a
sério a observância da Aliança com Javé. A corrupção e as injustiças estavam
contrariando a vontade de Deus. Os estragos provocados pelo esquecimento de
Javé repercutiam na vida das pessoas e da nação. Havia mais deuses falsos do
que ruas e casas em Jerusalém (Jr 11,13). Uma das causas desta desintegração
era a manipulação da religião de Baal, religião muito antiga, cujo símbolo era
a figura de uma serpente. Na opinião do povo, o deus Baal manifestava seu poder
na produção dos alimentos e na reprodução da vida. Ele fertilizava a terra com
a chuva e em nome dele se promovia o culto da prostituição sagrada nos “lugares
altos” (cf. Jr 7,31; 19,5; 32,32). Os reis manipulavam esta religião,
estimulando o povo a freqüentar os “lugares altos”. Davam presentes às moças
que aí se prostituíam. Os reis perdoavam as dívidas aos pais que entregavam
suas filhas para este serviço. As crianças que assim nasciam pertenciam ao rei
e serviam a ele como soldados no exército, como trabalhadores nas terras do rei
e como empregadas domésticas e concubinas nos palácios reais. Esta “Serpente”
era uma perigosa tentação para desviar o povo da lei de Deus e do sentido da
vida. Ela desintegrava as relações humanas no matrimônio, na família e na
comunidade.
5.
A luta dos profetas contra a religião de Baal.
O Profeta Elias criticou o culto
de Baal enfrentando os profetas de Baal no Monte Carmelo (1Rs 18,16-40). O
profeta Oséias é o que mais denunciou este abuso (Os 4,1-18). Mas não adiantou
muito. Alguns reis de Judá tentaram acabar com os “lugares altos” onde se
praticavam estes abusos, mas não o conseguiram. É quase um refrão que acompanha
a avaliação dos reis de Judá: Joás, rei bom, mas não eliminou os lugares altos.
(2Rs 12,4). Amasias, filho de Joás, rei bom, mas não eliminou os lugares altos,
etc. (2Rs 14,4; 15,4.35). Acaz, rei ruim, que aumentou os lugares altos (2Rs
16,4). Ezequias, rei bom, o único que conseguiu acabar com os lugares altos
(2Rs 18,4). Manasses, filho de Ezequias, rei ruim, que reconstruiu os lugares
altos (2rs 21,3).
7.
O Paraíso Terrestre: o sonho de Deus para a humanidade
A história do Paraíso Terrestre
procura oferecer uma perspectiva para o povo ter força na luta contra a
tentação da Serpente. Ela descreve o sonho de Deus para a humanidade e oferece
uma orientação para o povo descobrir sua missão, assumir sua responsabilidade,
engajar-se na reconstrução da vida de acordo com o Projeto de Deus e, assim,
iniciar a caminhada de retorno ao Paraíso Terrestre. Eis a divisão do texto:
APÊNDICE
2
Uma
conversa de Deus com Adão antes da expulsão do Paraíso
Deus: Adão!
Adão: Às suas ordens, Senhor.
Deus: Tome conta do meu jardim!
Adão: Obrigado, Senhor. Com muito prazer. É prá já!
Dez anos depois
Deus: Adão!
Adão: Senhor?
Deus: Falei para você tomar conta do meu jardim.
Adão: É o que estou fazendo.
Deus: Está não, Adão! Você está agindo como se o jardim fosse seu.
Adão: Então, não é meu? O Senhor não me deu?
Deus: Dei não, Adão. O jardim é meu. Eu o entreguei para você tomar
conta.
Adão: Tomar conta para que?
Deus: Para que todos possam vir aqui, apreciar a beleza deste Paraíso,
descansar, se alimentar, conversar, experimentar que eu quero bem a eles, que
amo a todos. Todos, viu, todos! Também os animais e as plantas!
Adão: Mas o que estou fazendo de errado? Estou tomando conta. Está
rendendo muito. Eva e eu até conseguimos duplicar a produção das frutas,
sobretudo daquelas maçãs tão gostosas!
Deus: Adão, não foi isso que eu queria, quando falei para você tomar
conta. Você até está fazendo essa propaganda absurda da "Árvore do Bem e
do Mal", colocando uma nova lei para as pessoas que vêm aqui, ensinando a
elas o bem e o mal, o que devem e o que não devem fazer. Que nova lei é essa
que você inventou, Adão? E você mesmo com Eva, vocês dois estão tirando vantagem
para melhorar sua própria vida. Onde se viu?
Adão: Não entendo o Senhor. Um jardim tão bonito. Terra tão boa! Muita
água! Em se plantando dá! Deixar tudo isso à toa? Francamente, não entendo o
Senhor.
Deus: Adão, estou achando que você não é a pessoa mais indicada para
tomar conta do meu jardim. Isso que vocês dois estão fazendo não é o que eu
queria, quando disse para você tomar conta do meu Jardim. Desse jeito, você e
Eva não vão poder ficar. Mas vou dar mais uma chance.
Adão: Qual?
Deus: Vocês têm que sair do jardim e vão fazer uma experiência lá fora
para aprender. Porém, não volto atrás. O jardim, este Paraíso, vai continuar aí
à espera de vocês. O jardim é para vocês, para que um dia todos possam vir aqui
e ter vida em abundância. Todos, viu, todos! O que peço é que neste tempo de
experiência vocês aprendam a tomar conta e não a serem donos. E devem tomar
conta em meu Nome e não no nome de vocês mesmos.
Adão: E o que quer dizer tomar conta no Nome do Senhor?
Deus: Tomar conta em meu Nome, Adão, não quer dizer dominar e explorar,
como você e Eva estão fazendo, mas é vocês aprenderem a fazer como eu faço:
manter a harmonia da criação, impedir o retorno do caos, fazer com que todos
tenham o suficiente para viver, criar um ambiente de paz e de fraternidade,
para que todos possam viver na alegria e na gratidão, sentir-se bem na minha
presença e, assim, todo ser que respira louve o seu Criador, para sempre.
Entendeu?
Adão: Sim, senhor.
Deus: Tomara! Crie juízo, por favor
APÊNDICE
3
Uma
conversa entre Adão e Eva depois da expulsão do Paraíso
Eva: Adão!
Adão: Sim?
Eva: Fiquei
pensando. Ele não é tão ruim não. Nem tem ódio da gente. Ele gosta de estar
conosco.
Adão: Quem?
Eva: Deus, ora! Acho
que nós abusamos da bondade dele. Veja como é que ficou nossa vida. Nossos
filhos vivem brigando. Caim matou Abel. Se o tio Lameque chegar a ser o
cacique, acabará nosso sossego. Nem segurança a gente vai ter mais? Ele é
vingativo, não leva desaforo para casa.
Adão: Você tem razão.
E tem mais. O pior é aquela torre que eles estão construindo lá na terra de
Babel. Querem que a torre alcance o céu. Já imaginou! Uma confusão danada.
Querem ser os donos do mundo para poder explorar os outros. Dizem que são os
representantes de Deus.
Eva: Representantes
de Deus coisa nenhuma! Você já se deu conta de como essa gente se relaciona com
Deus? Tudo na base de medo e de magia. Não foi assim que nós o conhecemos
naquele jardim. Era tão bom, não era? Dá uma saudade no coração da gente.
Adão: Eva, eu só sei
dizer que nós erramos. Não tomamos conta do Jardim. Quisemos ser os donos, e
deu no que deu! Deus nos deu uma chance. Tirou a gente do jardim para nós
reaprendermos o que quer dizer tomar conta do jardim no nome dele. Até agora,
não aprendemos nada.
Eva: Adão, você acha
que o caminho de volta ainda é possível? Parece que não tem mais jeito. Se
continuar assim, em breve vai ter outro dilúvio para acabar com tudo.
Adão: Acho que a gente não pode desanimar. Mas por
onde começar? Hoje tudo é o contrário de como era no jardim: terra seca, briga,
sofrimento, ameaça, vingança, magia, exploração, mentiras. Sei que o jardim
continua existindo. Ele existe, sim. Mas onde? Como chegar até lá? Qual o
caminho?
Eva: Adão, quando eu
olho a beleza do universo, o luar, as montanhas, as estrelas, eu sempre me
lembro do Jardim e me dá um remorso muito grande. Se a terra está desse jeito,
se nossos filhos brigam, se nada dá certo, é porque nós falhamos. Será que não
tem jeito de a gente tentar de novo? Passar pela prova, para poder voltar ao
jardim? O que você acha?
Adão: Não sei. Pode
ser.
Eva: Escuta essa.
Outro dia, na feira, ouvi a seguinte conversa. Havia lá um grupo de pessoas
muito simpáticas que me acolheram na roda deles. Eles falavam de um casal.
Diziam que seguiam os ensinamentos desse casal. Ele se chama Abraão, e a mulher
dele se chama Sara. Eles diziam para mim: “Temos que sair desta terra e ir para
a terra que Deus nos mostrar!” Aí eu perguntei: “De que terra vocês estão
falando?” Aí um deles respondeu: “Da Terra Sem Males, onde reinam a justiça, a
fraternidade, a paz e a partilha!” Aí eu perguntei: “Onde é que fica essa
terra?” Ele respondeu: “Fica lá onde nós vivemos. Depende de nós!”
Adão: Bonita resposta! Quer dizer que para eles o chão onde a gente pisa
pode tornar-se de novo Jardim de Deus! Gostei. É isso mesmo!
Eva: Pois é. Quando ele disse isto, eu também logo
me lembrei do Jardim e senti uma nova esperança. O Jardim nasce aqui mesmo se a
gente souber viver na justiça e na fraternidade! Quem sabe, este é o caminho
para transformar nossa saudade em esperança. O que você acha?
Adão: Você perguntou a esse casal como é que eles
chegaram a essa maneira de ver as coisas da vida?
Eva: Perguntei, sim,
e eles responderam assim. Um dia quando se tinham colocado na presença de Deus
para rezar, um senhor chamado Isaías disse assim para eles: “Vocês que buscam a
justiça e procuram a Deus. Olhem para a rocha de onde foram talhados, olhem para
a pedreira de ontem foram extraídos. Olhem para Abraão, seu pai, e para Sara,
sua mãe. Quando os chamei eles eram um só, mas se multiplicaram por causa da
minha bênção!” (Is 51,1-2)
Adão: Gostei! Isaías
indicou o caminho para a gente fazer da vida um Jardim de Deus: buscar a
justiça e procurar a Deus. Foi isto que nós devíamos ter feito e não fizemos,
quando Deus nos expulsou do Paraíso para aprender lá fora como tomar conta do
Jardim em nome dele. O caminho é este: buscar a justiça e buscar a Deus e, assim,
criaremos a Terra Sem Males, onde reinam a justiça, a fraternidade, a partilha
e a paz. Agora vai dar certo. Temos esperança. Vamos lá! É para já!
APÊNDICE
4
A
lição dos povos indígenas
Eis dois exemplos concretos da
lição de índios que não perderam o contato com a natureza: o primeiro é de um
índio do Xingu, Brasil, contado pelo indigenista Orlando Villas Bôas; o
segundo, de um índio da América do Norte.
Orlando Villas Bôas conviveu com
os índios durante anos e estudou os costumes deles. Ele conta o seguinte:
"De todas as histórias
contadas pelos índios, a mais surpreendente foi nascida de uma conversa com
Arru, um de meia-idade que, embora não fosse um grande pajé, era, sem dúvida, o
mais versado nos conhecimentos que transcendem o saber comum, principalmente no
campo do sobrenatural. Arru chegara do mato cansado da caminhada e,
encontrando-nos na aldeia, sentou-se a meu lado. Não havia muita coisa a
conversar. Seu mundo monótono, nesse aspecto, valia pelo que já havia
acontecido. Foi por isso que ele, olhando para os lados, para o chão e depois
para o céu, disse: -“Lá é o céu. –“Eu já
sabia”, respondi. –“Lá é a aldeia dos que morrem”. –“Eu já sabia”. Depois de um
breve intervalo, e de olhar bastante elevado para o céu, falou: -“Lá no céu do
céu... ela está lá”. Fui tomado de surpresa. Céu do céu... O que viria a ser
isso? Ela está lá? Ela, quem? A figura de um índio velho? Daí perguntei:
-“Quem? Um índio velho que sabe tudo? –“Não! (pronunciado com veemência),
somente uma sabedoria!” E com um gesto
largo abrangendo o sol e o céu deu-me a idéia de que lá havia somente uma
sabedoria, que, tal qual a concepção das seitas tibetanas, mantém a harmonia do
universo.” (Orlando Villas Bôas, A Arte dos Pajés, Impressões sobre o universo
espiritual do índio xinguaano,Editoria Globo,2000, p.89-90) .
Em 1852, o governo dos Estados
Unidos propôs comprar as terras dos índios. O cacique Seattle estranhou a
proposta e expôs a sua preocupação numa carta ao Presidente. Segue aqui um
trecho da carta:
"O presidente em Washington
informa que deseja comprar nossa terra. Mas como é possível comprar ou vender o
céu ou a terra? A idéia nos é estranha. Se nós não possuímos o frescor do ar e
a vivacidade da água, como vocês poderão comprá-los? Cada parte desta terra é
sagrada para meu povo. ... Somos parte da terra e ela é parte de nós. As flores
perfumadas são nossas irmãs. O urso e a águia são nossos irmãos. O topo das
montanhas, o húmus das campinas, o calor do corpo do cavalo, o ser humano,
pertencem todos à mesma família. A água brilhante que se move nos rios e
riachos não é apenas água, mas é o sangue de nossos ancestrais. Se lhes
vendermos nossa terra, lembrem-se de que o ar é precioso para nós, o ar
partilha seu espírito com toda a vida que ampara. Uma coisa sabemos: nosso Deus
é também o seu deus. A terra é preciosa para ele. Esta terra é preciosa para
nós, também é preciosa para vocês. Uma coisa sabemos: existe apenas um Deus.
Nenhum ser humano, vermelho ou branco, pode viver à parte. Afinal, somos
irmãos!" (Joseph Campbell, O Poder do Mito, Editora Palas Athena, 14ª
edição, São Paulo, 1996, pp.34 e 36)
São duas maneiras diferentes de
relacionar-se com a terra. Para Seattle, o chefe indígena, a terra é dom de
Deus e fonte de identidade. Para o Presidente dos Estados Unidos a terra é
apenas uma mercadoria, um objeto de troca. Para Arru, o índio do Xingu, a
terra, o chão, o passado, o céu, tudo faz parte de uma sabedoria universal que
nos envolve e da qual nós somos apenas uma parte. Não somos os donos do mundo;
tomamos conta, e temos que prestar conta. Dizia um descendente dos índios lá do
Ceará: “Eu não sou pessoa. Sou pedaço de pessoa. A pessoa é a comunidade.
Vivendo em comunidade me torno pessoa”. São duas mentalidades distintas: a dos
índios e a nossa. Temos muito a aprender deles. Nos últimos três ou quatro
séculos, uma ciência utilitarista que só busca seu próprio proveito, privou-nos
desse contato com a natureza e, por conseguinte, da sabedoria que nasce do
contato com a mãe terra, Pachamama.
Repetimos a reflexão de Leonardo
Boff sobre as lições que podemos receber dos índios:
Os índios sentem e veem a
natureza como parte de sua sociedade e cultura, como prolongamento de seu corpo
pessoal e social. Para eles a natureza é um sujeito vivo e carregado de
intencionalidades. Não é como para nós modernos, um objeto mudo e sem espírito.
A natureza fala e o indígena entende sua voz e mensagem. Por isso ele está
sempre auscultando a natureza e se adequando a ela num jogo complexo de
inter-relações. Há sábias lições que precisamos aprender deles face às atuais
ameaças ambientais. Importa entender a Terra, não como algo inerte, com
recursos ilimitados, disponíveis ao nosso bel prazer. Mas como algo vivo, a Mãe
do índio a ser respeitada em sua integridade. Se uma árvore é derrubada, faz-se
um rito de desculpa para resgatar a aliança de amizade. Precisamos de uma relação
sinfônica com a comunidade de vida, pois como foi comprovado, Gaia (terra) já
ultrapassou seu limite de suportabilidade. Se deixarmos as coisas correrem e
não fizermos nada as ameaças se tornarão devastadora realidade. (Leonardo Boff,
O desafio Amazônico, 19 de fevereiro 2007).
Pistas
1. INCENTIVAR NOVA VISÃO
* Nasce da vida comunitária
* Leitura Popular da Bíblia
2. VISÃO ECUMÊNICA
* Interpretar em defesa da vida e
não da instituição
* Estimular as parcerias: Igreja
a serviço do Reino que é mais amplo
3. NOVA EXPERIÊNCIA DE DEUS E DA
VIDA
* Concepção holística da vida:
natureza e graça se unem
* Saúde das CEBS: a fé e o meio
ambiente
* A lição dos índios: os livros
da cultura do povo e livros sapienciais
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