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segunda-feira, 9 de maio de 2016

O nome de Deus é "Rahûm". Artigo de Aldo Bodrato

João Paulo I foi o primeiro papa pós-conciliar a falar da maternidade de Deus, despertando alguma atenção entre os profissionais do Sagrado. A partir daquela extemporânea e efêmera afirmação, foram ditas muitas palavras sobre o papel da mulher na Igreja. Pouco, porém, foi feito para dar forma, ao menos esboçada, ao novo "teologúmeno" da"Misericórdia".
A análise é do historiador e filósofo italiano Aldo Bodrato, em artigo publicada na revista Esodo, n. 1 de 2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.
"Há dois modos para que um fotógrafo represente os homens que lidam com os eventos da sua história. Há um tipo de fotografia que comunica completamente o que o fotógrafo captura. É uma imagem que fala. Diz coisas fortes e claras; é muito legível, mas é também fruto de uma investigação finita. É a versão dos fatos do fotógrafo. E há uma fotografia não finita, em que quem olha tem a possibilidade de começar um diálogo próprio. É um convite para fazer pessoalmente a viagem que assim começou" (Paolo Pellegrin, em A occhi aperti, mostra fotográfica organizada por Mario Calabresi, Roma: Ed. Contrasto, 2013, p. 174).
A mesma coisa vale para o teólogo que quiser oferecer aos seus ouvintes alguma representação do rosto de Deus. Há uma teologia cuja palavra sobre Deus se constrói com uma sólida argumentação lógica, a fim de captar a identidade específica, de defini-la, de uma vez por todas, substância e atributos. É uma teologia que dá autoridade de mestre a quem a propõe e segurança a quem a assume.
Mas há também uma teologia que, em relação a Deus, tenta apontar os olhos interrogantes para discernir, no caminho da vida, a luz da Sua revelação. É uma teologia que tem o objetivo de dirigir o olhar dos homens para uma transcendência que, na própria irrepresentabilidade, nunca se deixa objetivar em uma imagem finita, em um nome identificador, mas se faz presença capaz de gerar relação.
Espero que essa seja a ótica em que será lida esta temerária pesquisa sobre o "teologúmeno" da "Misericórdia", o verdadeiro coração do amor de Deus, experimentado e vivido como expressão de liberdade, muito mais do que de necessidade, dependência e temor,
* * *
"Não se pode lhe pedir o que ele não pode dar", escreveu Vito Mancuso no jornal La Repubblica a propósito do livro-entrevista de Andrea Tornielli com o Papa Francisco sobre a convocação do Jubileu ("O nome de Deus é misericórdia", Planeta, 2015). O renomado teólogo, dando voz ao pensamento de muitos intelectuais, crentes e não crentes, conservadores ou progressistas, pretendia sustentar que não se pode esperar de um papa pastor uma profunda e eficaz ação de renovação da doutrina da Igreja. Ele subestimava, porém, a centralidade da prática da justiça e da misericórdia na formação do imaginário teológico do cristianismo.
De fato, é bastante claro ao Papa Francisco e aos seus porta-vozes que a convocação do Jubileu está voltada a fazer com que a Igreja e os homens redescubram "o verdadeiro rosto de Deus". Que "não implica apenas uma reflexão sobre as práticas pastorais, mas também o compromisso de reabrir, em termos não abstratos mas existenciais, a questão de Deus, sobre quem é Deus, sobre o Seu rosto, em um mundo que já age 'como se Deus não existisse' (ou, se age em Seu nome, o faz para legitimar as próprias tendências destrutivas e autodestrutivas, a própria vontade homicida e suicida" (La Civiltà Cattolica, março de 2016).
O Jubileu, kairós para o homem e para Deus
Desde junho de 2013, o papa disse: "Os homens não reconhecem mais Deus, o Misericordioso", e não O reconhecem mais porque muitos guardiões da ortodoxia o "burquizaram" [de burca]. Fecharam-No dentro de um manto preto de preceitos e proibições, que tornam impossível encontrar n'Ele o verdadeiro promotor e guardião da natureza relacional da criação. As religiões, que entraram em concorrência entre si e se assustaram com a crescente secularização dos costumes, tornaram-se cada vez mais agressivas e propensas a atribuir à própria autoridade confessional a própria autoridade do próprio Deus. Sequestraram a palavra criadora e libertadora de Deus, transformando-a em distintas teocracias com muitas ideologias e aparatos burocráticos, leis, normas e regras, cortes judiciais e códigos penitenciais.
Não é de se admirar que, assim transmitida e recebida, tal imagem de Deus acaba induzindo o homo religiosus a se tornar, por sua vez, normatizador, juiz e sancionador do agir alheio. Com o risco de elevar a rivalidade, a contenda a verdadeira matriz e motriz da história, e de tornar quase inevitável que a percepção do vínculo que existe entre a vida própria e a alheia ("Vita tua est vita mea") abra caminho para a convicção de que o amor por si precede e "primeireia" sobre o amor pelos outros. Assim, a unidade criadora do amor, todas as vezes em que a realização do outro entra em concorrência com a minha, se divide em dois amores conflitantes, legitimando o ditado "Mors tua vita mea".
Dito isto, é evidente que o Jubileu é proposto como um tempo privilegiado, um kairós, caracterizados pelo convite, dirigida aos Pastores da Igreja, ao "povo de Deus", aos povos da terra, para que se tornem protagonistas do exercício da misericórdia. E dirigido a Deus para que a todos ilumine e a todos revele a maternidade-paternidade do Seu amor. Sem a participação ativa das criaturas na plenitude do Seu amor, de fato, é bem difícil que o "árido-vazio" do caos nulificante, sobre o qual Deus começou a agir com a Palavra, se torne um cosmos, um universo, de acordo com a profecia do Gênesis (1, 31), retomada e ilustrada recentemente pelo Papa Francisco na encíclica Laudato si'.
A maternidade-paternidade de Deus
João Paulo I foi o primeiro papa pós-conciliar a falar da maternidade de Deus, despertando alguma atenção entre os profissionais do Sagrado. A partir daquela extemporânea e efêmera afirmação, foram ditas muitas palavras sobre o papel da mulher na Igreja. Pouco, porém, foi feito para dar forma, ao menos esboçada, a esse novo "teologúmeno".
Alguns teólogos e muitas teólogas, detendo-se sobre passagens bíblicas em que se apela à "misericórdia" de Deus, já lembraram que "misericórdia", em hebraico, se diz que "rachamim", de "rehem/útero". Com isso, também chamaram a exegese e a teologia a refletir com atenção sobre o valor semântico da terminologia usada pelas diversas línguas da nossa tradição para falar de Deus.
De fato, a análise das palavras e das estruturas da língua e da sua história não é pura questão linguística. O homem e a sua língua, de fato, crescem juntos, e, com eles, cresce a compreensão e a ação humana no mundo, e cresce o seu relacionamento com Deus.
Quando o autor e os comentaristas do primeiro capítulo de Gênesis e de João nos convidam a pensar que Deus, com a Palavra, primeiro criou todo tipo de ser e, depois, o homem à Sua imagem, confiando-lhe tudo, eles dizem que Deus, com a palavra, convida o homem a dizer a si mesmo em relação ao que o cerca. Eles dizem que o homem sente e crê que tem a tarefa de fazer com que tudo se torne aquele conjunto "muito bom e belo" que Deus gostaria de sonhar no sábado do seu repouso. Eles dizem que, desde o início, Deus se dá às suas criaturas como Palavra fundadora de relação. Ele se dá para que o outro em relação a Si, na multiplicidade histórica das suas diversas línguas, diga a si mesmo, o mundo e Deus.
É por isso que, no processo generativo da Bíblia, muitas vezes citada como "Palavra de Deus", Deus se diz e é dito na língua das suas criaturas e naquela dos homens. E é por isso que a teologia cristã deve se defrontar com o hebraico bíblico, que, com a sua leve bagagem de palavras (5.750), fruto de milênios de oralidade, deu voz pré-histórica e escrita histórica àquela experiência de Deus a que a nossa se refere.
Tudo para se deparar com o que foi transmitido ou se perdeu, se purificou ou se deformou dessa palavra nas passagens de língua para língua, de cultura para cultura, de vivência histórica para vivência histórica, conservado ou tirado de cena, tornado obsceno por uma censura clerical, inimiga de toda autêntica espiritualidade.
Voltando ao tema da "misericórdia/rachamim", deveria agora ficar claro para nós que falar de paternidade e maternidade de Deus não é questão de cortesia linguística, muito menos atribuição ao divino de uma forma qualquer de sexualidade, específica ou polimórfica.
É questão teológica crucial, até porque, quando a YHWH, o "Eu sou aquele que sou/aquele que está presente" (Êxodo 3, 14) é atribuído o nome de "El Shaddai/Deus onipotente", sem contrabalançá-lo com "El rachamim/Deus misericordioso", as consequências, desde sempre, estão diante dos olhos de todos.
Por outro lado, quem sabe que a filosofia, a teologia e até mesmo a ciência não podem abrir mão de uma linguagem, mais ou menos simbolicamente antropomórfica, para falar de cada ser, incluindo o Deus dos monoteísmos, sabe que é fundamental integrar, com as mais comuns tipificações do feminino, as tipificações usadas para definir o masculino, que ainda hoje permeiam as culturas, herdeiras das antigas sociedades patriarcais.
E sabe que, desde as suas origens pré-históricas, a língua bíblica, para falar de Deus, valoriza, junto com a imagem da autoridade do pai, fundada sobre a força, a imagem igualmente de autoridade da mãe, ancorada nos valores da afetividade. Isso a fim de enfatizar que tais qualidades podem ser atribuídas a Deus somente se não renunciarmos à imagem de uma unidade primária daquilo que está na origem da vida.
Unidades de Mãe e Pai, que, como casal generativo de alguém diferente deles, são símbolo daquela divina relacionalidade que Nicolau de Cusa define como "Coincidentia oppositorum", e que um antigo midrash qualifica como "encontro entre misericórdia e justiça": "Se Gênesis 1 começa com com Elohim (justiça), Gênesis 2 corrige em YHWH (misericórdia). Isso porque a justiça sozinha não pode manter a criação, e a ela deve ser precedida a misericórdia" (Enzo Bianchi, em L'esercizio della giustizia e la Bibbia, Milão, 1985; Aldo Bodrato, L'utero di Dio, fondamento del diritto, Esodo, n. 4 de 2008).
E se Deus fosse um Cospe-fogo de vísceras de mãe...
O Livro de Jonas certamente não é o mais antigo e de maior autoridade da Bíblia, pela sua composição tardia, pela sua natureza midráshica e narrativa, deliberadamente a-histórica, pela complexidade irônica da sua configuração narrativa e a natureza anti-institucional da sua mensagem.
Mas é um livro essencial para quem se interroga sobre a relação entre a severidade pedida a Deus, no desenvolvimento do Seu papel paterno de legislador e garante da justiça, e o amor por todo ser vivo, que O identifica com a matriz, a mãe amorosa que gerou todas as coisas e delas se faz guardiã.
Não posso, aqui, me dedicar a uma exegese analítica dessa maravilhosa fábula, problemática e teologicamente intrigante, realmente, escrita para nós por um Borges do século V da antiguidade. Todos conhecemos a singular aventura do velho profeta justicialista, encontrado por Deus no seu refúgio e enviado para anunciar a Nínive o iminente castigo. Todos sabemos que ele tenta escapar da nova missão fugindo, é engolido por um grande peixe, obrigado a obedecer e, depois, pacientemente, reintroduzido no mistério da divina misericórdia.
E se não temos memória do Jonas bíblico, desde a infância, conservamos no coração que o Jonas de Collodi, que, com as "Aventuras de Pinóquio", reatualiza, para uma sociedade fundamentalmente secularizada, o seu romance de formação.
Vou me limitar, portanto, a um exame aproximativo dos termos utilizados pelo autor para indicar como Deus, alavancando a raiz maternas do próprio agir educativo, consegue impedir que a sua paixão paterna pela justiça se transforme em ira e realiza, com a busca do "summus Ius", a "summa Iniuria".
Jonas, portanto, vomitado da "baleia" nos arredores de Nínive, anuncia a vindoura destruição da cidade, que inesperadamente começa a fazer penitência, na esperança de que "Deus volte atrás, fique com pena, apague o ardor de sua ira, e a gente consiga escapar" (3, 9).
Sabemos que Deus se arrepende, Nínive se salva, e Jonas se enfurece: "Foi por isso que eu corri, pois eu sabia que tu és um Deus clemente e misericordioso, lento para a ira e cheio de amor, e que voltas atrás nas ameaças feitas" (4, 2).
O resto segue até o convite a reconhecer a compaixão de Deus pela "grande cidade, onde moram mais de cento e vinte mil pessoas, que não sabem distinguir a direita da esquerda, além de tantos animais" (4, 11).
Uma conclusão em que a misericórdia de Deus vai muito além da justiça sugerida a Deus por Abraão no caso deSodoma (Gênesis 18, 20-23). Abraão, movido pela exigência de não tratar do mesmo modo justos e pecadores, não salva a cidade. Deus poupa Nínive, repleta de pecadores arrependidos, de crianças e de animais.
Entre úteros muito ternos e narinas flamejantes
Entendemos que Jonas, quando repreende Deus por não ter destruído Nínive por ser "misericordioso/rachamim" demais, O acusa de ferir até a morte o seu prestígio de juiz e legislador, por excesso de sentimentalismo mulheril.
E é natural que, ouvindo-o imediatamente acrescentar, "lento para a ira/de narinas distantes", perguntemo-nos o que tem a ver "as narinas distantes" com a ira e a misericórdia. Faz-nos entender o próprio autor do livro, quando coloca na boca do rei dos ninivitas a expressão: "Talvez Deus não irá frear o ardor da sua ira", que significa: "moderar o ardor/o fogo do seu nariz".
O Livro de Jonas fala de narinas de Deus, assim como narradores e poetas falam da manifestação física da ira, descrevendo as frentes fumegantes dos cavalos de guerra e dos touros. Isso porque os mitos, assim como as fábulas, fazem das narinas, que cospem fogo, a manifestação visível e tangível da ira, a expressão material do desprezo e do iminente castigo, que um homem de verdade, com muitos atributos, não pode manter na reserva, mas deve ostentar, colocar na linha de frente para aterrorizar o inimigo.
Ora, a referência simbólica ao útero materno e ao fogo que inflama as narinas/nariz, para falar da misericórdia e do poder judicial de Deus, não é típico do livro tardio de Jonas. O seu autor, uma vez que toma o nome do seu personagem de II Reis (14, 15), retoma e relança com inédita radicalidade a linguagem e a mensagem de textos proféticos e sapienciais mais antigos.
O profeta Naum, a quem o livro de Jonas parece querer responder, abre a invectiva lançada contra Nínive, no momento da sua histórica destruição, apresentando-nos o rosto de um YHWH ciumento e vingador, "terrível na ira como Bahal", o senhor cananeu dos animais (1, 2). Por mais "longânime/de longas narinas", o Senhor de Naum não perdoa as ofensas dos inimigos e, com o seu poder, "seca mares e rios" (1, 3-4).
Amos, além disso, já tinha utilizado o antiquíssimo arquétipo teológico da combinação de misericórdia amorosa e potência furiosa de Deus. Ele apresenta a profecia, posta por Deus na sua boca, como o rugido do leão em busca da presa (3, 4) e atribui a implacável violência dos povos irmãos em guerra ao fato de ter sufocado "a própria compaixão/os próprios úteros" (1, 11).
O manso Oseias mantém o arquétipo, mas inverte os seus resultados: " Como poderia eu abandoná-lo, Efraim? (…) O meu coração salta no meu peito, as minhas entranhas/rechamim se comovem dentro de mim. Não farei de fogo o meu nariz" (Oseias 11, 8-9).
"Farei de você um escravo de seus inimigos (…) pois o fogo da minha ira/das minhas narinas se acendeu e arderá contra vocês": anuncia Jeremias ao povo de Jerusalém (15, 14), antes da sua queda. Mas, diante do luto de Raquelque chora os seus filhos: "Será que Efraim não é o meu filho predileto? (…) Por isso, minhas entranhas se comovem, e eu cedo à compaixão/rechamim" (Jeremias 31, 20).
Assim, o papel materno de Deus encontra uma forma de acampar nos cantos do Segundo e Terceiro Isaías: "Pode a mãe se esquecer do seu nenê que aleita, pode ela deixar de ter amor pelo filho de suas entranhas?" (49, 15). "Como a mãe consola o seu filho, assim eu vou consolar vocês" (66, 13).
Poderíamos continuar com outros profetas, salmos e textos sapienciais, livros históricos. Mas é bom encerrar com Êxodo 34, 6, retomado por Números 14, 18-19. A passagem em que o Senhor se autodefine, revelando-Se de costas ao seu primeiro profeta: "YHWH, YHWH! Deus de misericórdia/El rahum e piedade, lento para a ira/de narinas longas e cheio de amor/de muita ternura" (34, 6).
Despedida
Como conclusão desta pesquisa sobre a presença contemporânea na Bíblia do lado paterno e materno de Deus, expressados em uma língua que remonta à oralidade pré-histórica, se poderia observar que a história da pastoral e da teologia do cristianismo não se esqueceu da divina misericórdia.
Mais simplesmente, removeu-a do Deus Pai para atribuí-la a Maria, transformando esta última de esposa prometida aJosé a Nossa Senhora, de mãe amorosa de Jesus crucificado na terra a símbolo da misericórdia celeste, embora submissa ao papel de Juiz último do Cristo ressuscitado.
Também se poderia especificar, com João Paulo II e Bento XVI, que o monoteísmo bíblico se fundamenta na impossibilidade de se fazer imagens de Deus: imagem de homem, imagem de mulher, de todo ser vivo e de toda outra criatura, incluindo astros celestes.
Especificação que, sem dúvida, é oportuna, mas que ignora o fato de que a construção teológica e pastoral cristã, tão propensa à exaltação das únicas virtudes paternas de Deus, se inspirou justamente no antropomorfismo machista do imaginário eclesiástico.
E eu não me refiro ao imaginário das artes e das letras. Refiro-me às imagens fortemente conceitualizadas e sistematizadas em doutrinas, normas e preceitos, em sistemas teológicos complexos e totalizantes, em dogmas e dogmáticas de extraordinário peso e substância.
Refiro-me a imagens antropomórficas de um Deus que, na história dos homens, de carne, ossos e capacidades decisionais e de comunicação social, só pode Se revelar, falar de Si, expressar a própria vontade, definir o que é bom e que é mau, anunciar o evangelho e celebrar a comunhão entre os irmãos e as irmãs, por meio de representantes do sexo masculino.

E, na versão católica do cristianismo, somente por obra de homens celibatários, induzidos a evitar toda relação vivida com mulher e a impedir que toda outra vocação se faça presença, real e não apenas retórica, do amor paterno e materno do "Emanuel", o Deus que está no meio de nós. Fonte: http://www.ihu.unisinos.br

sábado, 7 de maio de 2016

50 DIA MUNDIAL DAS COMUNICAÇÕES SOCIAIS: “Comunicação e Misericórdia: um encontro fecundo”

(Mensagem do Papa Francisco para o 50º Dia Mundial das Comunicações Sociais, que em 2016 será celebrado no dia 8 de maio).

Queridos irmãos e irmãs!
O Ano Santo da Misericórdia convida-nos a refletir sobre a relação entre a comunicação e a misericórdia. Com efeito a Igreja unida a Cristo, encarnação viva de Deus Misericordioso, é chamada a viver a misericórdia como traço característico de todo o seu ser e agir. Aquilo que dizemos e o modo como o dizemos, cada palavra e cada gesto deveria poder expressar a compaixão, a ternura e o perdão de Deus para todos. O amor, por sua natureza, é comunicação: leva a abrir-se, não se isolando. E, se o nosso coração e os nossos gestos forem animados pela caridade, pelo amor divino, a nossa comunicação será portadora da força de Deus.
Como filhos de Deus, somos chamados a comunicar com todos, sem exclusão. Particularmente próprio da linguagem e das ações da Igreja é transmitir misericórdia, para tocar o coração das pessoas e sustentá-las no caminho rumo à plenitude daquela vida que Jesus Cristo, enviado pelo Pai, veio trazer a todos. Trata-se de acolher em nós mesmos e irradiar ao nosso redor o calor materno da Igreja, para que Jesus seja conhecido e amado; aquele calor que dá substância às palavras da fé e acende, na pregação e no testemunho, a «centelha» que os vivifica.
A comunicação tem o poder de criar pontes, favorecer o encontro e a inclusão, enriquecendo assim a sociedade. Como é bom ver pessoas esforçando-se por escolher cuidadosamente palavras e gestos para superar as incompreensões, curar a memória ferida e construir paz e harmonia. As palavras podem construir pontes entre as pessoas, as famílias, os grupos sociais, os povos. E isto acontece tanto no ambiente físico como no digital. Assim, palavras e ações hão-de ser tais que nos ajudem a sair dos círculos viciosos de condenações e vinganças que mantêm prisioneiros os indivíduos e as nações, expressando-se através de mensagens de ódio. Ao contrário, a palavra do cristão visa fazer crescer a comunhão e, mesmo quando deve com firmeza condenar o mal, procura não romper jamais o relacionamento e a comunicação.
Por isso, queria convidar todas as pessoas de boa vontade a redescobrirem o poder que a misericórdia tem de curar as relações dilaceradas e restaurar a paz e a harmonia entre as famílias e nas comunidades. Todos nós sabemos como velhas feridas e prolongados ressentimentos podem aprisionar as pessoas, impedindo-as de comunicar e reconciliar-se. E isto aplica-se também às relações entre os povos. Em todos estes casos, a misericórdia é capaz de implementar um novo modo de falar e dialogar, como se exprimiu muito eloquentemente Shakespeare: «A misericórdia não é uma obrigação. Desce do céu como o refrigério da chuva sobre a terra. É uma dupla bênção: abençoa quem a dá e quem a recebe» (“O mercador de Veneza”, Ato IV, Cena I).
É desejável que também a linguagem da política e da diplomacia se deixe inspirar pela misericórdia, que nunca dá nada por perdido. Faço apelo sobretudo àqueles que têm responsabilidades institucionais, políticas e de formação da opinião pública, para que estejam sempre vigilantes sobre o modo como se exprimem a respeito de quem pensa ou age de forma diferente e ainda de quem possa ter errado. É fácil ceder à tentação de explorar tais situações e, assim, alimentar as chamas da desconfiança, do medo, do ódio. Pelo contrário, é preciso coragem para orientar as pessoas em direção a processos de reconciliação, mas é precisamente tal audácia positiva e criativa que oferece verdadeiras soluções para conflitos antigos e a oportunidade de realizar uma paz duradoura. «Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. (...) Felizes os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus» (Mt 5, 7.9).
Como gostaria que o nosso modo de comunicar e também o nosso serviço de pastores na Igreja nunca expressassem o orgulho soberbo do triunfo sobre um inimigo, nem humilhassem aqueles que a mentalidade do mundo considera perdedores e descartáveis! A misericórdia pode ajudar a mitigar as adversidades da vida e dar calor a quantos têm conhecido apenas a frieza do julgamento. Seja o estilo da nossa comunicação capaz de superar a lógica que separa nitidamente os pecadores dos justos. Podemos e devemos julgar situações de pecado – violência, corrupção, exploração, etc. –, mas não podemos julgar as pessoas, porque só Deus pode ler profundamente no coração delas. É nosso dever admoestar quem erra, denunciando a maldade e a injustiça de certos comportamentos, a fim de libertar as vítimas e levantar quem caiu. O Evangelho de João lembra-nos que «a verdade [nos] tornará livres» (Jo 8, 32). Em última análise, esta verdade é o próprio Cristo, cuja misericórdia repassada de mansidão constitui a medida do nosso modo de anunciar a verdade e condenar a injustiça. É nosso dever principal afirmar a verdade com amor (cf. Ef 4, 15). Só palavras pronunciadas com amor e acompanhadas por mansidão e misericórdia tocam os nossos corações de pecadores. Palavras e gestos duros ou moralistas correm o risco de alienar ainda mais aqueles que queríamos levar à conversão e à liberdade, reforçando o seu sentido de negação e defesa.
Alguns pensam que uma visão da sociedade enraizada na misericórdia seja injustificadamente idealista ou excessivamente indulgente. Mas tentemos voltar com o pensamento às nossas primeiras experiências de relação no seio da família. Os pais amavam-nos e apreciavam-nos mais pelo que somos do que pelas nossas capacidades e os nossos sucessos. Naturalmente os pais querem o melhor para os seus filhos, mas o seu amor nunca esteve condicionado à obtenção dos objetivos. A casa paterna é o lugar onde sempre és bem-vindo (cf. Lc 15, 11-32). Gostaria de encorajar a todos a pensar a sociedade humana não como um espaço onde estranhos competem e procuram prevalecer, mas antes como uma casa ou uma família onde a porta está sempre aberta e se procura aceitar uns aos outros.
Para isso é fundamental escutar. Comunicar significa partilhar, e a partilha exige a escuta, o acolhimento. Escutar é muito mais do que ouvir. Ouvir diz respeito ao âmbito da informação; escutar, ao invés, refere-se ao âmbito da comunicação e requer a proximidade. A escuta permite-nos assumir a atitude justa, saindo da tranquila condição de espectadores, usuários, consumidores. Escutar significa também ser capaz de compartilhar questões e dúvidas, caminhar lado a lado, libertar-se de qualquer presunção de omnipotência e colocar, humildemente, as próprias capacidades e dons ao serviço do bem comum.
Escutar nunca é fácil. Às vezes é mais cômodo fingir-se de surdo. Escutar significa prestar atenção, ter desejo de compreender, dar valor, respeitar, guardar a palavra alheia. Na escuta, consuma-se uma espécie de martírio, um sacrifício de nós mesmos em que se renova o gesto sacro realizado por Moisés diante da sarça-ardente: descalçar as sandálias na «terra santa» do encontro com o outro que me fala (cf. Ex 3, 5). Saber escutar é uma graça imensa, é um dom que é preciso implorar e depois exercitar-se a praticá-lo.
Também e-mails, SMS, redes sociais, chat podem ser formas de comunicação plenamente humanas. Não é a tecnologia que determina se a comunicação é autêntica ou não, mas o coração do homem e a sua capacidade de fazer bom uso dos meios ao seu dispor. As redes sociais são capazes de favorecer as relações e promover o bem da sociedade, mas podem também levar a uma maior polarização e divisão entre as pessoas e os grupos. O ambiente digital é uma praça, um lugar de encontro, onde é possível acariciar ou ferir, realizar uma discussão proveitosa ou um linchamento moral. Rezo para que o Ano Jubilar, vivido na misericórdia, «nos torne mais abertos ao diálogo, para melhor nos conhecermos e compreendermos; elimine todas as formas de fechamento e desprezo e expulse todas as formas de violência e discriminação» (Misericordiae Vultus, 23). Em rede, também se constrói uma verdadeira cidadania. O acesso às redes digitais implica uma responsabilidade pelo outro, que não vemos mas é real, tem a sua dignidade que deve ser respeitada. A rede pode ser bem utilizada para fazer crescer uma sociedade sadia e aberta à partilha.
A comunicação, os seus lugares e os seus instrumentos permitiram um alargamento de horizontes para muitas pessoas. Isto é um dom de Deus, e também uma grande responsabilidade. Gosto de definir este poder da comunicação como «proximidade». O encontro entre a comunicação e a misericórdia é fecundo na medida em que gerar uma proximidade que cuida, conforta, cura, acompanha e faz festa. Num mundo dividido, fragmentado, polarizado, comunicar com misericórdia significa contribuir para a boa, livre e solidária proximidade entre os filhos de Deus e irmãos em humanidade.
Papa Francisco

quarta-feira, 4 de maio de 2016

Em 'época de trevas', censura ressurge e volta a ameaçar o país.

"Está havendo um recrudescimento muito grande no controle da produção simbólica, mais ou menos como houve na ditadura militar", diz professora da Universidade de São Paulo.
É cada vez mais frequente, no âmbito das instituições brasileiras, intervenções que apontam para o ressurgimento da censura. Na sexta-feira (29), uma liminar da 9ª Vara Cível de Belo Horizonte proibiu que ocorresse uma assembleia estudantil que iria debater o processo de impeachment de Dilma Rousseff.
Um dia antes, o Prêmio Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquivel foi alvo de protestos no Senado, onde denunciou o golpe de Estado. Por exigência da oposição, a palavra “golpe” foi retirada dos registros de sua fala. Na segunda-feira (2), o senador Ronaldo Caiado (DEM-GO) dirigiu-se ao advogado-geral da União, José Eduardo Cardozo, dizendo que ele estava “impedido" de usar a mesma palavra. A reportagem é de Eduardo Maretti e publicado por Rede Brasil Atual - RBA, 03-05-2016.
As ideias relativas à censura vêm se alastrando. Com projetos estaduais e federais, parlamentares pretendem impor restrições a professores em sala de aula para, na prática, impedir docentes de falar sobre política, em nome da “neutralidade”. É o caso do Projeto de Lei 867/2015, do deputado Izalci (PSDB-DF), que "inclui, entre as diretrizes e bases da educação nacional, o Programa Escola sem Partido". Em Alagoas, essa restrição já é lei. Uma entidade chamada Associação Escola Sem Partido patrocina projetos como esse que, na prática, pretendem evitar a "doutrinação" em salas de aula.
“É muito preocupante. Está havendo um recrudescimento muito grande no controle da produção simbólica. Mais ou menos como houve na ditadura militar, e não só. Isso é uma tradição que vem de longa data no Brasil”, diz Maria Cristina Castilho Costa, professora titular em Comunicação e Cultura da Universidade de São Paulo (USP). "Estamos vendo recrudescer a perseguição a determinadas palavras, ideias, com uma série de iniciativas. Em Alagoas, querem que os professores deem aulas ‘isentas’ de valores.”
Segundo ela, existem dois aspectos que tornam o cenário ainda mais preocupante. Primeiro, é o que ela chama de “judicialização da censura”. “É o juiz quem está determinando. Estamos passando por um período em que a censura está ficando a cargo do poder Judiciário.”
Para a professora, essa situação decorre em parte do fato de que o poder Executivo e o poder político se eximem de tomar partido, obrigando a sociedade civil a se manifestar, seja por meio de instituições ou de pessoas individuais.
Proibições de livros e peças de teatro, em nome de valores ou supostos direitos individuais, são comuns. Maria Cristina cita o caso da peça de teatro Edifício London, inspirada no crime que vitimou a menina Isabella Nardoni. Não só a peça foi proibida, em 2013, como o site Consultor Jurídico (Conjur) foi obrigado pela Justiça a retirar do ar matéria sobre a proibição. A censura ao Conjur foi suspensa em 2014 pelo Supremo Tribunal Federal. “É realmente uma época de trevas, na qual as proibições circulam por uma interpretação rasteira do que aquilo representa, na base da impressão, da intuição, da pequenez dos interesses particulares”, diz a professora da USP.
O segundo aspecto agravante, diz ela, é a "espetacularização" de todos esses processos. “Proíbem-se filmes, programas de televisão, uma palavra que é falada. A mídia está estimulando as posturas censórias.”
Paralelamente às questões conjunturais, segundo Maria Cristina, está a própria cultura censória do país. “Isso é uma tradição que vem de longa data. Por exemplo, no arquivo Miroel Silveira a palavra ‘amante’ é a mais censurada das décadas de 1940 e 1950 no teatro.”
O arquivo Miroel Silveira está sob “guarda” da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, e reúne documentos de censura prévia ao teatro brasileiro dos anos 1920 ao final a década de 1960. Inclui mais de 6 mil processos contendo a solicitação de censura. Alguns desses processos do arquivo trazem os abaixo-assinados de parcelas ou representantes da sociedade pedindo a censura às peças teatrais. “Sabemos que o público sempre teve cumplicidade nos atos censórios. O Estado nunca fez isso sozinho. As instituições católicas, por exemplo, sempre se manifestaram. Agora, (setores da sociedade) estão indo além de se manifestar. Isso é perigoso, porque a censura fica na mão de pessoas que não conhecem a produção simbólica, seja de teatro, de televisão, de cinema, de pedagogia.”
Para Maria Cristina, o arquivo Miroel Silveira é sintomático da tradição censória e do atual momento de “judicialização da censura”, que já começa a invadir as escolas em nome da “neutralidade” dos professores. “Se uma lei pretende dizer que uma aula de História ou de ciências humanas deve ser isenta de valores, é porque não se entende nada. Não é só o fato de que o Judiciário está intervindo. Mas que está intervindo em nome de pessoas que não têm conhecimento sobre o assunto a respeito do qual existe a intervenção.”
Censura pelo silêncio
Em seminário realizado na ECA na sexta-feira (29), Luciano Somenzari, mestrando em Ciências da Comunicação na USP, defendeu uma posição de que há também o que chama de “temas silenciados”, que se enquadram como uma espécie de censura pelo silêncio. São temas que, por motivos e interesses políticos, não encontram espaço nos meios de comunicação.
Entre esses temas, ele mencionou o livro Privataria Tucana (de Amaury Ribeiro Jr.), o processo da Receita Federal contra a Rede Globo, o racionamento de água em São Paulo, governado por Geraldo Alckmin (PSDB), além de temas ligados aos coletivos de participação e movimentos sociais, entre outros.
Ivan Paganotti, doutorando em Ciência da Comunicação, mencionou o caso em torno do livro Minha Luta, de AdolfHitler, que teve a comercialização, exposição e divulgação proibidas pela Justiça do Rio de Janeiro. A proibição, lembrou, se deu por temor de que houvesse “um contágio das ideias de Hitler”, provocando o crescimento do interesse por ideais nazistas. “Em breve chegaremos à queima de livros, ironicamente do livro de Hitler, cujo regime queimava livros”, disse.

ESCRAVOS DE MARIA- 04: Frei Petrônio.

terça-feira, 26 de abril de 2016

Sobre o ódio. Artigo de Ivone Gebara

"Reconhecimento de nossa necessidade uns dos outros não como superior e inferior, mas simplesmente como cidadãos do mesmo planeta terra que necessitam da ajuda mútua para sobreviver. Reconhecer que somos ‘terrícolas’ que competimos uns com os outros", escreve Ivone Gebara, filósofa, religiosa e teóloga.

Eis o artigo.
Uma preocupação me ocupa...
Ando muito preocupada como a questão do ódio social que observamos em nossos comportamentos. Pode parecer uma preocupação exagerada em torno de uma palavra pouco simpática, mas que sintetiza múltiplas emoções, sentimentos e comportamentos agressivos de variados tipos que estamos presenciando nos dias de hoje. Sem dúvida ela é parte integrante dos muitos paradoxos e contradições do tabuleiro da vida humana.
Preocupo-me especialmente com a juventude e as crianças em processo de educação inicial. Penso em nossa responsabilidade de adultos de conviver bem com elas e de ajudá-las a viver no mundo que lhes estamos deixando como herança. Elas já experimentam em suas relações tantas agressões mútuas aprendidas provavelmente de nós mesmos, de nossos preconceitos e egoísmos tão presentes no mundo que as rodeia.
Hoje se fala, por exemplo, do ‘bulling’, forma de agressão infanto-juvenil aos colegas que não se adéquam às normas sociais de beleza, de vestimenta, de peso, de sexualidade, de família, de religião e outras. O ‘bulling’ sempre existiu como comportamento social, embora não usássemos a palavra em inglês em moda hoje em dia.
Crianças e jovens começam por “destruir” o corpo que não querem ser, o “defeito” que não querem ter, o “sotaque” que não gostam, o “estrangeiro” com quem não querem conviver. Desde a mais tenra idade foram socializadas para ter essas reações. E esses comportamentos tendem a acentuar-se nas diversas formas sociais de exclusão.
Destrói-se o outro que não quero ser porque temo reconhecer inconscientemente que posso sê-lo. Aparentemente me satisfaço acreditando que ao eliminar o outro, elimino parte do problema. 
Destrói-se o outro pela palavra “mal dita”, pelo ocultamento de seu corpo não permitindo que ele apareça junto dos outros, isolando-o do espaço comum para que sua presença nem seja lembrada. Despossuímos os outros de suas identidades e histórias tornando-os objeto de chacota e agressão.
Nessa breve reflexão quero citar o cineasta e filósofo belga Luc Dardenne que tem uma interessante reflexão sobre o ódio. “O ódio é uma paixão que destrói seu objeto e seu sujeito. Por quê? Porque, na destruição de seu objeto, ela visa a destruição da relação, da separação, portanto do outro como objeto e também do outro como sujeito, como um eu separado. Como toda paixão o ódio busca a continuidade, a massividade. Desejar destruir o outro, odiá-lo é o mesmo movimento de desejar me destruir, me odiar a mim mesmo que não estou mais numa bolha, mas nasci no mundo.
Já que é uma paixão que busca continuidade e crescimento por que, nesse momento difícil de nossa história nacional, falar de ódio e não falar do amor tão necessário às relações humanas? É porque o ódio é uma forma de doença do amor e essa doença volta hoje coletivamente como uma epidemia ameaçadora capaz de destruir vidas. E é uma doença para além das classes sociais e nas classes sociais, é para além das etnias e nas etnias, é para além da política e na política, é para além dos sexos e nos sexos, é para além das religiões e nas religiões. Então é urgente reconhecê-la e conhecê-la um pouco mais para saber lidar com sua presença em cada um de nós e nos outros.

O ódio aos outros e a mim...
Ao odiar os outros, no mesmo ato estamos também nos odiando, fazendo com que essa paixão avassaladora tome conta de nosso corpo e de nossas emoções de forma massiva. Tornamo-nos escravos dela, obedientes aos seus cegos impulsos. Destruímos e nos destruímos tomados por velhos rancores e por muitas odiosas vinganças. Embora não possamos evitá-la completamente, saber que dentro de nós existe um nefasto vulcão que pode lançar suas lavas destruidoras a qualquer instante é algo muito importante.
Muitas vezes pensamos que essa paixão que toma nossas entranhas poderia ser controlada através de muitos artifícios começando pela repressão policial aos excessos ou pela fuga através do álcool ou de outras drogas. Também pensamos que as religiões, apelando para Deus e o diabo, poderiam controlar o desvario de nossas emoções. Mas é preciso ir mais longe. É preciso captar sua força em nós, pensar com um pouco de lucidez sobre ela, conversar com ela como parte de mim.
Esta é sem dúvida uma breve reflexão entre outras tantas. Quero apenas retomar a questão do ódio como um contagioso fenômeno individual e social com traços e desdobramentos próprios ao nosso tempo.
No atual contexto político nacional, internacional e também para além deles, cada um de nós de certa forma se descobre odiando o outro/a. E descobrimos, não sem espanto, como o ódio faz parte das fibras de nosso ser tanto quanto o nosso desejo de sermos amados e cuidados. Tudo em nós é misturado...
Creio que não há que temer o reconhecimento do ódio em nós em diferentes intensidades e formas. O ódio mora em nós... Não podemos querer apenas preservar um idealismo romântico do amor como se essa força que acreditamos ser positiva fosse isenta do seu negativo ou fosse isenta do ódio ou de qualquer outra forma de mal. Até os “mais puros” odeiam e odeiam o ódio e a possibilidade de cair na tentação da impureza mesmo não sabendo exatamente o que é a pureza e a impureza.

Compreender o ódio...
Não seria hoje uma necessidade urgente enfrentar a tarefa de compreender algo do ódio que habita em nós? Compreender para avançar em qualidade de humanidade... Compreender para não cair na ilusão de que o ódio pertence aos outros... Compreender para não levantarmos o dedo acusatório aos outros sem que o dirijamos também a nós. Compreender para não nos alienarmos de nossas paixões na diversidade e na mistura de nossa vida.
Enfrentar-nos a essa paixão primitiva sem querer negá-la ou encobri-la é acolher-nos de certa forma na beleza e no paradoxo de nossa nudez interior. É esta nudez que traz a tona um ódio quase constitutivo, nos ajuda, na medida em que é compreendido, a sair das ilusões que construímos sobre nós mesmos. Quem de nós para disfarçar o ódio diz apenas “não tenho ódio de ninguém”, “só não gosto de fulano, beltrano, sicrano”? Ou ainda, “respeito sua posição, mas não é a minha”... Ou, “sem nenhum preconceito, mas não acho isso natural...” O que se esconde atrás dessas afirmações?
Gradações e matizes de ódio incluindo o ódio supremo de tirar a vida daquele ou daquela que me destrói por sua presença convivem em nós. Por quê? São muitas as razões e as sem razões. 
Entretanto, intuo, na linha de Luc Dardenne que tomados pelo medo de morrer, de não continuarmos no palco da história queremos destruir o que possa nos negar a existência individual soberana ou o que possa descobrir nossa fragilidade, nossa fraqueza ou mesmo anunciar nosso desaparecimento. O grito do “odeio” parece mais intenso ou talvez mais barulhento do que a intimidade do amor ou sua aparente fragilidade.
Por isso preservamos nossa destruição e nossa trivialidade a todo custo odiando aqueles e aquelas que ameaçam nossa existência. Não nos esqueçamos que já no desdobramento do mito adâmico Caim cheio de inveja odeia seu irmão Abel e o mata. O fratricídio está nas nossas origens... É a marca que levamos em nós como uma entranhada tentação a eliminar o outro/a.
“Odeio aquela mulher que ‘roubou’ meu marido”. “Odeio Narciso que roubou meus votos nas eleições”. “Odeio meu irmão que tomou meu lugar na empresa de meu pai”. “Odeio minha vizinha que montou uma barraca de pastéis igual a minha”. “Odeio o médico que foi incompetente no seu diagnóstico”. “Odeio a mim mesma porque não fui o que sonhei ser”.
Se pudesse poria fogo na barraca de pastéis, mataria a ladra, destruiria meu irmão, acabaria com a vida de meu opositor, tiraria a licença profissional do médico, passaria a limpo toda a minha vida... E, há mais, bem mais coisas nessa linha de eliminação do outro do circuito de minha vida. Paixões vingativas, ódios destruidores pequenos e grandes nos assolam cada dia e nos assolam desde as palavras, desde o volume alto de nossa voz até a efetivação de outras formas de eliminação dos outros. Mas são essas pequenas manifestações de ódio mais ou menos cotidianas que vão fazendo crescer em nós a vontade de destruir quem não é como eu. Solução fácil para resolução de conflitos! Os que não são como eu, tanto na vida familiar, na vida política, nas religiões, nas ideologias valem menos a meus olhos... Quem não é como eu sou é meu inimigo! Quem me impede de viver o prazer que julgo ser minha felicidade é meu inimigo. Quem me nega o pão é meu inimigo. Quem acumula para si o pão de todos é inimigo. Quem não vive a mesma orientação sexual, é anormal e até inimigo. Expulsão da diferença. Ignorância da sociabilidade e interdependência vital dos seres humanos. Idolatria do eu... Destruição do eu e do tu... E, paradoxalmente condição de reconstrução do eu, do nós.
O mais trágico no ódio é que criamos instrumentos e máquinas para alimentá-lo. A velha “indústria da guerra”, a indústria das armas cuja finalidade é matar e ao mesmo tempo fazer viver a economia mundial e através dela tantas famílias confirma essa afirmação. Contradição, paradoxo, loucura humana que nos mata e nos mantém vivos!

Não é de hoje, mas é também de hoje...
O ódio é de certa forma a idolatria do eu, o medo da morte daquilo que imagino que é a razão de meu viver, a simples contrariedade à minha vontade ou ao sonho imaginado. O ódio é o medo de
perder a exclusividade, a particularidade, a especificidade a partir da existência do outro. Ódio como fechamento na bolha do útero materno como se não quiséssemos a inevitável saída para a experiência da vida plural num mundo plural.

O ódio e a cultura popular
O ódio destrói a realidade relativa e provisória de meu ser fazendo-me acreditar na onipotência e imortalidade de minha vida sem o outro. E, ao odiar o outro estou mais uma vez odiando a mim mesma que sou o diferente do outro, que não sou sem o outro. Sem perceber podemos criar relações de ódio múltiplo e diversificado como base dasrelações sociais.
Muitas atitudes chamadas de ‘bem educadas’ revelam nossos preconceitos de classe e de cor.
Muitas músicas do funk nacional dos últimos anos revelam a seriedade das denúncias contra as diferentes formas deopressão social, mas ao mesmo tempo revelam o fio de ódio presente no tecido da arte musical. É como se os injustiçados e odiados pelos que lhes negam direitos de vida retribuíssem com ódio artístico sua relação odiosa. Que explodam os que não são de meu clã. Olho por olho, dente por dente dos dois ou dos três lados embora as responsabilidades e oportunidades sejam diferentes.
Mais alguns exemplos podem talvez ajudar a entender a complexidade dos diferentes matizes do ódio como também os diferentes matizes do amor.
Fecharam as torneiras de água para os pobres da periferia... Ódio vivido pelos pobres aos quais foi negada ou reduzida a água para sobreviver. Ódio dos ricos porque não tiveram a água renovada da piscina aquecida dos filhos. Ódio dos órgãos públicos que não cumpriram com sua responsabilidade social. Como sair desse ódio mortal coletivo e diversificado que invade a todos nós? Ou como torná-lo paixão menos destrutiva e avassaladora? Ou seria o ódio necessário para a prática da justiça? Seria ele o começo da consciência social?
No último domingo na câmara federal dos deputados do Brasil se ouvia o nome de Deus misturado ao ódio pelo atual governo da república. Nem Deus, mistério infinito foi isentado da acusação de ódio e da vivência do mesmo em relação às ações humanas. “Primeiro agradeço a Deus” por tomar essa decisão histórica diziam alguns, e, em seguida despejavam sua raiva ou seu ódio em forma de palavras acusatórias. Por que nos comportamos assim? Por que necessitamos de um plano acima da história para justificar nossas posturas políticas e sociais? Por que usamos de uma autoridade intangível com a qual não podemos debater em iguais condições para justificar ou legitimar nossas posições?
A capacidade que temos de fazer de nosso semelhante um inimigo, um ser humano sem humanidade, um ser cujo sofrimento não me interessa, um ser ao qual nego qualquer possibilidade de relação ou de aproximação comigo é aterradora. E essa capacidade é elevada à potência superior na medida em que determina a partir de nós mesmos a vontade de Deus sobre a história humana. Essa vontade superior imaginariamente legitima a minha. E no mesmo ato releva minha fraqueza e falta de convicção pessoal na afirmação dos frágeis caminhos escolhidos. Sem dúvida há uma questão cultural religiosa em tudo isso, mas através dela se mostram também os complexos meandros do coração humano.
Embora eu possa parecer bastante teórica ou até mesmo idealista não vejo outro caminho para encontrar o equilíbriode nossas paixões as mais vis a não ser o da proximidade e do reconhecimento uns dos outros. É da proximidade conosco mesmo que nasce a compreensão de nossa complexa humanidade. É da proximidade reconhecida como necessidade para a convivência social que nasce o contrato, a negociação, o encontro entre as pessoas como caminhos que apaziguam nosso desejo de morte ao outro, como caminhos que equilibram a expansão indevida de nosso eu a limites inimagináveis.
Aprender a proximidade...
A proximidade do outro, da outra é um aprendizado desde a mais tenra idade, aprendizado que nos previne da tirania de uns contra os outros, da guerra que podemos declarar àqueles que pensam e vivem de forma diferente. A proximidade do outro deveria me conduzir desde a mais tenra idade a ser educada para um mundo onde todos e todas possam caber e nesse mesmo ato me previne do consumismo exagerado, consumismo não só de coisas, mas do outro que deve se submeter à minha vontade soberana.
Reconhecimento de nossa necessidade uns dos outros não como superior e inferior, mas simplesmente como cidadãos do mesmo planeta terra que necessitam da ajuda mútua para sobreviver. Reconhecer que somos ‘terrícolas’ que competimos uns com os outros, que nos odiamos, mas também nos amamos, é apenas a retomada de antigas sabedorias que nos convidavam a desenvolver a proximidade e a simpatia uns pelos outros, como condição de sobrevivência. A recusa da dominação do ódio, trabalho árduo sobre si mesmo, não é o esquecimento das muitas histórias de ódio, mas é uma ponte que nos conduz ao reconhecimento do direito de vida do próximo, a uma convivência com menos obsessões e agressões.
Sair de nosso cinismo, de nossa crueldade pessoal e de nossa auto-suficiência para simplesmente reconhecer que cada um de nós é a criança necessitada de cuidado e carinho, o velho trôpego caído na rua, o homem adulto que chora e sofre em seu cotidiano. Este é um caminho a ser retomado como convicção comum para o nosso tempo. Não é para chegarmos ao céu que o reconhecimento recíproco se faz necessário, mas é para apagar os incêndios que nosso egoísmo acendeu, incêndio do coração humano que é mais grave do que o fogo nas florestas e a crise econômica epolítica na qual vivemos. Não há receita de como fazer isso valer em mim e nos meus próximos.
Mas, tenho certeza que cada um e cada uma de nós tem dentro de si alguma luz capaz de iluminar sua mente e seu coração para descobrir sendas, atalhos, veredas de luz. Luz que pode abrir pequenos espaços para sairmos do reinado do ódio e das rivalidades no meio de nós. E esta descoberta, mais uma vez, não é espontânea, nem mágica. É um trabalho educativo individual e coletivo sobre si e sobre os outros até que descubramos afinal o veio de água fresca capaz de apaziguar nossa sede de amor e de justiça. E quando o veio desaparecer enterrado por nossos ódios e tribulações é preciso procurá-lo de novo como uma infinda tarefa humana.
Antes de nos reconhecermos como sendo de um partido, de uma nação, de uma religião, de uma ideologia, com uma identidade sexual precisa reconheçamo-nos na nossa diferença e diversidade como imagem e semelhança uns dos outros.
O ódio sou eu, o amor sou eu, o outro sou eu, o hoje e o amanhã sou eu... E nós todos somos da terra e a terra da Via Láctea e ela do inominável mistério infinito...

É fácil terminar um texto sobre o ódio com uma conclusão mais ou menos poética que pode até parecer uma nova ilusão. Mas, de fato é uma ilusão necessária ou simplesmente uma aposta ou uma singela utopia de que amanhã tudo poderá ser melhor, que meus filhos e filhas poderão viver melhor, que os que hoje buscam terra poderão enfim habitá-la com dignidade. Ilusão necessária aos seres humanos, ilusão que longe de nos cegar aos outros nos convida a reconhecê-los, a socorrê-los em suas necessidades e em seus sonhos de amor. Fonte: http://www.ihu.unisinos.br

segunda-feira, 25 de abril de 2016

ESPIRITUALIDADE CARMELITANA: Rearticulando a Cristocentricidade Hoje.

Frei Donald Buggert, O. Carm.

O projeto de todos os carmelitas é caminhar nas pegadas de Jesus. Mas nossa compreensão de Jesus muda, assim como muda a situação histórica. E a mudança da situação histórica apresenta novos desafios ao nosso caminhar nas pegadas de Jesus. Portanto, para rearticular a espiritualidade cristocêntrica da Regra de Alberto devemos levar em conta tanto nossa compreensão contemporânea do Jesus histórico quanto nossa situação contemporânea.
Não nos serve qualquer Jesus. Em nosso caminhar nas pegadas de Jesus, que Jesus seguimos? Não é qualquer Jesus que é conciliável com o Jesus histórico e sua prática. Jesus tem sido usado, abusado e manipulado, tornando-se um apoio ideológico para o status quo. Ele tem sido invocado, e até recebe orações, para manter o oprimido na opressão, os opressores no poder, os “ricos” em suas riquezas e os que “não têm” em sua pobreza. Se Bultmann “desmitologizou” Jesus, devemos “despacificar” Jesus, para que ele não seja conivente com os ídolos, como a mercantilização, e para que ele não mantenha esta realidade em paz. [i]
Devemos nos perguntar: o que teria a dizer um Jesus “despacificado” sobre a tremenda desigualdade na distribuição e no uso dos bens da terra entre ricos e pobres, nações ricas e pobres, sobre a escravidão, injustiça, desumanização e pilhagem ecológica que resulta dessa distribuição desigual? O que teria a dizer o Jesus “despacificado” sobre a opressão e a marginalização das mulheres ou de qualquer minoria? Não aceitar Jesus e sua prática libertadora, como se ele não tivesse nada a dizer sobre essas questões, é na verdade apresentar um Jesus celestial e escatologizado, desprovido de significado para a história, para nossa salvação aqui e agora. É reduzir o reino de Deus à uma realidade exclusivamente escatológica.
Qualquer seguimento de Cristo que nos anestesie da história e de seus conflitos, é na melhor das hipóteses, uma espiritualidade fuga mundi, que nega a própria história encarnacional de Deus. Em Jesus, Deus assumiu para si mesmo nossa história, precisamente para curá-la e realizá-la. Na pior das hipóteses, tal espiritualidade anestesiadora direcionada para a “vida interior” da pessoa, negligenciando a criação e a história, é uma gnosticização ou platonização do cristianismo.
Um cristianismo supostamente mágico, um vodu, que tenta manipular o divino e escapar dos compromissos e dos esforços dolorosos, algumas vezes, “arriscando a própria vida”, mas necessários para tornar o Reino de Deus mais uma realidade em nosso mundo.
Caminhar nas pegadas de Jesus significa assumir a prática de Jesus na construção do Reino de Deus. Ainda existe uma terra de Cristo com um povo a ser resgatado. Mas essa terra com seu povo não está limitada ao espaço geográfico de Cristo. Jesus queria muito mais que isso. Jesus queria a inauguração do Reino de Deus agora e na história. Um Reino de Deus que envolveria e transformaria toda criação e toda história. Um Reino que agora mesmo, na história, começaria a vencer o Reino de Satã e todas as suas conseqüências: injustiça, violência, guerra, opressão, dominação. Um Reino que restauraria todo o estado paradisíaco. A partir da perspectiva da proclamação do Reino de Deus e da prática de Jesus, a terra e o povo de Jesus significam toda a criação e toda a história, especialmente a dos marginalizados, das vítimas da opressão e da injustiça, os menores dos irmãos e das irmãs.[ii]
Portanto, caminhar nas pegadas de Jesus Cristo para reconquistar a terra é inserir-se na história com seus conflitos, assumir a cidadania terrena e política como fizeram os primeiros eremitas do Carmelo.[iii] O obsequium da Regra não permite uma espiritualidade privatizada, espiritualizada, escatologizada. Ele não pode separar-se da polis. Tanto o Jesus quanto o discipulado da teologia e da espiritualidade clássicas devem ser “secularizados”, ou seja, serem relevantes ao saeculum, o mundo e sua história. Os carmelitas também devem ficar atentos à sabedoria da décima primeira tese de Marx contra Feuerbach: “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diversas formas. A questão, no entanto, é transformá-lo”.[iv]
Caminhar nas pegadas de Jesus exige entrar num combate espiritual com o leão rugidor do mercado. No que poderia consistir esse combate espiritual? Proponho três elementos: os votos, o silêncio-solidão-oração e a comunidade.
A pobreza, a castidade e a obediência são em si posturas contraculturais. Elas se opõem ao modo de produção, pois seu propósito é a humanização e a liberdade. Liberdade frente aos poderes que nos levam aos valores da produção, da dominação e da posse, e liberdade para fortalecer os outros como pessoas. Da mesma maneira, existe uma economia nos votos. Mas eles não favorecem muito o crescimento financeiro.[v]
Existe também uma economia no silêncio, na solidão e na oração. Eles também são financeiramente sem valor e, por isso, tornam-se uma denúncia profética do modo de produção.[vi]  O silêncio e a solidão estão cheios de riscos, pois revelam nossas necessidades e nossa pobreza interior, que são fortemente negadas pelo comercialismo e materialismo do modo de produção. O silêncio e a solidão são irremediavelmente inegociáveis.[vii]  A oração é um ato de interiorização que exige que nos libertemos dos padrões de comportamento normativos no modo de produção da sociedade. A oração significa estar presente diante de Deus e, por isso, a nossa verdadeira identidade como pessoas. A oração é um ataque contra a fraude dos ridículos papéis exigidos pelo modo de produção. É uma centralização no “ser”, contrário ao “ter” do modo de produção. A oração é uma anti-comercialização de nossas vidas e uma reapropriação de nossa personalidade.[viii]
O silêncio, a solidão e a oração também exercem outro papel em nossa batalha espiritual. Esses três valores tipicamente desérticos do Carmelo nos tornam atentos à gratuidade do amor de Deus em nossas vidas, nos dispõem a reconhecer que Deus está presente em todas as coisas, purificam nosso relacionamento com os outros da tendência materialista em impor uma vontade alienada a eles, e possibilitando assim um encontro real e pleno com o próximo.[ix]  O silêncio, a solidão e a oração são as “substâncias” que geram profetas místicos. Por “experimentar” a presença divina, o profeta (ele/ela) também pode experimentar a ausência do divino na história, no modo de produção. É essa consciência da presença divina que levou o profeta a denunciar o velho, o reino de Satã, e a anunciar o novo, o Reino de Deus. O silêncio, a solidão e a oração são a escola dos profetas de Elias.[x]
A comunidade também é uma forma de contracultura no combate espiritual. Os primeiros eremitas do Carmelo contextualizaram seu caminhar nos passos de Jesus Cristo abraçando a visão ideal da comunidade de Jerusalém. A fórmula de vida de Alberto descreve esta visão comunitária em termos de uma partilha de bens e de vida, um estilo de vida igualitário, discernimento comunitário-dialogal e um respeito pelo indivíduo. Os eremitas dentro da própria Regra logo foram chamados de “irmãos”, chamados a trilhar uma forma participativa da vida comunitária. Esta vida comunitária é em si um protesto alternativo e profético contra o modo de produção, que materializa a pessoa através de relacionamentos dominantes e desumanizadores, com sua falta de zelo e de respeito, sua escravização da liberdade e sua idolatria da competição, do empreendimento e do controle.[xi] Por sua vez, tal vida comunitária testemunha os valores do modo interpessoal, o valor intrínseco das pessoas: a liberdade, o desprendimento, a generosidade, a justiça, a paz, o perdão, a cura, a compaixão, o fortalecimento dos menores.
A terra de Cristo ainda deve ser reconquistada. Todas as coisas ainda devem se sujeitar a ele para que seu Pai possa reinar plenamente e ser tudo em todos. Como nos dias de Alberto e dos primeiros eremitas do Carmelo, a terra será reconquistada não por armas e forças, mas pelo caminhar nas pegadas de Jesus Cristo. Esse obsequium Jesu Christi envolve uma batalha espiritual que, como aconteceu com o próprio Jesus, insere a pessoa na história num combate contra o leão rugidor. Caminhar nas pegadas de Jesus Cristo hoje é ser chamado a uma vida comunitária da resistência contra-cultural, enraizada no silêncio, na solidão e na oração, restabelecendo a prática profética de Jesus anunciando o Reino de Deus na solidariedade com todos. Especialmente com os pecadores, os proscritos e a ralé de nossos dias.




[i]  Sobrino, Jesus in Latin America, p. 59. Sobre as imagens e invocações ideológicas ou desumanizadoras de Jesus, ver José Miguez Bonino, ed., Faces of Jesus: Latin American Christologies, trad. Robert Barr (Maryknoll, New York: Orbis Press, 1977).
[ii]  É este impulso para a universalização, enraizado no Reino de Deus proclamado e decretado pelo próprio Jesus, que define as Cristologias de inspiração sapienciais, universalistas e cósmicas que encontramos no Cristo apresentado pelos escritos posteriores do Novo Testamento, tais como Colossenses, Efésios e o Evangelho de João. Se Jesus deve ser o “Senhor”, então esse domínio deve ser tão amplo quanto o de Yahweh, cujo nome ele partilha agora. Por isso, ele deve abraçar toda a criação e a história. Sobre essa questão ver Reginald Fuller, The Foundations of New Testament Christology (New York, New York: Charles Scribner’s Sons, 1965), pp. 62-85; e. Schillebeeckx, Christ: The Experience of Jesus as Lord, trad. John Bowden (New York, New York: Seabury Press, 1980) pp. 179-217; James D. G. Dunn, Christology in the Making (Philadelphia PA: Westminster Press, 1980), pp. 163-250.
[iii]  Fitzgerald, “How To Read the Rule: An Interpretation”, p. 59.
[iv]  Ver “Theses on Feuerbach” in Robert C. Tucker, ed. The Marx-Engels Reader (New York: W. W. Norton and Company, 1978), p. 145.
[v]  Kavanaugh, Following Christ, pp. 48, 137-138.
[vi]  Ibid., p. 48.
[vii]  Ibid., p. 121.
[viii]  Ibid., p. 121-122.
[ix]  Gutiérrez, Beber no Próprio Poço, p. 99-102.
[x]  Sobre “profetas místicos”, ver minha “Liberation Theology: Praxis and Contemplation”, Carmelus 34 (1989), p. 55. Sobre a importância da espiritualidade do deserto do Carmelo para a ação de libertação profética, ver Segundo Galilea, “The Future of Our Past”, pp. 25-43.
[xi]  Ver Fitzgerald, “How To Read the Rule: An Interpretation”, pp. 61-62.