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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

JESUS, O ROSTO DA MISERICÓRDIA DO PAI: Sobre o Jubileu da Misericórdia

Frei Carlos Mesters, Carmelita.
Convento do Carmo de Angra dos Reis/RJ.

"Jesus Cristo é o rosto da misericórdia do Pai. O mistério da fé cristã parece encontrar nestas palavras a sua síntese. Tal misericórdia tornou-se viva, visível e atingiu o seu clímax em Jesus de Nazaré. O Pai, “rico em misericórdia” (Ef 2, 4), depois de ter revelado o seu nome a Moisés como “Deus misericordioso e clemente, vagaroso na ira, cheio de bondade e fidelidade” (Ex 34, 6), não cessou de dar a conhecer, de vários modos e em muitos momentos da história, a sua natureza divina. Na “plenitude do tempo” (Gl 4, 4), quando tudo estava pronto segundo o seu plano de salvação, mandou o seu Filho, nascido da Virgem Maria, para nos revelar, de modo definitivo, o seu amor. Quem O vê, vê o Pai (cf. Jo 14, 9). Com a sua palavra, os seus gestos e toda a sua pessoa, Jesus de Nazaré revela a misericórdia de Deus" (Misericordiae Vultus, 1).
Com estas palavras o Papa Francisco começa a carta em que anuncia o Jubileu da Misericórdia. Ele termina a carta informando que o Jubileu terá início no dia 8 de dezembro de 2015 e será encerrado na festa de Cristo Rei, 20 de novembro de 2016. Ele diz: "Será um Ano Santo extraordinário para viver, na existência de cada dia, a misericórdia que o Pai, desde sempre, estende sobre nós. Neste Jubileu, deixemo-nos surpreender por Deus. Ele nunca Se cansa de escancarar a porta do seu coração, para repetir que nos ama e deseja partilhar conosco a sua vida".
No dia 8 de dezembro, o Papa dará início ao Jubileu abrindo a Porta Santa na basílica de São Pedro. Ele pede na carta que todos procuremos abrir a porta do coração para deixar-nos invadir pela misericórdia, e destaca a importância da misericórdia em toda a ação de Deus ao longo da história, culminando em Jesus que é o rosto da misericórdia do Pai, Misericórdiae Vultus. Neste artigo vamos ver como Jesus irradiava a misericórdia do Pai no seu jeito tão simples de ensinar e de viver as oito bem-aventuranças.
A misericórdia de Jesus para com os pobres em espírito
Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino do Céu.
Jesus via como os doutores da lei ensinavam aos pobres a tradição dos antigos (Mc 7,1-5). Eles explicavam tudo direitinho conforme a letra da lei, mas a muitos deles faltava o espírito da lei. Em nome da fidelidade à letra, eles marginalizavam muita gente: os pobres, os doentes, os deficientes físicos, as mulheres, os impuros, as crianças, os pobres. Diziam que a pobreza, o sofrimento, os males da vida e as deficiências eram castigos de Deus (cf. Jo 9,2). Em vez de ensinar a lei de Deus como expressão do rosto misericordioso do Pai, eles escondiam a imagem do Pai atrás de uma máscara de normas e obrigações que tornavam impossível a observância da lei para os pobres (Mc 7,6-13).
Jesus experimentava Deus de outra maneira. Sentia Deus como Pai, como Mãe. Ele tinha um outro espírito, que o fazia meditar a letra da lei com um novo olhar e o levava a escutar os pobres com muita ternura. Jesus também era pobre. Vivia no meio deles, igual a eles.
Porém, para Jesus, nascer pobre e ser pobre não era uma fatalidade nem um castigo de Deus, mas sim a expressão de um apelo de Deus. Jesus não era um pobre revoltado com inveja daqueles ricos que acumulavam toda a riqueza para si. Na sua pobreza Jesus tinha uma riqueza maior: Deus estava com ele. O Reino de Deus vivia nele e o espírito do Reino o levava a lutar para que a injustiça fosse eliminada e os bens da terra fossem partilhados e se tornassem fonte de fraternidade para todos. Esta riqueza do Reino de Deus, da fraternidade e da misericórdia, Jesus a irradiava no meio dos pobres e queria que todos a descobrissem.
Jesus e seus discípulos viviam misturados com os pobres e os excluídos (Mc 2,16; 1,41; Lc 7,37). Jesus reconhecia a riqueza e o valor dos pobres (Mt 11,25-26; Lc 21,1-4). Proclamava-os felizes (Lc 6,20; Mt 5,3). Não possuía nada para si, nem mesmo uma pedra para reclinar a cabeça (Lc 9,58). E a quem desejava segui-lo para conviver com ele, mandava escolher: ou Deus, ou o dinheiro! (Mt 6,24). Mandava fazer opção pelos pobres (Mc 10,21). A pobreza, que caracterizava a vida de Jesus, caracterizava também a sua missão. Ao contrário dos outros missionários (Mt 23,15), os discípulos e as discípulas de Jesus não podiam levar nada, nem ouro, nem prata, nem duas túnicas, nem sacola, nem sandálias, mas somente a Paz! (Mt 10,9-10; Lc 10,4-5). Eram pobres em espírito. Tinham espírito de pobre. Eram animados pelo mesmo espírito de Jesus.
Jesus anunciava o Reino para todos, para pobres e ricos. Não excluía ninguém. Mas o anunciava a partir dos pobres e excluídos: prostitutas eram preferidas aos fariseus (Mt 21,31–32; Lc 7,37-50); publicanos tinham precedência sobre os escribas (Lc 18,9-14; 19,1-10); leprosos eram acolhidos e limpos (Mc 1,44; Mt 8,2-3; 11,5; Lc 17,12-14); doentes eram curados em dia de sábado (Mc 3,1-5; Lc 14,1-6; 13,10-13); mulheres faziam parte do grupo que acompanhava Jesus (Lc 8,1-3; 23,49.55; Mc 15,40-41); crianças eram apresentadas como professores de adultos (Mt 18,1-4; 19,13-15; Lc 9,47-48); samaritanos eram apresentados como modelo para os judeus (Lc 10,33; 17,16); famintos eram acolhidos como rebanho sem pastor (Mc 6,34; Mt 9,36; 15,32; Jo 6, 5-11); cegos recebiam a visão (Mc 8,22-26; Mc 10,46-52; Jo 9,6-7) e os fariseus eram declarados cegos (Mt 23,16); possessos eram libertados do poder do mal (Lc 11,14-20); a mulher adúltera era defendida contra os que a condenavam em nome da lei de Deus (Jo 8,2-11); estrangeiros eram acolhidos e atendidos (Lc 7,2-10; Mc 7,24-30; Mt 15,22). Os pobres perceberam a novidade e acolheram Jesus dizendo: “Um novo ensinamento dado com autoridade!” (Mc 1,27), diferente dos escribas e dos fariseus (Mc 1,22). Todo este carinho de Jesus na convivência com os pobres era a maneira de ele revelar a misericórdia do Pai.
A misericórdia de Jesus para com os que choram
Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados.
Não existe pessoa neste mundo que nunca chorou. Nem Jesus escapa. Nascemos chorando. Uns choram mais que os outros. O choro pode ter muitas causas: choro de raiva e de ódio, choro de amor e de compaixão. Choro alegre e choro triste. Jesus chorou várias vezes. Chorou sobre Jerusalém, porque ela não soube perceber o dia da visita do Senhor (Lc 19,41-44). Chorou diante do túmulo de Lázaro (Jo 11,35), diante do povo faminto que o procurava (Mc 6,34). Diante da tristeza de tanta gente, Jesus imitava o Servo de Javé anunciado por Isaías: "Ele tomou sobre si as nossas enfermidades e carregou as nossas doenças" (Mt 8,17).
Jesus enxugou muitas lágrimas e devolveu a alegria a muita gente. Ele imitava Deus que, como diz Isaias, “enxugará as lágrimas de todas as faces” (Is 25,8). Como devem ficado alegres a viúva de Naím, cujo filho único ele ressuscitou (Lc 7,11-17); a Cananéia, cuja filha curou (Mc 7,24-30); a mulher de hemorragia irregular que se curou graças à sua fé em Jesus (Mc 5,25-34); o cego Bartimeu (Mc 10,46-52), o velho Zaqueu (Lc 19,1-10), a Samaritana (Jo 4,7-42), a mulher adúltera (Jo 8,1-11), a mulher curvada (Lc 13,11), Madalena (Lc 8,2; Jo 20,11-18), Marta e Maria, irmãs de Lázaro (Jo 11,17-44), tantos e tantas! Não dá para enumerar todos os casos de aflição que se converteram em consolo e alegria graças à misericórdia de Jesus.
Ele combateu os males que faziam o povo sofrer e chorar: a fome, pois alimentou os famintos (Mc 6,30-44; 8,1-10); a doença, pois curou os enfermos (Mt 4, 24; 8,16-17); os males da natureza, pois acalmou a tempestade (Mt 14,32; 8,23-27); expulsou os maus espíritos e os proibia de falar (Mc 1,23-27.34; Lc 4,13); combateu a ignorância, pois ensinava o povo (Mt 9, 35; Mc 1,22); combateu o abandono e a solidão, pois acolhia as pessoas (Mt 9,36; 11,28-30); criticou as leis que oprimiam, pois colocou o bem-estar do ser humano como lei suprema de todas as leis (Mt 12,1-5; 23,13-15; Mc 2,23-28); denunciou a opressão, pois acolhia o povo oprimido (Mt 11,28-30; Lc 22,25); combateu o medo, pois dizia sempre: “Não tenham medo!” (Mt 28,10; Mc 6,50).
Consolando assim os tristes e irradiando a alegria do Reino, Jesus revelava a misericórdia do Pai. Ele mesmo se alegrava vendo a alegria dos pequenos: "Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste essas coisas aos sábios e inteligentes, e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, porque assim foi do teu agrado” (Lc 11,21; Mt 11,25-26).
A misericórdia de Jesus para com os mansos
Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra.
Jesus disse: “Venham a mim todos vocês que estão cansados de carregar o peso do seu fardo, e eu lhes darei descanso. Carreguem a minha carga e aprendam de mim, porque sou manso e humilde de coração." (Mt 11,28-30). A mansidão de Jesus não é a de uma pessoa sem fibra, sem vontade própria, que aprova tudo e concorda com tudo. A mansidão a que ele se refere é a mansidão resistente do Servo de Javé, anunciado pelo profeta Isaías: “Ele não grita, nem levanta a voz, não solta berros pelas ruas, não quebra a planta machucada, nem apaga o pavio que ainda solta fumaça. Com fidelidade promove o direito sem desanimar nem desfalecer, até estabelecer o direito sobre a terra” (Is 42,2-4).
Assim era a mansidão de Jesus. Isaías completa a descrição da mansidão dizendo que ela consiste em “saber dizer uma palavra de conforto a quem está desanimado” (Is 50,4). E o próprio Servo acrescenta: “O Senhor me abriu os ouvidos e eu não resisti, nem voltei atrás. Ofereci minhas costas aos que me batiam e o queixo aos que me arrancavam a barba. Não escondi o rosto para evitar insultos e escarros. O Senhor é a minha ajuda! Por isso, estas ofensas não me desmoralizam. Faço cara dura como pedra, sabendo que não vou ser um fracassado” (Is 50,5-7).
A mansidão de Jesus é a resistência que nasce da fé de que a vitória final não será dos violentos, dos corruptos, dos prepotentes, mas sim dos que tem a mansidão do Servo. Jesus era uma amostra viva desta mansidão resistente. Para ele, tudo se resumia em imitar Deus: "Vocês ouviram o que foi dito: Ame o seu próximo, e odeie o seu inimigo. Eu, porém, lhes digo: amem os seus inimigos, e rezem por aqueles que perseguem vocês! Assim vocês se tornarão filhos do Pai que está no céu, porque ele faz o sol nascer sobre maus e bons, e a chuva cair sobre justos e injustos. Portanto, sejam perfeitos como é perfeito o Pai de vocês que está no céu" (Mt 5,43-45 e 48; cf Lc 6,36).
Jesus imitou o Pai e revelou o seu amor. Cada gesto, cada palavra de Jesus, desde o nascimento até à morte na cruz foi um crescendo contínuo. A manifestação plena desta mansidão foi quando na Cruz ofereceu o perdão ao soldado que o matava. O soldado, empregado do império, prendeu o pulso de Jesus na cruz, colocou um prego e começou a bater. Deu várias pancadas. O sangue espirrava. O corpo de Jesus se contorcia de dor. O soldado bruto e ignorante, alheio ao que estava fazendo e ao que estava acontecendo ao redor, continuava batendo como se fosse um prego na parede da sua casa para pendurar um quadro. Neste momento Jesus dirige ao Pai esta prece: “Pai, perdoa! Eles não sabem o que estão fazendo!” (Lc 23,34) Olhando aquele soldado ignorante e bruto, Jesus teve dó do rapaz e rezou por ele e por todos nós: “Pai, perdoa!” E ainda arrumou uma desculpa: “São ignorantes. Não sabem o que estão fazendo!” Diante do Pai, Jesus se fez solidário com aqueles que o torturavam e maltratavam. Era como o irmão que vem com seus irmãos assassinos diante do juiz e ele, vítima dos próprios irmãos, diz ao juiz: “São meus irmãos, sabe! São uns ignorantes. Perdoa. Eles vão melhorar!” Era como se Jesus estivesse com medo de que o mínimo de raiva contra o rapaz que o matava pudesse apagar nele o último restinho de humanidade que ainda sobrava nele. Este gesto incrível de mansidão foi a maior revelação do amor e da misericórdia de Deus. Jesus podia morrer: “Está tudo consumado!” (Jo 19,30). Sua vida foi uma revelação desta mansidão misericordiosa do Pai.
A misericórdia de Jesus para com os que têm fome e sede de justiça
Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados.
No tempo de Jesus, muitos doutores da lei ensinavam que a justiça só se alcança observando a lei até nos seus mínimos detalhesNo ensino deles o acento caía na observância, no merecer. Não havia espaço para a gratuidade do amor e da misericórdia (cf Mt 9,13). Jesus não concordava com esta justiça e dizia: “Se a justiça de vocês não for maior que a justiça dos fariseus e escribas, vocês não vão poder entrar no Reino dos céus” (Mt 5,20).
Na raiz daquela falsa justiça estava a injustiça maior da falsa imagem de Deus que a religião comunicava ao povo. Por causa da insistência na observância da Lei, Deus aparecia como um juiz severo que ameaça com castigo e condena, e não como um pai que acolhe e perdoa. Esta injustiça para com Deus se manifestava nas coisas mais comuns do dia-a-dia. Por exemplo, eles não podiam comer sem lavar as mãos (Mc 7,3); não podiam sentar à mesa com pessoas de outra raça ou de outra religião (Mc 2,16); não podiam entrar na casa de um pagão (At 10,28); não podiam arrancar espigas nem curar um doente em dia de sábado (Mt 12,1-2; Mc 3,1-2). A lei ameaçava o povo de todos os lados: “Pecado! Proibido! Não Pode!” O povo, em vez de sentir-se em paz diante de Deus, tinha a consciência pesada, pois não conseguia observar a Lei, nem alcançar a justiça (cf. Rom 7,15.19).
Jesus não pensava assim. Ele tinha fome e sede de uma outra justiça. Para Jesus, o amor de Deus por nós não é fruto das nossas observâncias, mas é um dom que recebemos de Deus. A mãe ama a criança não porque a criança é boa e lhe obedece em tudo, mas porque ela mesma é mãe. Mãe é Mãe! Amor de mãe não se compra, nem se merece, mas se recebe de graça pelo simples fato de nascer. “Quisesse alguém dar tudo o que tem para comprar o amor, seria tratado com desprezo” (Ct 8,7). Temos que observar a lei de Deus, sim, sempre! Mas não para merecer ou comprar o céu. Observamos a lei para agradecer a imensa bondade com que Deus nos acolhe e “nos amou primeiro”, sem mérito algum da nossa parte (1Jo 4,19). Aqui está a raiz da misericórdia!
Esta visão da justiça cresceu em Jesus, desde pequeno, convivendo em casa com sua mãe que lhe falava do amor e da misericórdia de Deus (cf Lc 1,54-55) e lembrava as histórias de Jeremias, Oséias e Isaías e tantas outras pessoas. Ele descobria o amor de Deus Pai no amor que recebia de Maria, sua mãe, de Ana, sua avó, e de José, seu pai, que era um homem justo (Mt 1,19). Jesus traduzia este amor naqueles gestos tão simples de ternura com que recebia e acolhia as pessoas, desde as criancinhas até os adultos: Zaqueu (Lc 19,1-10), Bartimeu (Mc 10,46-52), a Talita (Mc 5,41), Nicodemos (Jo 3,1-15), Madalena (Lc 8,2; Jo 20,11-18), Levi (Mc 2,13-17), a mulher adúltera (Jo 8,1-11), a moça do perfume (Lc 7,36-50), a Samaritana (Jo 4,7-26), a Cananéia (Mt 15,21-28), as mães com crianças pequenas nos braços (Mc 10,13-16). Irradiando esta sua fome e sede de justiça, Jesus irradiava a misericórdia do Pai.
A misericórdia de Jesus para com os misericordiosos
Bem-aventurados os que são misericordiosos, porque encontrarão misericórdia.
Jesus era a misericórdia em pessoa. Miseri-cór-dia: é ter o coração na miséria dos outros. Ele conhecia de perto a miséria e o sofrimento do seu povo. Nas parábolas ele menciona a angústia dos desempregados que viviam à espera de um biscate (Mt 20,1-6); a situação do povo cheio de dívida, ameaçado de ser escravizado (Mt 18,23-26); o desespero que chegava a levar o pobre a explorar seu próprio companheiro (Mt 18,27-30; Mt 24,48-50); a extravagância dos ricos que ofendia os pobres (Lc 16,19-21); a luta da viúva pobre pelos seus direitos (Lc 18,1-8). A miséria do povo enchia o seu coração.
O que Jesus mais fazia era atender às pessoas que o procuravam em busca de alguma ajuda ou alívio. Ele fazia isto desde pequeno. Lá em Nazaré, como todo mundo, ele trabalhava na roça e, além disso, ajudava o povo como carpinteiro. Naquela época, carpinteiro era aquela pessoa bem prática do povoado a quem todos recorriam para resolver seus problemas domésticos: mesa quebrada, telha estragada, arado desregulado, etc. Este seu jeito natural de servir aos outros, Jesus o deve ter aprendido de sua mãe que chegou a viajar mais de 100 quilômetros só para ajudar Isabel, sua prima já idosa, no seu primeiro parto (Lc 1,36-39.56-57). Jesus dizia de si mesmo, resumindo o sentido da sua vida: “Eu não vim para ser servido, mas para servir” (Mc 10,45).
Sim, Jesus era a misericórdia em pessoa. Certa vez, ele queria descansar um pouco e foi de barco para o outro lado do lago (Mc 6,31). O povo soube e foi a pé na frente dele e ficou esperando por ele na praia (Mc 6,33). Vendo o povo, Jesus esqueceu o descanso e dizia: “Tenho dó desse povo. São como ovelhas sem pastor” (Mc 6,34). Outra vez, em Cafarnaum, terminado o sábado, no momento de aparecer a primeira estrela no céu, o povo levou a ele todos os doentes da cidade, e ele curou a todos (Mc 1,32-34). Era tanta gente que o procurava, que nem sobrava tempo para ele comer (Mc 3,20; Mt 6,31). O evangelho conta muitos episódios desta atenção misericordiosa de Jesus para com as pessoas: com a mulher adúltera (Jo 8,11), com o paralítico (Mc 2,9), a moça pecadora (Lc 7,47), o bom ladrão (Lc 23,34). Perdoou até o soldado que o estava matando (Lc 23,34).
Pedro, ouvindo Jesus falar tanto em misericórdia e perdão, perguntou: “Quantas vezes devo perdoar, se meu irmão pecar contra mim? Até sete vezes?" (Mt 18,21) O número sete significava a totalidade. No fundo, Pedro pergunta: “Então devo perdoar sempre?” E Jesus responde: "Não lhe digo que até sete vezes, Pedro, mas até setenta vezes sete”. Ou seja: “Não lhe digo até sempre, mas até setenta vezes sempre!”
O evangelho conta também as brigas e discussões que Jesus sustentava para defender os sofredores contra as agressões injustas das autoridades religiosas. Defendeu a mulher que vivia curvada há 18 anos e que foi agredida pelo coordenador da sinagoga (Lc 13,10-17). Defendeu a moça que foi injuriada como pecadora na casa de um fariseu (Lc 7,36-50). Defendeu as mães que queriam uma bênção para as crianças, contra a má vontade dos discípulos (Mt 19,13-15). Defendeu os discípulos criticados por arrancarem espigas em dia de sábado (Mt 12,1-8). Defendeu a mulher acusada de adultério por alguns fariseus (Jo 8,1-11). Defendeu e curou o rapaz com mão seca dentro da sinagoga em dia de sábado (Mc 3,1-6). Acolhia os leprosos, os doentes, os cegos, os coxos, todos e todas que o procuravam. E ele explicou o motivo que o levava a agir assim: “Quero misericórdia e não sacrifício” (Mt 9,13; 12,7; 23,23). Agindo assim, Jesus irradiava para os outros o amor misericordioso que ele mesmo recebia do Pai. Colo­cava em prática o que ensinava aos outros: “Sede misericordiosos como o Pai de vocês é misericordioso” (Lc 6,36). 
A misericórdia de Jesus para com os puros de coração
Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus.
Coração puro gera olhar puro e assim faz perceber os sinais de Deus na vida. Fazia parte da missão de Jesus “abrir os olhos dos cegos” (Lc 4,18). Ele dizia aos discípulos: “A lâmpada do corpo é o olhar. Quando o olhar é sadio, o corpo inteiro também fica iluminado. Mas, se o olhar está doente, o corpo também fica na escuridão. Portanto, veja bem se a luz que está em você não é escuridão” (Lc 11,34-35). Quem tem um olhar de inveja, não enxerga corretamente as pessoas e não percebe a presença de Deus nos outros. Quem tem um olhar de orgulho, de raiva ou de vingança, não consegue apreciar direito os fatos da vida. Tais pessoas são cegas. Jesus dizia que alguns fariseus eram cegos, porque não enxergavam direito nem a vida nem as coisas de Deus (cf. Mt 15,14; 23,16-17; Jo 9,40-41). Mas quem tem um olhar puro, esse consegue perceber os apelos de Deus na vida. Vê a Deus!
Jesus, ele tinha um olhar limpo, puro, e o mantinha puro por meio da oração, tendo sempre presente a vontade do Pai (Jo 4,34; 5,19). Ele só fazia aquilo que o Pai lhe mostrava que era para fazer (Jo 5,19). Ele falava só aquilo que ouvia do Pai (Jo 5,30).
Jesus procurava ajudar os discípulos a limpar o olhar: “Cuidado com o fermento dos fariseus e de Herodes!” (Mc 8,15-16). A mentalidade do “fermento de Herodes e dos fariseus” (Mc 8,15) tinha raízes profundas na vida daquele povo. Também hoje, o fermento do consumismo tem raízes profundas na nossa vida e exige uma vigilância constante. Jesus procurava atingir essas raízes para poder arrancar o “fermento” que os impedia de perceber Deus na vida. É bonito ver como Jesus, através do diálogo, ia ajudando as pessoas a ter um coração puro para poder perceber melhor os apelos de Deus. O evangelho de João dá uma atenção especial a esta preocupação de Jesus: a conversa de Jesus com a Samaritana (Jo 4,7-26), com Nicodemos (Jo 3,1-15), com Marta (Jo 11,21-27), com o cego que foi curado (Jo 9,35-39), até mesmo pessoas que resistiam contra ele: alguns judeus (Jo 8,31-59) e Pilatos (Jo 18,33-38).
Vale a pena ver de perto como ele fazia para purificar os olhos e o coração dos discípulos e como combatia o falso fermento ou a falsa mentalidade que, até hoje, impede a visão correta das coisas: Certa vez, alguém, que não era da comunidade, usava o nome de Jesus para expulsar os demônios. João viu e proibiu, pois, assim ele dizia, aquela pessoa não fazia parte do grupo (Mc 9,38). Era o fermento da mentalidade de grupo fe­chado. Jesus responde: "Não impeçam! Quem não é contra é a favor!" (Lc 9,39-40). Outra vez, os discípulos brigavam entre si pelo primeiro lugar (Mc 9,33-34). Era o fermento da mentalidade de competição e de prestígio. Jesus reage: "O primeiro seja o último" (Mc 9,35). “Não vim para ser servido, mas para servir” (Mc 10,45; Mt 20,28; Jo 13,1-16). Outra vez, mães com crianças queriam chegar perto de Jesus. Os discípulos as afastavam. Era o fermento da mentali­dade de quem marginaliza o pequeno. Jesus os repreende: ”Deixem vir a mim as crianças!” (Mc 10,14). “Quem não receber o Reino como uma criança, não pode entrar nele” (Lc 18,17). Outra vez ainda, vendo um cego os discípulos perguntavam: "Quem pecou, ele ou seus pais, para que nascesse cego?" (Jo 9,2). Era o fermento da mentalidade de quem segue a opinião da ideologia dominante. Jesus responde: “Nem ele, nem os pais dele, mas para que nele se manifestem as obras de Deus” (cf Jo 9,3).
Em todas estas atitudes Jesus se esforçava para que as pessoas purificassem seu olhar sobre o próximo. Ele dizia: “Tudo que vocês fizerem a um destes meus irmãos mais pequeninos é a mim que o fizeram” (Mt 25,40). Ele se identifica com os pequenos: “Era eu!” (Mt 25,40.45). Ele levava as pessoas a perceber a presença dele até nas coisas mais simples da vida como dar um copo de água (Mt 10,42; Mc 9,41).
A misericórdia de Jesus para com os que lutam pela Paz
Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus.
A construção da Paz começa nas coisas pequena como desejar um “Bom Dia!”, e só terminará quando o mundo estiver reconstruído: sem guerra, sem fome, sem doenças, sem injustiça, sem opressão, todos vivendo como irmãos e irmãs, uns dos outros. Este é o objetivo da construção da Paz, da Paz completa. SHALÔM. A Paz é como uma casa para morar: ela é construída tijolo por tijolo. Quem não cuida do tijolo, nunca terá casa para morar. Qual é o tijolo que serve para construir a casa da Paz?
A vida de Jesus é uma amostra de como ser construtor de paz. Onde havia ódio, levava o amor; onde havia ofensa, levava o perdão; onde havia discórdia, levava a união; onde havia dúvida, levava a fé; onde havia erro, levava a verdade; onde havia desespero, leva a esperança; onde havia ofensa, levava o perdão; onde havia tristeza, levava a alegria; onde havia injustiça, levava a justiça e o direito; onde havia trevas, levava a luz.
Aos discípulos amedrontados dizia: “A paz esteja com vocês!” Soprou sobre eles dizendo: “Recebam o Espírito Santo!”, e deu a eles nós o poder de perdoar e de reconciliar (Jo 20,21-23). E quando os enviou em missão, não per­mitia levar nada, a não ser uma única coisa: a Paz. E quando chegavam em algum lugar, eles deviam dizer: “A Paz esteja nesta casa!” (Lc 10,5). Assim começou e recomeça o processo da Paz que reverte o processo do ódio, da confu­são, da discórdia, da ofensa, da destruição, iniciado com Adão e Eva (Gn 2,1-7), com Caim e Lamec, (Gn 4,8.24), com o Dilúvio (Gn 6,13-17) e com a Torre de Babel (Gn 11,1-9). Assim recomeça a reconstrução do Paraíso da Paz.
Não se começa a construção da casa pelo telhado, mas pelo alicerce. Qual o alicerce da casa da Paz? É a reconstrução do relacionamento humano entre as pessoas, bem na base, para que possa nascer e renascer a vida em comunidade. No tempo de Jesus, o povo esperava que o profeta Elias voltasse “para reconduzir o coração dos pais para os filhos e o coração dos filhos para os pais” (Ml 3,23-24). Eles esperavam que fosse refeito o tecido básico da convivência humana, pois sem este alicerce, o resto não teria consistência. Seria construir a casa em cima da areia (cf Mt 7,26). Seria reboque em parede rachada. Esconde, mas não conserta.
O que Jesus mais fez foi exatamente isto: refazer a vida comunitária nos povoados da Galiléia. Conforme o Evangelho de Marcos, a primeira coisa que Jesus fez foi chamar discípulos para formar comunidade com eles (Mc 1,16-20; 3,14). Ao redor dele nascia a nova fraternidade, expressão do amor solidário de Deus, fundamento na construção da Paz. Ele acolhia as pessoas, dava lugar aos que não tinham lugar, era irmão para os que viviam isolados, denunciava as divisões que impediam a construção da paz: divisão entre próximo e não-próximo (Lc 10,29-37); entre pagão e judeu (Mt 15,28; cf. Lc 7,6); entre puro e impuro (Mt 23,23-24; Mc 7,13-23); entre pobres e exploradores (Lc 20,46–47; 22,25). Quando curava uma pessoa ou perdoava um pecador, dizia: “Vai em paz!” (Lc 7,50; 8,48; Mc 5,34). Quando, depois da ressurreição, aparecia aos discípulos, ele dizia: “A Paz esteja com vocês!” (Lc 24,30; Jo 20,19.26). Ele trouxe a paz que só Deus nos pode dar (Jo 14,27). É a paz como fruto da justiça, fruto de longa luta e de muito sofrimento. Por isso disse que não veio trazer a paz, mas sim a espada e a divisão (Mt 10,34; Lc 12,51).
Jesus reforçava a vida em comunidade que é o fundamento da Paz, o lugar da reconstrução da Aliança. A Paz existe quando todos e todas são acolhidos como irmãos e irmãs, uns dos outros, todos sendo filhos e filhas do mesmo Pai. Jesus procurava reintegrar as pessoas marginalizadas na convivência humana (Mc 1,40-45). A Comunidade deve ser como o rosto de Deus, transformado em Boa Nova para o povo. Jesus era ecumênico e universal. Acolhia a todos: judeus, romanos, samaritanos, a mulher Cananéia.
A misericórdia de Jesus para com os perseguidos por causa da justiça
Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino do Céu”.
Como dissemos, a maior injustiça na época de Jesus era a falsa imagem de Deus que a religião oficial comunicava ao povo: um Deus severo, juiz que ameaçava com castigo e condenava. Por causa desta falsa imagem de Deus, a própria vida humana era falsificada e aparecia de um jeito que já não correspondia mais ao projeto de Deus. Em vez de abrir a porta do Reino, a religião parecia querer fechá-la. Jesus dizia: “Vocês fecham o Reino do Céu para os homens. Nem vocês entram, nem deixam entrar aqueles que o desejam” (Mt 25,13).
Jesus não aguentava esse tipo de religião que, em nome da lei de Deus mal interpretada, matava na alma do povo a alegria de viver. Ele não veio para condenar o mundo, mas sim para salvá-lo (Jo 12,47). Jesus anunciava a Boa Notícia de um Deus-Misericórdia que acolhe e salva e não a notícia triste de um Deus severo que condena e castiga. Ele dizia: "Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para condenar o mundo, e sim para que o mundo seja salvo por meio dele” (Jo 3,17). Jesus irradiava este amor em atitudes concretas para com os pobres, os mansos, os aflitos, os que tinham fome e sede de justiça, os que buscavam ter misericórdia com os miseráveis, os que buscavam a presença de Deus na vida, os que lutavam pela paz.
Por causa deste seu amor à justiça, Jesus foi criticado e perseguido. Quando perdoou o paralítico, foi criticado (Mc 2,6-7). Quando foi jantar na casa do publicano Levi, foi reprovado (Mc 2,16). Quando num sábado curou o cego de nascimento, foi denunciado (Jo 5,16). Quando comia sem lavar as mãos, era ridicularizado (Mt 15,2). Tentaram desmoralizá-lo dizendo que ele era um possesso (Mc 3,22), um comilão e beberrão (Mt 11,19), um louco (Mc 3,21), um pecador (Jo 9,24), um blasfemo (Mc 14,64). Quando Jesus desafiou as autoridades e dizia que a maneira de elas interpretarem a Lei de Deus era contrária à vontade de Deus, elas decidiram matá-lo (Mc 3,6).
Jesus sabia que não conseguiria mudar a cabeça dos líderes do povo. Sabia que a sua fidelidade ao Deus misericordioso que acolhe a todos como filhos e filhas seria interpretada como heresia e que o seu destino seria prisão, a tortura e a morte de cruz. As profecias sobre o Servo de Javé não deixavam dúvida a este respeito (cf. Is 50,6; 53,3-10). Se quisesse, Jesus poderia ter escapado da morte. Mas Jesus não quis escapar. “Pai, não se faça a minha, mas a tua vontade!” (Lc 22,42). Até o último respiro da sua vida, ele continuou revelando a face da misericórdia de Deus. Era esta sua obediência radical ao Pai, que o levava a desobedecer às autoridades religiosas do seu tempo.

Por este seu jeito de ser e pelo testemunho de sua vida, Jesus encarnava a misericórdia do Pai e a revelava ao povo e aos discípulos (Mc 6,31; Mt 10,30; Lc 15,11-32). Foi esta a Boa Nova da misericórdia do Pai que Jesus viveu e irradiou durante os três anos que andou pela Galiléia anunciando o Reino de Deus. Sua mensagem desagradou aos poderosos e eles o prenderam, condenaram e mataram na cruz. Mas Deus o ressuscitou, confirmando assim para todos que este é o caminho que leva à vida. 

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