O Religioso Frei Tito
Brandsma, Mártir Carmelita.
*Frei Manoel Wermers, O.Carm.
A espiritualidade própria do Carmo, sua vida
de oração e a sua dedicação peculiar a Nossa Senhora foram para mim os fatores
decisivos da minha vocação carmelitana”, declarou um dia Frei Tito Brandsma. Toda
a sua vida religiosa está aí para confirmar essas palavras. A profissão
religiosa, feita aos 3 de outubro de 1899, é para ele um motivo a mais da
ascensão contínua da alma para Deus pelos caminhos da espiritualidade
carmelitana, cuja natureza característica, a vocação para a vida mística,
descreve tão maravilhosamente a “Institutio Primorum Monachorum”: “Essa vida
tem uma dupla finalidade. A primeira alcançamos pelos nossos trabalhos e
esforços, com o auxílio da graça divina. Consiste em oferecermos a Deus um
coração generoso, livre de qualquer pecado atual. Alcançamo-la quando somos
perfeitos e humildemente ocultos na caridade. A outra finalidade dessa vida só
nos é comunicada pela livre ação de Deus, sem a nossa cooperação. Quer dizer
que poderemos chegar já nesta vida a saborear no coração e experimentar no
espírito as misteriosas forças da Presença Divina e a doçura da glória celeste.
É a isso que chamamos: beber nas torrentes das consolações divinas.
Também para a Província Carmelitana da
Holanda a profissão de Frei Tito é uma data importante. Depois de um passado
glorioso esta Província caíra no olvido. Leis iníquas da primeira metade do
século 19 dizimaram as suas fileiras e quase a extinguiram. Na época da entrada
de Frei Tito havia apenas três conventos. Fora desses centros os Carmelitas não
eram conhecidos. A maravilhosa extensão dos últimos quarenta anos está sob a
égide da personalidade cativante de Frei Tito. Ele é o centro animador de um
pequeno grupo de religiosos enérgicos e doutos. Nunca nos 40 anos de sua vida
religiosa desiste de estudar o espírito carmelitano, de torná-lo mais conhecido
dentro e fora da sua pátria, e de investigar a história da sua querida Ordem.
Quando uma vez a Província pede a seus membros fazerem um relatório das atividades
dentro da Ordem observa-se a Frei Tito que para ele será fácil responder, visto
poder dizer simplesmente que fez tudo.
Aos 31 anos exerce as funções de secretário
de Capítulo e é eleito membro do Definitório, órgão supremo para o governo de
uma Província. Como tal continuou durante a vida toda em várias funções, com
uma interrupção de três anos apenas. Durante seis anos foi Assistente do Pe.
Provincial. Desde 1930 era continuamente primeiro Definidor. Além disso exerceu
durante vários anos o Priorado do Convento do Nimegue. É mui característico do
espírito de Frei Tito dar à sua Ordem o melhor das suas forças. Antes de tudo é
sempre Carmelita. O trabalho para a Ordem está em primeiro plano, depois segue
o resto, por mais brilhante que este resto se possa apresentar. É o filho fiel
que não procura ocupação fora, quando dentro da própria casa há tanto que
fazer. Numa lembrança distribuída entre o povo encontramos as palavras:
“Ornamento da Ordem e também filho fiel”.
Não são dizeres vãos? Ele conquistou, este
título por seus méritos reais. Para a Ordem fez literalmente tudo.
A nomeação para Professor da universidade
Católica foi o início do Convento do Nimegue. Chegando a essa cidade
hospedou-se numa pensão. Pouco depois conseguiu que alguns estudantes carmelitas
freqüentassem os cursos da Universidade. Vinham e voltavam de trem, e almoçavam
na pensão de Frei Tito. Assim perdiam muito tempo nas viagens. O Professor
comprou então uma casa onde instalou provisoriamente a sua comunidade. Em
seguida saiu em procura de um lugar apto para a construção de um novo convento.
Encontrou um lugar no antigo centro da cidade, afastado das grandes
construções; era um hospital abandonado. Com o material desse hospital foi
erguido um belo convento carmelitano, desses que inspiram devoção e
recolhimento. Nos fins de 1929 a comunidade tomou posse da nova morada. A
inauguração foi digna do douto fundador. Não foi uma festa superficial com
discursos de ocasião, mas um grandioso Congresso de Estudos, com a presença dos
líderes intelectuais católicos mais destacados de quase todas as partes da
Holanda, e naturalmente os amigos da Universidade.
Neste mesmo período ocorre a luta pelo
reconhecimento oficial de dois colégios carmelitanos das cidades de Oss e de
Oldenzaal. Esse reconhecimento daria direito a um subsídio anual por parte do
governo. Todos os esforços parecem baldados. Nos fins de 1924, imediatamente
antes da discussão do orçamento na Câmara, Frei Tito alarma o público com um
magnífico artigo no maior diário católico da Holanda, refutando uma repreensão
ministerial a cinco colégios católicos. A repreensão do governo citava o
exemplo dos Protestantes, bem mais prudentes e moderados nas suas exigências. O
imperturbável secretário da Fundação Colégios Carmelitanos ri-se dessa
modéstia, mostra a legitimidade das fundações e o direito que têm ao subsídio
oficial, garantido pela Constituição. Três dias depois da publicação, o artigo
é tratado na Câmara. O ministro confessa que não tem argumentos para uma
resposta, mas que também não pode dar o auxílio: “Não tenho dinheiro e não
recebo dinheiro”. Por enquanto a questão estava terminada. As conferências de
Frei Tito com outros ministro e chefes da educação serviam apenas para
enriquecer o cabedal das suas experiências. O orçamento para 1925 não dava nada
e tão pouco o para 1926. Mas Frei Tito continuava ativo e vigilante. Estimulava
as esperanças definhadas e corria os departamentos. Finalmente o orçamento para
1927 enumerava na sua linguagem seca, tipicamente burocrática, os Colégios do
Carmo entre os privilegiados.
Quinze anos mais tarde, quando os
super-homens nazistas tentavam civilizar a Holanda com medidas assassinas de
toda a cultura, encontraram Frei Tito Brandsma ainda sempre no mesmo posto,
defendendo os direitos dos colégios religiosos.
No ano de 1924, duas semanas depois do
impasse surgido na luta pelos subsídios, o coração carmelitano de Frei Tito
provou uma grande alegria. A Província Carmelitana da Holanda transpôs as
fronteiras com a Alemanha e tomou posse do convento de Mainz. O Bispo,
poderosamente incentivado pelas autoridades civis locais, há muito estava
procurando uma Ordem religiosa que se interessasse pela antiga igreja gótica
que pertencera aos Carmelitas. Mas fora tudo em vão. Finalmente se lembrou de
convidar os Carmelitas holandeses. O Padre Provincial com o seu Assistente Frei
Tito puseram-se em viagem a fim de examinar a situação. Depois de uma recepção
extremamente cordial foram visitar o santuário em companhia do Bispo e do
Prefeito. Encontraram um caos. As janelas e os soalhos tinham desaparecido. A
nave estava transformada num armazém imundo das coisas mais heterogêneas. Uma
miséria! Mas desanimar não era próprio de Frei Tito. Seguiram-se conferências e
mais conferências cem as autoridades espirituais e militares, pois Mainz era
ainda cidade ocupada. Frei Tito viaja do comando francês para o comando alemão
e vice-versa. Finalmente consegue um acordo. A restauração iniciou-se e correu
admiravelmente. Em poucos meses Mainz viu ressurgir a sua nobre “Liebefrauenkirche”
(Igreja de Nossa Senhora) com o antigo esplendor. E no Advento a cidade grata
recebeu festivamente um grupo de Carmelitas. Pelas ruas engalanadas foram
conduzidos à igreja onde os esperava o Bispo em vestes pontificais cercado dos
cônegos. Procedeu-se à nova consagração do templo profanado, após a qual foi
celebrada a santa Missa com toda a beleza do Pontifical.
Belos dias para este homem de Deus que, indo
de trabalho a trabalho, não tinha tempo de lançar um olhar para trás o só
descansava na cela da sua alma sempre perto de Deus. Pois perto de Deus Frei
Tito estava em todas as suas numerosas e absorventes ocupações. Podemos
estranhar essa afirmação e pensar que a vida interior devia sofrer as
conseqüências de uma vida tão ativa. Involuntariamente lembramo-nos das
palavras severas do Bem-aventurado Nicolau o Francês, Prior Geral da Ordem:
“Dizei-me vós, que correis as cidades, que espírito delas recebestes?
Certamente não o espírito do Senhor... Sacrificais a vossa cela e obtendes as
perturbações do mundo...” (Ignea Sagitta). Mas a própria doutrina da vida
carmelitana dá-nos uma resposta magnífica a esta dúvida. Pois o consagrado
autor Pe. Miguel de Sto. Agostinho, no seu livro “Introduotio ad vitam
internam”, que se tornou clássico para a espiritualidade carmelitana, expõe
magistralmente a obrigação da vida ativa, e, como uni-la à contemplativa pelo
exercício da presença de Deus. Considerando Deus nos Superiores, devemos
aceitar tudo por Obediência. Nas atividades devemos guardar a pureza da intenção,
trabalhando sempre para Deus. Como, assim diz ele graciosamente, os muitos
tijolos pelo cimento são unidos em um edifício só, assim também as nossas
múltiplas atividades exteriores pela presença amorosa de Deus são unidas em uma
contínua ascensão para Deus. As atividades não afastam de Deus, pois podemos
exercê-las em Deus, com Deus e para Deus.
Foi assim que Frei Tito viveu a sua vida
carmelitana. Com zelo ardente velava pela observância. A sua amabilidade não
tinha nada de melífluo, mas sabia encontrar uma severidade paternal. Os seus
conselhos e avisos, quando necessários, não deixavam nada a desejar em clareza
e força. Sabia ser muito rigoroso. Fundador e, durante muitos anos, superior do
convento de Nimegue, não permitia nele nenhuma irregularidade.
Também a sua vida particular estava toda
impregnada da presença de Deus, era uma contínua procura de união com Deus. Só
uma proibição expressa poderia fazê-lo perder a meditação da manhã, a que não
faltava nem nos anos da mais expansiva atividade científica e social. O
Sacrifício da Missa transformava o trabalhador em um monge contemplativo. Todo
compenetrado e absorvido neste augusto mistério parecia esquecer tudo em redor.
Saía das suas ocupações, concentrando-se em Cristo a quem tanto se une o
sacerdote na celebração da Santa Missa. Grande número de pessoas guarda uma
comovida lembrança da “Missa de Frei Tito”, a que procuravam assistir de
preferência.
A sua união com Deus tinha ainda um caráter
nitidamente mariano, como convinha a um coração tão carmelitano como o de Frei
Tito. A direção espiritual dada nas confissões tinha duas linhas-mestras: a
presença de Deus e o amor à Mãe de Deus. Em um belíssimo retiro: “Para Jesus
com Maria”, expõe como devemos subir até Jesus pela mão de Maria Santíssima.
Cristo tornou-se nosso irmão na natureza humana. Essa natureza humana
unindo-nos com Jesus, faz-nos filhos de Maria, junto com Ele. Devemos ver
Maria, antes de tudo, como a Mãe de Deus que uniu a si. Por isso devemos-lhe um
respeito amoroso todo especial. Daí passa à tarefa maternal de Nossa Senhora.
Como Jesus quis crescer em graça diante de Deus e dos homens sob a direção de
sua Mãe Santíssima, assim devemos nós também pôr toda a nossa formação sob a
proteção de Maria. Devemos viver sob os olhares maternais de Nossa Senhora,
devemos viver na sua presença, para chegar a viver na presença de Deus. Por
Maria a Jesus!
Frei Tito fizera-se Carmelita, atraído pelos
elementos contemplativo e mariano da vida carmelitana. E a obediência fez dele
um viajante incansável, um homem dinâmico e zeloso pela glória de Deus e de
Maria, até os dias da sua prisão. Somente então encontrou a solidão tão
almejada: “Renata solitudo”, como ele escrevia alguns dias depois. O amor a
Deus, que o tinha impelido a tantas atividades sociais, isola-o agora das
criaturas, fazendo-o abismar-se em Deus: “Deixai-me a sós convosco... afastai
de mim os homens”. O amor a Deus absorve o amor social. Vê-se agora ainda mais
claramente que toda a vida social de Frei Tito era inspirada e guiada
unicamente pelo amor a Deus. Por isso terminada a sua vida ativa, ele se
recolhe espontaneamente em Deus. O monge contemplativo encontrou a felicidade e
jubiloso prorrompe numa poesia que se tornou célebre:
Meu Jesus, contemplando-vos,
Revivo meu amor a Vós.
E vejo que também Vós me quereis.
com ternura especial.
Isso pede mais generosidade.
Mas todo o sofrer me é doce:
Torna-me mais semelhante a Vós;
É o caminho para Vós.
Sou feliz no meu sofrimento,
Que já não é mais dor,
E sim sorte sem igual,
Pois une a Vós, meu Deus.
Ó, deixa-me aqui bem sozinho
Entre o frio que me cerca.
Afastai de mim os homens,
A solidão não me cansa.
Pois Vós, Jesus, estais comigo,
Nunca estive tão perto de Vós.
Ficai Jesus, ficai comigo,
Vossa presença tudo recompensa.
*Artigo publicado no
Mensageiro do Carmelo em 1948. Ano 36, Fev. 1948, pág. 24 e seg.
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