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sábado, 19 de dezembro de 2015

4º DOMINGO DO ADVENTO: Luzia, Maria e Isabel.

“Nunca fui condenado pela Congregação para a Doutrina da Fé”. Entrevista com Gustavo Gutiérrez

Muitas coisas foram escritas sobre Gustavo Gutiérrez, nem sempre verdadeiras, como ele mesmo constata nesta entrevista, fruto de uma conversa em que ele mostra o significado da Teologia da Libertação, da qual sempre foi considerado o fundador, em sua vida.
Ele não pretende cair no absolutismo e reconhece como esta teologia foi se refazendo, abrindo-se a novas temáticas e realidades e como deve enfrentar desafios. Em suas palavras deixa entrever sua liberdade de pensamento, fruto de seu profundo conhecimento e trabalho teológico, estando consciente de que nem todo mundo vai estar de acordo com sua proposta, o que, por outro lado, não representa para ele nenhuma dor de cabeça. A entrevista é de Luis Miguel Modino e publicada por Religión Digital, 14-12-2015. A tradução é de André Langer.

Eis a entrevista.

Como a Teologia da Libertação marcou a sua vida?
Ela nasceu da minha vida, naturalmente, e eu mesmo quis ser fiel e também crítico, pois a teologia sempre precisa ser refeita e não se trata de aplicá-la como Palavra de Deus. Creio que me proporcionou argumentos, pistas, me deu horizontes, mas nunca a considerei como a última palavra, e me deu também contato com pessoas de uma base enriquecedora.

Você pensa que os pobres continuam a ser uma categoria teológica na reflexão atual?
Não os pobres, e sim a situação de marginalização que vivem, que é contrária à vontade de Deus, e isso o faz teológico. Alguns se empenham em dizer que a Teologia da Libertação é coisa do passado. Sabe, a primeira vez que disseram isso foi um mês após a publicação do livro. E no ano seguinte diziam, já morreu. Ou seja, isso não me atinge.

No recente Congresso Continental de Teologia realizado em Belo Horizonte, o contato e o interesse dos jovens para conversar com Gustavo Gutiérrez foi uma coisa muito comentada entre os presentes. É esse um sinal de esperança em relação a essa vigência da Teologia da Libertação?
Claro. No entanto, eu penso que as teologias não nasceram para serem eternas. Se é isso o que querem dizer, eu concordo, mas morrer quer dizer que já contribuiu e que a religião mudou e que veremos outras coisas. Eu, até os 40 anos, não falei de Teologia da Libertação, mas isso não quer dizer que não fosse um cristão que buscava ser cristão e um padre que buscava ser padre. Pude ser cristão antes da Teologia da Libertação e posso sê-lo depois dela, minha vida não está aí.
A Teologia da Libertação me fez mudar, me diz muito. Eu penso que se mantém por tudo o que disse antes, e não apenas isso, mas que avança, não é mais a mesma, pois vai entrando em outros temas, já que nem todos os temas que atualmente são trabalhados na Teologia da Libertação estiveram presentes no começo. É um processo, pois a teologia sempre deve ser tomada com muita flexibilidade. São coisas importantes, mas a teologia não é sinônimo de doutrina cristã, simplesmente é uma maneira de tratar sobre ela.


Nessa Teologia da Libertação, qual é a autoridade teológica dos pobres?
Digamos que é um desafio. Eu não falaria de autoridade, pois é uma palavra estranha, como se alguém manda algo. O importante é descobrir a importância de que estejam presentes, que nos fazem ver que não podemos nos contentar com o que existe e que temos que sentir que continuamos sendo desafiados, e digo isso como pessoa de Igreja, não como algo relativo à minha individualidade.

Por onde deve caminhar e quais são os desafios que a Teologia da Libertação precisa enfrentar hoje?
Esta é uma questão mais ampla e em que neste momento estou trabalhando. Tudo o que faz referência ao mundo da modernidade e da pós-modernidade, embora não leve tão a sério a pós-modernidade, continua mantendo um desafio, o da ciência, o da liberdade... como coisas que estão aí.
Um segundo desafio é o da própria pobreza, pois a forma como vemos a pobreza hoje em dia, inclusive na Teologia da Libertação, não é exatamente a mesma que há 40 anos. As ciências sociais e outras ciências foram esclarecendo coisas e fazendo ver outras, que mostram que o processo continua.
Outro desafio é o da teologia da religião, que também é chamado de diálogo inter-religioso. Mas o diálogo é fácil, basta ser educado. O problema teológico é a teologia, o que significa esta pluralidade de religiões que existe há muito tempo, mas que é um tema, teologicamente, novo.

Até que ponto se pode dizer que o Papa Francisco simpatiza com a Teologia da Libertação?
Sou incapaz de colocar o Papa, um pastor como ele, entre as grades de uma teologia. O que digo quando me fazem essa pergunta é que ele é o frescor do Evangelho. Se ele gosta de uma teologia ou de outra, não tenho problema com isso.

Você teve problemas com a Congregação para a Doutrina da Fé e agora o prefeito dessa Congregação é alguém que se diz seu amigo, o cardeal Müller.
Vou esclarecer isto. Tive problemas, mas eram problemas que vinham do Peru, e que quando a coisa chegou lá não encontraram matéria. A prova é que não tive processo, o que tive foi um diálogo. A diferença, que eu não conhecia, mas que então aprendi, está em que o processo se dá quando há suspeitas de que há coisa que vão contra a ortodoxia, e o diálogo, que foi o que eu tive, que há afirmações que não se compreendem bem, o que é muito subjetivo, pois sempre haverá alguém que não entende bem alguma afirmação.
Quando me dizem que fui condenado, rio um pouco, pois nunca fui condenado pela Congregação para a Doutrina da Fé. Todos os livros que escrevi seguem sendo publicados. Foi apenas um diálogo no qual não encontraram nada. Há uma carta da Congregação para a Doutrina da Fé na qual se diz que o diálogo com o Pe. Gustavo Gutiérrez terminou de maneira satisfatória.

E com o cardeal Müller?
Geraldo Müller é um amigo, muito bom amigo. Esteve no Peru e, junto com outros professores alemães, trabalhamos sobre a Teologia da Libertação. Depois ele decidiu fazer algo prático de ajuda aos pobres no Peru e foi ensinar teologia no seminário de Cuzco, onde a população é indígena. Foi durante 15 anos seguidos e conhece muito bem aTeologia da Libertação, como provam os dois livros que escrevemos juntos, o segundo com o prólogo do Papa Francisco. Repito que é muito bom amigo e bom conhecedor da Teologia da Libertação, com a qual simpatizou quando era muito discutida entre os setores da mídia, pois na Congregação a Doutrina da Fé nunca houve problemas.
Certa vez, fez uma conferência na Universidade Católica de Lima, muito aplaudida e cujo texto está publicado, na qual explicava como ele mudou com relação à Teologia da Libertação. Além de amigo, foi defensor, sobretudo quando havia reticências que não tinham nenhuma consistência, mas quando se fala mal, todos repetem. Na mídia, nem todos, complicam muito, porque falam de condenação constantemente, e ela nunca existiu.
Se tivesse sido condenado, me teriam proibido de continuar escrevendo e nunca houve um livro, de todos os livros que escrevi, de que se tenha dito que não pode ser vendido, que não está autorizado. Não estar de acordo não é uma condenação, e se alguém não está de acordo, bom, o que vamos fazer! Sempre houve isso dentro da mensagem cristã. Eu também não concordo com muitas teologias muito boas, das quais não gosto, e mesmo que eu não seja ninguém, isso acontece com qualquer um.

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Irmão, quem és tu? Novo documento vaticano ilumina a vida dos irmãos religiosos

No final da década de 1980, eu brevemente flertei com a ideia de uma vocação religiosa. Em certa etapa de minha vida, pensei que poderia querer me tornar um irmão religioso, em grande parte porque eu não tinha certeza quanto ao sacerdócio.
Conforme qualquer diretor de formação que se preza diria a você, essa foi uma maneira terrivelmente imatura de pensar uma vocação. Não se deve comprometer-se com uma forma de vida simplesmente por causa daquilo que ela não é; é preciso haver algum atrativo positivo, pois, caso contrário, a vocação não irá se sustentar. A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 14-12-2015 . A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Conforme ficou constatado mais tarde, encontrar a minha esposa tirou de vez essa tal ideia de minha cabeça, de forma que jamais tive de ponderar qual poderia ser o elemento atrativo para uma vida de irmão religioso. Que pena, porque isso significa que eu nunca realmente ultrapassei o muro do silêncio que, geralmente, circunda aquela que é possivelmente a vocação menos conhecida, e menos apreciada, na Igreja Católica.
Tudo isso me ocorre agora porque, nesta segunda-feira (14 de dezembro), a Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica – mais conhecida como “Congregação para os Religiosos” – apresentou um novo documento intitulado “Identidade e Missão do Irmão Religioso na Igreja”.
Como a maioria dos textos vaticanos, este documento vinha há anos sendo produzido e, honestamente, ele não trouxe grandes novidades em termos de notícia. É mais uma meditação espiritual, entre outras coisas refletindo sobre a comunhão da Trindade como o modelo e inspiração para a fraternidade vivida pelos irmãos uns com os outros e com o mundo.
Negligenciar o documento seria vergonhoso, no entanto, porque se há algum grupo dentro do catolicismo que merece o seu lugar ao sol, este com razão é o dos irmãos religiosos.
No mundo todo, existem cerca de 55 mil irmãos na Igreja Católica, um número muito menor do que o de padres (415 mil) e freiras (705 mil), ainda que seja um número comparável ao de diáconos permanentes (42 mil). Nos EUA, há cerca de 4.300 mil irmãos religiosos, bem abaixo dos mais de 12 mil em 1965 (2 mil dos atuais irmão já estão aposentados).
O Ir. Paul Bednarczyk, da Congregação de Santa Cruz, presidente da National Religious Vocation Conference, chama os irmãos de “um dos segredos mais bem guardados da Igreja”. O abade beneditino Jerome Kodell chamou os irmãos de “o grupo mais invisível na Igreja”, alertando que o modo de vida deles está em perigo de desaparecer da consciência pública”.
Em verdade, a maioria dos católicos comuns nos bancos das igrejas só tem um vago conhecimento de que os irmãos religiosos existem. Quando os católicos falam sobre vocações, eles em geral o fazem em termos de “padres e freiras”, deixando de fora os irmãos (e diáconos, a propósito) fora de cogitação.
O discurso oficial católico restringe, às vezes, aos irmãos as oportunidades abertas de liderança, com certeza contribuindo para um clima de negligência.
Por exemplo, em 2002, o Vaticano disse aos capuchinhos nos EUA que eles não poderiam eleger um irmão como o seu Superior Provincial; em 2009, Roma vetou um esforço da congregação Maryknoll em eleger um irmão como o seu Superior americano. Isso aconteceu porque, tecnicamente, os irmãos são leigos, muito embora a maioria dos católicos não os considere como tais, e as regras católicas impedem os leigos de serem superiores.
(O novo documento do Vaticano reconhece este problema, mas não o resolve. O arcebispo espanhol José Rodríguez Carballo, secretário da Congregação para os Religiosos, disse na segunda-feira em coletiva de imprensa que será pedido ao Papa Francisco que crie uma comissão ad hoc de estudos para ponderar a participação dos irmãos no comando local, regional e geral da Igreja.)
Mas, então, o que mesmo é um irmão?
Eis o que você irá mais ou menos encontrar caso procurar pelo termo “irmão” na enciclopédia católica: “Leigos que assumem votos de pobreza, castidade e obediência. Pertencem a comunidades formadas de irmãos apenas, ou de irmãos e padres. Os irmãos religiosos se dedicam ao carisma particular de sua comunidade, expressa em serviço e oração”.
Essa definição é válida, porém não chega até o cerne do tema. O novo documento emitido esta semana aborda-o extensivamente. Porém três breves aspectos apenas são válidos de nota aqui em termos dos motivos por que uma Igreja sem irmãos religiosos seria uma Igreja significativamente empobrecida.
Em primeiro lugar, conforme lhe dirão muitos dos sacerdotes que pertencem às ordens religiosas, o sacerdócio é um aspecto fundamentalmente importante mas, até certo ponto, secundário em suas vidas. Eles consideram como sendo a coisa mais básica o ser um irmão em suas comunidades, por exemplo, as comunidades beneditinas ou franciscanas. Eles dirão que o cerne da identidade deles se dá na qualidade de beneditinos ou franciscanos, e que o sacerdócio é a maneira específica pela qual manifestam tais identidades.
Seja um irmão, um diácono, ou um sacerdote, o que é fundamental para todos os religiosos é que eles vivam a sua vocação como parte de uma família dedicada aos votos que assumem e à missão específica de suas comunidades. Os irmãos fazem isso de uma maneira única, porque não existe sobreposição clerical alguma acima dos seus compromissos nucleares.
Em outras palavras, se os irmãos se forem, um elemento-chave do entendimento católico da vida religiosa se vai com eles.
Em segundo lugar, os irmãos são únicos entre os religiosos, posto que eles não fazem parte da hierarquia da Igreja. Pelo menos em teoria, isso lhes dá mais liberdade para falar e agir, especialmente no compromisso com os ministérios aos mais necessitados.
Ao longo dos séculos, os irmãos religiosos estiveram nas linhas de frente das formas de serviço mais exigentes da Igreja – alimentando os famintos, confortando os doentes, educando os jovens, cuidando dos pobres, e assim por diante. Ainda iremos encontrar irmãos fazendo estas coisas hoje, geralmente com um espírito de total compromisso que os sacerdotes, em parte por causa das outras exigências que possuem, não têm condições de fazer.
Relacionado com o que estamos falando, os irmãos muitas vezes são capazes de ministrar a pessoas de uma maneira diferente: como sendo uma delas, sem quaisquer desvios de autoridade ou poder. Muitos irmãos relatam que as pessoas com quem eles trabalham lhes dizem: “Eu nunca diria isso a um padre, mas me sinto à vontade em dizer para você...”.
(Carballo indiretamente se referiu a este tema ao apresentar o documento na segunda-feira, dizendo que os irmãos testemunham o caráter essencialmente leigo da vida religiosa na Igreja.)
Em terceiro lugar, os irmãos são uma prova do valor da comunidade numa era hiperindividualista. Sem a pompa do sacerdócio, eles dão mostras de que doar a própria vida a uma comunidade religiosa, por si só, é parte fundamental da espiritualidade católica autêntica.
O Rev. John Pavlik, padre capuchinho e diretor executivo da Conferência dos Superiores Maiores, diz que os irmãos são um lembrete de que os católicos não devem ser “operadores independentes”, mas que fazem parte de uma família.
Conforme disse nesta segunda-feira o Cardeal João Braz de Aviz, prefeito da Congregação para os Religiosos, em seu cerne a vocação de um irmão é simplesmente a vocação cristã.
Nos EUA, os irmãos católicos vêm se reunindo em um “think tank” (grupo de reflexão) há três anos para fomentar ideias destinadas ajudar em suas vocações. Até o momento eles tiveram oito sessões; com razão, estes religiosos desejam que a publicação do novo documento gere um novo impulso. Há planos para um simpósio nacional na Universidade de Notre Dame, onde irmãos seriam convidados a interagir com as lideranças da Igreja, clérigos e leigos, e a debater o documento.
O Irmão Robert Berger, professor de Estudos Religiosos da Manhattan College, diz que, certa vez, os irmãos foram vistos como homens extraordinários fazendo coisas ordinárias, comuns, posto que havia muitos irmãos por aí e os católicos normalmente colocavam as suas formas de viver sobre um pedestal.
Hoje, segundo ele, a situação está ao contrário; os irmãos são vistos como “homens comuns fazendo um ministério extraordinário”.
Esperamos que o documento desta segunda-feira ajude a garantir que estes “homens comuns” finalmente recebam o reconhecimento que merecem.

Padre Cícero: o santo dos nordestinos pobres. Entrevista especial com Antônio Mendes da Costa Braga

Antônio Braga é autor do livro Padre Cícero. Sociologia de um padre, antropologia de um santo (Bauru: Edusc, 2008). A obra é fruto da pesquisa que ele realizou para a elaboração de sua tese de doutorado em Antropologia Social, defendida em 2007 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Na entrevista que segue, concedida por e-mail para a IHU On-Line, ele fala sobre o Padre Cícero que “descobriu” em seu trabalho. Para ele, “uma boa questão é procurarmos entender por que alguém como Padre Cícero foi capaz de atrair tantas pessoas pertencentes aos segmentos mais pobres e marginalizados da sociedade em torno de si, ou de que forma ele se converteu num santo para essas pessoas”.
Antônio Braga atribui parte da força de liderança de Padre Cícero à atuação de seus devotos, ou romeiros, como são chamados. E explica: “Eram os próprios romeiros que legitimavam a autoridade religiosa e moral do Padre Cícero. Eram eles os sustentáculos da autoridade política, social e econômica do sacerdote. Se estabeleceu entre Padre Cícero e seus romeiros um vínculo, uma relação de dom e contra-dom que nem a morte do Padrinho Cícero foi capaz de romper”.
Antônio Mendes da Costa Braga possui graduação em Ciências Sociais e mestrado em Sociologia, pela Universidade de São Paulo (USP), e doutorado em Antropologia Social, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Confira a entrevista.

IHU On-Line - Em sua tese de doutorado, que virou o livro Padre Cícero: sociologia de um Padre, antropologia de um santo, qual é o padre Cícero que você descreve?
Antônio Braga - Podemos considerar que o livro aborda o Padre Cícero Romão Batista sob duas perspectivas, relacionadas com o título que dei à obra. Na primeira, que corresponde ao primeiro momento do livro, eu procuro compreender quem foi o padre Cícero Romão Batista no contexto cultural, histórico, social e religioso em que se tornou um padre e, depois, uma grande liderança, principalmente religiosa. Procuro fazer ali o que pode ser denominado de análise de trajetória. Procurei demonstrar que Padre Cícero foi, em grande medida, um típico sacerdote formado no século XIX. Diria até que ele foi um caso bem-sucedido de sacerdócio no contexto eclesiástico católico daquele século, e mais ainda no Ceará da segunda metade do século XIX. Era um Ceará que vinha sofrendo uma profunda reforma eclesiástica, a chamada romanização do catolicismo brasileiro. E Padre Cícero foi, no meu entender, e em certa medida, um sacerdote romanizado, um padre que tinha muitas das qualidades que os lÍderes do processo de romanização – membros do episcopado – esperavam de um sacerdote que estava posicionado nas linhas de frente desse empreendimento eclesiástico.

Um sacerdote romanizado em litígio com o poder eclesiástico
É paradoxal que esse Padre Cícero, que aponto como um caso bem-sucedido de sacerdote romanizado, tenha morrido com suas ordens sacerdotais suspensas e em litígio com o poder eclesiástico local. De sacerdote virtuoso ele passou a ser um problema para esse poder, especificamente no Nordeste brasileiro. Então fica a pergunta: como isso é possível?
Defendo, como Ralph Della Cava e alguns outros autores, que a vida de Padre Cícero mudou a partir de um milagre ocorrido em Juazeiro do Norte, no Ceará, em 1889. Foi o chamado Milagre da Hóstia, protagonizado por uma jovem beata, negra e pobre, chamada Maria de Araujo. Padre Cícero fora o coprotagonista desse milagre, que teve profundas consequências para sua vida, a da beata e do próprio Juazeiro. E é a partir deste evento – porque eu o vejo como paradigmático para sua vida - que procuro apresentar, ou melhor, compreender Padre Cícero, analisando o processo que o tornou um dos maiores santos de devoção popular no Brasil. Daí por que falo numa antropologia de um santo. E o caso de Padre Cícero traz muitos privilégios enquanto objeto de estudo. O principal é que ele se tornou um santo para seus devotos não necessariamente através ou a partir dos altares. O processo através do qual ele vai se convertendo em santo para muitos de seus devotos ocorreu principalmente durante sua vida, logo após o milagre. Temos aí a oportunidade de compreender como vai se dando o processo através do qual um indivíduo vai se tornando uma importante liderança, notadamente religiosa, a ponto de, já em vida, ganhar status de santo para muitos. No entanto, é também importante frisar que para os devotos do Padre Cícero – denominados romeiros – ele é, antes de tudo, o “Padrinho Cícero”. Eles não costumam falar em Santo Cícero.

IHU On-Line - Como entender tamanha devoção popular no Brasil por Padre Cícero?
Antônio Braga – Posso apontar alguns aspectos que dão ao caso do Padre Cícero tamanha força e – em certa medida – especificidade. Um deles é o fato de que os seus devotos são como que coprotagonistas de sua história de santidade. São sujeitos e agentes. Sem seus romeiros, Padre Cícero não teria se tornado santo. E sem eles a devoção não teria se mantido nem se desenvolvido após sua morte, em 1934. E essa é uma devoção que passa de mãe para filho, de pai para filho, de avó e avô para netos. E nessa história tem sempre um avô, bisavó, e assim por diante, que conheceu o Padre Cícero em vida, que era romeiro do Padrinho Cícero enquanto ele ainda era vivo. Então, os devotos estão falando e vivenciando uma devoção que também tem relação com suas próprias histórias, com a história de todo um vasto grupo de indivíduos que se encontram em torno da força identitária de serem afilhados do Padrinho Cícero. Agora, como todo o santo que se preze, ele é santo porque – para seus devotos – também faz milagres e intervém junto a Deus. Em suma, como todo santo de devoção popular, ele é uma força atuante, presente na vida daquele que crê e que – em sua perspectiva – se faz presente quando chamado a ajudar.

IHU On-Line - Quais são os principais debates provocados pela figura dele dentro da Igreja Católica e no meio acadêmico brasileiro?
Antônio Braga - No meio acadêmico, Padre Cícero e o fenômeno religioso do Juazeiro já foram objeto de um número respeitável de estudos, muitos de grande qualidade. Agora, dentro da Igreja Católica, em um catolicismo mais oficial e eclesiástico, ele suscita muitas polêmicas. Se bem que é possível perceber que estamos diante de um claro processo de superação de muitas delas. E afirmo isto porque percebo que cada vez mais a devoção ao Padre Cícero é aceita por agentes de um catolicismo mais oficial, por um número cada vez maior de padres e bispos. Talvez de um santo popular outsider, cuja devoção se dava de forma um tanto quanto marginal em relação a um catolicismo mais oficial, o santo Padre Cícero esteja pouco a pouco se aproximando dos cânones através do qual a Igreja Católica reconhece oficialmente seus santos. Pensar num processo de canonização do Padre Cícero tornou-se algo possível.

A questão da obediência
De certa forma, todos os debates em torno do Padre Cícero, dentro da Igreja, tem alguma relação com o problema da obediência. Todos os debates internos e que dizem respeito ao Padre Cícero – Ele era ou não um sacerdote virtuoso? Era ou não um homem santo? Era ou não demasiadamente um homem da política? – tendem e tenderão a serem relativizados quando esta questão da obediência for mais bem compreendida e equacionada. Agora, se tudo isto está acontecendo, é mérito, em uma grande medida, dos devotos do Padre Cícero, de seus romeiros. Foram eles e ainda são, mesmo com todas as objeções e desconfianças em relação a esta sua fé, que mantiveram e mantêm a devoção ao Padre Cícero como um dos maiores e mais relevante casos de devoção popular no Brasil.

IHU On-Line - Quais as características dos romeiros de Padrinho Cícero?
Antônio Braga - Se fôssemos definir a maioria dos romeiros do Padre Cícero em três palavras seria: nordestinos, pobres, perseverantes. Padre Cícero é, dentre outras coisas, um santo dos nordestinos pobres. É impressionante como são muitos, até milhares, o número de nordestinos pertencentes às camadas sociais mais pobres do Nordeste que se identificam com o Padrinho Cícero. Uma boa questão é procurarmos entender por que alguém como Padre Cícero foi capaz de atrair tantas pessoas pertencentes aos segmentos mais pobres e marginalizados da sociedade em torno de si, ou de que forma ele se converteu num santo para essas pessoas.

IHU On-Line - Que elementos fizeram de Pe. Cícero um fenômeno social, político e religioso?
Antônio Braga - Boa parte desses elementos estão dispersos nas várias décadas através das quais Padre Cícero, ainda em vida, foi construindo um determinado tipo de relacionamento com os romeiros. Um relacionamento sustentado numa perspectiva religiosa, mas que abrangia também relações do tipo social, econômica e política. Padre Cícero, por exemplo, exercia uma autoridade religiosa sobre os romeiros. Mas também era um provedor nos casos de necessidades materiais e políticas. Em contrapartida, eram os próprios romeiros que legitimavam a autoridade religiosa e moral do Padre Cícero. Eram eles os sustentáculos da autoridade política, social e econômica do sacerdote. Se estabeleceu entre Padre Cícero e seus romeiros um vínculo, uma relação de dom e contra-dom que nem a morte doPadrinho Cícero foi capaz de romper.

Como o povo aproximou padre Cícero da Igreja

“Valei-me padre Cícero!” Na boca do sertanejo nordestino, a expressão é mais comum do que a prece a qualquer santo oficial da Igreja Católica. Mesmo perseguida e relegada a uma categoria inferior de devoção por muitos anos, a fé no “padim Ciço” segue inabalável no cotidiano dessa gente. Assim, o ‘santo’ que a Igreja não reconhece ser santo vai se tornando cada vez mais ‘santo’. A reportagem e a entrevista é de Emilio Sant’Anna e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 29-06-2008.

Chamado em 2002 para participar de uma comissão de pesquisadores com o objetivo de resgatar a imagem do padre, o antropólogo Antônio Mendes da Costa Braga passou três anos em contato com o cotidiano dos romeiros que todos os anos migram para Juazeiro do Norte, no sertão cearense, para entender o que move a fé daquele povo.
Para eles, a idéia do que é ser santo não é a mesma da Igreja. Isso somado à própria trajetória do padre Cícero Romão Batista e sua santificação extra-oficial pelos devotos geraram anos de marginalização da fé desses romeiros. A pesquisa de Braga virou sua tese de doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), agora transformada no livro Padre Cícero Sociologia de um Padre, Antropologia de um Santo (Edusc, 364 págs, R$ 41).
Nessa entrevista, Braga mostra como as posições tão diferentes entre a fé popular e o reconhecimento da Igreja tendem a se igualar e como o dia em que padre Cícero será considerado oficialmente santo pode estar próximo.

Eis a entrevista.
Hoje, o litígio entre a devoção ao padre Cícero e a Igreja é menor do que já foi?
Claramente, por parte do poder eclesiástico, há um processo de absolvição dessa devoção, a começar pela releitura da figura do padre e da relação da Igreja com essa fé. Mudou substancialmente. É um processo de aproximação.
Essa aproximação pode acabar na canonização do padre Cícero?
Não sei se existe esse objetivo claro. Mas, com o passar do tempo, isso se torna uma possibilidade cada vez mais real. Como antropólogo, percebo que por se tratar de uma das maiores devoções católicas no Brasil, mesmo não sendo um santo oficial, há cada vez mais uma presença da Igreja dentro das romarias, o que não acontecia anos atrás, quando a romaria existia de forma marginal. Antigamente, os bispos do Crato não participavam de nada que era ligado à devoção ao padre.
Há outro exemplo de participação da Igreja numa celebração que não é por ela oficializada?
O caso mais famoso é o do padre Pio, na Itália. A Igreja via com certa desconfiança a devoção ao padre Pio e hoje ele foi canonizado. Então, existem precedentes na história da devoção popular que aos poucos foi se mostrando importante e criando credibilidade.
A Igreja pode desprezar uma devoção como essa?
Se você pensar hoje no contexto brasileiro, não pode se dar ao luxo de desprezar o fiel e essa devoção. Especialmente num momento de reconfiguração do campo religioso brasileiro com o aumento do número de pessoas que não são praticantes de religião e sobretudo o aumento dos evangélicos.
Até que ponto o poder dessa manifestação de fé é capaz de mudar a posição da Igreja?
No livro, eu trabalho a questão do que é ser santo. Do ponto de vista da Igreja oficial há uma valorização de uma certa hagiografia - conjunto de valores, como a história do indivíduo, que justificam sua santidade -, já na devoção popular o ser santo passa pela relação do devoto com o santo. No caso do padre Cícero, essa relação existe há mais de 70 anos e cresce cada vez mais.
A visão do romeiro é completamente diferente da Igreja?
O romeiro não tem dúvidas de que o padre Cícero é santo. Você entende isso no momento em que entende a relação dele com o santo. O santo é aquele que está presente no seu cotidiano, aquele com quem ele pode se relacionar de forma direta. É uma relação pessoal. A força da santidade do padre Cícero está no fato de que ele se faz presente no dia-a-dia do fiel. É diferente da discussão no plano eclesiástico, onde toda a discussão é uma questão de pretérito, de entender o contexto em que ele viveu e como se comportou.
A devoção em padre Cícero deve continuar crescendo?

Acho que tende a se tornar cada vez mais pública. Ainda hoje, existe um certo constrangimento em admitir a devoção, principalmente pela classe média. A tendência é a redução desse estigma. Fonte: http://www.ihu.unisinos.br

A reabilitação do Padre Cícero Romão Batista (1844-1934), o "Padim Ciço"

O bispo da diocese brasileira de Crato, Dom Fernando Panico, divulgou nesse domingo, 13 de dezembro, durante a missa na catedral, que o padre Cícero Romão Batista foi reabilitado pela Santa Sédas sanções impostas pela Igreja Católica de 1892 a 1916.
A nota é de Francesco Gagliano, publicada no blog Il Sismografo, 14-12-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Durante a homilia na catedral de Cariri, Dom Fernando Panico declarou: "Hoje, por ocasião da solene abertura da Porta Santa da Misericórdia, nesta catedral de Nossa Senhora da Penha, quero anunciar com alegria à cara diocese de Crato e aos peregrinos de Juazeiro do Norte, um gesto concreto de misericórdia, de atenção e de afeto do Papa Francisco para nós: a Igreja Católica se reconcilia historicamente com o padre Cícero Romão Batista".
Em uma mensagem assinada pelo cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado da Santa Sé, enviada aDom Panico, se reconhece que a memória do padreCícero Romão Batista lembra uma obra pastoral que pode ser considerada como um instrumento de evangelização popular.
"É sempre possível, com a distância do tempo e o evoluir das diversas circunstâncias, reavaliar e apreciar as várias dimensões que marcaram a ação do Padre Cícero como sacerdote e, deixando à margem os pontos mais controversos, por em evidência aspectos positivos de sua vida e figura, tal como é atualmente percebida pelos fiéis."
A carta afirma que "é inegável que o padre Cícero Romão Batista, no arco de sua existência, viveu uma fé simples, em sintonia com o seu povo e, por isso mesmo, desde o início, foi compreendido e amado por esse mesmo povo".
O Papa Francisco, como reconheceu o bispo de Crato, apresenta o Padre Cícero como "um exemplo de um sacerdote em uma Igreja 'em saída', aberta aos problemas e aos desafios dos tempos modernos, para uma nova evangelização".
Essa declaração é a meta final de um processo que começou há mais de 15 anos por Joseph Ratzinger, na época prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. A carta na íntegra será publicada no próximo dia 20 de dezembro, como declarou o porta-voz da diocese de Crato.

Padre Cícero Romão Batista
Por Arnaldo Nesti, revista Religioni e Società
Permitam-me chamar a atenção para a figura do padre Cícero Romão Batista (1844-1934), do qual me ocupei casualmente, mas com interesse próprio, nessas semanas, participando de uma das romarias em sua honra, que foi realizada nos primeiros dias de fevereiro, para a Candelária, em Juazeiro do Cariri.
Em poucas palavras, o Padre Cícero nasceu em Crato, no nordeste brasileiro, em 1844, e foi ordenado padre em 1870, depois de ter completado os estudos no seminário de Fortaleza. Ainda hoje é lembrado, no claustro do seminário local, o ano da sua ordenação.
Ele chegou em 1871 em Juazeiro, um vilarejo de Crato, na época, que também é sede episcopal, além de municipal. Em 1889, ao distribuir a Comunhão, uma partícula sangrou na boca de Maria de Araújo. O fato se repetiu. A notícia se espalhou. Começou-se a gritar o milagre.
A reação da Cúria episcopal acabou suspendendo o jovem Padre Cícero a divinis. Em torno do Padre Cícero, criou-se um movimento popular de devota admiração. Em 1898, o Padre Cícero foi convidado a se apresentar ao Santo Ofícioem Roma. Apesar da suspensão temporária da pena, tendo voltado para Juazeiro, a sua pena foi reconfirmada.
O Padre Cícero, enquanto isso, também desempenhou um papel político, pelo desenvolvimento da comunidade deJuazeiro e pela sua autonomia administrativa e econômica, a tal ponto que, em 1913, foi eleito como o primeiro prefeito da nova comunidade que foi se formando, separando-se de Crato.
Nesse meio tempo, ele desempenharia um papel importante em todo o Ceará, enfrentando as dramáticas situações de conflito que, então, se apresentaram por causa das difíceis relações entre Crato e a nova Juazeiro. No coração do Nordeste, a região de Cariri é comparável à do Faroeste, expressão de profundos arcaísmos. Ausência do Estado, banditismo generalizado.
O Padre Cícero tornou-se objeto contínuo de peregrinação. A ele se dirigiam para pedir conselhos, orações, ajuda, cura. O Padre Cícero é pajé e cacique. Para alguns, o Padre Cícero não é nem um santo nem um herói. É um simples, humilde e devoto sacerdote igual a muitos outros do sertão do século XIX, que, por uma série de circunstâncias, transformou-se em uma das figuras mais controversas da história do Brasil.
Defensor involuntário de um milagre, foi denunciado pela Igreja como impostor, e por temerários líderes políticos como perigoso agitador, aclamado pelas massas famintas como santo capaz de libertar os pobres e os enfermos dos seus males.
Por um complexo jogo de fatores, um obscuro sacerdote se vê desempenhando tarefas das mais importantes na vida política do Ceará. Conservador por formação e convicção, sempre agiu como intermediário, visando a garantir o respeito da ordem vigente.
O Padre Cícero acumulou um pequeno patrimônio que deixaria de presente aos salesianos, enquanto, ainda obediente à Igreja, continuava esperando para ser readmitido no exercício do ministério sacerdotal. Para o povo, o Padre Cícero é vítima da injustiça e viveu como símbolo da virtude e da santidade.
Aos 90 anos, quando morreu, a notícia do seu falecimento parece incrível. Mas, ao seu redor, apesar da persistente hostilidade das instituições eclesiásticas, desenvolveu-se um grande movimento popular, a tal ponto que se tende a considerá-lo como um novo Francisco de Assis do Cariri.
A mais de 70 anos da sua morte, constantemente, mas especialmente por ocasião de algumas datas do ano, emJuazeiro, centenas de milhares de peregrinos chegavam em devota peregrinação, por devoção ao Padre Cícero e para manter uma promessa. Vinham, em particular, além do mês de fevereiro, no dia 24 de março, para lembrar a data de nascimento, e no dia 20 de julho, dia da morte.
Muitos chegavam com os pés descalços. Eu também pude me dar conta pessoalmente da maciça participação de multidões devotas. A imagem do Padre Cícero é sinal de proteção. Qual a posição da Igreja hoje? Por ocasião da recente peregrinação, durante a missa vespertina na praça dos peregrinos em frente ao santuário de Nossa Senhora das Dores, na presença do [então] cardeal arcebispo de São Paulo, Dom Claudio Hummes, foi anunciada a formação de uma comissão para a reabilitação histórica e eclesiástica do Padre Cícero, expressando um sentimento de otimismo, a fim de poder reescrever uma nova história religiosa de Juazeiro e do Padre Cícero.