“Valei-me padre Cícero!” Na boca do sertanejo nordestino, a expressão é mais comum do que a prece a qualquer santo oficial da Igreja Católica. Mesmo perseguida e relegada a uma categoria inferior de devoção por muitos anos, a fé no “padim Ciço” segue inabalável no cotidiano dessa gente. Assim, o ‘santo’ que a Igreja não reconhece ser santo vai se tornando cada vez mais ‘santo’. A reportagem e a entrevista é de Emilio Sant’Anna e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 29-06-2008.
Chamado em
2002 para participar de uma comissão de pesquisadores com o objetivo de
resgatar a imagem do padre, o antropólogo Antônio Mendes da Costa Braga passou três anos em contato com o
cotidiano dos romeiros que todos os anos migram para Juazeiro do Norte, no
sertão cearense, para entender o que move a fé daquele povo.
Para eles, a
idéia do que é ser santo não é a mesma da Igreja. Isso somado à própria
trajetória do padre Cícero Romão Batista e sua santificação extra-oficial pelos
devotos geraram anos de marginalização da fé desses romeiros. A pesquisa de Braga virou
sua tese de doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
agora transformada no livro Padre Cícero Sociologia de um Padre,
Antropologia de um Santo (Edusc,
364 págs, R$ 41).
Nessa
entrevista, Braga mostra como as posições tão diferentes
entre a fé popular e o reconhecimento da Igreja tendem a se igualar e como o
dia em que padre Cícero será considerado oficialmente santo pode estar próximo.
Eis a entrevista.
Hoje, o litígio entre a devoção ao padre Cícero e a Igreja é menor
do que já foi?
Claramente, por parte do poder eclesiástico, há um
processo de absolvição dessa devoção, a começar pela releitura da figura do
padre e da relação da Igreja com essa fé. Mudou substancialmente. É um processo
de aproximação.
Essa aproximação pode acabar na canonização do padre Cícero?
Não sei se existe esse objetivo claro. Mas, com o passar
do tempo, isso se torna uma possibilidade cada vez mais real. Como antropólogo,
percebo que por se tratar de uma das maiores devoções católicas no Brasil,
mesmo não sendo um santo oficial, há cada vez mais uma presença da Igreja
dentro das romarias, o que não acontecia anos atrás, quando a romaria existia
de forma marginal. Antigamente, os bispos do Crato não participavam de nada que
era ligado à devoção ao padre.
Há outro exemplo de participação da Igreja numa celebração que não
é por ela oficializada?
O caso mais
famoso é o do padre Pio, na Itália. A Igreja
via com certa desconfiança a devoção ao padre Pio e hoje ele foi canonizado. Então,
existem precedentes na história da devoção popular que aos poucos foi se
mostrando importante e criando credibilidade.
A Igreja pode desprezar uma devoção como essa?
Se você pensar hoje no contexto brasileiro, não pode se
dar ao luxo de desprezar o fiel e essa devoção. Especialmente num momento de
reconfiguração do campo religioso brasileiro com o aumento do número de pessoas
que não são praticantes de religião e sobretudo o aumento dos evangélicos.
Até que ponto o poder dessa manifestação de fé é capaz de mudar a
posição da Igreja?
No livro, eu trabalho a questão do que é ser santo. Do
ponto de vista da Igreja oficial há uma valorização de uma certa hagiografia -
conjunto de valores, como a história do indivíduo, que justificam sua santidade
-, já na devoção popular o ser santo passa pela relação do devoto com o santo.
No caso do padre Cícero, essa relação existe há mais de 70 anos e cresce cada
vez mais.
A visão do romeiro é completamente diferente da Igreja?
O romeiro não
tem dúvidas de que o padre Cícero é santo. Você entende isso no momento
em que entende a relação dele com o santo. O santo é aquele que está presente
no seu cotidiano, aquele com quem ele pode se relacionar de forma direta. É uma
relação pessoal. A força da santidade do padre Cícero está no fato de que ele se faz
presente no dia-a-dia do fiel. É diferente da discussão no plano eclesiástico,
onde toda a discussão é uma questão de pretérito, de entender o contexto em que
ele viveu e como se comportou.
A devoção em padre Cícero deve continuar crescendo?
Acho que tende a se tornar cada vez mais pública. Ainda
hoje, existe um certo constrangimento em admitir a devoção, principalmente pela
classe média. A tendência é a redução desse estigma. Fonte: http://www.ihu.unisinos.br
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