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segunda-feira, 2 de junho de 2014

Santo Agostinho, o amor, o sexo e o pecado... Um mal entendido?

Em sua intervenção no festival Philosophia, do qual La Vie é parceiro, o jesuíta Dominique Salin, professor de teologia e de literatura espiritual no Centro Sèvres, em Paris, varre os clichês segundo os quais Agostinho teria feito a Igreja pagar por sua renúncia à sexualidade. A reportagem é de Isabelle Francq e publicada no sítio da revista francesa La Vie, 09-05-2014. A tradução é de André Langer. Fonte: http://bit.ly/1krrLwV        
Embora esteja no centro das preocupações humanas, o amor não se mistura bem com a filosofia e, exceto Platão, poucos pensadores da Antiguidade fizeram dele um objeto de reflexão. Em Santo Agostinho, ao contrário, entre pecado e piedade, o amor é central. Para melhor demonstrar isso, essa grande figura da teologia que foi o primeiro a praticar a arte da autobiografia, detém-se sobre a sua experiência da paixão.
Antes da palestra que fará no festival Philosophia de Saint-Émilion, este ano dedicado ao amor, Dominique Salin, jesuíta e especialista em Agostinho, fala-nos sobre este grande pensador, ainda desconhecido, do Ocidente.

Um ex-mulherengo?
Um Don Juan arrependido, fulminado pela graça aos 33 anos, Agostinho (354-430) teria feito o cristianismo pagar sua própria renúncia à carne. Quando falamos de Santo Agostinho e do amor, devemos imediatamente abandonar esse clichê. No início do século V, seria ele, o bispo de Hipona (atual Annaba, na Argélia), o responsável pela doutrina cristã da sexualidade marcada pela proibição, pelo sentimento de culpa. Afinal, não é Agostinho o inventor do pecado original? Este pecado não vai estar em parte relacionado à sexualidade? Para muitos, a culpa de Adão e Eva foi ter comido da maçã, e de nos ter transmitido geneticamente, isto é, sexualmente, um desejo ilimitado por essa fruta metafórica, tão conhecida. A realidade é mais complexa e bela, filosófica e poeticamente.
“Eu me esbanjava e ardia nas minhas fornicações.” É a partir dessas observações que se esculpiu em Agostinho um costume e arrependido debochado. E não deixamos de notar que a sua primeira decisão, após sua conversão aos 33 anos, foi despedir sua concubina. A violência com que ele fustiga, em suas Confissões, o pecador que ele era, seria para alguns o sinal de uma forma doentia de obsessão sexual. As extravagâncias das quais Agostinho se acusa dizem respeito, porém, principalmente às férias forçadas que ele passa em Tagaste (Argélia), sua cidade natal, em torno dos 15 anos. Sendo seu pai um agricultor pobre, teve que esperar por uma bolsa para fazer seus estudos de retórica. Para passar o tempo, ele ia à missa aos domingos para aí arrastar as meninas (Confissões III, 3).
Essas loucuras não duraram muito. Aos 17 anos, estudante em Cartago, ele se casa com a mulher da sua vida, a mãe do seu filho, a quem será fiel durante 15 anos. Ele rompe com essa mulher que ele amava um ano antes da sua conversão, isto é, da sua decisão de se fazer batizar e tornar-se monge. Ruptura por razões de arrivismo. Na verdade, instalado na corte de Milão, orador titular do imperador – um adolescente sob a regência da sua mãe –, está prestes a ser nomeado governador de uma província do Império, ele atinge o topo da honras, mas não tem sorte. Ele termina com sua noiva para se prometer a uma rica herdeira. No entanto, ela tinha apenas 12 anos. A idade legal era 14 anos. Ele deve, portanto, esperar.
"(...) Incapaz de suportar o prazo imposto (dois anos antes de conseguir o que eu pedi), e menos afeito ao casamento que escravo da paixão, eu fui ao encontro de outra mulher; não era, certamente, para me casar, mas para alimentar a doença da minha alma e fazê-la perdurar, sob o olhar atento do Hábito, e isso até a chegada da esposa.” Cego da dependência do seu impulso sexual, a vergonha que aqui expressa é um ponto decisivo da concepção de amor de Agostinho. De fato, até esse dia de agosto 386 quando ouve uma voz vinda do além e decide fazer-se batizar e tornar-se monge, ele se julgou incapaz de viver na continência. Isso era para ele um sofrimento, uma frustração.
No início dos estudos, a leitura de Cícero e do estoicismo havia semeado nele o desejo de tornar-se um sábio, isto é, um santo. A valorização da continência não é uma invenção cristã. Ela não é dominante na sabedoria greco-romana pagã, mas também não está totalmente ausente; Plotino, o grande neoplatônico pagão, era celibatário. Isso não foi suficientemente enfatizado: o ideal de santidade que Agostinho se fixou aos 16 anos contemplava a continência. Mas, no momento em que ele está apaixonado, casa-se. A partir de então, sua vida conjugal é marcada por uma consciência deformada. Ele enfatiza que o fato de estar casado impediu-o de crescer em sua vida espiritual. Tudo muda quando ele aceita o que sente ser um convite de Cristo e de São Paulo para "tornar-se eunuco pelo Reino de Deus". Ele, finalmente, encontra a paz do coração, escreveu. Certamente, a continência é difícil. Mas ele nunca se arrependerá disso.

No princípio, o desejo
Para Agostinho, o amor ultrapassa o amor sexual. Amar é, em latim, appetere ("um apetite"); é motus ad aliquid, “um movimento em direção a algo”, ou alguém. O amor é desejo. Ele tem essa frase maravilhosa: “O amor estende o desejo e o desejo estende o amor”. O amor é tão natural ao homem quanto o desejo. É o desejo que faz o ser humano. O animal é conduzido por seus reflexos, instintos e necessidades. O homem também, mas ele é capaz de adiar a satisfação em vista de um prazer (delectatio) superior.
Ser de desejo, o homem é, portanto, marcado pela falta. Atrás de qual delectatio correr? O bem supremo, a "vida feliz", a "bem-aventurança", responde Agostinho. O estado psicológico que lhe corresponde é a alegria. Ele diz: o homem é feito para a alegria e Deus é a alegria do homem. Assim, buscando sua delectatio, é Deus que o homem procura, quer saiba ou não. “Tu nos fizeste para ti, Senhor, e o nosso coração está inquieto (inquietum) até que descanse em ti (quiescat in te).”
O desejo, infinito, de absoluto é, no homem, a marca de fábrica de Deus. O desejo de Deus, o amor de Deus, é o motor do homem. Quando ele pensa em procurar a segurança, o prazer, a tranquilidade, a serenidade, a justiça, quando ele pensa amar o dinheiro, as mulheres, o sucesso, na verdade, está buscando a Deus, diz Agostinho. A glória ou a alegria nunca serão suficientes. O desejo, ou melhor, a necessidade, incessantemente renascerá. Mas na maioria das vezes, o nosso desejo erra de alvo. A tendência do indivíduo de se preferir a si mesmo aos outros e de ver nas outras criaturas o meio de satisfazer suas necessidades leva, na teologia de Agostinho, a um nome fatal: o pecado original. Ele deforma o amor em amor de si, em vez de ser, em primeiro lugar, amor de Deus.

Os dois amores
Assim se esboça a antropologia agostiniana. Há apenas um amor, porque o desejo é um. Mas esse amor pode assumir duas formas incompatíveis de acordo com o objeto ao qual ele se dirige. Agostinho escreveu: "Quem ama quer formar um com quem ama”. Em consequência: “O ser humano torna-se o que ele ama: aquele que ama a terra, torna-se terra; aquele que ama o Deus eterno irá compartilhar da eternidade com Deus”. Este é o tema das duas cidades – terrestre e celeste – que ele formula em A Cidade de Deus (Volume 2, XIV, 28).
A chave da história humana é a oposição entre o amor que dá a primazia a Deus e aquele que ama, em primeiro lugar, a si mesmo, ao passo que ele ama as criaturas pelas vantagens que disso pode obter. No primeiro caso, o amor é mediado pelo amor de Deus: eu amo as criaturas com um amor que as respeita, que me respeita e que me permite respeitar a Deus. Eu O respeito em suas criaturas, através delas. No segundo caso, eu não respeito as criaturas, nem Deus nelas. Eu as amo pelos interesses que posso obter, pelo uso que posso fazer delas. E eu instrumentalizo o próprio Deus em vista do meu benefício. A primeira forma de amor Agostinho chamou de amor ou caritas ou dilectio. A outra, que instrumentaliza a Criação e o próprio Deus, ele a chama de cupiditas ou concupiscentia ou libido.

O “Pecado original”
O ideal seria viver permanentemente do amor e da caritas: “Amemo-nos uns aos outros!” Mas o mundo é marcado pelo mal, pelo sofrimento, pela concupiscência – que Agostinho chamou, na linha de São Paulo, de pecado. Desde a sua concepção, o ser humano é afetado pela violência, pela injustiça e pelo sofrimento. Ele sofrerá as consequências sendo ele próprio conduzido à violência, à injustiça, à ganância e à falsidade. Porque seus antepassados estão marcados por isso, desde Adão, desde as origens. Pecado original, universal; pecado das origens, que não poupa ninguém. Será preciso ter a ingenuidade de Jean-Jacques Rousseau para imaginar que a criança nasce pura e inocente. Freud, por sua vez, sobre este ponto, dá razão a Agostinho e à Bíblia.
Agostinho não é o inventor do pecado original. Ele o encontrou em São Paulo. Ele formalizou a doutrina e a endureceu na sua luta contra o pelagianismo, no final da sua vida. Para o herege Pelágio, o homem em si mesmo é saudável. Ele encontra em si mesmo os recursos necessários para alcançar a virtude, a santidade e a união com Deus. Agostinho respondeu-lhe que o homem comete o mal que não gostaria de cometer e não consegue praticar o bem que gostaria. O pecado é um mistério que nos ultrapassa. Somente Cristo pode iluminar o homem e guiá-lo para a luz.
Essa visão pessimista da natureza humana se agrava na aurora dos tempos modernos, quando Lutero e os jansenistas releem Agostinho e endurecem e caricaturizam seu pensamento. "Como o coração do homem é oco e cheio de lixo!", exclamou Pascal (Pensées, Sellier181, Lafuma 148). Mas podemos ser cristãos sem ser jansenistas. É verdade que o pecado original foi muitas vezes apresentado nos catecismos como uma doença sexualmente transmissível desde Adão. Daí a dizer que o ato de procriação é sujo, é apenas um passo. Dizia-se que fazer amor no casamento, era um pecado permitido. Devemos reconhecer que a concepção de sexualidade de Agostinho inclinou-se para esse lado. O caráter, às vezes, incontrolado da pulsão sexual parecia-lhe uma desordem; uma forma de violência desordenada que não estava nos planos de Deus. Ele via nisso um sintoma e uma consequência do pecado original.

"Ama e faz o que quiser!"
Para Agostinho, pode-se amar um homem ou uma mulher, a música, seu trabalho, seus filhos, seus amigos e também amar a Deus. Pode-se amar a Deus como se ama a sua esposa? A resposta encontra-se nas Confissões X, livro 6. Ele descreveu com as mesmas palavras o amor humano e o amor divino. Elas tomam um sentido metafórico quando se trata de Deus. Elas são deficientes também quando se trata do amor. Para dizer o amor, a linguagem menos inadequada é a da poesia, da música: da imagem, da metáfora. A linguagem poética não pretende dizer o indizível, divino ou humano, mas apenas sugeri-lo. É dessa maneira que toca o nosso coração.
Há em mim mais do que eu mesmo. Há em mim alguém outro, há em mim um Outro. Arthur Rimbaud disse-o melhor que ninguém: “‘Eu’ é um outro”. Este outro nele, Agostinho chama de “homem interior”: é ele que toma Deus em seus braços, é ele que Deus toma em seus braços. Eles são um, como o homem e a mulher. É a maneira de dizer o que o Mestre Eckhart afirmará no século XIV: “Deus e eu somos um, somos semelhantes, somos iguais”. Nesse nível, o mistério de Deus e o mistério do homem são o mesmo. Falar de Deus e falar do homem é a mesma coisa.
"Fale-me sobre o amor...". Tudo bem, mas como saber se é realmente o amor que me faz agir? Que garantia eu tenho contra os erros e as ilusões? Para o Evangelho, o amor é julgado pelos frutos. Agostinho não nega isso, e sua homilia sobre a Primeira Epístola de João (7,7-8) mostra como ele é sensível à complexidade das situações. Mas, para ele, é o amor que pode e deve ser a regra da ação. Sempre o Amor.

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