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quinta-feira, 5 de junho de 2014

*Explicação das leituras de PENTECOSTES: O NASCIMENTO DA IGREJA.

Pe. Bortolini
I. INTRODUÇÃO GERAL
No Pentecostes, coroa do Ciclo da Páscoa, todos nascemos e renascemos continuamente. Nascemos para a vida no Espírito e renascemos para o projeto de Deus, procurando falar a linguagem do Espírito para o mundo de hoje. Bebendo o mesmo Espírito que foi a base da ação e da palavra de Jesus, a comunidade cristã provoca o julgamento de Deus (evangelho). Reunida pelo Espírito de Jesus, torna-se a epifania de Deus, proclamando suas maravilhas (I leitura), levando o projeto de Deus a todos os povos. Forma o corpo de Cristo e bebe do único Espírito. Por isso, na comunidade cristã, cada pessoa é um dom do Espírito para formar a comum-unidade (II leitura). Ninguém possui plenamente o Espírito e ninguém está privado dele. Na união de todos é que se forma o corpo de Cristo, o templo do Espírito Santo.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. Evangelho (Jo 20,19-23):
A comunidade recebe o mesmo Espírito que animou Jesus
Nos evangelhos, João e Lucas têm perspectivas diferentes quanto a Pentecostes. Para João, ele se dá no próprio dia da ressurreição de Jesus, ao passo que Lucas faz coincidir a vinda do Espírito Santo com a festa judaica de Pentecostes, cinqüenta dias após a Páscoa. Embora as perspectivas sejam diferentes, a finalidade é a mesma, pois ambos mostram que o Espírito que sustentou a luta de Jesus para realizar o projeto de Deus é o mesmo Espírito que anima agora as lutas da comunidade cristã.
Fazendo coincidir Páscoa e efusão do Espírito no mesmo dia, o Evangelho de João quer sublinhar a continuidade entre Jesus e seus discípulos. O Espírito que agiu permanentemente em Jesus é comunicado aos seguidores no mesmo dia da ressurreição, sem pausas ou interrupções.

a. A criação da comunidade messiânica (vv. 19-21a)
O texto se inicia situando a cena no tempo. É a tarde do domingo da Páscoa. Para os judeus, já havia iniciado um novo dia. Para João, contudo, é ainda o dia da ressurreição, a nova era inaugurada pela vitória de Jesus sobre a morte. De fato, no Quarto Evangelho, tudo o que acontece depois da ressurreição de Jesus se insere num “dia pascal” que não tem fim. É a vitória definitiva da vida sobre a morte. A referência à tarde de domingo reflete a práxis cristã de se reunir para celebrar a memória da morte e ressurreição de Jesus. As portas fechadas mostram um aspecto negativo (o medo dos discípulos) e um aspecto positivo (o novo estado de Jesus ressuscitado, para quem não há barreiras).
Jesus se apresenta no meio da comunidade (ele é o centro e a razão de ser da comunidade) e saúda os discípulos com a saudação da plenitude dos bens messiânicos: “A paz (shalom) esteja com vocês!” É a mesma saudação de quando Jesus se despediu (cf. 14,27). Por sua morte e ressurreição, ele se tornou o vencedor do mundo e da morte. E por isso pode comunicar a paz, a plenitude dos bens. É, portanto, a saudação do vencedor que ainda traz em si os sinais da vitória nas mãos e no lado (v. 20). É a saudação do Cordeiro, do qual a comunidade vai alimentar-se. As cicatrizes de Jesus são uma característica dos textos joaninos (cf. Ap 5,6). O Ressuscitado não pode ser anunciado apenas em seu aspecto glorioso. As cicatrizes são memória permanente das torturas sofridas.
            Os discípulos estão de portas fechadas. São uma comunidade medrosa, pois ainda não possuem o Espírito de Jesus. O medo é um freio que lhes bloqueia a tarefa de testemunhar o Cristo ressuscitado. Jesus, presente nessa comunidade, transforma totalmente a situação, capacitando-os a ser os anunciadores da vitória de Jesus sobre os mecanismos de morte.
A reação da comunidade é a alegria (cf. 16,20) que ninguém, de agora em diante, poderá suprimir (cf. 16,22).

b. A comunidade continua a missão de Jesus (vv. 21b-23)
Fortificada pela presença de Jesus, a comunidade está pronta para a mesma missão que ele recebeu: “Como o Pai me enviou, assim também eu envio vocês” (v. 21b). Quem vai garantir a missão da comunidade será o Espírito Santo. Para João, a comunicação do Espírito acontece aqui, na tarde do dia da ressurreição: “Tendo falado isso, Jesus soprou sobre eles, dizendo: Recebam o Espírito Santo!” (v. 22). O sopro de Jesus é a nova criação e remete ao que Javé fez quando criou o ser humano (cf. Gn 2,7). É o sopro da vida nova. Aqui nasce a comunidade messiânica.
De agora em diante, batizados no Espírito Santo como Jesus (cf. 1,33), os cristãos têm o encargo de continuar o projeto de Deus. Esse projeto é sintetizado desta forma: “Os pecados daqueles que vocês perdoarem, serão perdoados; os pecados daqueles que vocês não perdoa-rem, não serão perdoados” (v. 23). O que é pecado para João? Consiste essencialmente em comprometer-se com a ordem injusta que levou Jesus à morte (e que hoje, de muitas formas, continua matando gente). Jesus veio para levar a vida à sua máxima expressão, e isso para todos. Mas seu projeto recebeu forte oposição dos que querem a vida só para si. Aí está a raiz do pecado, de acordo com o Evangelho de João. Os pecados são atos concretos decorrentes dessa opção fundamental contra a liberdade e a vida das pessoas.
Diante disso, qual é a tarefa da comunidade cristã? Jesus lhe dá o poder de perdoar ou não perdoar. Ela executa essa função mostrando onde está a vida e onde se aninha a morte; promovendo a vida e quebrando os mecanismos que procuram destruí-la; conscientizando as pessoas e desmascarando os interesses ocultos dos poderosos. Assim, os cristãos provocam o julgamento de Deus. Tarefa ímpar das comunidades cristãs, nem sempre fiéis a essa vocação. O que significa, por exemplo, não perdoar os pecados dos latifundiários, dos corruptos, dos políticos que utilizam o poder para defender seus interesses?
“Os discípulos continuam a ação de Jesus, pois ele lhes confere a mesma missão (20,21). Pelo Espírito que dele recebem, tornam-se suas testemunhas perante o mundo (15,26ss). Sua ação, como a de Jesus, é a manifestação, em atos concretos, do amor gratuito e generoso do Pai (9,4). Diante desse testemunho, acontecerá o mesmo que aconteceu com Jesus: haverá quem o aceite e quem endureça numa atitude hostil ao homem, rejeitando o amor e se voltando contra ele, chegando inclusive a perseguir e matar os discípulos em nome de Deus (15,18-21; 16,1-4). Não é missão da comunidade, como não era a de Jesus, julgar os homens (3,17; 12,47). Seu julgamento, como o de Jesus, não é senão o de constatar e confirmar o juízo que o homem faz de si próprio” diante do projeto de Deus (J. Mateos-J. Barreto, O Evangelho de São João, Paulus, São Paulo, 2ª edição, 1998).

2. I leitura (At 2,1-11):
O Espírito ensina a comunidade cristã a continuar o projeto de Deus

Páscoa e Pentecostes eram festas agrícolas muito antigas em Israel. Com o passar dos tempos, foram transformadas em festas religiosas: Páscoa revivia a saída do Egito; Pentecostes recordava o dia em que Moisés, no monte Sinai, recebeu a Lei, tida como o maior presente de Deus ao povo.
Quando Lucas escreveu os Atos dos Apóstolos (cerca de meio século após o Pentecostes), a evangelização já havia alcançado todas as nações até então conhecidas (os confins do mundo; cf. At 1,8). Isso quer dizer que, quando esse livro foi escrito, todos os povos que Lucas diz estar em Jerusalém no dia de Pentecostes já tinham recebido o anúncio de Jesus, já tinham sido evangelizados. Por que, então, Lucas recorda o evento de Pentecostes? Ele quer mostrar a universalidade do povo de Deus e da evangelização. Na ótica da fé, tudo isso é obra do Espírito de Jesus.
Ao descrever o episódio de Pentecostes, Lucas se serve de esquemas já presentes no Antigo Testamento. Ele situa a vinda do Espírito Santo cinqüenta dias após a Páscoa para fazê-la coincidir com o Pentecostes judaico, no qual o povo judeu celebrava o dom da Aliança no Sinai, a entrega da Lei (Decálogo), o surgimento de um arranjo social comprometido com a vida e a justiça. De fato, segundo Ex 19, cinqüenta dias depois que o povo saiu do Egito, Deus fez aliança com ele no monte Sinai, entregando-lhe, por meio de Moisés, a Lei. O fato foi acompanhado de trovões, relâmpagos e trombeta tocando. Ora, esse episódio é uma das bases sobre as quais Lucas constrói a narrativa do Pentecostes: cinqüenta dias após a Páscoa, estando os discípulos reunidos em Jerusalém, houve um barulho como o rebentar de forte ventania (At 2,1-2). Com isso, Lucas afirma que, em Jerusalém, se realiza a Nova Aliança; surge o Novo Povo de Deus; é dada a Nova Lei: o Espírito Santo.
Lucas se inspira em outro texto do Antigo Testamento: Números 11,10-30, em que Deus repartiu seu Espírito sobre Moisés e os setenta anciãos, para que pudessem organizar o povo. E Moisés exprimiu o desejo de que todo o povo recebesse o Espírito de Javé (Nm 11,29). Esse substrato serviu de molde para Lucas, a fim de mostrar que, finalmente, o Espírito de Deus foi derramado sobre todos no dia de Pentecostes. No início do evangelho, o Espírito tomara conta de Jesus (cf. Lc 4,18). No início dos Atos, o mesmo Espírito toma posse de todas as pessoas.
Finalmente, Lucas se serve de Gênesis 11,1-9, o episódio da torre de Babel, onde Deus confundiu a ambição das pessoas, que não se entendiam mais. Para Lucas, o Pentecostes é o oposto de Babel: aqui, “todos nós os escutamos anunciarem, em nossa própria língua, as maravilhas de Deus” (2,11).
Com o episódio de Pentecostes assim formulado, Lucas faz ver que a comunidade cristã é o novo povo de Deus, o povo da Nova Aliança, cuja Lei é o Espírito Santo. Não há fronteiras para esse povo, e o objetivo comum é viver o projeto de Deus. Esse povo é capaz de se entender e se unir porque fala a língua do Espírito de Jesus. De fato, o Espírito Santo é a memória sempre renovada e atualizada do que Jesus fez e disse (cf. Jo 14,26). Entregando seu Espírito, Deus realiza com a comunidade cristã a nova e definitiva Aliança, na consecução do projeto divino, confiado agora aos que sonham com a humanidade livre de todas as formas de opressão, violência e morte.
Não se deve confundir o fenômeno de Pentecostes com o falar línguas estranhas de 1Cor 12-14. Em At 2,1-11, todos os que estão aí à escuta – há gente de três continentes – ouvem na própria língua (entendem perfeitamente) o anúncio das maravilhas de Deus.

3. II leitura (1Cor 12,3b-7.12-13):
Ninguém possui plenamente o Espírito; ninguém é privado dele! A comunidade é o corpo de Cristo!
O texto de hoje se inicia apresentando o critério básico de distinção entre o que procede e o que não procede do Espírito Santo. Esse critério básico é o reconhecimento de Jesus como o único Senhor (v. 3b). Tudo o que não leva a isso não provém do Espírito. É provável que alguém, em Corinto, julgando-se movido pelo Espírito, tenha dito grave blasfêmia: “Maldito Jesus!” (cf. 12,3a). Para Paulo, a ação do Espírito leva sempre à confissão de que Jesus é o Senhor.
Os coríntios achavam que ter carisma fosse possuir dons extraordinários, como o falar em línguas estranhas e profetizar. Sua visão dos carismas era muito redutiva e personalística. Paulo começa abrindo brechas, afirmando que são distribuídos muitos dons (não alguns somente), mas o Espírito que os distribui é o mesmo: é o Espírito de Jesus (cf. 12,4). Toda ação tem sua origem no Pai; o que os cristãos fazem se baseia na ação de Jesus (cf. vv. 5-6). Note-se aí a formulação trinitária. Em Deus não há divisão, mas harmonia. Tudo colabora na execução do projeto de Deus. O mesmo se verifica na comunidade cristã: “A cada um é dado algum sinal da presença do Espírito Santo, para o bem comum” (v. 7). É uma quase definição de carisma. Mas salienta que o movimento do carisma é de dentro para fora, e não o contrário.
A seguir, Paulo emprega a imagem do corpo. Ele está pensando no corpo humano, que tem muitos membros, mas ao mesmo tempo pensa no corpo social, a comunidade cristã, que forma um todo com Cristo (v. 12; cf. 6,15: “Vocês não sabem que seus corpos são membros de Cristo?”). Então, pensa Paulo, se em Jesus, com o Pai e o Espírito, não há divisões apesar da diversidade, como pode havê-las na comunidade, que é o corpo de Cristo? De fato, o anúncio do evangelho em Corinto havia unido povos, categorias e classes sociais incompatíveis até então: judeus e gregos, escravos e livres (v. 13a; cf. Gl 3,28, que é uma das grandes sínteses do evangelho de Paulo).
O batismo havia elevado todos a um nível jamais atingido antes: todos receberam o mesmo Espírito, a fim de constituir um só corpo social, sem rupturas ou distinções: a comunidade cristã, corpo de Cristo. Assim, todos se alimentam e se inspiram na mesma fonte, que é o Espírito Santo (v. 13b). Têm sentido, portanto, as divisões escandalosas que as comunidades criam em torno de interesses pessoais, posições ou tarefas mais vistosas? Não é um atentado ao corpo de Cristo e ao Espírito de Jesus? Não é um atentado ao projeto de Deus?

III. PISTAS PARA REFLEXÃO
• Analisar a coordenação pastoral: com que espírito agimos na comunidade cristã? Que sentido têm os encargos, os postos, os serviços? É o Espírito de Jesus quem anima toda a pastoral?
• A diversidade dos membros da comunidade é fator de crescimento mútuo? Manifesta o novo povo de Deus nascido do Espírito? Nossas comunidades são Pentecostes ou Babel?
• O projeto de Deus continua na comunidade: somos abertos à nova criação do Espírito ou vivemos medrosos e de “portas fechadas”? Provocamos o “julgamento de Deus” numa sociedade que rejeita sistematicamente o projeto de Deus ou não nos distinguimos em nada da sociedade injusta e corrupta em que vivemos?
• Pentecostes é tempo de ecumenismo. Qual seria a grande proposta ecumênica que o Espírito nos faz? Não seria tempo de unir as pessoas do mundo inteiro, independentemente do credo que professam, em torno de um mesmo objetivo, a justiça e a vida para todos? Não seriam as palavras “justiça” e “vida” o novo sopro do Espírito?

*Da Revista Vida Pastoral – Pe. Bortolini

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