Total de visualizações de página

Seguidores

quinta-feira, 16 de julho de 2015

A PALAVRA... Nº 936. A Novena acabou, e agora?

SENHORA DO CARMO: Canto.

Maria na espiritualidade do nosso tempo

*Dom Frei Vital Wilderink, O Carm, In Memoriam.
(Congresso Mariano Mariológico – Recife/PE. 11/07/2001)

A espiritualidade nasce de uma expectativa do ser humano  diante do mistério. Criado à imagem de Deus, ele já traz em si algo que é maior do que seu coração. Expectativa freqüentemente anônima, mas presente no tecido da nossa história. Só o mistério maior pode responder a esta nossa  expectativa. Deus cruzou o limiar da sua transcendência mediante seu Filho único que atravessou a extensão do universo para colocar-se nos caminhos do homem. Concebido pelo poder do Espírito Santo, nasceu da virgem Maria. Em Maria Deus assumiu a humanidade para que nós pudéssemos ter acesso à divindade, fazendo em sentido inverso o caminho que o conduziu até nós.   A relação do ser humano com Deus, passa pela realidade pessoal do Filho encarnado. É por Cristo, com Cristo, em Cristo que se estabelece a nossa relação  com o próprio mistério da Trindade. Não é uma  relação simplesmente acrescentada à nossa realidade humana. Ela transforma o ser do homem por dentro: “Vede que grande presente de amor o Pai nos deu: sermos chamados filhos de Deus! E nós o somos!”(1Jo 3, 1). Maria foi a primeira criatura atingida por esse plano de Deus. Nela a Palavra de Deus manifestou toda a sua fecunda eficácia. Maria tinha razão para dizer: “Daqui para a frente me felicitarão todas as gerações”. O presente Congresso nos coloca no meio dessas gerações.
            Não teria muito sentido alegrar-se com Maria se essa alegria não brotasse de dentro de nós mesmos, ou seja da nossa própria espiritualidade. Sem uma consciência de fé, pelo menos incoativa, no mistério do amor de Deus, nem teríamos razões para chamar Maria de bendita. Pois é a partir dessa consciência que se define para nós o lugar e o papel que ela tem na espiritualidade contemporânea..
            O que é feito da nossa espiritualidade hoje? Eu faria uma distinção entre religião, religiosidade e espiritualidade. Religião e espiritualidade não são palavras sinônimas, não dizem a mesma coisa, embora entre as duas existe - pelo menos deveria existir - uma íntima conexão. Desligada da religião surge facilmente um misticismo esotérico. Mas nem sempre uma religião é espiritual e mística. A religião dos antigos romanos se reduzia a um legalismo, às vezes, até piedoso cujo objetivo era também a manutenção  da estrutura política do império. Jesus tinha suas razões para dizer: “Daí a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mt 22,21).
            Espiritualidade é um movimento interior, constantemente renovado, a partir de Deus. A primazia de Deus e da sua iniciativa é sempre “anterior” à  nossa história, à nossa cultura, e às dialéticas que nela se manifestam. E não basta que interiormente eu esteja convicto de tudo isso. Devo também tentar traduzir na vida as razões que tenho para reconhecer e testemunhar, sempre de novo, essa primazia de Deus. Isto supõe uma sede de Deus e uma coerência com essa sede. Mostra também que o decisivo na pessoa humana é o “coração”,  a interioridade, o espírito.  Afinal, é deste centro que partem as livres decisões, as definições dos horizontes  que dão sentido à história. O destinatário da palavra de Deus que ilumina e salva, é o coração onde está em jogo todo o nosso humano existir. O que faz compreender a importância do silêncio. Silêncio que não é um simples ficar calado, mas uma atenção vigilante inerente à nossa relação com Deus.  É o que chamamos a dimensão contemplativa da vida. Não é raro encontrar esses contemplativos no meio do povo, nas nossas comunidades. Não são  pessoas que não tenham as suas perplexidades,  as inquietações da noite da fé. Sendo Deus a última medida, elas não o vêem, mas crêem nele. Sem noite a aurora não aparece. Assim pode acontecer quando vemos desfeitos os nossos planos, quando o próprio ambiente cultural parece ocultar Deus aos olhos da nossa fé, quando nos deixamos interrogar pelas provações, pelo sofrimento, pela violência; quando parece apagar-se a luz recebida na oração, numa  leitura espiritual ou durante um retiro. Luz  que tínhamos diante dos olhos como uma lâmpada que brilha na escuridão, até que amanheça o dia, e o astro matutino desponte nos nossos corações (2Pd 1,19). Deus é sempre maior, e por isto freqüentemente parece recuar quando pensamos ter chegado a um melhor conhecimento dele. Assim também acontece com as nossas comunidades, acontece com a própria Igreja que nunca pode compreender-se a fundo a si mesma, nem pode deixar de procurar com paixão e paciência a sua identidade. O nosso encontro com Deus não é fruto de uma dialética humana, seja ela coletiva ou pessoal. Nem é uma conquista eclesiástica.  É só a graça que muda e renova: “permanecei em mim” como Jesus disse a seus discípulos. É esse seguimento na radicalidade da fé que forma o critério da autenticidade da espiritualidade de uma pessoa ou de um movimento. Dá também sentido a uma pertença institucional cujas possibilidades e conseqüências são assumidas e desenvolvidas na fidelidade à graça de Deus. A fé que despreza esse pertencer não pode ser genuína. É nesta perspectiva que podemos interpretar o que Dom Hélder repetia a Dom Paulo Evaristo, agora arcebispo emérito de São Paulo: “A coisa mais importante de todas que você pode fazer pela Igreja é a celebração da missa e a recitação das orações”.
            A espiritualidade é um caminho que se percorre para descobrir a própria identidade. O ser humano se descobre a si mesmo à medida que vai entrando em contato com os outros, com aquilo que não é ele mesmo, com tudo aquilo que é novo. Quando perdemos a capacidade de encontrar o outro como outro, ficamos rodando num egocentrismo que é um círculo vicioso. Uma criança mimada pode tornar-se insuportável porque se lhe negou o encontro com o outro como outro,  reconhecendo-lhe em tudo direitos de propriedade. O ambiente de uma sociedade de consumo favorece o individualismo. Até certos gestos aparentemente altruístas podem esconder um narcisismo. A espiritualidade é o acontecer de uma relação com o Totalmente Outro. No mais profundo do ser humano existe uma nostalgia desse Absoluto que é o Mistério de Deus. Mas o encontro com esse Totalmente  Outro supõe um itinerário que atravessa a nossa vida de cada dia. Aos poucos vamos descobrindo que o encontro com o Outro, não se faz sem o encontro com o outro. A necessidade que um outro tem, pode tornar-se possibilidade de um encontro. Mas também pode acontecer o movimento inverso quando mediante o discernimento de uma possibilidade se descobre nela uma necessidade. É assim que se faz a descoberta da própria vocação. Foi assim que Maria deu o seu sim a Deus. É descobrir  que nós estamos procurando Deus porque é Ele que está à nossa procura. “Não fomos nós que amamos a Deus, mas Ele nos amou primeiro” como escreveu São João. Santa Teresa traduz isto numa expressão que ela escutou na oração: “Busca-me em ti - Busca-te em mim”. É importante que a nossa vida espiritual seja alimentada pela Palavra de Deus através de uma leitura orante. Isto prepara o terreno para que essa Palavra possa fazer-se carne na nossa história. São Bernardo de Clairvaux num sermão sobre o Cântico dos Cânticos  fez uma belíssima confissão: “Confesso-vos uma coisa: sei que o Verbo de Deus me visitou. Mas não sei como ele entrou em meu coração nem como saiu, mas senti a sua ação que me enternece e converte o meu coração. Aliás, só posso saber que tive essa experiência íntima da sua visita por causa de uma leve mudança que experimentei no sentido da minha conversão”.
             O homem de hoje não está muito a procura de idéias, de doutrinas. Está buscando alguém. Anos atrás cantávamos muitas vezes: “Quando Jesus passar, eu quero estar no meu lugar”. O evangelho de João, conta que um certo André e um companheiro dele, provavelmente o próprio João, viram Jesus passar. João Batista, tinha-lhes chamado a atenção: “Eis o cordeiro de Deus”. Eles foram atrás dele. Jesus voltou-se e perguntou: “O que estão procurando?”. Como se  quisesse indagar os motivos que os dois tinham para segui-lo a fim de que tomassem consciência do que pretendiam. E eles responderam com outra pergunta: “Mestre onde moras?” Não penso que a pergunta deles era superficial ou evasiva, no sentido de querer saber onde Jesus se alojava. O que eles investigavam era o mistério da morada transcendente de Jesus. Daí Jesus respondeu: “Venham e vejam”. Talvez tenham recebido naquele dia que ficaram com ele, uma primeira instrução. João anota no seu evangelho que eram as quatro horas da tarde. A Bíblia de Jerusalém diz: “Era a hora décima, aproximadamente”. A passagem de Jesus na praça da vida nunca é casual, mesmo se já é a “undécima  hora”(Mt 20,6). Acontece sempre no “hoje” de Deus.
            No dia seguinte ao  encontro de Jesus com os primeiros discípulos, o evangelho de João apresenta o grupo na festa de um casamento em Caná da Galiléia:  “Aí estava a mãe de Jesus. Também Jesus e seus discípulos foram convidados para o casamento” (Jo 2,1-2). O evangelista tem uma clara intenção em relatar os acontecimentos  nas bodas de Caná: salientar a presença de Maria na festa do casamento. Já no livros do Antigo Testamento o casamento é um símbolo freqüente do amor de Deus por Jerusalém (Is 62,5). . No Novo Testamento torna-se símbolo da união do Messias com a Igreja (Ef 5, 21-33). Nas bodas de Caná  esse casamento de Jesus com a Igreja em vista da humanidade inteira ainda não aconteceu: “Mulher, que desejas de mim? A minha hora ainda não chegou”. Maria está presente ao primeiro milagre, que revela a glória de Jesus. A expressão “chegou a hora” aparece repetidas vezes no evangelho de João, apontando principalmente para a paixão e glorificação de Jesus: “Pai, chegou a hora, glorifica teu Filho para que teu Filho te glorifique” (Jo 17,1). Cristo amou a Igreja e se entregou por ela. Maria está novamente presente, junto à cruz: “Mulher, eis o teu filho! E depois dirigindo-se ao discípulo: “Eis a tua mãe” (Jo 19,26-27).
            O evangelho de Lucas, já nos primeiros dois capítulos do seu evangelho, nos deixa permanecer longamente na presença de Maria de Nazaré, acompanhando as suas reações na anunciação do anjo, a sua visita a Isabel, sua viagem a Belém junto com José, o nascimento de seu Filho em condições precárias, sua silenciosa meditação diante dos pastores que acorreram para ver o menino recém-nascido, a apresentação de Jesus no templo onde o velho Simeão lhe predisse que o Filho dela seria uma bandeira disputada que haveria de mostrar os pensamentos de todos, ou contra ou a favor. O que seria como uma espada que atravessaria a ela mesma. Para Maria foi uma caminhada de fé nesse mistério do seu próprio Filho. Caminhada feita no dia a dia na casa de Nazaré, na viagem de retorno  a Jerusalém onde, depois de uma procura angustiada de três dias,  reencontrou o menino no templo. Maria e José não entenderam a justificativa que Jesus deu do seu comportamento: “Não sabíeis que eu tenho de estar na casa do meu Pai?”. E de novo, Maria guardava tudo isso em seu íntimo. Aos poucos vai descobrindo que o silêncio de Deus não é ausência de resposta. Durante toda a sua vida ela repetiu: “Que tudo aconteça segundo a sua palavra”. Palavra de Deus que ela mesma deu à luz por intervenção do Espírito Santo. Uma palavra é autêntica, realmente nova, quando sai do silêncio. Deus por ser o Totalmente Outro é sempre silêncio, em comparação com a música que já conhecemos.  É por assim uma lei que rege a espiritualidade. No processo da espiritualidade as nossas palavras, as nossas atividades, as nossas alegrias e tristezas, enfim a nossa vida devem tornar-se grávidas do silêncio do mistério de Deus.
            No Evangelho de João, Maria aparece no início da vida pública de seu Filho. Ao que parece é uma convidada importante. Ela tem suficiente autoridade para colocar os empregados da casa a serviço de Jesus: “Fazei o que ele vos disser”. Percebeu que estava faltando vinho para o casamento... É algo trágico num casamento. Dirige-se a Jesus: “Eles não têm mais vinho”. A reação de Jesus é de uma aparente indiferença. De fato, não cabe a ela definir os tempos nem as ações de Jesus. Mas, como primeira criatura humana atingida pelo projeto do Pai, e envolvida como primeira beneficiada na revelação histórica desse projeto redentor, Maria seguiu os passos de Jesus pois Ele é “o caminho, a verdade e a vida”.
            Olhando para o nosso mundo, percebemos que nele falta o vinho: o vinho da vida, o vinho da esperança, o vinho da espiritualidade. Faz pensar num texto de Isaías: “Já não se bebe vinho ao som do cântico, e a bebida forte tem um sabor amargo para quem o bebe” (Is 24,9). “Eles não têm mais vinho”, disse Maria a Jesus no casamento em Caná. Pelo Espírito que Jesus prometeu enviar a água pode transformar-se em vinho. Peçamos  à Mãe de Jesus que interceda por nós. Ela o fará contanto que sigamos o que ela nos propõe a partir da sua própria experiência: “Fazei tudo o que ele vos disser”.

*Dom Frei Vital Wilderink, O Carm- Eremita Carmelita- foi vítima de um acidente de automóvel quando retornava para o Eremitério, “Fonte de Elias”, no alto do Rio das Pedras, nas montanhas de Lídice, distrito do município de Rio Claro, no estado do Rio de Janeiro. O acidente ocorreu no dia 11 de junho de 2014. O sepultamento foi na cidade de Itaguaí/RJ, no dia 12, na Catedral de São Francisco Xavier, Diocese esta onde ele foi o primeiro Bispo.

A PALAVRA DO FREI PETRÔNO. Nº 935. 16 de julho e o Carmelo.

NOSSA SENHORA DO CARMO: Mensagem do Nabil

NOSSA SENHORA DO CARMO: Mensagem da Dona Sâmia.

FESTA DE NOSSA SENHORA: Mensagem do Frei Alonso,

NOSSA SENHORA DO CARMO: Imposição do Escapulário.

NOSSA SENHORA DO CARMO: Engravidar de Jesus.

NOSSA SENHORA DO CARMO: Muito mais que uma devoção.

quarta-feira, 15 de julho de 2015

NOVENA DE NOSSA SENHORA DO CARMO: 9º Dia.

UMA PRESENÇA AMOROSA: MARIA E O CARMELO (4ª Parte).

Christopher O’Donnell, O. Carm.

Espiritualidade Mariana
            Neste ponto, vamos fazer uma pausa no levantamento histórico de nossa herança, para perguntar se podemos falar de nossa herança mariana como uma espiritualidade. Já estudamos as idéias chaves, que chamamos de temas centrais da nossa tradição. Vamos perguntar agora qual a natureza delas e como elas se integram em nossa vida. Começaremos com algumas considerações gerais sobre espiritualidade, antes de examinar algumas manifestações significativas da vida mariana carmelitana, do misticismo mariano e da forma de vida mariana, exposto pelo Venerável Miguel de Santo Agostinho, assim como algumas reflexões sobre o significado do Escapulário. Então, estaremos em condição de tirar algumas conclusões importantes sobre Maria na vida do Carmelo e dos carmelitas.

Espiritualidade
            Espiritualidade é uma palavra que se tornou um camaleão: ela assume uma nuança diferente quando usada pelas várias escolas ou movimentos identificados por um período, um lugar ou uma instituição (por exemplo, espiritualidade do deserto, medieval, dominicana, francesa). Ela também é aplicada como uma resposta apropriada aos vários estados de vida (por exemplo, espiritualidade de pessoas solteiras, casadas, clérigos, religiosas). Ela pode significar um enfoque sobre alguns aspectos de revelação ou da vida da Igreja, ou pode chamar atenção para a vida de alguns de seus membros (por exemplo, espiritualidade eucarística, litúrgica, libertadora, feminista).
            Alguns esclarecimentos são necessários quando as pessoas falam de espiritualidade. Do contrário, elas terão uma tendência inevitável de falar de distintas e entrecruzadas propostas. Aqui vamos considerar espiritualidade como significando a resposta subjetiva da Igreja como noiva a seu noivo Cristo. Poderíamos substituir esta linguagem tradicional pela a idéia de que espiritualidade é a vivência prática dos mistérios ensinados pela Igreja, ou seja, uma teologia que se encarnou e que encontra sua expressão numa caminhada, de indivíduos ou de grupos, para Deus. Como tal, a espiritualidade autêntica será sempre Trinitária. As pessoas que aceitam o que lhes é oferecido através da Palavra e dos sacramentos, permitindo-lhes que sua eficácia surja nelas mesmas através da fé, da esperança e do amor a Deus e aos outros, se abrirão a relacionamentos novos e mais profundos com o Pai, o Filho e o Espírito e com toda a humanidade. O centro desta resposta é Cristo, o único caminho para a vida Trinitária (ver Jo 14,6; 1Tm 2,5). Mas não podemos falar de Cristo apenas como modelo. Ele é muito mais do que isto, pois apesar de ser o pão da vida (Jo 6), ele também é, em si, a nossa vida, aquele em quem estamos escondidos (ver Cl 3,3 – 4). A palavra “cristão” não é suficiente para especificar ou esclarecer a espiritualidade, exceto para indicar que não estamos falando de qualquer outra religião do mundo.

A Espiritualidade Mariana
A pergunta a ser feita agora é se estamos lidando com uma devoção ou discernimento marianos, ou com uma espiritualidade mariana. Uma expressão como “espiritualidade mariana” é suficiente para deixar algumas pessoas apreensivas: não existe apenas uma espiritualidade, ou seja, a espiritualidade cristã? A questão é extremamente importante, embora também seja um tanto complexa. Num trabalho significativo, mas muitas vezes despercebido, escrito em 1960, Hans Urs von Balthasar mostrou que a espiritualidade mariana sustenta todas as outras:
Uma espiritualidade centrada na atitude exemplar de Maria... não é apenas uma espiritualidade entre outras. Por esta razão, apesar de Maria ser uma pessoa fiel e, como tal, o protótipo e o modelo de toda resposta de fé, ela sintetiza todas as espiritualidades particulares na única espiritualidade da noiva de Cristo, a Igreja. O que aprendemos com Maria, numa lição válida para todos os tempos, é que a resposta da serva do Senhor à Palavra agindo nela e acolhendo toda a vontade dele – de modo especial e único – é apenas um tema particular na teologia. O que é especial na espiritualidade de Maria é a sua renúncia radical a qualquer espiritualidade especial que não seja acolher o domínio do Altíssimo e ser a habitação da Palavra divina... Portanto, a idéia de fazer da espiritualidade mariana apenas uma  entre outras, é uma distorção...

Aqui H. von Balthasar está antecipando parcialmente uma afirmação do Vaticano II em sua Constituição sobre a Liturgia:
         Celebrando o ciclo anual dos mistérios de Cristo, a Santa Igreja honra a Bem-aventurada Maria, Mãe de Deus, com um amor especial. Ela está inseparavelmente ligada ao trabalho salvador de seu Filho. Nela a Igreja admira e exalta o mais excelente fruto da redenção e contempla alegremente, como numa imagem perfeita, o que ela mesma deseja e espera ser totalmente. (n. 103)
Portanto, o paradigma de toda resposta a Deus é a resposta mariana. H. von Balthasar está afirmando que qualquer espiritualidade autêntica será, portanto, mariana, mesmo que não haja evidência. Se olharmos para o que seria comumente chamado de espiritualidades particulares veremos que, apesar de cada uma ter um foco, o conjunto da espiritualidade é realmente uma articulação, um modo de falar e de viver o “sim” total de Maria. Toda espiritualidade se fundamenta nas expressões trinitárias da vida de Maria, através de sua resposta à Palavra de Deus.
          Em sua recente coleção de Missas votivas marianas, a Igreja oferece uma sobre “A Bem-aventurada Virgem Maria: Mãe e Mestra Espiritual”. (Como veremos, ela se inspira muito em nossa própria Missa Carmelitana de Nossa Senhora do Monte Carmelo.) O prefácio reza assim:
Pai todo-poderoso e eterno Deus, nós vos damos graças sempre e em todo lugar. Associada intimamente ao mistério de seu Cristo, ela (Maria) não cessa de gerar filhos para ti através da Igreja, a quem ela exorta por amor e suscita por seu exemplo, a buscar a perfeita caridade. Ela permanece como imagem daquela vida evangélica, a qual, em oração a ela, aprendemos com sua mente a amar-vos acima de tudo, com seu espírito contemplarmos continuamente vossa Palavra, e com seu coração servirmos nossos irmãos e irmãs. (ênfase minha)
          O mesmo ensinamento é encontrado, de forma mais ampla, na Exortação Apostólica Marialis cultus de Paulo VI, numa densa síntese que é ao mesmo tempo cristocêntrica, pneumatológica e antropológica. O papa afirma que cada aspecto da missão de Maria é direcionado para o mesmo fim, ou seja, reproduzir nos filhos as características espirituais do Primogênito... As virtudes da Mãe também adornarão seus filhos que aprofundam seu exemplo para refleti-lo em suas próprias vidas e este progresso na virtude aparecerá como a conseqüência e o fruto permanentemente maduro deste zelo pastoral que jorra da devoção à Virgem Bem-aventurada. A devoção à Mãe do Senhor torna-se para o fiel uma oportunidade de crescimento na graça divina e este é o objetivo final de toda atividade pastoral, pois é impossível honrar aquela que é “cheia de graça” (Lc 1,28) sem honrar, desse modo, o seu próprio estado de graça, que é a amizade com Deus, a comunhão com ele, sendo a moradia do Espírito Santo.
       Existem indicações no pensamento contemporâneo sugerindo que uma espiritualidade autêntica deve ser mariana, pelo menos implicitamente. Novas e importantes contribuições são claras a este respeito. O Nono Simpósio Mariológico Internacional (Roma 1992) também tratou desta questão em seus Procedimentos.

Um relacionamento com Maria
            Já vimos que uma antiga devoção na mariologia carmelitana era venerar Maria como Modelo. Tal devoção não é exclusiva aos carmelitas e pode ser vista como um lugar comum na espiritualidade cristã. Valiosa como é, esta devoção poderia ter uma desvantagem se nos prendêssemos exclusivamente a ela. A devoção mariana carmelitana deve sempre ir além do saber sobre Maria para o mais profundo conhecer Maria. Podemos ter muitas informações sobre uma pessoa sem termos um relacionamento com ela. Para uma espiritualidade genuinamente mariana, devemos ir além dos fatos sobre Maria, chamando-a de Padroeira, Mãe, Irmã, Modelo, para entrar num relacionamento baseado nestes ou em outros títulos. Em nossa tradição carmelitana existem diversas expressões deste relacionamento, não apenas na mística, mas também através do Escapulário.
            Poderíamos começar observando que na espiritualidade moderna existe uma ênfase no itinerário espiritual para a vida adulta. Assim, Maria pode ser venerada não apenas como Mãe, mas também como uma companheira. Em termos humanos, uma mãe pode, sem deixar de ser mãe, ampliar seu relacionamento para o de irmã e de amiga. Assim também acontece com Maria.
          Isto significa uma mudança da imitação para a identificação em comunhão, num relacionamento sempre mais profundo com Maria, de forma que caminhamos com ela numa peregrinação de fé, esperança, obediência e amor. Tal união com Maria não termina aqui, mas inclina-se necessariamente para uma comunhão sempre mais profunda com Cristo através do Espírito Santo. Apesar de teologicamente podermos apreciar a autenticidade desse progresso, abraçar a espiritualidade mariana no nível mais profundo exige um chamado especial do Espírito Santo.
            A relação entre Cristologia e Mariologia na espiritualidade cristã exige um tratamento cuidadoso. Nos autores ortodoxos, a mariologia é sempre secundária. Cristo é o coração de toda espiritualidade. Mas o ponto de inserção na cristologia pode variar. As espiritualidades marianas apresentam Maria como um modelo no seguimento de Cristo. Não é uma questão de escolha entre abordagem cristológica ou mariana: tanto a cristológica quanto a mariana podem ser aplicadas à espiritualidade e ao pensamento carmelitano. Um capuchinho não vai afirmar que sua espiritualidade é cristológica em vez de franciscana. Em vez disso, o modo pelo qual sua espiritualidade é genuinamente cristológica se faz num modelo franciscano. Os carmelitas também precisam mostrar continuamente sua centralização autêntica no mistério de Cristo.
            Por diversas vezes enfatizamos que não encontraremos o que é próprio carmelitano ao deixar de considerar tudo que é partilhado com outros grupos e ordens. Mas será que praticamente todos os elementos são encontrados em outras ordens e congregações? Parece que temos aqui um caso claro de uma questão colocada erroneamente, levando a respostas distorcidas. Não há elemento em sua espiritualidade ou em sua mariologia que seja próprio da Ordem Carmelita. Tudo o que temos é partilhado por outros ou, na verdade, por muitos outros. Contudo, existe uma identidade carmelitana mariana. Mas não a encontraremos tentando eliminar tudo que é partilhado com os outros.
            O mistério único de Cristo, que é uma partilha da vida da Trindade pela graça na fé, na esperança e na caridade, é encontrado numa variedade de espiritualidades. Todas baseadas numa revelação do Novo Testamento. Os elementos são todos os mesmos, mas a ordem, o equilíbrio, a ênfase será sutilmente diferente. A herança mariana da Ordem tem os mesmos elementos como a tradição de muitas outras famílias espirituais, mas ela pode e deveria ser percebida como diferente. Uma das diferenças poderia estar numa ênfase num tipo de relacionamento, que é desenvolvido, não apenas em nossos escritos místicos, mas também na devoção do Escapulário.

Mística Mariana
Um elemento significativo na tradição da Ordem é a da mística mariana, um termo que não é usado univocamente por todos os estudiosos.   Seu principal exemplo é a terceira carmelitana flamenga Maria Petyt (Petijt – Maria de Santa Teresa, 1623-1677).   Após alguns anos de busca por sua vocação ela encontrou o carmelita Miguel de Santo Agostinho, que se tornou seu orientador. Ele descreveu algumas das experiências de Maria Petyt num pequeno volume sobre a forma de vida mariana e a Vida de Maria. O estudo recente de S. Possanzini deixou este trabalho mais acessível aos carmelitas hoje.
Duas questões surgem sobre a mística mariana: a primeira é o papel de Maria que é geralmente encontrado na vida místico-contemplativa do Carmelo; a segunda é uma área mais difícil de examinar, ou seja, a realidade e a validade de uma experiência especificamente mística mariana.

Maria e os místicos carmelitanos
Em geral, podemos afirmar que na Ordem Carmelita a vida contemplativa e a experiência mística são freqüentemente definidas como tendo características marianas. Maria acompanha os carmelitas contemplativos em sua jornada para a união divina.   Além disso, muitos místicos carmelitas tiveram experiências nas quais Maria tinha seu papel central. Elas são tão comuns que não precisam de elaboração. Podemos tomar como exemplo Santa Teresa d’Ávila. Foi na festa da Assunção em 1561:
Eu refletia sobre os muitos pecados que confessei no passado naquela casa e muitas coisas sobre minha vida infeliz. Um êxtase invadiu-me tão fortemente que quase me arrebatou... Pareceu-me, enquanto estava neste estado, que me vi vestida de um manto branco esplendoroso e brilhante. Mas a princípio, não vi quem me vestia. Depois vi uma Senhora à minha direita e meu pai São José à minha esquerda, pois eles estavam revestindo-se com o manto. Compreendi então que estava limpa de meus pecados...
         A beleza que vi em Nossa Senhora era extraordinária, apesar de não ter percebido qualquer detalhe em especial, exceto a forma de seu rosto e que suas vestes eram de um branco muito brilhante, não deslumbrante mas suave... Então, pareceu-me vê-los subir aos céus com uma grande multidão de anjos. Fui deixada em profunda solidão, apesar de tão consolada e elevada e serena em oração e tocada pelo amor, que permaneci algum tempo sem ser capaz de mover-me ou de falar, praticamente fora de mim mesma. Sentia em mim um grande impulso de ser dissolvida em Deus e com emoções semelhantes. E tudo aconteceu de tal modo que nunca poderia duvidar, não importa o quanto tentasse, que era uma visão de Deus.
Aqui, apesar de Maria ser central na experiência, temos uma visão de Deus, levando a uma união mais profunda com Deus. Santa Teresa d’Ávila, numa visão mística em 08 de setembro de 1575 renovou seus votos nas mãos de Nossa Senhora. Ela observa: “Esta visão permaneceu comigo por alguns dias, como se ela estivesse junto a mim, à minha esquerda.”
A cura de Santa Teresinha de Lisieux através do sorriso de Nossa Senhora no Domingo de Pentecostes de 1883, é outro exemplo de uma visão mariana, mas vista como uma ação da misericórdia divina. Este foi o começo de um processo que, cinco anos mais tarde, permitiria que ela entrasse no Carmelo.
       Tais experiências místicas são freqüentes na história da espiritualidade e não precisam ser consideradas como especificamente carmelitanas,   apesar de também encontradas, e surgindo, da vida do Carmelo.

A forma de vida mariana
Um segundo tipo de experiência é encontrado em autores carmelitanos, apesar de ainda não ter sido suficientemente estudado por teólogos espirituais.   Contudo, ele também é encontrado fora da Ordem Carmelita.   Ele aparece mais elaborado em Miguel de Santo Agostinho e Maria Petyt, mas textos em línguas modernas não são muito acessíveis. Algumas observações iniciais devem ser feitas. O misticismo implica em uma jornada para Deus, para a união divina com a Trindade. Por isso, inevitavelmente, haverá uma necessidade de contextualização dos escritos destes dois autores, já que frases isoladas podem indicar um foco distorcido sobre Maria em lugar de Deus. Surgem dificuldades posteriores com a linguagem mística, altamente simbólica, usada por eles.
O estudo recente de S. Possanzini parece confirmar o que escritores mais antigos suspeitavam, ou seja, que sob a terminologia de forma de vida mariana o Venerável Miguel fala geralmente sobre a vida ascética, ou que parte da jornada espiritual é amplamente determinada pelo esforço humano, mas assistido, é claro, pela graça. O que ele chama de vida mariana é seu aspecto místico, ou seja, é livremente concedido como graça excepcional de Deus.
O fundamento da forma de vida mariana é a maternidade espiritual de Maria e sua mediação, as quais já vimos como estando profundamente dentro das tradições carmelitanas. A forma de vida mariana consiste em “manter os olhos abertos para Deus e para sua bem-aventurada Mãe, de forma que façamos pronta e alegremente o que sabemos ser agradável a eles, e evitar o que reconhecemos ser desagradável a eles”.   Assim, vivemos uma vida que é, ao mesmo tempo, divina e mariana. O reino de Jesus e o reino de Maria coincidem de forma que “Jesus e Maria reinam unanimemente nela (a alma)”.
        Assim, está claro que as intuições centrais desta espiritualidade a partir da forma de vida mariana são plenamente ortodoxas. As expressões que ela valoriza são explicações deste discernimento da identidade da vontade de Maria e de Jesus. Onde o ensinamento torna-se específico e original é o que Miguel chama de mariano, no qual Maria é vista acompanhando e instruindo a pessoa em toda a jornada para a profunda união divina e casamento místico. Ainda mais distinta é a noção de união com Maria definindo o modo pelo qual a pessoa chega à união com seu Filho e com o Deus Trino. Miguel de Santo Agostinho usa diversas destas imagens.

Primeiramente, existe a vida em Maria:
Pelo diligente exercício de fé e do amor constante, adquirimos o hábito ou a prática de ter em mente, sempre e em todo lugar, a presença de Deus, e existe tal sincera afeição fluindo com tal facilidade para Deus que parece impossível esquecer Deus. Do mesmo modo aquele que ama Maria através deste exercício contínuo, adquire o hábito ou a prática de tê-la sempre presente em mente como Mãe amorosa, de forma que todos os pensamentos e afeições da pessoa terminam nela e em Deus, e a pessoa não pode esquecer nem a Mãe amorosa nem Deus.
Segundo ele, isto não é algo infantil ou inocente, mas um movimento muito maduro, racional e corajoso (viriliori). É um trabalho do Espírito levando a pessoa a uma consciência ora de Maria, ora de Deus, sem qualquer conflito ou divisão no coração.
            Em segundo lugar, a pessoa vive para Maria. Aqui o autor é novamente cuidadoso em mostrar que o serviço a Maria não diminui Deus de modo algum.
            Assim como em Maria tudo existe para o prazer divino e ela vive na eternidade para Deus, para seu prazer, amor e glória, então também cada vida e morte por Maria deve servir e ser dirigida a Deus. Portanto, não vivemos ou morremos para Maria como nosso fim definitivo, ou com qualquer reflexão que poderia aderir a qualquer coisa fora de Deus para nossa própria conveniência. Em vez disso, através da vida e morte em Maria e para Maria, vivemos e morremos mais perfeitamente em Deus e para Deus, como causa de seu prazer e amor. E nada no reino perfeito de Maria contradiz o reino de Jesus, mas é totalmente ordenado para ele.
            Poderia parecer que esta forma de vida mariana não é mística no sentido técnico. Apesar da graça ser necessária, realmente uma graça especial, a pessoa pode escolher este modo de aproximação de Deus através de Maria. Se a pessoa cresce profundamente neste modo de espiritualidade poderia depender de uma continuação de tal graça e do temperamento e da afetividade da pessoa. Existe uma diferença essencial entre esta forma de vida mariana e a do misticismo mariano atribuído à Venerável Maria de Santa Teresa e descrito por seu orientador, Miguel de Santo Agostinho.

O Misticismo mariano em Maria de Santa Teresa (Maria Petijt ou Petyt)
Os capítulos restantes do trabalho do Venerável Miguel sobre a forma de vida mariana e a Vida Mariana são uma exposição corajosa de um misticismo genuinamente mariano. Sabemos que Maria Petijt ou Petyt foi uma discípula do Venerável Miguel. Ela nasceu em Hazebrouck em 1623. Buscou uma vida religiosa com as cônegas de Santo Agostinho, mas foi considerada inadequada. Depois de ter um orientador muito rigoroso, ela encontrou-se com Miguel por volta de 1647. Ele permaneceu seu orientador até a morte dela em 1677. Podemos ter certeza de que ele aprendeu muito a partir das experiências dela, as quais incorporou em seu trabalho. O que não fica claro é se ele mesmo teve tais experiências místicas.
Miguel de Santo Agostinho mostra um modo de união com Deus através de um modo de união com Maria. Existe um crescimento nesta jornada mística e estas experiências iniciais de Deus e de Maria precisam ser purificadas.   O misticismo mariano destes autores é descrito como “vida contemplativa de Deus em Maria e de Maria em Deus”.   Mas eles não aceitam qualquer confusão entre Maria e Deus. A analogia usada é a da Encarnação na qual as duas naturezas são unidas, mas não fundidas.   A união com Maria é uma união de amor com Deus:
Deste modo, podemos compreender o gozo de Maria na alma, a diluição (liquefactio) da alma em Maria, a união da alma com Maria e sua transformação em Maria. Isso acontece porque o amor tende para o que se parece com ele e, por isso, inclina a alma, pois a natureza do amor é tender para a união com o ser amado.
Os ápices desta união mística com Maria são descritos com uma linguagem que é, na verdade, um tanto obscura, mas tem um constante poder de persuasão:
Consequentemente, a memória, a inteligência e a vontade são silenciosa, simples e intimamente ocupadas com Maria e, simultaneamente, com Deus, que a alma dificilmente pode detectar como ocorrem estas transformações. De um modo confuso, a alma conhece bem e sente a memória ser ocupada por alguma lembrança simples de Deus e de Maria, o intelecto tem uma consciência nua, clara e pura de Deus presente e de Maria presente em Deus, a vontade tem um amor muito tranqüilo, íntimo, doce, terno e espiritual de Deus e de Maria em Deus e uma adesão a Deus e a Maria em Deus. Digo “amor espiritual” porque o amor é, então, visto brilhando e operando na parte mais sublime da alma com abstração dos poderes mais baixos e sensitivos, de modo que está mais proporcionada a intimar a diluição, a absorção em Deus e em Maria e a união com Deus e, ao mesmo tempo, com Maria. Pois, quando os poderes da alma são virtuosas (nobiliter) e perfeitamente ocupados na memória, na consciência e na firme adesão de toda alma com Deus e com Maria, de modo que por uma diluição amorosa ou um influxo de amor pareça ser um com Deus e com Maria, como se os três, Deus, Maria e a alma, fossem fundidos num só. Isso parece ser a extremidade e a suprema realização que uma alma pode alcançar nesta forma de vida mariana e é a atividade principal desse exercício e do espírito de amor para com Maria.
Os místicos têm suas experiências não apenas como dons especiais e pessoais de Deus, mas também para ensinarem a Igreja. A mística da forma mariana de Maria Petyt não é algo excêntrico na história da espiritualidade, mas ensina a toda Igreja algo importante sobre a jornada para Deus. O que pode não estar explícito em outros místicos está bem claro em Miguel de Santo Agostinho e em Maria Petyt, ou seja, que a união divina acontece através de uma pessoa que se torna intimamente revestida das virtudes de Maria, continuamente através de sua presença e de seu acompanhamento. Neles encontramos a mais dramática e mais sublime expressão da verdade registrada em todos os escritos marianos carmelitanos, ou seja, a presença materna de Maria sempre acompanha os carmelitas e o crescimento na santidade é encontrado através da abertura da pessoa a esta presença e a este zelo maternal. O fato de uma leitura de Miguel de Santo Agostinho ser proposta para a Celebração Solene de Nossa Senhora do Monte Carmelo é, certamente, uma oportunidade para a Ordem refletir na sua jornada para Jesus através de Maria.
Apesar de pertencer a uma cultura diferente, o misticismo flamengo desses dois carmelitas é outra expressão da verdade teológica proposta por Hans Urs von Balthasar sobre a necessidade de a Igreja ser realmente mariana se quiser ser autenticamente cristã.   Eles também antecipam através de uma exposição mais profunda, as verdades expostas num livro muito conhecido sobre a escravidão a Maria: O Tratado sobre a Verdadeira Devoção de São Luís Maria Grignion de Montfort (+ 1716).   Mas existe uma diferença muito significativa: para muitas pessoas a “Verdadeira Devoção” é uma forma de piedade, uma aproximação a Maria, que eles adotam livremente sob a condução do Espírito. Nisto ela assemelha-se à forma de vida mariana. O misticismo mariano, por outro lado, é o resultado de uma extraordinária intervenção de Deus na vida da pessoa. Em outras palavras, a “Verdadeira Devoção” pode ser escolhida, o misticismo mariano é dado. A forma de vida mariana como a Verdadeira Devoção leva a pessoa a um relacionamento com Maria.

O Escapulário
No capítulo anterior já vimos as origens obscuras do Escapulário Carmelitano e os problemas históricos associados a ele. Penso que eles podem e devem ser mantidos fora da questão do valor espiritual do Escapulário.
No desenvolvimento posterior à Reforma, a devoção mariana carmelitana ao Escapulário teve um lugar muito importante e apareceu no Diretório Touraine (a partir de 1650 com versões mais tardias).   Ele tinha um duplo significado a partir do simbolismo medieval: o patronato de Maria e o nosso serviço ou devoção. Ao mesmo tempo, houve um enorme crescimento das Fraternidades do Escapulário, compostas de homens e mulheres leigos.   Muito permanece por ser feito no estudo da história completa da propagação do Escapulário, apesar do excepcional trabalho de E. Esteve.

Pio XII
Para nossos propósitos aqui, é suficiente levantar a questão no século XX e começar com a Carta de Pio XII aos Superiores Gerais dos dois ramos da Ordem, a Neminem profecto latet (11 de fevereiro de 1950). Como este texto não está tão disponível hoje como no passado, será útil reproduzi-lo em sua íntegra:
            Não existe ninguém que não esteja consciente de quão grandiosamente um amor pela Bem-aventurada Virgem Mãe de Deus contribui para a animação da fé católica e para a elevação do padrão moral. Estes efeitos são especialmente assegurados por meios daquelas devoções que, mais do que outras, são vistas como instruindo a mente com a doutrina celestial e estimulando as almas à prática da vida cristã. A devoção do Sagrado Escapulário carmelitano deve ser a mais favorecida entre essas devoções – uma devoção que, acessível à mente de todos por sua própria simplicidade, tornou-se tão universalmente difundida entre os fiéis e produziu muitos frutos salutares.
      Portanto, muito nos agradou sabermos da decisão de nossos irmãos carmelitanos, tanto da Ordem Calçada quanto da Descalça, de suportar todas as dores em honra da Bem-aventurada Virgem Maria, de maneira mais solene quanto possível, por ocasião do 7º Centenário da Instituição do Escapulário de Nossa Senhora do Monte Carmelo. Logo, levados por nosso amor constante pela terna Mãe de Deus e cientes também de nossa própria participação desde a meninice, na Fraternidade deste Escapulário, com muito boa vontade, recomendamos zelosamente, um compromisso e estamos certos de que a partir daí, cairá uma abundância de bênçãos divinas. Pois, não estamos interessados aqui numa questão leve ou passageira, mas em obter a própria vida eterna, que é a substância da Promessa da Sempre Bem-aventurada Virgem que nos foi transmitida. Estamos interessados, a saber, no que é de suma importância para todos e com o seguro modo de alcançá-lo. Pois, o Escapulário Sagrado, que pode ser chamado de Hábito ou Manto de Maria, é um sinal e uma garantia da proteção da Mãe de Deus. Contudo, não por esta razão, aqueles que usam o Escapulário podem pensar que ganham a salvação eterna enquanto permanecerem indolentes e negligentes de espírito, pois o Apóstolo nos adverte: “Continuem trabalhando com temor e tremor, para a salvação de vocês” (Fl 2,12).
            Portanto, todos os carmelitas, quer vivam nos claustros das Ordens 1ª e 2ª ou sejam membros da Ordem 3ª Regular ou Secular, ou das Fraternidades, pertencem à mesma família de nossa Muito Bem-aventurada Mãe e são ligados a ela por um elo especial de amor. Que todos possam ver nesta lembrança da própria Virgem um espelho de humildade e de pureza. Que possam ler na simplicidade do Manto uma lição concisa de modéstia e de simplicidade. Acima de tudo, que possam contemplar neste mesmo Manto, que usam dia e noite, o símbolo eloqüentemente expressivo de suas orações pela assistência divina. Finalmente, que isto possa ser para eles um Sinal de sua Consagração ao Sacratíssimo Coração da Virgem Imaculada, cuja (consagração) em tempos recentes exortamos fortemente.
            Certamente, esta Mãe gentil não tardará a abrir, o mais cedo possível, por sua intercessão a Deus, os portões do Céu para seus filhos que estão expiando suas faltas no Purgatório – uma verdade baseada naquela Promessa conhecida como o Privilégio Sabatino. Agora, portanto, como garantia da proteção e da ajuda divina e como uma certeza de nosso próprio apreço especial, conferimos mais amorosamente a ti, Filhos Amados, e à Toda Ordem Carmelitana, a Bênção Apostólica.
            É importante realçar o significado preciso desta famosa carta.   O papa supõe a historicidade da visão do Escapulário e a concomitante promessa. Ele faz alusão ao Privilégio Sabatino, mas não que possa tirar dele qualquer coisa que esteja fora da tradição comum católica sobre a intercessão de Maria pelos mortos. Mais especificamente, ele ignora claramente qualquer ligação entre esta intercessão e uma dispensa do purgatório no sábado. Ele é cuidadoso ao advertir contra qualquer uso mágico do Escapulário, apesar de ser vigoroso ao afirmar que ele é “um sinal e uma garantia da proteção da Mãe de Deus”. Finalmente, ele une a devoção do Escapulário à noção da consagração ao Sagrado Coração da Virgem Imaculada. Independente da historicidade da visão do Escapulário, o ensinamento de Pio XII retém sua validade.

O significado do Símbolo
Os carmelitas hoje não deveriam ter dúvidas sobre o valor do Escapulário e deveriam ser diligentes em defendê-lo. Existe uma falta de coragem entre os carmelitas na propagação do Escapulário. Aqueles que acham que a evidência da historicidade da visão do Escapulário não é convincente, precisam encontrar outros fundamentos para esta devoção. Seu valor contínuo foi afirmado, nestes anos recentes, em duas alocuções de João Paulo II onde ele fala dos múltiplos frutos espirituais surgidos da devoção ao Escapulário.   Mas, ao mesmo tempo, devemos estar conscientes do pluralismo da Ordem em cinco continentes. O modo como a devoção do Escapulário é proposta em um lugar, ou tempo, pode não se ajustar a outro.
Contudo, podemos propor cinco princípios teológicos espirituais e pastorais que são bases apropriadas para qualquer pregação do Escapulário. É claro que outros vão fazer outras propostas. O futuro desenvolvimento do Escapulário na Ordem não pode ser previsto, mas pode ser encorajado, dando-se ao Escapulário uma base sólida.
Em primeiro lugar, o Escapulário pertence às categorias de sinal e de símbolo. Ele aponta para algo além de pedaços de pano (ou medalha), para outras realidades. O primeiro simbolismo é o da roupa. O Escapulário representa o hábito carmelitano que é usado num instituto que é profundamente mariano. Nesta Ordem, Maria é vista como Padroeira, Mãe, Irmã e Virgem do Coração Puríssimo. A aceitação do Escapulário é, de certo modo, uma adoção destes valores e destes atributos marianos.
Em segundo lugar, ele é um sacramental da Igreja. O novo Catecismo da Igreja Católica descreve sacramentais da seguinte forma: “São sinais sagrados que denotam uma semelhança com os sacramentos. Eles geram efeitos de uma natureza espiritual, que são obtidos pela intercessão da Igreja”.   O que é novo nesta definição de sacramental quando comparado à teologia mais antiga exposta no Código Canônico   de 1917, é que um sacramental é mais do que um objeto. Como já vimos, ele é um sinal. Assim, ele é eclesial e não pertence unicamente à Ordem Carmelitana. Mas implica que, em nosso caso, é necessário mais do que o mero uso do Escapulário. Se seus efeitos devem ser obtidos através da intercessão da Igreja então, além de usá-lo, deveríamos nos abrir à oração da Igreja, especialmente através da oração particular e da reflexão pessoal. Seu uso deveria ser um convite à oração. Além disso, existe a obrigação pastoral de explicar seu significado como um sinal.
Em terceiro lugar, o Escapulário está associado à Ordem Carmelitana, assim como outros sacramentais são promovidos por outros institutos religiosos como, por exemplo, a Medalha Milagrosa. Aqueles que o usam deveriam ser instruídos na tradição carmelitana da Virgem Maria. A tradição mariana carmelitana, apesar de rica e notável, não é a única na Igreja. Mas ela ocupa seu lugar correto junto às outras. No entanto, algumas pessoas podem não se sentir atraídas por ele. As formas de espiritualidade e de devoção na Igreja são livres e, basicamente, trata-se de como a pessoa é guiada pelo Espírito.
Em quarto lugar, o Escapulário, como afirma Pio XII, é um sinal de consagração. Existe uma grande quantidade de sérios escritos teológicos sobre o significado da consagração, especialmente da consagração à Maria.   A consagração à Maria está firmemente estabelecida na tradição católica. Muitos santos e papas a defenderam. Numerosos institutos religiosos apresentam a consagração à Maria como o coração de sua espiritualidade. Mas em anos recentes houve um sentimento entre alguns teólogos importantes de que a idéia requer uma abordagem teológica maior do que ela freqüentemente recebe. A questão central é que, estritamente falando, existe apenas consagração a Deus e por Deus. Já que a consagração é nossa divinização pela graça, é apenas Deus que é o princípio e o fim da consagração. Neste sentido rigoroso, a consagração não é algo que fazemos, mas é um ato divino em nós. Se nos consagrarmos à Maria, estamos, de fato, apenas ratificando o que Deus já fez por nós através do santo batismo. Uma vez que isso seja compreendido, então não existe realmente um problema numa consagração à Maria. Essa consagração expressa um encontro pessoal íntimo com ela, que implica em confiar, pertencer, autodoar-se, assim como disponibilidade, acessibilidade e colaboração afetiva no serviço da missão de seu Filho.
         O papa João Paulo II se vale da rica tradição para usar outras expressões que indicam pertença e disponibilidade: confiança, consagração, dedicação, recomendação, serviço, colocar-se nas mãos de Maria, etc.
Pode ser que quando falamos sobre o Escapulário num certo lugar, a palavra “consagração” deva ser evitada e uma das alternativas deva ser escolhida. Mas escrúpulos teológicos sobre a palavra “consagração” podem ser respondidos eficazmente com os textos de Miguel de Santo Agostinho e de Maria Petyt citados anteriormente neste capítulo. Existe uma identidade entre o reino de Maria e o reino de Jesus.
      Seja o que for sobre a linguagem que usamos, o Escapulário deve ser apresentado como um modo de relacionamento com Maria, de submissão à sua vontade, que é o plano salvífico de Deus. Isso também implica que, por sua vez, ela nos favorecerá com sua intercessão.
Em quinto lugar, deveríamos estar conscientes do papel do Escapulário na evangelização e na religiosidade popular. A religiosidade popular é uma realidade complexa, variando nas diferentes culturas e nos diversos períodos da história.   Ela é considerada positiva, resguardada pela aprovação de Paulo VI em sua exortação apostólica sobre a evangelização, Evangelii nuntiandi,  e fortemente recomendada pela Conferência do CELAM em Puebla (1979)   e por outros encontros Latino-americanos. Mas, mesmo quando não está totalmente purificada dos acréscimos indesejáveis, ou quando expressa parcialmente o mistério cristão, a religiosidade popular é sempre uma janela aberta para o transcendente. Ela invariavelmente proclama nossa insuficiência e a necessidade constante da ajuda divina. Aqueles que usam o Escapulário estão reconhecendo que não são auto-suficientes e que precisam da ajuda divina que, neste caso, buscam através da intercessão de Maria.

Revitalizando o símbolo
Finalmente, precisamos revitalizar nossa compreensão do simbolismo do Escapulário. Num estudo de 1995, preparado por uma comissão internacional da Ordem, nossa atenção voltou-se para o trabalho sobre o simbolismo, realizado por E. Voegelin.   Ele aponta para quatro estágios na vida de um símbolo. Existe uma experiência de vida que dá origem ao símbolo. Para nós, isto significa o sentido da proteção de Maria aos carmelitas. Em segundo lugar, existe uma fase de dogma ou de reflexão sobre o símbolo. A Ordem Carmelitana sempre viu o Escapulário nos termos da sua compreensão de Maria como Padroeira, aquela que zelou por seus Irmãos que, por sua vez, colocaram-se a seu serviço. Neste período reflexivo, o zelo de Maria foi compreendido como uma ação para além da morte, vista especialmente como sua solicitude para nossa salvação e para nossa rápida libertação do Purgatório.
Um terceiro estágio ocorre sempre que o contato com a experiência original se perde. Neste ponto, existe o ceticismo no qual o símbolo é ignorado, ou num fideísmo quando a pessoa confia no Escapulário sem considerar seu significado. Este último estágio pode estar bem próximo do pensamento mágico. Quando este estágio acontece, e em alguns lugares ele já pode ser visto no caso do Escapulário, se faz necessário, então, uma reconstrução reflexiva do símbolo. Teríamos que situar o Escapulário dentro de toda a espiritualidade carmelitana e, especialmente, em relação aos temas centrais que precisariam ser repensados, representados e inculturados em cada lugar. Sem esta reflexão sobre o símbolo dentro da experiência carmelitana do zelo de Maria, não será a mera exortação em si que irá revitalizar o Escapulário.
Uma contribuição valiosa para a revitalização do Escapulário foi o novo rito para a imposição do Escapulário e o texto “A Natureza e o Valor Espiritual da Devoção do Escapulário Carmelitano” emitido pelo Conselho Geral da Ordem Carmelita e pelo Definitório Geral dos Descalços mais ou menos no mesmo tempo.
O novo rito de bênção e de imposição tem os seguintes pontos e orientações:
-Por causa da Encarnação, simples objetos materiais podem ser apresentados como instrumentos da misericórdia de Deus e como sinais de nosso compromisso.
-O Escapulário é um sinal do zelo maternal de Maria.
-Ele também é um sinal do amor recíproco que deveríamos ter por Maria.
-É um sinal de comunhão com a Ordem do Carmelo e de um desejo em participar em seu espírito e vida.
-É um sinal da pureza da Virgem Maria e de nossa consagração a serviço da Virgem.
-É uma renovação de nosso compromisso batismal de “revestir-se do Senhor Jesus Cristo” (Rm 13,14).
-Sendo uma vestimenta, ele pode ser ilustrado por temas bíblicos relacionados a roupas e trajes.
-Seu uso é um chamado para imitar e servir a Virgem e a viver por Cristo e sua Igreja no espírito contemplativo e apostólico do Carmelo.
Este rico entrelaçamento de temas, mostra que o Escapulário é um símbolo aberto de significados e de compromisso bem extraordinários. Subjacente a quase todos eles estão os dois temas do Padroado: Maria nos atinge e respondemos a seu Filho através do serviço e da imitação dela. O Escapulário é um símbolo claramente relacional. Na verdade ele tem pouco significado, tratando-se mais de um relacionamento.
O texto das autoridades da Ordem desenvolve estes pontos, especialmente lembrando a afiliação à Ordem, um elo com a Família do Carmelo. Ele resume as principais inspirações da espiritualidade carmelitana e mostra o Escapulário como um símbolo vivo, um compromisso com estes valores e com a evangelização. O parágrafo final diz:
O Escapulário é um sinal do amor de Maria, ícone da bondade e da misericórdia da Sagrada Trindade. Este amor é o fruto da graça de Deus derramado nos corações dos fiéis que, por sua vez, se comprometem com ele.
Além disso, numa época em que o simbolismo religioso está perdendo seu lugar, enquanto o simbolismo secular está constantemente crescendo, é importante que a Igreja faça uso de símbolos que, de certo modo, revelam aspectos da verdade divina. A recente beatificação de Isidore Bakanja (1994) mostrou que para este zairense, o uso do Escapulário era um modo de testemunhar sua fé, um testemunho que o levou ao martírio em 1909.
Assim, fica claro que o Escapulário, longe de ser uma devoção externa pertencente a uma época antiga, poderia ser um símbolo vibrante. Um símbolo que, acima de tudo, realça o elemento chave do relacionamento na espiritualidade mariana carmelitana.

Conclusão: Amor mútuo de Maria e dos Carmelitas
Este longo capítulo demonstrou que temos uma genuína espiritualidade mariana na Ordem. Uma espiritualidade que é claramente percebida em nossos escritores espirituais. Nela é central a noção do relacionamento com Maria.

Temos o Escapulário como um sacramental onde é essencial o tema do relacionamento com Maria. Mas existem outras fontes importantes que estão disponíveis em nossa província para desenvolver e revitalizar este relacionamento. As províncias espanholas foram bem atendidas pela recuperação de escritos espirituais, sermões e poesia através do trabalho recente de P. Garrido.   Outras fontes para nossa herança mariana carmelitana são a vida de nossos santuários marianos, a música, a arte e a arquitetura, assim como o folclore. Evidentemente, uma fonte privilegiada é a liturgia. 

A PALAVRA DO FREI PETRÔNO. Nº 934. Um olhar sobre a Laudato si'

domingo, 12 de julho de 2015

A PALAVRA... Nº 930. O Silêncio de Maria e do Carmelo.

15º Domingo do Tempo Comum: Um olhar sobre São João Del Rei.

*UMA PRESENÇA AMOROSA: MARIA E O CARMELO (3ª Parte).

Christopher O’Donnell, O. Carm.

Evolução da Consciência Mariana da Ordem
A maioria das descobertas registradas no capítulo anterior foram desenvolvidas nos séculos seguintes. A consciência mariana da Ordem evolui rapidamente.   Ao analisarmos este desenvolvimento devemos não apenas examinar cuidadosamente a documentação existente, mas, acima de tudo, devemos buscar um sentimento de empatia com situação dos carmelitas nos séculos XIII e XIV. Do contrário, corremos o risco de termos total antipatia para com uma evolução delicada e complexa. Além disso, devemos destacar alguns pontos proeminentes, tendo-os sempre em nossas mentes, se queremos compreender o modo como se originou a vida mariana da Ordem.
Os irmãos começaram a ir para a Europa por volta de 1238.   A migração foi gradual desde esta data até 1291, quando o Reino Latino de Jerusalém foi conquistado. Eles levavam consigo a Regra e um modo contemplativo de vida, fortemente marcado pelo ascetismo. Na verdade eles perderam, acima de tudo, sua capela no Monte Carmelo, dedicado à Maria. Vemos que eles logo dedicaram um mosteiro à Maria na Europa, já em 1235.   Eles chegaram a uma Europa que, como vimos na Introdução, possuía uma rica devoção mariana. Os Irmãos carmelitanos inseriram-se facilmente neste clima mariano. Eles iniciaram então um processo, integrando sua herança própria com a vida mariana encontrada na Europa.
Eles demonstram esta sua grande devoção ao escolherem Maria como sua Padroeira, simbolizada na Capela em sua honra no Monte Carmelo. Já em 1282 o Geral Pierre de Millau, numa carta a Eduardo I da Inglaterra buscando seu apoio, afirmou que a Ordem Carmelita tinha sido especialmente fundada em honra de Maria.   Isto foi novamente afirmado no capítulo geral de 1287.   Mais tarde, John Baconthorpe (por volta de 1348) diria que “Deus... desejou estabelecer os Irmãos do Carmelo em louvor de sua Mãe.”   E olhou para o fim dos tempos quando os carmelitas serão recompensados por seu papel especial no serviço militante em louvor a Maria e em honra de Cristo.
No tempo da regulamentação e da busca por sua identidade, o relacionamento dos Irmãos com sua Padroeira Maria, serviu de base sólida. Mas também existiam outros elementos como o ideal contemplativo e a memória que tinham de Elias.

A Origem da Ordem a partir de Elias
Já observamos que a origem da Ordem a partir de Elias foi claramente afirmada na Rubrica prima das Constituições de 1281. Não é difícil ver como o tema de Elias foi desenvolvido em resposta à oposição a esta nova Ordem, já que ela não tinha um fundador histórico evidente, tal como São Domingos ou São Francisco. Os Irmãos Carmelitas sabiam que tinham ficado no Monte Carmelo por muito tempo. Era uma montanha sagrada, associada a eremitas de tempos muito antigos e, na verdade, com o grande profeta Elias. Eles viram em Elias um grande profeta e um grande contemplativo. Alguém que, como Moisés, encontrou o Deus vivo no Monte Horeb (1Reis 19,11-18). Eles sabiam que, apesar da oposição que encontraram na Europa, o estilo de vida que tinham era antigo e autêntico.
Na Idade Média, como na época bíblica, as verdades eram sempre transmitidas através de mitos. Com nosso senso moderno de historicidade, muitas vezes não ficamos satisfeitos diante de mitos. Sempre fazemos a pergunta errada. Em vez de perguntarmos “o que significa o mito?”, perguntamos “aconteceu de fato?”  E um mito contém uma verdade que não são as afirmações explícitas do mito. A verdade que se esconde por trás do mito de Elias estava no fato de que os carmelitas reconheciam nele uma figura idealizada, cuja inspiração eles seguiam ao viverem como eremitas perto de seu poço histórico. Sendo contemplativos, buscavam a experiência espiritual do Deus vivo de Elias. Consagrados à caridade viam Elias como o primeiro exemplo ideal do Antigo Testamento que vivia na continência perpétua pelo Reino. Como eremitas viam nele uma figura solitária e companheira, alguém que deixou tudo para buscar apenas Deus.
A forma que o mito tomou foi um desejo aparente dos nossos fundadores, de construírem uma continuidade histórica entre o profeta do século VIII a.C. e a Ordem, assim como ela existia na Europa no século XIII. Bons estudiosos e teólogos da Ordem despenderam um tempo enorme na tentativa de encontrar elos tirados da Escritura e da Patrística para construir uma corrente ligando a Ordem até o tempo de Elias. Muitas figuras bíblicas, assim como antigos eremitas e santos da Palestina foram vistos como parte da continuidade histórica da Ordem. Historicamente tal trabalho não tem valor. Mas ele, na verdade, é muito mais que uma legenda, um mito. Ele tem sua verdade própria em termos de identidade e espiritualidade.

Maria e Elias – Maria e o Carmelo
Maria foi gradualmente inserida neste mito, ou hagada, de Elias.

Os Primeiros Escritores
A Crônica De inceptione ordinis (cerca de 1324) afirmou que, após a Encarnação, os seguidores de Elias e de Eliseu construíram uma igreja em honra da Bem-aventurada Maria perto da fonte de Elias. Ela assegurava que a partir do tempo do patriarca Aimérico (+ 1196) eles eram conhecidos como Irmãos eremitas da Bem-aventurada Maria do Monte Carmelo.
O quarto capítulo do Speculum de Jean de Cheminot (+ por volta de 1337) afirmava que, como eles, os sucessores de Elias e de Eliseu abraçaram a castidade dedicada ao Senhor. Dois textos do Antigo Testamento, que se tornariam tradicionais na Ordem, eram aplicados à Maria: “Pois lhe será dado o esplendor do Líbano, a beleza do Carmelo e do Saron” (Is 32,2) e “Sua cabeça que se alteia como o Carmelo “ (Ct 7,6). Uma memória legendária afirmava que Maria, junto com outras virgens, costumava visitar o lugar dos eremitas por causa de sua santidade e da beleza do lugar: “Era apropriado que a mãe das virtudes honrasse o lugar e os filhos de tal santidade e devoção com sua presença”.
Jean de Cheminot também recordou o oratório em honra da Virgem Maria construído após a Ascensão e que, para distinguir os Carmelitas dos outros, eles eram chamados de “os Irmãos da Ordem da Bem-aventurada Virgem Maria” – um título solenemente reconhecido mais tarde pela Santa Sé.

John Baconthorpe
Neste mesmo período surge o carmelita inglês John Baconthorpe (+ cerca de 1348). Demonstrando vasta cultura em filosofia, teologia e leis canônicas, recebeu a alcunha medieval de “Doctor Resolutus”. Seus escritos são na realidade polêmicos, já que ele busca defender a Ordem diante de seus caluniadores. São também escritos espirituais, uma reflexão sobre as profundas raízes da Ordem. Ele escreveu quatro trabalhos que são do nosso interesse, articulando Elias e Maria:   Speculum de institutione ordinis pio veneratione Beatae Mariae, o primeiro tratado a Ordem que unifica profundamente as tradições de Elias e de Maria; Tratado sobre a Regra da Ordem Carmelita [tradução em português] onde mostra que a Regra corresponde de muitas formas à vida de Maria; Compendium historiarum et iurium, uma defesa histórica e jurídica da Ordem; Laus religionis carmelitanae, defendendo e exaltando a Ordem, especialmente no seu relacionamento com Maria.
Em Baconthorpe encontramos desenvolvidas as duas idéias anteriores e novas idéias emergem pela primeira vez dentro do nosso conhecimento. Já os antigos profetas veneravam Maria no Carmelo.   É especialmente por causa dela que se honra o Monte Carmelo.   A beleza física do Carmelo seria uma razão pela qual dever-se-ia dar a Maria tudo que há de mais bonito.
Seguindo uma lenda apócrifa, ele relembra como Maria foi trazida por um anjo ao Monte Carmelo. Foi no monte que ela, enlevada em contemplação, tornou-se a esposa de Deus através do voto da virgindade.   Em vários lugares ele registra a capela construída no Monte Carmelo pelos contemplativos seguidores do profeta Elias, em honra da Virgem Maria e a sua opção por um título mariano.   Na verdade, todo o Livro I do Laus religionis carmelitanae de Baconthorpe é uma esforçada tentativa de unir o Carmelo e Maria. Através de etimologias inventadas e falsas, alusões bíblicas, lendas e, às vezes, profundo discernimento espiritual, ele insiste que o ser carmelitano da Ordem pertence justamente a Maria.
Baconthorpe parece ter sido o primeiro a interpretar a nuvenzinha vista por Elias (1Reis 18,44) como um símbolo de Maria: após a seca ela restaurou a fertilidade da terra.   “O amor de Deus desceu sobre Maria... e, através de Maria, as chuvas de misericórdia e de graça desceram no que estava seco e, assim, restauraram todas as coisas”.   Futuros autores carmelitanos fariam desta interpretação o principal símbolo de Maria no Antigo Testamento e, a partir daí, destacaram muitas implicações.
Os carmelitas são verdadeiramente discípulos de Maria, uma questão reconhecida pela Santa Sé.   Além do conceito de exemplo de vida, que será desenvolvido em nosso próximo capítulo, a maior contribuição de Baconthorpe foi a fusão dos elementos da tradição da Ordem sobre Maria e Elias, além de sua especificação sobre as implicações em relação à proteção da Ordem com a escolha de Maria como titular junto ao oratório estabelecido em sua homenagem. Também examinaremos isso no próximo capítulo.

Uma primeira síntese entre Elias e Maria: Philip Ribot
Atualmente temos um consenso que se o provincial catalão Philip Ribot (+ 1391) não foi o verdadeiro autor de quatro grandes trabalhos pseudoepígrafos, eles são, em último caso, do tempo dele.   Decididamente o mais importante deles foi a Instituição dos Primeiros Monges, atribuído a João XLIV, Patriarca de Jerusalém (+ por volta de 412 d.C.?). Existem sugestões de que o primeiro capítulo sobre o ideal ascético e místico da Ordem pode ser um documento mais antigo, talvez dos últimos anos do século XIII,   mas devemos esperar a publicação da edição crítica feita por Paul Chandler, antes de levarmos tal hipótese a sério. Contudo, já que ele é inteiramente sobre Elias e não menciona Maria, não nos interessa aqui. Sobre o ensinamento mariano de outros livros, Ribot depende de escritores mais antigos, mas pode-se dizer que ele ampliou as idéias deles, desenvolvendo uma nova síntese.
A abordagem principal sobre Maria encontra-se no Livro Seis. Por todo esse livro Ribot se interessa pelo título da Ordem, “Irmãos da Bem-aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo”. Ele também admite que “Carmelitas” é um título legítimo.   Uma idéia fundamental que ele desenvolveu foi uma interpretação espiritual, mas de forma arbitrária, da nuvenzinha vista por Elias (1Reis 18,44). A chave para seu simbolismo mariano é que a nuvem de pura chuva, que é Maria, surgiu do mar amargo e salgado, que é a imagem da humanidade pecadora. O profeta recebeu por iluminação divina quatro mistérios sobre a futura redenção da raça humana, que depois comunicou a seus seguidores:
-o nascimento do futuro redentor de uma virgem-mãe que, por sua origem, estaria livre de qualquer mancha de pecado;
-o tempo quando isto deveria acontecer;
-a decisão intencional da futura mãe de manter-se sempre virgem, consagrada ao serviço do Senhor;
-a fecundidade de sua virgindade, prefigurada pela chuva, que beneficiaria a condição da raça humana.
Imitando Elias, que foi o primeiro personagem virgem do Antigo Testamento, Maria faria o voto de virgindade e seria a primeira mulher a fazer tal promessa.   Os sucessores de Elias também fizeram este voto. Isso estabeleceu uma semelhança e uma profunda empatia entre eles e Maria, tanto que eles a chamavam de irmã e a si mesmos de Irmãos da Bem-aventurada Virgem Maria.   No entanto, a noção de irmã não elimina a palavra “mãe”, que é delicadamente insinuada:
Antes que ela (a Palavra) se encarnasse existia apenas uma fraternidade de paternidade, porque do mesmo Pai de quem o Filho foi eternamente gerado, a raça humana também foi criada... antes que ele se encarnasse não havia uma fraternidade de maternidade, já que o Filho ainda não fora gerado por sua mãe.
A consequência é que depois da Encarnação, houve um novo fundamento: a fraternidade na maternidade de Maria.
O título tradicional de “Padroeira” é associada também à virgindade. Os Carmelitas cuidaram de servir à Virgem com devoção especial.
Eles estavam especialmente ansiosos para escolher esta virgem como sua padroeira, porque sabiam que apenas ela era singularmente como eles nos primeiros frutos de virgindade voluntária. Pois assim como a virgindade espontânea para Deus foi iniciada em primeiro lugar pelos antigos seguidores dessa religião e introduzida aos homens, a mesma virgindade foi depois primeiramente introduzida  e começou entre as mulheres através da Mãe de Deus.
Assim, vemos que Ribot faz uma síntese, partindo da virgindade, das noções tradicionais de Maria e a Ordem – Mãe, Padroeira e Irmã. E tudo isso se origina da meditação feita pelo autor do significado espiritual da nuvenzinha. Contudo, não temos apenas o fato de que Ribot está acrescentando algo novo à consciência mariana da Ordem. Ele também lê na nuvenzinha qual foi a atitude da Ordem para com Maria. Ele manteve sua base, a partir da virgindade, mais claramente do que os autores anteriores. Na verdade, ele usa uma falsa etimologia para a palavra “Carmelo” para indicar “conhecimento da circuncisão” o que ele interpreta depois como virgindade para Deus, buscada em primeiro lugar por Elias e seus seguidores e, depois, por Maria.

Síntese entre Elias e Maria: Arnold Bostius
No final do século XV temos uma síntese mais madura das tradições da Ordem, feita pelo humanista Arnold Bostius (+ 1499).  Seu primeiro trabalho sobre Maria foi o Breviloquium,   que foi ampliado num inédito e vasto tratado chamado Speculum historiale.   Seu melhor e mais conhecido trabalho foi De Patronatu et patrocinio B. Virg. Mariae in dicatum sibi Carmeli Ordinem, de 1479.   Neste texto escrito em reposta à uma questão quanto a Maria ter sido especialmente favorecida pela Ordem, Bostius recorre em grande parte à tradição anterior, aos convenientes significados da Escritura, além de símbolos, da Escritura ou de pessoas, interpretados num sentido mariano.
Bostius é importante na história da mariologia por ser um representante das posições consensualmente sustentadas no final do século XV. Assim, temos um claro ensinamento sobre Maria como Mãe de Deus, Mediadora, Imaculada Conceição, Santíssima, Virgem, Assunta ao Céu, Rainha, Mãe Espiritual e Mãe de Misericórdia. Todas estas invocações são verdades que a Ordem Carmelita partilha com toda a Igreja.   Apesar de E. R. Carroll não afirmar que Bostius estava interessado em um princípio unificador da mariologia, ele reconhece que, apesar da maternidade divina não ser um tema de principal interesse no De patronatu, tal tema tem alguma centralidade em seu pensamento.   N. Geagea concorda.   Nosso interesse em Bostius é mais restrito. Veremos de que modo ele apresenta a mariologia carmelitana em sua época, isto é, apontando o inter-relacionamento entre Maria e a Ordem.
Além disso, existe um tema mariológico geral em Bostius que devemos mencionar por causa de sua proeminência no século XX. É o tema da beleza de Maria.   Ele já é encontrado em Baconthorpe.   Algumas vezes em Bostius o tema é explícito: “Virgem de beleza incomparável, em quem juntam-se os dons da natureza e da graça, acima de tudo alguém que é graciosa, amorosa, de pele rosada, serena, a mais bela”.   Ou ainda: “A menos que se conheça a verdadeira divindade pela fé, não poderíamos acreditar que existiu alguém mais bela do que a Virgem”.   Em outras ocasiões o tema emerge em contextos diferentes, tal como a plenitude de sua graça: “Maria, a mais exaltada, é o espelho da Trindade.”  Ela é a mais bela de todas: “incomparavelmente a mais resplandecente de todas as criaturas... e a glória do Carmelo”;   “a honra de toda feminilidade e a glória de todas as mulheres”.   Bostius, um humanista latino com um extenso vocabulário e uma retórica refinada, coleciona expressões em louvor à beleza de Maria por todo o De patronatu. Num capítulo posterior consideraremos o tema da beleza na mariologia contemporânea.
Em se tratando das associações especificamente carmelitanas com Maria, deveríamos lembrar em primeiro lugar do casal Elias e Maria. Em parágrafos compactos, Bostius mostra que Elias e Maria partilharam através do Espírito de doze privilégios que nutriu a ambos: a luz brilhante; o esplendor da virgindade; a fundação da vida religiosa; a exemplaridade de vida; as conversas com Deus; a associação com espíritos angelicais; o amor supremo e o zelo por Deus; o carisma profético; a obediência; a clemência e a misericórdia; os milagres e a subida aos céus.
Mas Bostius, subitamente, muda o rumo da tradição de Elias e de Maria. Como alguns de seus predecessores, ele sustentou que Elias está na origem da vida religiosa. Sua ênfase é Elias, o contemplativo. Mas na tradição do Carmelo, Elias é pai, instituidor, patriarca, legislador, mestre, principal padroeiro, fundador.   No entanto, Bostius defende a prioridade e a primazia de Maria no que diz respeito ao Carmelo. A escolha de Elias pela virgindade foi inspirada precisamente na futura Virgem Mãe, aquela que ele vislumbrou na nuvenzinha que veio ao seu encontro no Carmelo e a quem ele desejou honrar e ensinou seus seguidores a honrarem também.
Portanto, Bostius conclui que Maria, por sua exemplaridade, é uma “legisladora” para Elias e para a instituição fundada pelo profeta.
Por isso, Maria é a legisladora de Elias e é, certamente, considerada a legisladora e fundadora de todo o grupo do Carmelo.
Por sua vivência exemplar, ela é a senhora (domina) e a instituidora.   Em Bostius, que foi seguido por Lezana (+ 1659) e outros,   encontramos Elias e Maria apresentados como o casal fundador da Ordem.

Síntese mariana – Bostius
Em sua síntese envolvendo Elias e Maria, Bostius reflete sobre o relacionamento entre as duas figuras fundadoras da Ordem e definiu a prioridade de Maria com respeito aos Carmelitas. Foi o exemplo e o futuro destino dela que inspiraram o profeta a fundar a Ordem, de forma que ela deveria ser chamada de sua verdadeira fundadora. Ainda permanecem obscuros os outros elos que Bostius vê entre Maria e a Ordem. Ele usa outros títulos significativos, alguns dos quais são tradicionais e outros ele mesmo desenvolve: Protetora, Mestra, Guia, Amiga, Irmã, Mãe, uma Carmelita.
Bostius chama Maria continuamente de Padroeira do Carmelo: “Ela é especial e verdadeiramente chamada de Padroeira do Carmelo e dos Carmelitas”; “a renomada Mãe de Deus, Maria, a muito admirável Padroeira do Carmelo”.   Maria é também Senhora e Mestra do Carmelo:
Os carmelitas daquela época santa eram reconhecidos por sorverem de uma fonte viva, da mais perfeita mestra da vida religiosa, do espelho brilhante de toda modéstia, virtude e nobreza.

Ele resumiu seu ensinamento:
Pela palavra, como mestra perfeita, ela abraçou todas as ordens do Senhor quando disse aos servos, “Façam o que ele mandar” (ver Jo 2,5).
O ensinamento de Maria não é abstrato, pois ela é a Guia do Carmelo. Ela está junto de Elias no zelo pela Ordem. Ela é a Padroeira do Carmelo.   Elias é visto como aquele que não morreu nem entrou no céu. Maria toma seu lugar. Bostius narra uma visão na qual ela diz:
Enquanto o mundo durar, ele sempre deverá ter uma protetora. Sou a carruagem e o cocheiro do Carmelo, em lugar de vosso pai. Governo aqueles que são órfãos de pai. Sou mãe em vez de pai. Guardo os interesses do Carmelo em meu coração. Eu, a mãe, copiosamente nutri aqueles nascidos do Carmelo.
Bostius afirma freqüentemente que Maria também é a Amiga do Carmelo. Por isso,
Abençoados são os filhos do Carmelo que viram a muito bem-aventurada Mãe de Deus na carne, a fonte ideal de toda alegria. Mas também especialmente adornados são aqueles que merecem sua amizade, que é unida à de Cristo.
Bostius vai muito além dos relacionamentos feudais inerentes à noção de padroeira, enfatizando a noção do Carmelo como uma família: “os filhos do Carmelo pertencem especialmente à família de Maria”.   Nesta família Maria é tanto Mãe quanto Irmã, de forma que ela considera os carmelitas como filhos e irmãos.
Na verdade, Maria, a muito digna Rainha do céu, causa encanto singular nas pessoas, nos encontros carmelitanos, em seus próprios servos por título e amparo. Como ela não ouviria a seus filhos e irmãos carmelitanos que estão singularmente comprometidos com sua defesa, e são os seus defensores, e que foram escolhidos e especialmente amados para propagar seu vinhedo em flor?
O título de Mãe não precisa de ilustração por parte de Bostius. Ele está em todo lugar. Na opinião de alguns ele é para Bostius o atributo principal de Maria com respeito ao Carmelo.   Ele afirma, por exemplo:
A Rainha do céu, a sempre exaltada Virgem Maria, é a Mãe universal de todos os cristãos, um porto e refúgio comum para todos os homens e mulheres. Mas ela é especialmente Mãe e Padroeira dos Irmãos Carmelitas.
Mas Bostius desenvolve, mais claramente do que outros, a idéia de que os carmelitas são filhos tanto de Elias quanto de Maria, personagens que estão unidos num casamento místico. Já vimos a base desta idéia: era o voto de virgindade que Elias fez quando a futura Virgem foi revelada a ele na nuvenzinha.
Portanto, os carmelitas são filhos e irmãos de seu pai Elias e de sua mãe Maria, seus muito valiosos genitores.
Esta tradição foi reassumida, dois séculos depois, por Daniel da Virgem Maria em seu aprofundamento de um dos primeiros escritos carmelitanos, o Speculum.
Elias era mariano. Elias consumiu-se em seu amor a Maria. Elias fez um voto de acordo com o exemplo de Maria, que ele mesmo anteviu. Elias é o pai dos carmelitas, mas primeiramente, Maria é Mãe deles.
Finalmente, para Bostius, Maria pode ser considerada uma verdadeira carmelita: “Ela mostrou-se espiritual, corporal e literalmente uma carmelita”.
Em Bostius temos uma síntese e uma elaboração da reflexão anterior sobre Maria. Escritores posteriores não acrescentaram muito às suas posições centrais. Antes de deixarmos este período medieval de máximo desenvolvimento, existem mais dois temas que, apesar de estarem presentes em escritores mais recentes, foram desenvolvidos por escritores mais antigos. São os temas da Puríssima Virgem e do Escapulário.

A Puríssima Virgem
A reflexão sobre pureza de Maria emerge de diversos contextos, em documentos muito antigos. Ela está implícita na forte ligação dos teólogos da Ordem com a Imaculada Conceição. Ela também se manifesta na gradual inserção da palavra “Virgem” ao título da Ordem. Ela emerge em Jean de Cheminot (por volta de 1350). Vimos anteriormente que em seu Speculum, ele considera a virgindade como um vínculo comum entre Elias e Maria. Ele exorta os carmelitas a se rejubilarem por terem o nome de Maria em seu título, “a flor da beleza e o título da virgindade”.
Nas Instituições dos Primeiro Monges vimos o paralelo entre a virgindade de Elias e a de Maria. Mas esta virgindade é apenas um aspecto da completa ausência de pecado e da absoluta plenitude de Maria, apesar de ela ter surgido da humanidade pecadora:
Ela era, na sua origem, como uma criança limpa de toda mancha de pecado, assim como aquela nuvenzinha surgiu do amargo mar, sem conter, no entanto, nenhuma amargura. Apesar de aquela nuvenzinha pertencer à mesma natureza do mar, ela possuía outras qualidades e outras propriedades. O mar é denso e amargo, mas aquela nuvem era tênue e doce. Assim, apesar de em todas as outras pessoas a natureza humana ser como o mar em sua origem, por ser oprimida pela amargura do pecado e pelo peso do vício, elas são forçadas a clamar “Minhas culpas ultrapassaram minha cabeça, e pesam sobre mim, como fardo pesado” (Sl 38,5). A Bem-aventurada Virgem Maria surgiu também deste mar que é a natureza humana. Pois, em sua origem, ela não foi queimada com o amargor das faltas mas, como a nuvenzinha, ela foi luz através da imunidade ao pecado e doce pela plenitude dos carismas.
Em Bostius o ensinamento é claro: “ela brilhava em sua grande pureza, de forma que, depois de Deus, nenhuma maior poderia ser imaginada”.   Ou ainda,
Além disso, os Carmelitas, os filhos de Elias e de Maria são convidados e ensinados fervorosamente a imitar Elias, que era totalmente brilhante por dentro e por fora, e Maria que, abaixo de Deus, nada de tão puro e tão brilhante, pode ser imaginado.
Mas se passará mais um século até que uma reflexão plenamente desenvolvida sobre a pureza e a pureza de coração seja apresentada.

O Escapulário
Como mencionamos na Introdução, a questão do Escapulário coloca dificuldades específicas para nosso tempo, embora a mais fiel devoção à Nossa Senhora do Monte Carmelo seja sinônimo do Escapulário. A evidência de problemas em todas as áreas deve ser encarada com cuidado.
Não há referências ao Escapulário na Regra ou em Flechas de Fogo, de Nicolas, o Francês. A primeira referência a ele está nas Constituições de Londres, de 1281. Lá encontramos a instrução: “Os Irmãos devem dormir com sua túnica e com o Escapulário sob pena de severa punição”.   A razão para esta severa admoestação é que, naquele tempo, a remoção do hábito era vista como fuga da Ordem. Assim as Instituições dos Primeiros Monges afirma:
Este traje, o capuz/capuchinho e o escapulário são usados ao mesmo tempo pelo monge e mostra que o monge sempre deve, humildemente, levar consigo a obediência e ser completamente obediente a seu superior.
E exige que “eles sejam diligentemente usados dia e noite sem falta”.   As Constituições de Montpelier ordenaram que o novo manto deveria ser aberto na frente para que o Escapulário, o hábito da Ordem, pudesse ser visto. Este regulamento foi repetido na legislação posterior.   Assim, por mais ou menos 150 anos o Escapulário teve mais um sentido cristológico de obediência do que propriamente uma devoção mariana.
Além disso, existe um problema quanto a São Simão Stock. Seu nome aparece pela primeira vez numa lista de priores gerais apenas com Jean Grossi (+ por volta de 1411) e numa necrologia florentina, que não pode ser anterior a 1374.   Nas mais antigas listas de santos, ou Santorale, ele surge como quinto ou sexto prior geral. Estas listas de santos podem ser anteriores ao século XIV mas, como as necrologias, se originam de fontes mais antigas. A festa de São Simão Stock foi celebrada a partir de 1435 em Bordeaux, onde ele morreu, e na Inglaterra. Esta festa foi estendida para toda a Ordem em 1564.
O relato mais antigo da visão do Escapulário está no Sanctorale de Bruxelas, que pode ser datado mais ou menos do final do século XIV, ou seja, um século e meio depois de Simão Stock. Este Sanctorale pode realmente depender de documentos mais antigos, mas eles não foram encontrados. Lemos no relato mais primitivo e antigo da visão:
São Simão era um inglês, um homem de grande santidade e devoção, que sempre pedia à Virgem, em suas orações para favorecer a Ordem com algum privilégio único. A Virgem apareceu a ele segurando o Escapulário em sua mão e dizendo: “Isto é para ti e para os teus um privilégio. Aquele que morrer com ele será salvo”.
Não é possível, através de métodos críticos, estabelecer a historicidade desta visão. A ausência de qualquer referência a ela na extensa e polêmica tradição escrita durante os séculos passados é talvez o único argumento contra a sua autenticidade. Mas é um argumento de peso. Por outro lado, não há qualquer evidência que desaprove a visão, apesar de que tal argumento do silêncio deva ser tratado com certa cautela.
Do ponto de vista dos estudiosos, aqueles que querem afirmar a autenticidade da visão deveriam se esforçar em fornecer provas. Numa perspectiva pastoral, talvez seja melhor não aprofundar os detalhes da visão, mas sim realçar o significado do Escapulário como uma expressão do zelo de Maria e de uma consagração a ela, de acordo com Pio XII, cujos ensinamentos examinaremos num capítulo posterior. O título mariano que melhor justifica o Escapulário é Padroeira, que consideraremos junto com outros no próximo capítulo.

Lectio Divina
Os escritos de nossos autores medievais são de uma época e de uma cultura bem diferentes da nossa. Encontramos expressões sobre Maria que não seriam usadas hoje, como por exemplo, “divina” (mas que usamos tranqüilamente num contexto secular: “A música de Mozart é divina”). Mas o esforço de tentarmos nos solidarizar com nossos antepassados medievais é válido. Isto se faz de melhor forma através de seus textos da lectio divina.  Nele nos perguntamos:
1.o que o texto significa?
2.o que o texto significa para mim e para o mundo onde vivo e ao qual sirvo?
3.como respondo de forma orante à verdade que está sendo apresentada neste texto?

Meditando.
O trecho seguinte, tirado ao acaso de A. Bostius (1479) é uma rica expressão de nossa herança. Vale a pena aproveitar o tempo para orar com ele e, assim, aprofundarmos nossa tradição de um modo vivo. O texto é tirado de um longo capítulo mostrando como os carmelitas deveriam honrar Maria.
Permanece por ser visto como os Irmãos devem mostrar o amor, toda honra e reverência fraterna a uma tal Irmã, excelente Mãe e Padroeira que possui tal poder sublime, piedade gentil, abundante generosidade e toda fecundidade. Pois, entre todas as pessoas, ela escolheu os carmelitas para serem uma raça que seria especial para ela e, particularmente, levou-os sob a sombra de suas asas. Como a Amada adotada pelos Irmãos, ela realmente ora a todo momento por eles, seu povo, a quem ela segura em seus seios, instruindo-os com o leite divino.
Omito o culto e as devoções especiais que dia e noite eles não param de oferecer à mais divina, Mãe Toda-poderosa, a quem eles amam tão profundamente, sempre reverentemente venerada, devotamente louvada, magnífica no mais algo grau e admiravelmente exaltada. Em seus corações e bocas proclamam corretamente um lugar muito especial para ela. Pelo menos, essas coisas devem ser guardadas na mente que une a família carmelitana aos benefícios da divina Maria. Eles devem mostrar aos outros a maior eficácia da proteção de Maria no meio de seu povo. Eles reconhecem como certo que devem dar graças eternamente a ela, pois eles não possuem a capacidade de dar benefícios àqueles que os concede. Lembrando que, no testemunho do Papa Gregório, cada um carrega algum título de seu trabalho, de forma que se pode facilmente ver sob a direção de quem este trabalho é feito. Por isso, todas as Igrejas de uma comunidade carmelitana são instituídas em honra da sempre gloriosa Maria e são dedicadas ao seu reverente nome. Portanto, alegremente todo o Carmelo proclama:
Escolhi a moradia da Mãe de Cristo por casa, que a santa Virgem possa vir em auxílio

de seus servos.