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quinta-feira, 16 de julho de 2015

Maria na espiritualidade do nosso tempo

*Dom Frei Vital Wilderink, O Carm, In Memoriam.
(Congresso Mariano Mariológico – Recife/PE. 11/07/2001)

A espiritualidade nasce de uma expectativa do ser humano  diante do mistério. Criado à imagem de Deus, ele já traz em si algo que é maior do que seu coração. Expectativa freqüentemente anônima, mas presente no tecido da nossa história. Só o mistério maior pode responder a esta nossa  expectativa. Deus cruzou o limiar da sua transcendência mediante seu Filho único que atravessou a extensão do universo para colocar-se nos caminhos do homem. Concebido pelo poder do Espírito Santo, nasceu da virgem Maria. Em Maria Deus assumiu a humanidade para que nós pudéssemos ter acesso à divindade, fazendo em sentido inverso o caminho que o conduziu até nós.   A relação do ser humano com Deus, passa pela realidade pessoal do Filho encarnado. É por Cristo, com Cristo, em Cristo que se estabelece a nossa relação  com o próprio mistério da Trindade. Não é uma  relação simplesmente acrescentada à nossa realidade humana. Ela transforma o ser do homem por dentro: “Vede que grande presente de amor o Pai nos deu: sermos chamados filhos de Deus! E nós o somos!”(1Jo 3, 1). Maria foi a primeira criatura atingida por esse plano de Deus. Nela a Palavra de Deus manifestou toda a sua fecunda eficácia. Maria tinha razão para dizer: “Daqui para a frente me felicitarão todas as gerações”. O presente Congresso nos coloca no meio dessas gerações.
            Não teria muito sentido alegrar-se com Maria se essa alegria não brotasse de dentro de nós mesmos, ou seja da nossa própria espiritualidade. Sem uma consciência de fé, pelo menos incoativa, no mistério do amor de Deus, nem teríamos razões para chamar Maria de bendita. Pois é a partir dessa consciência que se define para nós o lugar e o papel que ela tem na espiritualidade contemporânea..
            O que é feito da nossa espiritualidade hoje? Eu faria uma distinção entre religião, religiosidade e espiritualidade. Religião e espiritualidade não são palavras sinônimas, não dizem a mesma coisa, embora entre as duas existe - pelo menos deveria existir - uma íntima conexão. Desligada da religião surge facilmente um misticismo esotérico. Mas nem sempre uma religião é espiritual e mística. A religião dos antigos romanos se reduzia a um legalismo, às vezes, até piedoso cujo objetivo era também a manutenção  da estrutura política do império. Jesus tinha suas razões para dizer: “Daí a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mt 22,21).
            Espiritualidade é um movimento interior, constantemente renovado, a partir de Deus. A primazia de Deus e da sua iniciativa é sempre “anterior” à  nossa história, à nossa cultura, e às dialéticas que nela se manifestam. E não basta que interiormente eu esteja convicto de tudo isso. Devo também tentar traduzir na vida as razões que tenho para reconhecer e testemunhar, sempre de novo, essa primazia de Deus. Isto supõe uma sede de Deus e uma coerência com essa sede. Mostra também que o decisivo na pessoa humana é o “coração”,  a interioridade, o espírito.  Afinal, é deste centro que partem as livres decisões, as definições dos horizontes  que dão sentido à história. O destinatário da palavra de Deus que ilumina e salva, é o coração onde está em jogo todo o nosso humano existir. O que faz compreender a importância do silêncio. Silêncio que não é um simples ficar calado, mas uma atenção vigilante inerente à nossa relação com Deus.  É o que chamamos a dimensão contemplativa da vida. Não é raro encontrar esses contemplativos no meio do povo, nas nossas comunidades. Não são  pessoas que não tenham as suas perplexidades,  as inquietações da noite da fé. Sendo Deus a última medida, elas não o vêem, mas crêem nele. Sem noite a aurora não aparece. Assim pode acontecer quando vemos desfeitos os nossos planos, quando o próprio ambiente cultural parece ocultar Deus aos olhos da nossa fé, quando nos deixamos interrogar pelas provações, pelo sofrimento, pela violência; quando parece apagar-se a luz recebida na oração, numa  leitura espiritual ou durante um retiro. Luz  que tínhamos diante dos olhos como uma lâmpada que brilha na escuridão, até que amanheça o dia, e o astro matutino desponte nos nossos corações (2Pd 1,19). Deus é sempre maior, e por isto freqüentemente parece recuar quando pensamos ter chegado a um melhor conhecimento dele. Assim também acontece com as nossas comunidades, acontece com a própria Igreja que nunca pode compreender-se a fundo a si mesma, nem pode deixar de procurar com paixão e paciência a sua identidade. O nosso encontro com Deus não é fruto de uma dialética humana, seja ela coletiva ou pessoal. Nem é uma conquista eclesiástica.  É só a graça que muda e renova: “permanecei em mim” como Jesus disse a seus discípulos. É esse seguimento na radicalidade da fé que forma o critério da autenticidade da espiritualidade de uma pessoa ou de um movimento. Dá também sentido a uma pertença institucional cujas possibilidades e conseqüências são assumidas e desenvolvidas na fidelidade à graça de Deus. A fé que despreza esse pertencer não pode ser genuína. É nesta perspectiva que podemos interpretar o que Dom Hélder repetia a Dom Paulo Evaristo, agora arcebispo emérito de São Paulo: “A coisa mais importante de todas que você pode fazer pela Igreja é a celebração da missa e a recitação das orações”.
            A espiritualidade é um caminho que se percorre para descobrir a própria identidade. O ser humano se descobre a si mesmo à medida que vai entrando em contato com os outros, com aquilo que não é ele mesmo, com tudo aquilo que é novo. Quando perdemos a capacidade de encontrar o outro como outro, ficamos rodando num egocentrismo que é um círculo vicioso. Uma criança mimada pode tornar-se insuportável porque se lhe negou o encontro com o outro como outro,  reconhecendo-lhe em tudo direitos de propriedade. O ambiente de uma sociedade de consumo favorece o individualismo. Até certos gestos aparentemente altruístas podem esconder um narcisismo. A espiritualidade é o acontecer de uma relação com o Totalmente Outro. No mais profundo do ser humano existe uma nostalgia desse Absoluto que é o Mistério de Deus. Mas o encontro com esse Totalmente  Outro supõe um itinerário que atravessa a nossa vida de cada dia. Aos poucos vamos descobrindo que o encontro com o Outro, não se faz sem o encontro com o outro. A necessidade que um outro tem, pode tornar-se possibilidade de um encontro. Mas também pode acontecer o movimento inverso quando mediante o discernimento de uma possibilidade se descobre nela uma necessidade. É assim que se faz a descoberta da própria vocação. Foi assim que Maria deu o seu sim a Deus. É descobrir  que nós estamos procurando Deus porque é Ele que está à nossa procura. “Não fomos nós que amamos a Deus, mas Ele nos amou primeiro” como escreveu São João. Santa Teresa traduz isto numa expressão que ela escutou na oração: “Busca-me em ti - Busca-te em mim”. É importante que a nossa vida espiritual seja alimentada pela Palavra de Deus através de uma leitura orante. Isto prepara o terreno para que essa Palavra possa fazer-se carne na nossa história. São Bernardo de Clairvaux num sermão sobre o Cântico dos Cânticos  fez uma belíssima confissão: “Confesso-vos uma coisa: sei que o Verbo de Deus me visitou. Mas não sei como ele entrou em meu coração nem como saiu, mas senti a sua ação que me enternece e converte o meu coração. Aliás, só posso saber que tive essa experiência íntima da sua visita por causa de uma leve mudança que experimentei no sentido da minha conversão”.
             O homem de hoje não está muito a procura de idéias, de doutrinas. Está buscando alguém. Anos atrás cantávamos muitas vezes: “Quando Jesus passar, eu quero estar no meu lugar”. O evangelho de João, conta que um certo André e um companheiro dele, provavelmente o próprio João, viram Jesus passar. João Batista, tinha-lhes chamado a atenção: “Eis o cordeiro de Deus”. Eles foram atrás dele. Jesus voltou-se e perguntou: “O que estão procurando?”. Como se  quisesse indagar os motivos que os dois tinham para segui-lo a fim de que tomassem consciência do que pretendiam. E eles responderam com outra pergunta: “Mestre onde moras?” Não penso que a pergunta deles era superficial ou evasiva, no sentido de querer saber onde Jesus se alojava. O que eles investigavam era o mistério da morada transcendente de Jesus. Daí Jesus respondeu: “Venham e vejam”. Talvez tenham recebido naquele dia que ficaram com ele, uma primeira instrução. João anota no seu evangelho que eram as quatro horas da tarde. A Bíblia de Jerusalém diz: “Era a hora décima, aproximadamente”. A passagem de Jesus na praça da vida nunca é casual, mesmo se já é a “undécima  hora”(Mt 20,6). Acontece sempre no “hoje” de Deus.
            No dia seguinte ao  encontro de Jesus com os primeiros discípulos, o evangelho de João apresenta o grupo na festa de um casamento em Caná da Galiléia:  “Aí estava a mãe de Jesus. Também Jesus e seus discípulos foram convidados para o casamento” (Jo 2,1-2). O evangelista tem uma clara intenção em relatar os acontecimentos  nas bodas de Caná: salientar a presença de Maria na festa do casamento. Já no livros do Antigo Testamento o casamento é um símbolo freqüente do amor de Deus por Jerusalém (Is 62,5). . No Novo Testamento torna-se símbolo da união do Messias com a Igreja (Ef 5, 21-33). Nas bodas de Caná  esse casamento de Jesus com a Igreja em vista da humanidade inteira ainda não aconteceu: “Mulher, que desejas de mim? A minha hora ainda não chegou”. Maria está presente ao primeiro milagre, que revela a glória de Jesus. A expressão “chegou a hora” aparece repetidas vezes no evangelho de João, apontando principalmente para a paixão e glorificação de Jesus: “Pai, chegou a hora, glorifica teu Filho para que teu Filho te glorifique” (Jo 17,1). Cristo amou a Igreja e se entregou por ela. Maria está novamente presente, junto à cruz: “Mulher, eis o teu filho! E depois dirigindo-se ao discípulo: “Eis a tua mãe” (Jo 19,26-27).
            O evangelho de Lucas, já nos primeiros dois capítulos do seu evangelho, nos deixa permanecer longamente na presença de Maria de Nazaré, acompanhando as suas reações na anunciação do anjo, a sua visita a Isabel, sua viagem a Belém junto com José, o nascimento de seu Filho em condições precárias, sua silenciosa meditação diante dos pastores que acorreram para ver o menino recém-nascido, a apresentação de Jesus no templo onde o velho Simeão lhe predisse que o Filho dela seria uma bandeira disputada que haveria de mostrar os pensamentos de todos, ou contra ou a favor. O que seria como uma espada que atravessaria a ela mesma. Para Maria foi uma caminhada de fé nesse mistério do seu próprio Filho. Caminhada feita no dia a dia na casa de Nazaré, na viagem de retorno  a Jerusalém onde, depois de uma procura angustiada de três dias,  reencontrou o menino no templo. Maria e José não entenderam a justificativa que Jesus deu do seu comportamento: “Não sabíeis que eu tenho de estar na casa do meu Pai?”. E de novo, Maria guardava tudo isso em seu íntimo. Aos poucos vai descobrindo que o silêncio de Deus não é ausência de resposta. Durante toda a sua vida ela repetiu: “Que tudo aconteça segundo a sua palavra”. Palavra de Deus que ela mesma deu à luz por intervenção do Espírito Santo. Uma palavra é autêntica, realmente nova, quando sai do silêncio. Deus por ser o Totalmente Outro é sempre silêncio, em comparação com a música que já conhecemos.  É por assim uma lei que rege a espiritualidade. No processo da espiritualidade as nossas palavras, as nossas atividades, as nossas alegrias e tristezas, enfim a nossa vida devem tornar-se grávidas do silêncio do mistério de Deus.
            No Evangelho de João, Maria aparece no início da vida pública de seu Filho. Ao que parece é uma convidada importante. Ela tem suficiente autoridade para colocar os empregados da casa a serviço de Jesus: “Fazei o que ele vos disser”. Percebeu que estava faltando vinho para o casamento... É algo trágico num casamento. Dirige-se a Jesus: “Eles não têm mais vinho”. A reação de Jesus é de uma aparente indiferença. De fato, não cabe a ela definir os tempos nem as ações de Jesus. Mas, como primeira criatura humana atingida pelo projeto do Pai, e envolvida como primeira beneficiada na revelação histórica desse projeto redentor, Maria seguiu os passos de Jesus pois Ele é “o caminho, a verdade e a vida”.
            Olhando para o nosso mundo, percebemos que nele falta o vinho: o vinho da vida, o vinho da esperança, o vinho da espiritualidade. Faz pensar num texto de Isaías: “Já não se bebe vinho ao som do cântico, e a bebida forte tem um sabor amargo para quem o bebe” (Is 24,9). “Eles não têm mais vinho”, disse Maria a Jesus no casamento em Caná. Pelo Espírito que Jesus prometeu enviar a água pode transformar-se em vinho. Peçamos  à Mãe de Jesus que interceda por nós. Ela o fará contanto que sigamos o que ela nos propõe a partir da sua própria experiência: “Fazei tudo o que ele vos disser”.

*Dom Frei Vital Wilderink, O Carm- Eremita Carmelita- foi vítima de um acidente de automóvel quando retornava para o Eremitério, “Fonte de Elias”, no alto do Rio das Pedras, nas montanhas de Lídice, distrito do município de Rio Claro, no estado do Rio de Janeiro. O acidente ocorreu no dia 11 de junho de 2014. O sepultamento foi na cidade de Itaguaí/RJ, no dia 12, na Catedral de São Francisco Xavier, Diocese esta onde ele foi o primeiro Bispo.

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