Christopher O’Donnell, O. Carm.
Espiritualidade Mariana
Neste ponto, vamos
fazer uma pausa no levantamento histórico de nossa herança, para perguntar se
podemos falar de nossa herança mariana como uma espiritualidade. Já estudamos
as idéias chaves, que chamamos de temas centrais da nossa tradição. Vamos perguntar
agora qual a natureza delas e como elas se integram em nossa vida. Começaremos
com algumas considerações gerais sobre espiritualidade, antes de examinar
algumas manifestações significativas da vida mariana carmelitana, do misticismo
mariano e da forma de vida mariana, exposto pelo Venerável Miguel de Santo
Agostinho, assim como algumas reflexões sobre o significado do Escapulário.
Então, estaremos em condição de tirar algumas conclusões importantes sobre
Maria na vida do Carmelo e dos carmelitas.
Espiritualidade
Espiritualidade é uma
palavra que se tornou um camaleão: ela assume uma nuança diferente quando usada
pelas várias escolas ou movimentos identificados por um período, um lugar ou
uma instituição (por exemplo, espiritualidade do deserto, medieval, dominicana,
francesa). Ela também é aplicada como uma resposta apropriada aos vários
estados de vida (por exemplo, espiritualidade de pessoas solteiras, casadas,
clérigos, religiosas). Ela pode significar um enfoque sobre alguns aspectos de
revelação ou da vida da Igreja, ou pode chamar atenção para a vida de alguns de
seus membros (por exemplo, espiritualidade eucarística, litúrgica, libertadora,
feminista).
Alguns esclarecimentos
são necessários quando as pessoas falam de espiritualidade. Do contrário, elas
terão uma tendência inevitável de falar de distintas e entrecruzadas propostas.
Aqui vamos considerar espiritualidade como significando a resposta subjetiva da
Igreja como noiva a seu noivo Cristo. Poderíamos substituir esta linguagem tradicional
pela a idéia de que espiritualidade é a vivência prática dos mistérios
ensinados pela Igreja, ou seja, uma teologia que se encarnou e que encontra sua
expressão numa caminhada, de indivíduos ou de grupos, para Deus. Como tal, a
espiritualidade autêntica será sempre Trinitária. As pessoas que aceitam o que
lhes é oferecido através da Palavra e dos sacramentos, permitindo-lhes que sua
eficácia surja nelas mesmas através da fé, da esperança e do amor a Deus e aos
outros, se abrirão a relacionamentos novos e mais profundos com o Pai, o Filho
e o Espírito e com toda a humanidade. O centro desta resposta é Cristo, o único
caminho para a vida Trinitária (ver Jo 14,6; 1Tm 2,5). Mas não podemos falar de
Cristo apenas como modelo. Ele é muito mais do que isto, pois apesar de ser o
pão da vida (Jo 6), ele também é, em si, a nossa vida, aquele em quem estamos
escondidos (ver Cl 3,3 – 4). A palavra “cristão” não é suficiente para
especificar ou esclarecer a espiritualidade, exceto para indicar que não
estamos falando de qualquer outra religião do mundo.
A Espiritualidade Mariana
A pergunta a ser feita agora é se estamos
lidando com uma devoção ou discernimento marianos, ou com uma espiritualidade
mariana. Uma expressão como “espiritualidade mariana” é suficiente para deixar
algumas pessoas apreensivas: não existe apenas uma espiritualidade, ou seja, a
espiritualidade cristã? A questão é extremamente importante, embora também seja
um tanto complexa. Num trabalho significativo, mas muitas vezes despercebido, escrito
em 1960, Hans Urs von Balthasar mostrou que a espiritualidade mariana sustenta
todas as outras:
Uma espiritualidade centrada na atitude
exemplar de Maria... não é apenas uma espiritualidade entre outras. Por esta
razão, apesar de Maria ser uma pessoa fiel e, como tal, o protótipo e o modelo
de toda resposta de fé, ela sintetiza todas as espiritualidades particulares na
única espiritualidade da noiva de Cristo, a Igreja. O que aprendemos com Maria,
numa lição válida para todos os tempos, é que a resposta da serva do Senhor à
Palavra agindo nela e acolhendo toda a vontade dele – de modo especial e único
– é apenas um tema particular na teologia. O que é especial na espiritualidade
de Maria é a sua renúncia radical a qualquer espiritualidade especial que não
seja acolher o domínio do Altíssimo e ser a habitação da Palavra divina...
Portanto, a idéia de fazer da espiritualidade mariana apenas uma entre outras, é uma distorção...
Aqui H. von Balthasar está
antecipando parcialmente uma afirmação do Vaticano II em sua Constituição sobre
a Liturgia:
Celebrando o ciclo anual dos mistérios de Cristo, a Santa Igreja honra
a Bem-aventurada Maria, Mãe de Deus, com um amor especial. Ela está
inseparavelmente ligada ao trabalho salvador de seu Filho. Nela a Igreja admira
e exalta o mais excelente fruto da redenção e contempla alegremente, como numa
imagem perfeita, o que ela mesma deseja e espera ser totalmente. (n. 103)
Portanto, o paradigma de toda resposta a Deus é a resposta mariana. H.
von Balthasar está afirmando que qualquer espiritualidade autêntica será,
portanto, mariana, mesmo que não haja evidência. Se olharmos para o que seria
comumente chamado de espiritualidades particulares veremos que, apesar de cada
uma ter um foco, o conjunto da espiritualidade é realmente uma articulação, um
modo de falar e de viver o “sim” total de Maria. Toda espiritualidade se
fundamenta nas expressões trinitárias da vida de Maria, através de sua resposta
à Palavra de Deus.
Em sua recente coleção de Missas votivas marianas, a Igreja oferece uma
sobre “A Bem-aventurada Virgem Maria: Mãe e Mestra Espiritual”. (Como veremos,
ela se inspira muito em nossa própria Missa Carmelitana de Nossa Senhora do
Monte Carmelo.) O prefácio reza assim:
Pai todo-poderoso e eterno Deus, nós vos damos graças sempre e em todo
lugar. Associada intimamente ao mistério de seu Cristo, ela (Maria) não cessa
de gerar filhos para ti através da Igreja, a quem ela exorta por amor e suscita
por seu exemplo, a buscar a perfeita caridade. Ela permanece como imagem
daquela vida evangélica, a qual, em oração a ela, aprendemos com sua mente a
amar-vos acima de tudo, com seu espírito contemplarmos continuamente vossa Palavra,
e com seu coração servirmos nossos irmãos e irmãs. (ênfase minha)
O mesmo ensinamento é encontrado, de forma mais ampla, na Exortação
Apostólica Marialis cultus de Paulo VI, numa densa síntese que é ao mesmo tempo
cristocêntrica, pneumatológica e antropológica. O papa afirma que cada aspecto
da missão de Maria é direcionado para o mesmo fim, ou seja, reproduzir nos
filhos as características espirituais do Primogênito... As virtudes da Mãe
também adornarão seus filhos que aprofundam seu exemplo para refleti-lo em suas
próprias vidas e este progresso na virtude aparecerá como a conseqüência e o
fruto permanentemente maduro deste zelo pastoral que jorra da devoção à Virgem
Bem-aventurada. A devoção à Mãe do Senhor torna-se para o fiel uma oportunidade
de crescimento na graça divina e este é o objetivo final de toda atividade
pastoral, pois é impossível honrar aquela que é “cheia de graça” (Lc 1,28) sem
honrar, desse modo, o seu próprio estado de graça, que é a amizade com Deus, a
comunhão com ele, sendo a moradia do Espírito Santo.
Existem indicações no pensamento contemporâneo sugerindo que uma
espiritualidade autêntica deve ser mariana, pelo menos implicitamente. Novas e
importantes contribuições são claras a este respeito. O Nono Simpósio
Mariológico Internacional (Roma 1992) também tratou desta questão em seus
Procedimentos.
Um relacionamento com Maria
Já vimos que uma
antiga devoção na mariologia carmelitana era venerar Maria como Modelo. Tal
devoção não é exclusiva aos carmelitas e pode ser vista como um lugar comum na
espiritualidade cristã. Valiosa como é, esta devoção poderia ter uma
desvantagem se nos prendêssemos exclusivamente a ela. A devoção mariana
carmelitana deve sempre ir além do saber sobre Maria para o mais profundo
conhecer Maria. Podemos ter muitas informações sobre uma pessoa sem termos um
relacionamento com ela. Para uma espiritualidade genuinamente mariana, devemos
ir além dos fatos sobre Maria, chamando-a de Padroeira, Mãe, Irmã, Modelo, para
entrar num relacionamento baseado nestes ou em outros títulos. Em nossa
tradição carmelitana existem diversas expressões deste relacionamento, não
apenas na mística, mas também através do Escapulário.
Poderíamos começar
observando que na espiritualidade moderna existe uma ênfase no itinerário
espiritual para a vida adulta. Assim, Maria pode ser venerada não apenas como
Mãe, mas também como uma companheira. Em termos humanos, uma mãe pode, sem
deixar de ser mãe, ampliar seu relacionamento para o de irmã e de amiga. Assim
também acontece com Maria.
Isto significa uma
mudança da imitação para a identificação em comunhão, num relacionamento sempre
mais profundo com Maria, de forma que caminhamos com ela numa peregrinação de
fé, esperança, obediência e amor. Tal união com Maria não termina aqui, mas
inclina-se necessariamente para uma comunhão sempre mais profunda com Cristo
através do Espírito Santo. Apesar de teologicamente podermos apreciar a
autenticidade desse progresso, abraçar a espiritualidade mariana no nível mais
profundo exige um chamado especial do Espírito Santo.
A relação entre
Cristologia e Mariologia na espiritualidade cristã exige um tratamento
cuidadoso. Nos autores ortodoxos, a mariologia é sempre secundária. Cristo é o
coração de toda espiritualidade. Mas o ponto de inserção na cristologia pode
variar. As espiritualidades marianas apresentam Maria como um modelo no
seguimento de Cristo. Não é uma questão de escolha entre abordagem cristológica
ou mariana: tanto a cristológica quanto a mariana podem ser aplicadas à espiritualidade
e ao pensamento carmelitano. Um capuchinho não vai afirmar que sua
espiritualidade é cristológica em vez de franciscana. Em vez disso, o modo pelo
qual sua espiritualidade é genuinamente cristológica se faz num modelo
franciscano. Os carmelitas também precisam mostrar continuamente sua
centralização autêntica no mistério de Cristo.
Por diversas vezes
enfatizamos que não encontraremos o que é próprio carmelitano ao deixar de
considerar tudo que é partilhado com outros grupos e ordens. Mas será que
praticamente todos os elementos são encontrados em outras ordens e
congregações? Parece que temos aqui um caso claro de uma questão colocada
erroneamente, levando a respostas distorcidas. Não há elemento em sua
espiritualidade ou em sua mariologia que seja próprio da Ordem Carmelita. Tudo
o que temos é partilhado por outros ou, na verdade, por muitos outros. Contudo,
existe uma identidade carmelitana mariana. Mas não a encontraremos tentando
eliminar tudo que é partilhado com os outros.
O mistério único de
Cristo, que é uma partilha da vida da Trindade pela graça na fé, na esperança e
na caridade, é encontrado numa variedade de espiritualidades. Todas baseadas
numa revelação do Novo Testamento. Os elementos são todos os mesmos, mas a
ordem, o equilíbrio, a ênfase será sutilmente diferente. A herança mariana da
Ordem tem os mesmos elementos como a tradição de muitas outras famílias
espirituais, mas ela pode e deveria ser percebida como diferente. Uma das
diferenças poderia estar numa ênfase num tipo de relacionamento, que é
desenvolvido, não apenas em nossos escritos místicos, mas também na devoção do
Escapulário.
Mística Mariana
Um elemento significativo na tradição da
Ordem é a da mística mariana, um termo que não é usado univocamente por todos
os estudiosos. Seu principal exemplo é
a terceira carmelitana flamenga Maria Petyt (Petijt – Maria de Santa Teresa,
1623-1677). Após alguns anos de busca
por sua vocação ela encontrou o carmelita Miguel de Santo Agostinho, que se
tornou seu orientador. Ele descreveu algumas das experiências de Maria Petyt
num pequeno volume sobre a forma de vida mariana e a Vida de Maria. O estudo
recente de S. Possanzini deixou este trabalho mais acessível aos carmelitas
hoje.
Duas questões surgem sobre a mística mariana: a primeira é o papel de
Maria que é geralmente encontrado na vida místico-contemplativa do Carmelo; a
segunda é uma área mais difícil de examinar, ou seja, a realidade e a validade
de uma experiência especificamente mística mariana.
Maria e os místicos
carmelitanos
Em geral, podemos afirmar que na Ordem
Carmelita a vida contemplativa e a experiência mística são freqüentemente
definidas como tendo características marianas. Maria acompanha os carmelitas
contemplativos em sua jornada para a união divina. Além disso, muitos místicos carmelitas
tiveram experiências nas quais Maria tinha seu papel central. Elas são tão
comuns que não precisam de elaboração. Podemos tomar como exemplo Santa Teresa
d’Ávila. Foi na festa da Assunção em 1561:
Eu refletia sobre os muitos pecados que
confessei no passado naquela casa e muitas coisas sobre minha vida infeliz. Um
êxtase invadiu-me tão fortemente que quase me arrebatou... Pareceu-me, enquanto
estava neste estado, que me vi vestida de um manto branco esplendoroso e
brilhante. Mas a princípio, não vi quem me vestia. Depois vi uma Senhora à
minha direita e meu pai São José à minha esquerda, pois eles estavam
revestindo-se com o manto. Compreendi então que estava limpa de meus pecados...
Aqui, apesar de Maria ser central na
experiência, temos uma visão de Deus, levando a uma união mais profunda com Deus.
Santa Teresa d’Ávila, numa visão mística em 08 de setembro de 1575 renovou seus
votos nas mãos de Nossa Senhora. Ela observa: “Esta visão permaneceu comigo por
alguns dias, como se ela estivesse junto a mim, à minha esquerda.”
A cura de Santa Teresinha de Lisieux através do sorriso de Nossa
Senhora no Domingo de Pentecostes de 1883, é outro exemplo de uma visão
mariana, mas vista como uma ação da misericórdia divina. Este foi o começo de
um processo que, cinco anos mais tarde, permitiria que ela entrasse no Carmelo.
Tais experiências
místicas são freqüentes na história da espiritualidade e não precisam ser
consideradas como especificamente carmelitanas, apesar de também encontradas, e surgindo, da
vida do Carmelo.
A forma de vida mariana
Um segundo tipo de experiência é encontrado
em autores carmelitanos, apesar de ainda não ter sido suficientemente estudado
por teólogos espirituais. Contudo, ele
também é encontrado fora da Ordem Carmelita.
Ele aparece mais elaborado em Miguel de Santo Agostinho e Maria Petyt,
mas textos em línguas modernas não são muito acessíveis. Algumas observações
iniciais devem ser feitas. O misticismo implica em uma jornada para Deus, para
a união divina com a Trindade. Por isso, inevitavelmente, haverá uma necessidade
de contextualização dos escritos destes dois autores, já que frases isoladas
podem indicar um foco distorcido sobre Maria em lugar de Deus. Surgem
dificuldades posteriores com a linguagem mística, altamente simbólica, usada
por eles.
O estudo recente de S. Possanzini parece
confirmar o que escritores mais antigos suspeitavam, ou seja, que sob a
terminologia de forma de vida mariana o Venerável Miguel fala geralmente sobre
a vida ascética, ou que parte da jornada espiritual é amplamente determinada
pelo esforço humano, mas assistido, é claro, pela graça. O que ele chama de
vida mariana é seu aspecto místico, ou seja, é livremente concedido como graça
excepcional de Deus.
O fundamento da forma de vida mariana é a
maternidade espiritual de Maria e sua mediação, as quais já vimos como estando
profundamente dentro das tradições carmelitanas. A forma de vida mariana
consiste em “manter os olhos abertos para Deus e para sua bem-aventurada Mãe,
de forma que façamos pronta e alegremente o que sabemos ser agradável a eles, e
evitar o que reconhecemos ser desagradável a eles”. Assim, vivemos uma vida que é, ao mesmo
tempo, divina e mariana. O reino de Jesus e o reino de Maria coincidem de forma
que “Jesus e Maria reinam unanimemente nela (a alma)”.
Assim, está claro que as intuições centrais desta espiritualidade a
partir da forma de vida mariana são plenamente ortodoxas. As expressões que ela
valoriza são explicações deste discernimento da identidade da vontade de Maria
e de Jesus. Onde o ensinamento torna-se específico e original é o que Miguel
chama de mariano, no qual Maria é vista acompanhando e instruindo a pessoa em
toda a jornada para a profunda união divina e casamento místico. Ainda mais
distinta é a noção de união com Maria definindo o modo pelo qual a pessoa chega
à união com seu Filho e com o Deus Trino. Miguel de Santo Agostinho usa
diversas destas imagens.
Primeiramente, existe a vida em
Maria:
Pelo diligente exercício de fé e do amor
constante, adquirimos o hábito ou a prática de ter em mente, sempre e em todo
lugar, a presença de Deus, e existe tal sincera afeição fluindo com tal
facilidade para Deus que parece impossível esquecer Deus. Do mesmo modo aquele
que ama Maria através deste exercício contínuo, adquire o hábito ou a prática
de tê-la sempre presente em mente como Mãe amorosa, de forma que todos os
pensamentos e afeições da pessoa terminam nela e em Deus, e a pessoa não pode
esquecer nem a Mãe amorosa nem Deus.
Segundo ele, isto não é algo infantil ou
inocente, mas um movimento muito maduro, racional e corajoso (viriliori). É um
trabalho do Espírito levando a pessoa a uma consciência ora de Maria, ora de
Deus, sem qualquer conflito ou divisão no coração.
Em segundo lugar, a
pessoa vive para Maria. Aqui o autor é novamente cuidadoso em mostrar que o
serviço a Maria não diminui Deus de modo algum.
Assim como em Maria
tudo existe para o prazer divino e ela vive na eternidade para Deus, para seu
prazer, amor e glória, então também cada vida e morte por Maria deve servir e
ser dirigida a Deus. Portanto, não vivemos ou morremos para Maria como nosso
fim definitivo, ou com qualquer reflexão que poderia aderir a qualquer coisa
fora de Deus para nossa própria conveniência. Em vez disso, através da vida e
morte em Maria e para Maria, vivemos e morremos mais perfeitamente em Deus e
para Deus, como causa de seu prazer e amor. E nada no reino perfeito de Maria
contradiz o reino de Jesus, mas é totalmente ordenado para ele.
Poderia parecer que
esta forma de vida mariana não é mística no sentido técnico. Apesar da graça
ser necessária, realmente uma graça especial, a pessoa pode escolher este modo
de aproximação de Deus através de Maria. Se a pessoa cresce profundamente neste
modo de espiritualidade poderia depender de uma continuação de tal graça e do temperamento
e da afetividade da pessoa. Existe uma diferença essencial entre esta forma de
vida mariana e a do misticismo mariano atribuído à Venerável Maria de Santa
Teresa e descrito por seu orientador, Miguel de Santo Agostinho.
O Misticismo mariano em Maria
de Santa Teresa (Maria Petijt ou Petyt)
Os capítulos restantes do trabalho do
Venerável Miguel sobre a forma de vida mariana e a Vida Mariana são uma
exposição corajosa de um misticismo genuinamente mariano. Sabemos que Maria
Petijt ou Petyt foi uma discípula do Venerável Miguel. Ela nasceu em Hazebrouck
em 1623. Buscou uma vida religiosa com as cônegas de Santo Agostinho, mas foi
considerada inadequada. Depois de ter um orientador muito rigoroso, ela
encontrou-se com Miguel por volta de 1647. Ele permaneceu seu orientador até a
morte dela em 1677. Podemos ter certeza de que ele aprendeu muito a partir das
experiências dela, as quais incorporou em seu trabalho. O que não fica claro é
se ele mesmo teve tais experiências místicas.
Miguel de Santo Agostinho mostra um modo de
união com Deus através de um modo de união com Maria. Existe um crescimento
nesta jornada mística e estas experiências iniciais de Deus e de Maria precisam
ser purificadas. O misticismo mariano
destes autores é descrito como “vida contemplativa de Deus em Maria e de Maria
em Deus”. Mas eles não aceitam qualquer
confusão entre Maria e Deus. A analogia usada é a da Encarnação na qual as duas
naturezas são unidas, mas não fundidas.
A união com Maria é uma união de amor com Deus:
Deste modo, podemos compreender o gozo de
Maria na alma, a diluição (liquefactio) da alma em Maria, a união da alma com
Maria e sua transformação em Maria. Isso acontece porque o amor tende para o
que se parece com ele e, por isso, inclina a alma, pois a natureza do amor é
tender para a união com o ser amado.
Os ápices desta união mística com Maria são
descritos com uma linguagem que é, na verdade, um tanto obscura, mas tem um
constante poder de persuasão:
Consequentemente, a memória, a inteligência e
a vontade são silenciosa, simples e intimamente ocupadas com Maria e,
simultaneamente, com Deus, que a alma dificilmente pode detectar como ocorrem
estas transformações. De um modo confuso, a alma conhece bem e sente a memória
ser ocupada por alguma lembrança simples de Deus e de Maria, o intelecto tem
uma consciência nua, clara e pura de Deus presente e de Maria presente em Deus,
a vontade tem um amor muito tranqüilo, íntimo, doce, terno e espiritual de Deus
e de Maria em Deus e uma adesão a Deus e a Maria em Deus. Digo “amor
espiritual” porque o amor é, então, visto brilhando e operando na parte mais
sublime da alma com abstração dos poderes mais baixos e sensitivos, de modo que
está mais proporcionada a intimar a diluição, a absorção em Deus e em Maria e a
união com Deus e, ao mesmo tempo, com Maria. Pois, quando os poderes da alma
são virtuosas (nobiliter) e perfeitamente ocupados na memória, na consciência e
na firme adesão de toda alma com Deus e com Maria, de modo que por uma diluição
amorosa ou um influxo de amor pareça ser um com Deus e com Maria, como se os
três, Deus, Maria e a alma, fossem fundidos num só. Isso parece ser a
extremidade e a suprema realização que uma alma pode alcançar nesta forma de
vida mariana e é a atividade principal desse exercício e do espírito de amor
para com Maria.
Os místicos têm suas experiências não apenas
como dons especiais e pessoais de Deus, mas também para ensinarem a Igreja. A
mística da forma mariana de Maria Petyt não é algo excêntrico na história da
espiritualidade, mas ensina a toda Igreja algo importante sobre a jornada para
Deus. O que pode não estar explícito em outros místicos está bem claro em
Miguel de Santo Agostinho e em Maria Petyt, ou seja, que a união divina
acontece através de uma pessoa que se torna intimamente revestida das virtudes
de Maria, continuamente através de sua presença e de seu acompanhamento. Neles
encontramos a mais dramática e mais sublime expressão da verdade registrada em
todos os escritos marianos carmelitanos, ou seja, a presença materna de Maria
sempre acompanha os carmelitas e o crescimento na santidade é encontrado
através da abertura da pessoa a esta presença e a este zelo maternal. O fato de
uma leitura de Miguel de Santo Agostinho ser proposta para a Celebração Solene
de Nossa Senhora do Monte Carmelo é, certamente, uma oportunidade para a Ordem
refletir na sua jornada para Jesus através de Maria.
Apesar de pertencer a uma cultura diferente,
o misticismo flamengo desses dois carmelitas é outra expressão da verdade
teológica proposta por Hans Urs von Balthasar sobre a necessidade de a Igreja
ser realmente mariana se quiser ser autenticamente cristã. Eles também antecipam através de uma
exposição mais profunda, as verdades expostas num livro muito conhecido sobre a
escravidão a Maria: O Tratado sobre a Verdadeira Devoção de São Luís Maria
Grignion de Montfort (+ 1716). Mas
existe uma diferença muito significativa: para muitas pessoas a “Verdadeira
Devoção” é uma forma de piedade, uma aproximação a Maria, que eles adotam
livremente sob a condução do Espírito. Nisto ela assemelha-se à forma de vida
mariana. O misticismo mariano, por outro lado, é o resultado de uma
extraordinária intervenção de Deus na vida da pessoa. Em outras palavras, a
“Verdadeira Devoção” pode ser escolhida, o misticismo mariano é dado. A forma
de vida mariana como a Verdadeira Devoção leva a pessoa a um relacionamento com
Maria.
O Escapulário
No capítulo anterior já vimos as origens
obscuras do Escapulário Carmelitano e os problemas históricos associados a ele.
Penso que eles podem e devem ser mantidos fora da questão do valor espiritual
do Escapulário.
No desenvolvimento posterior à Reforma, a
devoção mariana carmelitana ao Escapulário teve um lugar muito importante e apareceu
no Diretório Touraine (a partir de 1650 com versões mais tardias). Ele tinha um duplo significado a partir do
simbolismo medieval: o patronato de Maria e o nosso serviço ou devoção. Ao
mesmo tempo, houve um enorme crescimento das Fraternidades do Escapulário,
compostas de homens e mulheres leigos.
Muito permanece por ser feito no estudo da história completa da
propagação do Escapulário, apesar do excepcional trabalho de E. Esteve.
Pio XII
Para nossos propósitos aqui, é suficiente
levantar a questão no século XX e começar com a Carta de Pio XII aos Superiores
Gerais dos dois ramos da Ordem, a Neminem profecto latet (11 de fevereiro de
1950). Como este texto não está tão disponível hoje como no passado, será útil
reproduzi-lo em sua íntegra:
Não existe ninguém que
não esteja consciente de quão grandiosamente um amor pela Bem-aventurada Virgem
Mãe de Deus contribui para a animação da fé católica e para a elevação do
padrão moral. Estes efeitos são especialmente assegurados por meios daquelas
devoções que, mais do que outras, são vistas como instruindo a mente com a
doutrina celestial e estimulando as almas à prática da vida cristã. A devoção
do Sagrado Escapulário carmelitano deve ser a mais favorecida entre essas
devoções – uma devoção que, acessível à mente de todos por sua própria
simplicidade, tornou-se tão universalmente difundida entre os fiéis e produziu
muitos frutos salutares.
Portanto, muito nos
agradou sabermos da decisão de nossos irmãos carmelitanos, tanto da Ordem
Calçada quanto da Descalça, de suportar todas as dores em honra da
Bem-aventurada Virgem Maria, de maneira mais solene quanto possível, por
ocasião do 7º Centenário da Instituição do Escapulário de Nossa Senhora do
Monte Carmelo. Logo, levados por nosso amor constante pela terna Mãe de Deus e
cientes também de nossa própria participação desde a meninice, na Fraternidade
deste Escapulário, com muito boa vontade, recomendamos zelosamente, um
compromisso e estamos certos de que a partir daí, cairá uma abundância de
bênçãos divinas. Pois, não estamos interessados aqui numa questão leve ou
passageira, mas em obter a própria vida eterna, que é a substância da Promessa
da Sempre Bem-aventurada Virgem que nos foi transmitida. Estamos interessados,
a saber, no que é de suma importância para todos e com o seguro modo de
alcançá-lo. Pois, o Escapulário Sagrado, que pode ser chamado de Hábito ou
Manto de Maria, é um sinal e uma garantia da proteção da Mãe de Deus. Contudo,
não por esta razão, aqueles que usam o Escapulário podem pensar que ganham a
salvação eterna enquanto permanecerem indolentes e negligentes de espírito,
pois o Apóstolo nos adverte: “Continuem trabalhando com temor e tremor, para a
salvação de vocês” (Fl 2,12).
Portanto, todos os
carmelitas, quer vivam nos claustros das Ordens 1ª e 2ª ou sejam membros da
Ordem 3ª Regular ou Secular, ou das Fraternidades, pertencem à mesma família de
nossa Muito Bem-aventurada Mãe e são ligados a ela por um elo especial de amor.
Que todos possam ver nesta lembrança da própria Virgem um espelho de humildade
e de pureza. Que possam ler na simplicidade do Manto uma lição concisa de
modéstia e de simplicidade. Acima de tudo, que possam contemplar neste mesmo
Manto, que usam dia e noite, o símbolo eloqüentemente expressivo de suas
orações pela assistência divina. Finalmente, que isto possa ser para eles um
Sinal de sua Consagração ao Sacratíssimo Coração da Virgem Imaculada, cuja
(consagração) em tempos recentes exortamos fortemente.
Certamente, esta Mãe
gentil não tardará a abrir, o mais cedo possível, por sua intercessão a Deus,
os portões do Céu para seus filhos que estão expiando suas faltas no Purgatório
– uma verdade baseada naquela Promessa conhecida como o Privilégio Sabatino.
Agora, portanto, como garantia da proteção e da ajuda divina e como uma certeza
de nosso próprio apreço especial, conferimos mais amorosamente a ti, Filhos
Amados, e à Toda Ordem Carmelitana, a Bênção Apostólica.
É importante realçar o
significado preciso desta famosa carta.
O papa supõe a historicidade da visão do Escapulário e a concomitante
promessa. Ele faz alusão ao Privilégio Sabatino, mas não que possa tirar dele
qualquer coisa que esteja fora da tradição comum católica sobre a intercessão
de Maria pelos mortos. Mais especificamente, ele ignora claramente qualquer
ligação entre esta intercessão e uma dispensa do purgatório no sábado. Ele é
cuidadoso ao advertir contra qualquer uso mágico do Escapulário, apesar de ser
vigoroso ao afirmar que ele é “um sinal e uma garantia da proteção da Mãe de
Deus”. Finalmente, ele une a devoção do Escapulário à noção da consagração ao
Sagrado Coração da Virgem Imaculada. Independente da historicidade da visão do
Escapulário, o ensinamento de Pio XII retém sua validade.
O significado do Símbolo
Os carmelitas hoje não deveriam ter dúvidas
sobre o valor do Escapulário e deveriam ser diligentes em defendê-lo. Existe
uma falta de coragem entre os carmelitas na propagação do Escapulário. Aqueles
que acham que a evidência da historicidade da visão do Escapulário não é
convincente, precisam encontrar outros fundamentos para esta devoção. Seu valor
contínuo foi afirmado, nestes anos recentes, em duas alocuções de João Paulo II
onde ele fala dos múltiplos frutos espirituais surgidos da devoção ao
Escapulário. Mas, ao mesmo tempo,
devemos estar conscientes do pluralismo da Ordem em cinco continentes. O modo
como a devoção do Escapulário é proposta em um lugar, ou tempo, pode não se
ajustar a outro.
Contudo, podemos propor cinco princípios
teológicos espirituais e pastorais que são bases apropriadas para qualquer
pregação do Escapulário. É claro que outros vão fazer outras propostas. O
futuro desenvolvimento do Escapulário na Ordem não pode ser previsto, mas pode
ser encorajado, dando-se ao Escapulário uma base sólida.
Em primeiro lugar, o Escapulário pertence às categorias de sinal e de
símbolo. Ele aponta para algo além de pedaços de pano (ou medalha), para outras
realidades. O primeiro simbolismo é o da roupa. O Escapulário representa o
hábito carmelitano que é usado num instituto que é profundamente mariano. Nesta
Ordem, Maria é vista como Padroeira, Mãe, Irmã e Virgem do Coração Puríssimo. A
aceitação do Escapulário é, de certo modo, uma adoção destes valores e destes
atributos marianos.
Em segundo lugar, ele é um sacramental da
Igreja. O novo Catecismo da Igreja Católica descreve sacramentais da seguinte
forma: “São sinais sagrados que denotam uma semelhança com os sacramentos. Eles
geram efeitos de uma natureza espiritual, que são obtidos pela intercessão da
Igreja”. O que é novo nesta definição
de sacramental quando comparado à teologia mais antiga exposta no Código
Canônico de 1917, é que um sacramental
é mais do que um objeto. Como já vimos, ele é um sinal. Assim, ele é eclesial e
não pertence unicamente à Ordem Carmelitana. Mas implica que, em nosso caso, é
necessário mais do que o mero uso do Escapulário. Se seus efeitos devem ser
obtidos através da intercessão da Igreja então, além de usá-lo, deveríamos nos
abrir à oração da Igreja, especialmente através da oração particular e da
reflexão pessoal. Seu uso deveria ser um convite à oração. Além disso, existe a
obrigação pastoral de explicar seu significado como um sinal.
Em terceiro lugar, o Escapulário está
associado à Ordem Carmelitana, assim como outros sacramentais são promovidos
por outros institutos religiosos como, por exemplo, a Medalha Milagrosa.
Aqueles que o usam deveriam ser instruídos na tradição carmelitana da Virgem
Maria. A tradição mariana carmelitana, apesar de rica e notável, não é a única
na Igreja. Mas ela ocupa seu lugar correto junto às outras. No entanto, algumas
pessoas podem não se sentir atraídas por ele. As formas de espiritualidade e de
devoção na Igreja são livres e, basicamente, trata-se de como a pessoa é guiada
pelo Espírito.
Em quarto lugar, o Escapulário, como afirma
Pio XII, é um sinal de consagração. Existe uma grande quantidade de sérios
escritos teológicos sobre o significado da consagração, especialmente da
consagração à Maria. A consagração à
Maria está firmemente estabelecida na tradição católica. Muitos santos e papas
a defenderam. Numerosos institutos religiosos apresentam a consagração à Maria
como o coração de sua espiritualidade. Mas em anos recentes houve um sentimento
entre alguns teólogos importantes de que a idéia requer uma abordagem teológica
maior do que ela freqüentemente recebe. A questão central é que, estritamente
falando, existe apenas consagração a Deus e por Deus. Já que a consagração é
nossa divinização pela graça, é apenas Deus que é o princípio e o fim da
consagração. Neste sentido rigoroso, a consagração não é algo que fazemos, mas
é um ato divino em nós. Se nos consagrarmos à Maria, estamos, de fato, apenas
ratificando o que Deus já fez por nós através do santo batismo. Uma vez que
isso seja compreendido, então não existe realmente um problema numa consagração
à Maria. Essa consagração expressa um encontro pessoal íntimo com ela, que
implica em confiar, pertencer, autodoar-se, assim como disponibilidade,
acessibilidade e colaboração afetiva no serviço da missão de seu Filho.
O papa João Paulo II se vale da rica tradição para usar outras
expressões que indicam pertença e disponibilidade: confiança, consagração,
dedicação, recomendação, serviço, colocar-se nas mãos de Maria, etc.
Pode ser que quando falamos sobre o
Escapulário num certo lugar, a palavra “consagração” deva ser evitada e uma das
alternativas deva ser escolhida. Mas escrúpulos teológicos sobre a palavra
“consagração” podem ser respondidos eficazmente com os textos de Miguel de
Santo Agostinho e de Maria Petyt citados anteriormente neste capítulo. Existe
uma identidade entre o reino de Maria e o reino de Jesus.
Seja o que for sobre a linguagem que usamos, o Escapulário deve ser
apresentado como um modo de relacionamento com Maria, de submissão à sua
vontade, que é o plano salvífico de Deus. Isso também implica que, por sua vez,
ela nos favorecerá com sua intercessão.
Em quinto lugar, deveríamos estar conscientes
do papel do Escapulário na evangelização e na religiosidade popular. A
religiosidade popular é uma realidade complexa, variando nas diferentes
culturas e nos diversos períodos da história.
Ela é considerada positiva, resguardada pela aprovação de Paulo VI em
sua exortação apostólica sobre a evangelização, Evangelii nuntiandi, e fortemente recomendada pela Conferência do
CELAM em Puebla (1979) e por outros
encontros Latino-americanos. Mas, mesmo quando não está totalmente purificada
dos acréscimos indesejáveis, ou quando expressa parcialmente o mistério
cristão, a religiosidade popular é sempre uma janela aberta para o
transcendente. Ela invariavelmente proclama nossa insuficiência e a necessidade
constante da ajuda divina. Aqueles que usam o Escapulário estão reconhecendo
que não são auto-suficientes e que precisam da ajuda divina que, neste caso,
buscam através da intercessão de Maria.
Revitalizando o símbolo
Finalmente, precisamos revitalizar nossa
compreensão do simbolismo do Escapulário. Num estudo de 1995, preparado por uma
comissão internacional da Ordem, nossa atenção voltou-se para o trabalho sobre
o simbolismo, realizado por E. Voegelin.
Ele aponta para quatro estágios na vida de um símbolo. Existe uma
experiência de vida que dá origem ao símbolo. Para nós, isto significa o
sentido da proteção de Maria aos carmelitas. Em segundo lugar, existe uma fase
de dogma ou de reflexão sobre o símbolo. A Ordem Carmelitana sempre viu o
Escapulário nos termos da sua compreensão de Maria como Padroeira, aquela que
zelou por seus Irmãos que, por sua vez, colocaram-se a seu serviço. Neste
período reflexivo, o zelo de Maria foi compreendido como uma ação para além da
morte, vista especialmente como sua solicitude para nossa salvação e para nossa
rápida libertação do Purgatório.
Um terceiro estágio ocorre sempre que o
contato com a experiência original se perde. Neste ponto, existe o ceticismo no
qual o símbolo é ignorado, ou num fideísmo quando a pessoa confia no
Escapulário sem considerar seu significado. Este último estágio pode estar bem
próximo do pensamento mágico. Quando este estágio acontece, e em alguns lugares
ele já pode ser visto no caso do Escapulário, se faz necessário, então, uma
reconstrução reflexiva do símbolo. Teríamos que situar o Escapulário dentro de
toda a espiritualidade carmelitana e, especialmente, em relação aos temas
centrais que precisariam ser repensados, representados e inculturados em cada
lugar. Sem esta reflexão sobre o símbolo dentro da experiência carmelitana do
zelo de Maria, não será a mera exortação em si que irá revitalizar o
Escapulário.
Uma contribuição valiosa para a revitalização
do Escapulário foi o novo rito para a imposição do Escapulário e o texto “A
Natureza e o Valor Espiritual da Devoção do Escapulário Carmelitano” emitido
pelo Conselho Geral da Ordem Carmelita e pelo Definitório Geral dos Descalços
mais ou menos no mesmo tempo.
O novo rito de bênção e de imposição tem os seguintes pontos e
orientações:
-Por causa da Encarnação, simples objetos materiais podem ser
apresentados como instrumentos da misericórdia de Deus e como sinais de nosso
compromisso.
-O Escapulário é um sinal do zelo maternal de Maria.
-Ele também é um sinal do amor recíproco que deveríamos ter por Maria.
-É um sinal de comunhão com a Ordem do Carmelo e de um desejo em
participar em seu espírito e vida.
-É um sinal da pureza da Virgem Maria e de nossa consagração a serviço
da Virgem.
-É uma renovação de nosso compromisso batismal de “revestir-se do
Senhor Jesus Cristo” (Rm 13,14).
-Sendo uma vestimenta, ele pode ser ilustrado por temas bíblicos
relacionados a roupas e trajes.
-Seu uso é um chamado para imitar e servir a Virgem e a viver por
Cristo e sua Igreja no espírito contemplativo e apostólico do Carmelo.
Este rico entrelaçamento de temas, mostra que
o Escapulário é um símbolo aberto de significados e de compromisso bem
extraordinários. Subjacente a quase todos eles estão os dois temas do Padroado:
Maria nos atinge e respondemos a seu Filho através do serviço e da imitação dela.
O Escapulário é um símbolo claramente relacional. Na verdade ele tem pouco
significado, tratando-se mais de um relacionamento.
O texto das autoridades da Ordem desenvolve estes pontos, especialmente
lembrando a afiliação à Ordem, um elo com a Família do Carmelo. Ele resume as
principais inspirações da espiritualidade carmelitana e mostra o Escapulário
como um símbolo vivo, um compromisso com estes valores e com a evangelização. O
parágrafo final diz:
O Escapulário é um sinal do amor de Maria,
ícone da bondade e da misericórdia da Sagrada Trindade. Este amor é o fruto da
graça de Deus derramado nos corações dos fiéis que, por sua vez, se comprometem
com ele.
Além disso, numa época em que o simbolismo
religioso está perdendo seu lugar, enquanto o simbolismo secular está
constantemente crescendo, é importante que a Igreja faça uso de símbolos que,
de certo modo, revelam aspectos da verdade divina. A recente beatificação de
Isidore Bakanja (1994) mostrou que para este zairense, o uso do Escapulário era
um modo de testemunhar sua fé, um testemunho que o levou ao martírio em 1909.
Assim, fica claro que o Escapulário, longe de
ser uma devoção externa pertencente a uma época antiga, poderia ser um símbolo
vibrante. Um símbolo que, acima de tudo, realça o elemento chave do
relacionamento na espiritualidade mariana carmelitana.
Conclusão: Amor mútuo de Maria
e dos Carmelitas
Este longo capítulo demonstrou que temos uma
genuína espiritualidade mariana na Ordem. Uma espiritualidade que é claramente
percebida em nossos escritores espirituais. Nela é central a noção do
relacionamento com Maria.
Temos o Escapulário como um sacramental onde
é essencial o tema do relacionamento com Maria. Mas existem outras fontes
importantes que estão disponíveis em nossa província para desenvolver e
revitalizar este relacionamento. As províncias espanholas foram bem atendidas
pela recuperação de escritos espirituais, sermões e poesia através do trabalho
recente de P. Garrido. Outras fontes para
nossa herança mariana carmelitana são a vida de nossos santuários marianos, a
música, a arte e a arquitetura, assim como o folclore. Evidentemente, uma fonte
privilegiada é a liturgia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário