Christopher O’Donnell, O. Carm.
Evolução da Consciência Mariana
da Ordem
A maioria das descobertas registradas no capítulo anterior foram
desenvolvidas nos séculos seguintes. A consciência mariana da Ordem evolui
rapidamente. Ao analisarmos este
desenvolvimento devemos não apenas examinar cuidadosamente a documentação existente,
mas, acima de tudo, devemos buscar um sentimento de empatia com situação dos
carmelitas nos séculos XIII e XIV. Do contrário, corremos o risco de termos
total antipatia para com uma evolução delicada e complexa. Além disso, devemos
destacar alguns pontos proeminentes, tendo-os sempre em nossas mentes, se
queremos compreender o modo como se originou a vida mariana da Ordem.
Os irmãos começaram a ir para a Europa por volta de 1238. A migração foi gradual desde esta data até
1291, quando o Reino Latino de Jerusalém foi conquistado. Eles levavam consigo
a Regra e um modo contemplativo de vida, fortemente marcado pelo ascetismo. Na
verdade eles perderam, acima de tudo, sua capela no Monte Carmelo, dedicado à
Maria. Vemos que eles logo dedicaram um mosteiro à Maria na Europa, já em
1235. Eles chegaram a uma Europa que,
como vimos na Introdução, possuía uma rica devoção mariana. Os Irmãos
carmelitanos inseriram-se facilmente neste clima mariano. Eles iniciaram então
um processo, integrando sua herança própria com a vida mariana encontrada na
Europa.
Eles demonstram esta sua grande devoção ao escolherem Maria como sua
Padroeira, simbolizada na Capela em sua honra no Monte Carmelo. Já em 1282 o
Geral Pierre de Millau, numa carta a Eduardo I da Inglaterra buscando seu
apoio, afirmou que a Ordem Carmelita tinha sido especialmente fundada em honra
de Maria. Isto foi novamente afirmado
no capítulo geral de 1287. Mais tarde,
John Baconthorpe (por volta de 1348) diria que “Deus... desejou estabelecer os
Irmãos do Carmelo em louvor de sua Mãe.”
E olhou para o fim dos tempos quando os carmelitas serão recompensados
por seu papel especial no serviço militante em louvor a Maria e em honra de
Cristo.
No tempo da regulamentação e da busca por sua identidade, o
relacionamento dos Irmãos com sua Padroeira Maria, serviu de base sólida. Mas
também existiam outros elementos como o ideal contemplativo e a memória que
tinham de Elias.
A Origem da Ordem a partir de
Elias
Já observamos que a origem da Ordem a partir de Elias foi claramente
afirmada na Rubrica prima das Constituições de 1281. Não é difícil ver como o
tema de Elias foi desenvolvido em resposta à oposição a esta nova Ordem, já que
ela não tinha um fundador histórico evidente, tal como São Domingos ou São
Francisco. Os Irmãos Carmelitas sabiam que tinham ficado no Monte Carmelo por
muito tempo. Era uma montanha sagrada, associada a eremitas de tempos muito
antigos e, na verdade, com o grande profeta Elias. Eles viram em Elias um
grande profeta e um grande contemplativo. Alguém que, como Moisés, encontrou o
Deus vivo no Monte Horeb (1Reis 19,11-18). Eles sabiam que, apesar da oposição
que encontraram na Europa, o estilo de vida que tinham era antigo e autêntico.
Na Idade Média, como na época bíblica, as verdades eram sempre
transmitidas através de mitos. Com nosso senso moderno de historicidade, muitas
vezes não ficamos satisfeitos diante de mitos. Sempre fazemos a pergunta
errada. Em vez de perguntarmos “o que significa o mito?”, perguntamos
“aconteceu de fato?” E um mito contém
uma verdade que não são as afirmações explícitas do mito. A verdade que se
esconde por trás do mito de Elias estava no fato de que os carmelitas
reconheciam nele uma figura idealizada, cuja inspiração eles seguiam ao viverem
como eremitas perto de seu poço histórico. Sendo contemplativos, buscavam a
experiência espiritual do Deus vivo de Elias. Consagrados à caridade viam Elias
como o primeiro exemplo ideal do Antigo Testamento que vivia na continência
perpétua pelo Reino. Como eremitas viam nele uma figura solitária e
companheira, alguém que deixou tudo para buscar apenas Deus.
A forma que o mito tomou foi um desejo aparente dos nossos fundadores,
de construírem uma continuidade histórica entre o profeta do século VIII a.C. e
a Ordem, assim como ela existia na Europa no século XIII. Bons estudiosos e
teólogos da Ordem despenderam um tempo enorme na tentativa de encontrar elos
tirados da Escritura e da Patrística para construir uma corrente ligando a
Ordem até o tempo de Elias. Muitas figuras bíblicas, assim como antigos
eremitas e santos da Palestina foram vistos como parte da continuidade
histórica da Ordem. Historicamente tal trabalho não tem valor. Mas ele, na
verdade, é muito mais que uma legenda, um mito. Ele tem sua verdade própria em
termos de identidade e espiritualidade.
Maria e Elias – Maria e o
Carmelo
Maria foi gradualmente inserida
neste mito, ou hagada, de Elias.
Os Primeiros Escritores
A Crônica De inceptione ordinis (cerca de 1324) afirmou que, após a
Encarnação, os seguidores de Elias e de Eliseu construíram uma igreja em honra
da Bem-aventurada Maria perto da fonte de Elias. Ela assegurava que a partir do
tempo do patriarca Aimérico (+ 1196) eles eram conhecidos como Irmãos eremitas
da Bem-aventurada Maria do Monte Carmelo.
O quarto capítulo do Speculum de Jean de Cheminot (+ por volta de 1337)
afirmava que, como eles, os sucessores de Elias e de Eliseu abraçaram a
castidade dedicada ao Senhor. Dois textos do Antigo Testamento, que se
tornariam tradicionais na Ordem, eram aplicados à Maria: “Pois lhe será dado o
esplendor do Líbano, a beleza do Carmelo e do Saron” (Is 32,2) e “Sua cabeça
que se alteia como o Carmelo “ (Ct 7,6). Uma memória legendária afirmava que
Maria, junto com outras virgens, costumava visitar o lugar dos eremitas por
causa de sua santidade e da beleza do lugar: “Era apropriado que a mãe das
virtudes honrasse o lugar e os filhos de tal santidade e devoção com sua
presença”.
Jean de Cheminot também recordou o oratório em honra da Virgem Maria
construído após a Ascensão e que, para distinguir os Carmelitas dos outros,
eles eram chamados de “os Irmãos da Ordem da Bem-aventurada Virgem Maria” – um
título solenemente reconhecido mais tarde pela Santa Sé.
John Baconthorpe
Neste mesmo período surge o carmelita inglês John Baconthorpe (+ cerca
de 1348). Demonstrando vasta cultura em filosofia, teologia e leis canônicas,
recebeu a alcunha medieval de “Doctor Resolutus”. Seus escritos são na
realidade polêmicos, já que ele busca defender a Ordem diante de seus
caluniadores. São também escritos espirituais, uma reflexão sobre as profundas
raízes da Ordem. Ele escreveu quatro trabalhos que são do nosso interesse,
articulando Elias e Maria: Speculum de
institutione ordinis pio veneratione Beatae Mariae, o primeiro tratado a Ordem
que unifica profundamente as tradições de Elias e de Maria; Tratado sobre a
Regra da Ordem Carmelita [tradução em português] onde mostra que a Regra
corresponde de muitas formas à vida de Maria; Compendium historiarum et iurium,
uma defesa histórica e jurídica da Ordem; Laus religionis carmelitanae,
defendendo e exaltando a Ordem, especialmente no seu relacionamento com Maria.
Em Baconthorpe encontramos desenvolvidas as duas idéias anteriores e
novas idéias emergem pela primeira vez dentro do nosso conhecimento. Já os
antigos profetas veneravam Maria no Carmelo.
É especialmente por causa dela que se honra o Monte Carmelo. A beleza física do Carmelo seria uma razão
pela qual dever-se-ia dar a Maria tudo que há de mais bonito.
Seguindo uma lenda apócrifa, ele relembra como Maria foi trazida por um
anjo ao Monte Carmelo. Foi no monte que ela, enlevada em contemplação,
tornou-se a esposa de Deus através do voto da virgindade. Em vários lugares ele registra a capela
construída no Monte Carmelo pelos contemplativos seguidores do profeta Elias,
em honra da Virgem Maria e a sua opção por um título mariano. Na verdade, todo o Livro I do Laus
religionis carmelitanae de Baconthorpe é uma esforçada tentativa de unir o
Carmelo e Maria. Através de etimologias inventadas e falsas, alusões bíblicas,
lendas e, às vezes, profundo discernimento espiritual, ele insiste que o ser
carmelitano da Ordem pertence justamente a Maria.
Baconthorpe parece ter sido o primeiro a interpretar a nuvenzinha vista
por Elias (1Reis 18,44) como um símbolo de Maria: após a seca ela restaurou a
fertilidade da terra. “O amor de Deus
desceu sobre Maria... e, através de Maria, as chuvas de misericórdia e de graça
desceram no que estava seco e, assim, restauraram todas as coisas”. Futuros autores carmelitanos fariam desta interpretação
o principal símbolo de Maria no Antigo Testamento e, a partir daí, destacaram
muitas implicações.
Os carmelitas são verdadeiramente discípulos de Maria, uma questão
reconhecida pela Santa Sé. Além do
conceito de exemplo de vida, que será desenvolvido em nosso próximo capítulo, a
maior contribuição de Baconthorpe foi a fusão dos elementos da tradição da
Ordem sobre Maria e Elias, além de sua especificação sobre as implicações em
relação à proteção da Ordem com a escolha de Maria como titular junto ao
oratório estabelecido em sua homenagem. Também examinaremos isso no próximo
capítulo.
Uma primeira síntese entre Elias e Maria: Philip Ribot
Atualmente temos um consenso que se o provincial catalão Philip Ribot
(+ 1391) não foi o verdadeiro autor de quatro grandes trabalhos
pseudoepígrafos, eles são, em último caso, do tempo dele. Decididamente o mais importante deles foi a
Instituição dos Primeiros Monges, atribuído a João XLIV, Patriarca de Jerusalém
(+ por volta de 412 d.C.?). Existem sugestões de que o primeiro capítulo sobre
o ideal ascético e místico da Ordem pode ser um documento mais antigo, talvez
dos últimos anos do século XIII, mas
devemos esperar a publicação da edição crítica feita por Paul Chandler, antes
de levarmos tal hipótese a sério. Contudo, já que ele é inteiramente sobre
Elias e não menciona Maria, não nos interessa aqui. Sobre o ensinamento mariano
de outros livros, Ribot depende de escritores mais antigos, mas pode-se dizer
que ele ampliou as idéias deles, desenvolvendo uma nova síntese.
A abordagem principal sobre Maria encontra-se no Livro Seis. Por todo
esse livro Ribot se interessa pelo título da Ordem, “Irmãos da Bem-aventurada
Virgem Maria do Monte Carmelo”. Ele também admite que “Carmelitas” é um título
legítimo. Uma idéia fundamental que ele
desenvolveu foi uma interpretação espiritual, mas de forma arbitrária, da
nuvenzinha vista por Elias (1Reis 18,44). A chave para seu simbolismo mariano é
que a nuvem de pura chuva, que é Maria, surgiu do mar amargo e salgado, que é a
imagem da humanidade pecadora. O profeta recebeu por iluminação divina quatro
mistérios sobre a futura redenção da raça humana, que depois comunicou a seus
seguidores:
-o nascimento do futuro redentor de uma virgem-mãe que, por sua origem,
estaria livre de qualquer mancha de pecado;
-o tempo quando isto deveria acontecer;
-a decisão intencional da futura mãe de manter-se sempre virgem,
consagrada ao serviço do Senhor;
-a fecundidade de sua virgindade, prefigurada pela chuva, que
beneficiaria a condição da raça humana.
Imitando Elias, que foi o primeiro personagem virgem do Antigo
Testamento, Maria faria o voto de virgindade e seria a primeira mulher a fazer
tal promessa. Os sucessores de Elias
também fizeram este voto. Isso estabeleceu uma semelhança e uma profunda
empatia entre eles e Maria, tanto que eles a chamavam de irmã e a si mesmos de
Irmãos da Bem-aventurada Virgem Maria.
No entanto, a noção de irmã não elimina a palavra “mãe”, que é
delicadamente insinuada:
Antes que ela (a Palavra) se encarnasse existia apenas uma fraternidade
de paternidade, porque do mesmo Pai de quem o Filho foi eternamente gerado, a
raça humana também foi criada... antes que ele se encarnasse não havia uma
fraternidade de maternidade, já que o Filho ainda não fora gerado por sua mãe.
A consequência é que depois da Encarnação, houve um novo fundamento: a
fraternidade na maternidade de Maria.
O título tradicional de “Padroeira” é associada também à virgindade. Os
Carmelitas cuidaram de servir à Virgem com devoção especial.
Eles estavam especialmente ansiosos para escolher esta virgem como sua
padroeira, porque sabiam que apenas ela era singularmente como eles nos
primeiros frutos de virgindade voluntária. Pois assim como a virgindade
espontânea para Deus foi iniciada em primeiro lugar pelos antigos seguidores
dessa religião e introduzida aos homens, a mesma virgindade foi depois
primeiramente introduzida e começou
entre as mulheres através da Mãe de Deus.
Assim, vemos que Ribot faz uma síntese, partindo da virgindade, das
noções tradicionais de Maria e a Ordem – Mãe, Padroeira e Irmã. E tudo isso se
origina da meditação feita pelo autor do significado espiritual da nuvenzinha.
Contudo, não temos apenas o fato de que Ribot está acrescentando algo novo à
consciência mariana da Ordem. Ele também lê na nuvenzinha qual foi a atitude da
Ordem para com Maria. Ele manteve sua base, a partir da virgindade, mais
claramente do que os autores anteriores. Na verdade, ele usa uma falsa
etimologia para a palavra “Carmelo” para indicar “conhecimento da circuncisão”
o que ele interpreta depois como virgindade para Deus, buscada em primeiro
lugar por Elias e seus seguidores e, depois, por Maria.
Síntese entre Elias e Maria:
Arnold Bostius
No final do século XV temos uma síntese mais madura das tradições da
Ordem, feita pelo humanista Arnold Bostius (+ 1499). Seu primeiro trabalho sobre Maria foi o
Breviloquium, que foi ampliado num
inédito e vasto tratado chamado Speculum historiale. Seu melhor e mais conhecido trabalho foi De
Patronatu et patrocinio B. Virg. Mariae in dicatum sibi Carmeli Ordinem, de
1479. Neste texto escrito em reposta à
uma questão quanto a Maria ter sido especialmente favorecida pela Ordem,
Bostius recorre em grande parte à tradição anterior, aos convenientes
significados da Escritura, além de símbolos, da Escritura ou de pessoas,
interpretados num sentido mariano.
Bostius é importante na história da mariologia por ser um representante
das posições consensualmente sustentadas no final do século XV. Assim, temos um
claro ensinamento sobre Maria como Mãe de Deus, Mediadora, Imaculada Conceição,
Santíssima, Virgem, Assunta ao Céu, Rainha, Mãe Espiritual e Mãe de
Misericórdia. Todas estas invocações são verdades que a Ordem Carmelita
partilha com toda a Igreja. Apesar de
E. R. Carroll não afirmar que Bostius estava interessado em um princípio
unificador da mariologia, ele reconhece que, apesar da maternidade divina não
ser um tema de principal interesse no De patronatu, tal tema tem alguma
centralidade em seu pensamento. N.
Geagea concorda. Nosso interesse em
Bostius é mais restrito. Veremos de que modo ele apresenta a mariologia
carmelitana em sua época, isto é, apontando o inter-relacionamento entre Maria
e a Ordem.
Além disso, existe um tema mariológico geral em Bostius que devemos
mencionar por causa de sua proeminência no século XX. É o tema da beleza de
Maria. Ele já é encontrado em
Baconthorpe. Algumas vezes em Bostius o
tema é explícito: “Virgem de beleza incomparável, em quem juntam-se os dons da
natureza e da graça, acima de tudo alguém que é graciosa, amorosa, de pele
rosada, serena, a mais bela”. Ou ainda:
“A menos que se conheça a verdadeira divindade pela fé, não poderíamos
acreditar que existiu alguém mais bela do que a Virgem”. Em outras ocasiões o tema emerge em
contextos diferentes, tal como a plenitude de sua graça: “Maria, a mais
exaltada, é o espelho da Trindade.” Ela
é a mais bela de todas: “incomparavelmente a mais resplandecente de todas as
criaturas... e a glória do Carmelo”; “a
honra de toda feminilidade e a glória de todas as mulheres”. Bostius, um humanista latino com um extenso
vocabulário e uma retórica refinada, coleciona expressões em louvor à beleza de
Maria por todo o De patronatu. Num capítulo posterior consideraremos o tema da
beleza na mariologia contemporânea.
Em se tratando das associações especificamente carmelitanas com Maria,
deveríamos lembrar em primeiro lugar do casal Elias e Maria. Em parágrafos
compactos, Bostius mostra que Elias e Maria partilharam através do Espírito de
doze privilégios que nutriu a ambos: a luz brilhante; o esplendor da
virgindade; a fundação da vida religiosa; a exemplaridade de vida; as conversas
com Deus; a associação com espíritos angelicais; o amor supremo e o zelo por
Deus; o carisma profético; a obediência; a clemência e a misericórdia; os
milagres e a subida aos céus.
Mas Bostius, subitamente, muda o rumo da tradição de Elias e de Maria.
Como alguns de seus predecessores, ele sustentou que Elias está na origem da
vida religiosa. Sua ênfase é Elias, o contemplativo. Mas na tradição do
Carmelo, Elias é pai, instituidor, patriarca, legislador, mestre, principal
padroeiro, fundador. No entanto,
Bostius defende a prioridade e a primazia de Maria no que diz respeito ao
Carmelo. A escolha de Elias pela virgindade foi inspirada precisamente na
futura Virgem Mãe, aquela que ele vislumbrou na nuvenzinha que veio ao seu
encontro no Carmelo e a quem ele desejou honrar e ensinou seus seguidores a
honrarem também.
Portanto, Bostius conclui que Maria, por sua exemplaridade, é uma
“legisladora” para Elias e para a instituição fundada pelo profeta.
Por isso, Maria é a legisladora de Elias e é, certamente, considerada a
legisladora e fundadora de todo o grupo do Carmelo.
Por sua vivência exemplar, ela é a senhora (domina) e a
instituidora. Em Bostius, que foi
seguido por Lezana (+ 1659) e outros,
encontramos Elias e Maria apresentados como o casal fundador da Ordem.
Síntese mariana – Bostius
Em sua síntese envolvendo Elias e Maria, Bostius reflete sobre o
relacionamento entre as duas figuras fundadoras da Ordem e definiu a prioridade
de Maria com respeito aos Carmelitas. Foi o exemplo e o futuro destino dela que
inspiraram o profeta a fundar a Ordem, de forma que ela deveria ser chamada de
sua verdadeira fundadora. Ainda permanecem obscuros os outros elos que Bostius
vê entre Maria e a Ordem. Ele usa outros títulos significativos, alguns dos
quais são tradicionais e outros ele mesmo desenvolve: Protetora, Mestra, Guia,
Amiga, Irmã, Mãe, uma Carmelita.
Bostius chama Maria continuamente de Padroeira do Carmelo: “Ela é
especial e verdadeiramente chamada de Padroeira do Carmelo e dos Carmelitas”;
“a renomada Mãe de Deus, Maria, a muito admirável Padroeira do Carmelo”. Maria é também Senhora e Mestra do Carmelo:
Os carmelitas daquela época santa eram reconhecidos por sorverem de uma
fonte viva, da mais perfeita mestra da vida religiosa, do espelho brilhante de
toda modéstia, virtude e nobreza.
Ele resumiu seu ensinamento:
Pela palavra, como mestra perfeita, ela abraçou todas as ordens do
Senhor quando disse aos servos, “Façam o que ele mandar” (ver Jo 2,5).
O ensinamento de Maria não é abstrato, pois ela é a Guia do Carmelo.
Ela está junto de Elias no zelo pela Ordem. Ela é a Padroeira do Carmelo. Elias é visto como aquele que não morreu nem
entrou no céu. Maria toma seu lugar. Bostius narra uma visão na qual ela diz:
Enquanto o mundo durar, ele sempre deverá ter uma protetora. Sou a
carruagem e o cocheiro do Carmelo, em lugar de vosso pai. Governo aqueles que
são órfãos de pai. Sou mãe em vez de pai. Guardo os interesses do Carmelo em
meu coração. Eu, a mãe, copiosamente nutri aqueles nascidos do Carmelo.
Bostius afirma freqüentemente que Maria também é a Amiga do Carmelo.
Por isso,
Abençoados são os filhos do Carmelo que viram a muito bem-aventurada
Mãe de Deus na carne, a fonte ideal de toda alegria. Mas também especialmente
adornados são aqueles que merecem sua amizade, que é unida à de Cristo.
Bostius vai muito além dos relacionamentos feudais inerentes à noção de
padroeira, enfatizando a noção do Carmelo como uma família: “os filhos do
Carmelo pertencem especialmente à família de Maria”. Nesta família Maria é tanto Mãe quanto Irmã,
de forma que ela considera os carmelitas como filhos e irmãos.
Na verdade, Maria, a muito digna Rainha do céu, causa encanto singular
nas pessoas, nos encontros carmelitanos, em seus próprios servos por título e
amparo. Como ela não ouviria a seus filhos e irmãos carmelitanos que estão
singularmente comprometidos com sua defesa, e são os seus defensores, e que
foram escolhidos e especialmente amados para propagar seu vinhedo em flor?
O título de Mãe não precisa de ilustração por parte de Bostius. Ele
está em todo lugar. Na opinião de alguns ele é para Bostius o atributo
principal de Maria com respeito ao Carmelo.
Ele afirma, por exemplo:
A Rainha do céu, a sempre exaltada Virgem Maria, é a Mãe universal de
todos os cristãos, um porto e refúgio comum para todos os homens e mulheres.
Mas ela é especialmente Mãe e Padroeira dos Irmãos Carmelitas.
Mas Bostius desenvolve, mais claramente do que outros, a idéia de que
os carmelitas são filhos tanto de Elias quanto de Maria, personagens que estão
unidos num casamento místico. Já vimos a base desta idéia: era o voto de
virgindade que Elias fez quando a futura Virgem foi revelada a ele na
nuvenzinha.
Portanto, os carmelitas são filhos e irmãos de seu pai Elias e de sua
mãe Maria, seus muito valiosos genitores.
Esta tradição foi reassumida, dois séculos depois, por Daniel da Virgem
Maria em seu aprofundamento de um dos primeiros escritos carmelitanos, o
Speculum.
Elias era mariano. Elias consumiu-se em seu amor a Maria. Elias fez um
voto de acordo com o exemplo de Maria, que ele mesmo anteviu. Elias é o pai dos
carmelitas, mas primeiramente, Maria é Mãe deles.
Finalmente, para Bostius, Maria pode ser considerada uma verdadeira
carmelita: “Ela mostrou-se espiritual, corporal e literalmente uma carmelita”.
Em Bostius temos uma síntese e uma elaboração da reflexão anterior
sobre Maria. Escritores posteriores não acrescentaram muito às suas posições
centrais. Antes de deixarmos este período medieval de máximo desenvolvimento,
existem mais dois temas que, apesar de estarem presentes em escritores mais
recentes, foram desenvolvidos por escritores mais antigos. São os temas da
Puríssima Virgem e do Escapulário.
A Puríssima Virgem
A reflexão sobre pureza de Maria emerge de diversos contextos, em
documentos muito antigos. Ela está implícita na forte ligação dos teólogos da
Ordem com a Imaculada Conceição. Ela também se manifesta na gradual inserção da
palavra “Virgem” ao título da Ordem. Ela emerge em Jean de Cheminot (por volta
de 1350). Vimos anteriormente que em seu Speculum, ele considera a virgindade
como um vínculo comum entre Elias e Maria. Ele exorta os carmelitas a se
rejubilarem por terem o nome de Maria em seu título, “a flor da beleza e o
título da virgindade”.
Nas Instituições dos Primeiro Monges vimos o paralelo entre a
virgindade de Elias e a de Maria. Mas esta virgindade é apenas um aspecto da
completa ausência de pecado e da absoluta plenitude de Maria, apesar de ela ter
surgido da humanidade pecadora:
Ela era, na sua origem, como uma criança limpa de toda mancha de
pecado, assim como aquela nuvenzinha surgiu do amargo mar, sem conter, no
entanto, nenhuma amargura. Apesar de aquela nuvenzinha pertencer à mesma
natureza do mar, ela possuía outras qualidades e outras propriedades. O mar é
denso e amargo, mas aquela nuvem era tênue e doce. Assim, apesar de em todas as
outras pessoas a natureza humana ser como o mar em sua origem, por ser oprimida
pela amargura do pecado e pelo peso do vício, elas são forçadas a clamar
“Minhas culpas ultrapassaram minha cabeça, e pesam sobre mim, como fardo
pesado” (Sl 38,5). A Bem-aventurada Virgem Maria surgiu também deste mar que é
a natureza humana. Pois, em sua origem, ela não foi queimada com o amargor das
faltas mas, como a nuvenzinha, ela foi luz através da imunidade ao pecado e
doce pela plenitude dos carismas.
Em Bostius o ensinamento é claro: “ela brilhava em sua grande pureza,
de forma que, depois de Deus, nenhuma maior poderia ser imaginada”. Ou ainda,
Além disso, os Carmelitas, os filhos de Elias e de Maria são convidados
e ensinados fervorosamente a imitar Elias, que era totalmente brilhante por
dentro e por fora, e Maria que, abaixo de Deus, nada de tão puro e tão
brilhante, pode ser imaginado.
Mas se passará mais um século até que uma reflexão plenamente
desenvolvida sobre a pureza e a pureza de coração seja apresentada.
O Escapulário
Como mencionamos na Introdução, a questão do Escapulário coloca
dificuldades específicas para nosso tempo, embora a mais fiel devoção à Nossa
Senhora do Monte Carmelo seja sinônimo do Escapulário. A evidência de problemas
em todas as áreas deve ser encarada com cuidado.
Não há referências ao Escapulário na Regra ou em Flechas de Fogo, de
Nicolas, o Francês. A primeira referência a ele está nas Constituições de
Londres, de 1281. Lá encontramos a instrução: “Os Irmãos devem dormir com sua
túnica e com o Escapulário sob pena de severa punição”. A razão para esta severa admoestação é que,
naquele tempo, a remoção do hábito era vista como fuga da Ordem. Assim as
Instituições dos Primeiros Monges afirma:
Este traje, o capuz/capuchinho e o escapulário são usados ao mesmo
tempo pelo monge e mostra que o monge sempre deve, humildemente, levar consigo
a obediência e ser completamente obediente a seu superior.
E exige que “eles sejam diligentemente usados dia e noite sem
falta”. As Constituições de Montpelier
ordenaram que o novo manto deveria ser aberto na frente para que o Escapulário,
o hábito da Ordem, pudesse ser visto. Este regulamento foi repetido na
legislação posterior. Assim, por mais ou
menos 150 anos o Escapulário teve mais um sentido cristológico de obediência do
que propriamente uma devoção mariana.
Além disso, existe um problema quanto a São Simão Stock. Seu nome
aparece pela primeira vez numa lista de priores gerais apenas com Jean Grossi
(+ por volta de 1411) e numa necrologia florentina, que não pode ser anterior a
1374. Nas mais antigas listas de
santos, ou Santorale, ele surge como quinto ou sexto prior geral. Estas listas
de santos podem ser anteriores ao século XIV mas, como as necrologias, se
originam de fontes mais antigas. A festa de São Simão Stock foi celebrada a
partir de 1435 em Bordeaux, onde ele morreu, e na Inglaterra. Esta festa foi
estendida para toda a Ordem em 1564.
O relato mais antigo da visão do Escapulário está no Sanctorale de
Bruxelas, que pode ser datado mais ou menos do final do século XIV, ou seja, um
século e meio depois de Simão Stock. Este Sanctorale pode realmente depender de
documentos mais antigos, mas eles não foram encontrados. Lemos no relato mais
primitivo e antigo da visão:
São Simão era um inglês, um homem de grande santidade e devoção, que
sempre pedia à Virgem, em suas orações para favorecer a Ordem com algum
privilégio único. A Virgem apareceu a ele segurando o Escapulário em sua mão e
dizendo: “Isto é para ti e para os teus um privilégio. Aquele que morrer com
ele será salvo”.
Não é possível, através de métodos críticos, estabelecer a
historicidade desta visão. A ausência de qualquer referência a ela na extensa e
polêmica tradição escrita durante os séculos passados é talvez o único
argumento contra a sua autenticidade. Mas é um argumento de peso. Por outro
lado, não há qualquer evidência que desaprove a visão, apesar de que tal
argumento do silêncio deva ser tratado com certa cautela.
Do ponto de vista dos estudiosos, aqueles que querem afirmar a
autenticidade da visão deveriam se esforçar em fornecer provas. Numa
perspectiva pastoral, talvez seja melhor não aprofundar os detalhes da visão,
mas sim realçar o significado do Escapulário como uma expressão do zelo de
Maria e de uma consagração a ela, de acordo com Pio XII, cujos ensinamentos
examinaremos num capítulo posterior. O título mariano que melhor justifica o
Escapulário é Padroeira, que consideraremos junto com outros no próximo
capítulo.
Lectio Divina
Os escritos de nossos autores medievais são de uma época e de uma
cultura bem diferentes da nossa. Encontramos expressões sobre Maria que não
seriam usadas hoje, como por exemplo, “divina” (mas que usamos tranqüilamente
num contexto secular: “A música de Mozart é divina”). Mas o esforço de
tentarmos nos solidarizar com nossos antepassados medievais é válido. Isto se
faz de melhor forma através de seus textos da lectio divina. Nele nos perguntamos:
1.o que o texto significa?
2.o que o texto significa para mim e para o mundo onde vivo e ao qual
sirvo?
3.como respondo de forma orante à verdade que está sendo apresentada
neste texto?
Meditando.
O trecho seguinte, tirado ao acaso de A. Bostius (1479) é uma rica
expressão de nossa herança. Vale a pena aproveitar o tempo para orar com ele e,
assim, aprofundarmos nossa tradição de um modo vivo. O texto é tirado de um
longo capítulo mostrando como os carmelitas deveriam honrar Maria.
Permanece por ser visto como os Irmãos devem mostrar o amor, toda honra
e reverência fraterna a uma tal Irmã, excelente Mãe e Padroeira que possui tal
poder sublime, piedade gentil, abundante generosidade e toda fecundidade. Pois,
entre todas as pessoas, ela escolheu os carmelitas para serem uma raça que
seria especial para ela e, particularmente, levou-os sob a sombra de suas asas.
Como a Amada adotada pelos Irmãos, ela realmente ora a todo momento por eles,
seu povo, a quem ela segura em seus seios, instruindo-os com o leite divino.
Omito o culto e as devoções especiais que dia e noite eles não param de
oferecer à mais divina, Mãe Toda-poderosa, a quem eles amam tão profundamente,
sempre reverentemente venerada, devotamente louvada, magnífica no mais algo
grau e admiravelmente exaltada. Em seus corações e bocas proclamam corretamente
um lugar muito especial para ela. Pelo menos, essas coisas devem ser guardadas
na mente que une a família carmelitana aos benefícios da divina Maria. Eles
devem mostrar aos outros a maior eficácia da proteção de Maria no meio de seu
povo. Eles reconhecem como certo que devem dar graças eternamente a ela, pois
eles não possuem a capacidade de dar benefícios àqueles que os concede.
Lembrando que, no testemunho do Papa Gregório, cada um carrega algum título de
seu trabalho, de forma que se pode facilmente ver sob a direção de quem este
trabalho é feito. Por isso, todas as Igrejas de uma comunidade carmelitana são
instituídas em honra da sempre gloriosa Maria e são dedicadas ao seu reverente
nome. Portanto, alegremente todo o Carmelo proclama:
Escolhi a moradia da Mãe de Cristo por casa, que a santa Virgem possa
vir em auxílio
de seus servos.
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