“Comumente a Igreja situava- se (e em alguns casos ainda se situa) ao lado dos poderosos. Entretanto, sempre houve personagens que se distinguiam: homem e mulheres de Deus que, em geral, não eram muito bem-vindos pelos poderes político-religiosos e que, em alguns casos, acabaram em finais não muito felizes.” escreve o missionário Luis Miguel Modino, em artigo publicado no sítio Religión Digital, 02-01-2014 . A tradução é do Cepat.
Eis
o artigo.
O nordeste brasileiro sempre foi uma região de profundos
contrastes, onde diferenças sociais foram acirradas ao longo de gerações.
Devido às circunstâncias sociopolíticas, construiu-se uma sociedade
profundamente desigual, marcada por muito sofrimento às camadas mais pobres.
Comumente a Igreja situava- se (e em alguns casos ainda
se situa) ao lado dos poderosos. Entretanto, sempre houve personagens que se
distinguiam: homem e mulheres de Deus que, em geral, não eram muito bem-vindos
pelos poderes político-religiosos e que, em alguns casos, acabaram em finais
não muito felizes. O que também não mudou muito.
Entre eles destacamos Padre Ibiapina, Antonio Conselheiro e Padre Cícero (foto),considerados
os maiores evangelizadores do sertão, uma grande região semidesértica com mais
de um milhão de quilômetros quadrados, com baixos e irregulares índices de
pluviosidade que provocam periódicas e prolongadas secas,
como a que vem ocorrendo nos últimos quatro anos e que tem, como consequência,
os grandes bolsões de pobreza, muito acentuada na época em que eles viveram.
O primeiro, o Padre José Maria Antonio Ibiapina (1806-1883), foi o inspirador de Conselheiro e
de Padre Cícero. Trabalhou como magistrado na Câmara dos Deputados, mas aos 47 anos,
decepcionado com o sistema social, iniciou uma obra missionária, percorrendo em
missões evangelizadoras a região Nordeste do Brasil, construindo inumeráveis
obras sociais e defendendo os direitos dos trabalhadores rurais que, em
muitos casos, estavam em condições de escravidão. Tudo isto deixou marcas significativas
tanto para a organização eclesiástica superior, como para própria vida nas
pequenas comunidades do interior. Com Ibiapina começou-se a vislumbrar a opção pelos
pobres pela Igreja católica que, a partir do Vaticano II, concretizou-se na América Latina com a Teologia da Libertação.
O segundo, Antonio Vicente Mendes Maciel,
conhecido como Antônio Conselheiro (1830-1897), foi um dos principais
líderes sociais brasileiros que, durante décadas, atraiu numerosos seguidores
entre a população mais pobre da região nordeste, que lhe deu o nome pelo qual
se tornou conhecido. Em sua vida combinava o cristianismo com visões
messiânicas, fazendo com que decidisse liderar uma revolta junto ao povo de Canudos, onde havia chegado em 1893, atraindo
assim milhares de moradores locais como agricultores pobres, índios e escravos
recém-libertos, aos quais prometia uma comunidade igualitária sob o amparo de Deus, seguindo o exemplo dos primeiros cristão,
escravos e proletários. Em Canudos, através de uma vida
baseada no trabalho comunitário, conseguiu-se que ninguém passasse fome. Foi
construída uma comunidade sem classes, com uma economia autossustentável,
baseada na solidariedade. A religião converteu-se em um instrumento da
libertação social, para a criação de um mundo mais justo.
E por tudo isto provocou a ira da República, apoiada pelas
autoridades religiosas, que ordenou ao exército que destruísse a comunidade e
que ele fosse retratado como um louco, demente, fanático-religioso e um
contrarrevolucionário monárquico perigoso, o que seria usado para justificar a
matança de 15.000 pessoas. Este fato histórico inspirou o romance de Mario Vargas Llosa, “A Guerra do Fim do Mundo”. Na época da ditadura
brasileira, na segunda metade do século XX, foi construída uma barragem para se
tentar, sem sucesso, acabar para sempre com a memória de Canudos.
O terceiro personagem é o Padre Cícero Romão Batista (1844-1934), personagem carismático,
de grande poder e influência sobre a vida social, política e religiosa do
Nordeste brasileiro. Foi ordenado sacerdote em 1870 e exerceu o ministério na cidade
de Juazeiro do Norte, sediará o 13º Encontro Intereclesial das Comunidades Eclesiais de Base,
entre os próximos dias 7 a 11 de janeiro.
O padre Cícero desenvolveu um intenso trabalho
pastoral com pregações, conselhos e visitas feitas de casa em casa, como nunca
se havia visto na região, ganhando a estima de todos e se tornando um grande
líder comunitário. A isto se somou uma grande austeridade no seu modo de vida.
Em consequência a tudo isso, pouco a pouco chegaram pessoas que queriam
conhecê-lo, especialmente aqueles castigados pelas secas periódicas que, após
perderem tudo, eram acolhido por ele com carinho.
Para auxiliá-lo em seu trabalho recrutou mulheres solteiras e viúvas,
que organizariam uma irmandade de leigas, conhecidas como as beatas. Estas irmandades, que também foram
constituídas por Ibiapina e Conselheiro, eram independentes da hierarquia
eclesiástica. Eram baseadas na Regra de São Bento, oração e trabalho, e combatiam as
inquietudes sofridas pelos mais pobres, provendo uma sociedade regida pelas
regras da fé, esperança e caridade e pelos mandamentos da Lei de Deus, sendo a prática da caridade o seu
principal objetivo.
Em 1889 ocorreu o suposto milagre que, ao longo do tempo, se tornou a
causa de muito de seus problemas. Ao dar à comunhão a beata Maria de Araujo, a hóstia se transformou em sangue
em sua boca, o que se repetiu durante anos em diferentes ocasiões. Rapidamente
a notícia se espalhou e a diocese criou uma comissão para examinar o assunto,
que determinou que o fato não tinha explicação natural.
Não contente com isto, o bispo nomeou uma nova comissão que concluiu que
não houve milagre, dizendo que tudo tratava de mentira. O Padre Cícero foi
suspenso das ordens sacerdotais e a beata foi condenada a viver enclausurada
até morrer, em 1914. Em 1898, o padre Cícero foi ao Vaticano para
se reunir com o Papa Leão XII e com membros daInquisição, onde foi
absolvido. Todavia, ao voltar à cidade de Juazeiro, o bispo não apenas não
respeitou a decisão de Roma, como excomungou Padre Cícero.
Na realidade, as atitudes de Padre Cícero incomodavam o interior da Igreja, afinal com elas questionava-se a vida dos
outros clérigos. Era necessário apenas um motivo, para que pudesse tirá-lo do
meio. Após tudo isto, Padre Cícero foi o primeiro prefeito da cidade de
Juazeiro, em 1911, que até então dependia da cidade de Crato, e chegou a ser
vice-governador do estado do Ceará.
Com o passar do tempo sua fama de santo milagroso cresceu. Morreu em
1934 e foi enterrado na Igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro,
que se converteu em um dos lugares de peregrinação mais importantes do Brasil.
A devoção popular por Padre Cícero é uma das marcas da religiosidade
popular brasileira, especialmente na região Nordeste. Até pouco tempo, Juazeiro
era visto como lugar dos contra-valores cristãos, afinal o clero não intervinha
nas romarias e tudo era coordenado pelos leigos, chegando a criar sua própria
liturgia.
Apesar de tudo as romarias não diminuíram e, a cada ano, o número de
peregrinos que visitam o túmulo de Padre Cícero, pobres em sua
maioria, supera os dois milhões de pessoas. Hoje a Igreja católica
tenta reabilitar a figura dePadre Cícero, dando a tudo uma nova forma. Fonte:
As imagens de padre Cícero ocupam as praças de muitas cidades
nordestinas e têm um lugar de destaque em muitas casas. As pessoas fazem
procissões, orações e pedidos a seu “Padim, Padre Cícero”, com uma fé incomum. E
pode-se se perguntar: como é possível que um excomungado tenha se convertido no
“santo” do povo?
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br
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