Antônio Braga é autor
do livro Padre Cícero.
Sociologia de um padre, antropologia de um santo (Bauru: Edusc, 2008). A obra é fruto
da pesquisa que ele realizou para a elaboração de sua tese de doutorado em
Antropologia Social, defendida em 2007 na Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS).
Na entrevista
que segue, concedida por e-mail para a IHU
On-Line, ele fala sobre o Padre
Cícero que
“descobriu” em seu trabalho. Para ele, “uma boa questão é procurarmos entender
por que alguém como Padre
Cícero foi capaz
de atrair tantas pessoas pertencentes aos segmentos mais pobres e
marginalizados da sociedade em torno de si, ou de que forma ele se converteu
num santo para essas pessoas”.
Antônio Braga atribui parte da força de liderança de Padre Cícero à atuação de seus devotos, ou
romeiros, como são chamados. E explica: “Eram os próprios romeiros que
legitimavam a autoridade religiosa e moral do Padre
Cícero. Eram eles os sustentáculos da autoridade política,
social e econômica do sacerdote. Se estabeleceu entre Padre Cícero e seus romeiros um vínculo, uma
relação de dom e contra-dom que nem a morte do Padrinho Cícero foi capaz de romper”.
Antônio Mendes da Costa Braga possui graduação em Ciências Sociais e mestrado em
Sociologia, pela Universidade de São Paulo (USP), e doutorado em Antropologia
Social, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Em sua tese de
doutorado, que virou o livro Padre Cícero: sociologia de um Padre, antropologia
de um santo, qual é o padre Cícero que você descreve?
Antônio Braga - Podemos considerar que o livro aborda o Padre Cícero Romão
Batista sob duas
perspectivas, relacionadas com o título que dei à obra. Na primeira, que
corresponde ao primeiro momento do livro, eu procuro compreender quem foi o
padre Cícero Romão Batista no contexto cultural, histórico,
social e religioso em que se tornou um padre e, depois, uma grande liderança,
principalmente religiosa. Procuro fazer ali o que pode ser denominado de
análise de trajetória. Procurei demonstrar que Padre Cícero foi, em grande medida, um típico
sacerdote formado no século XIX. Diria até que ele foi um caso bem-sucedido de
sacerdócio no contexto eclesiástico católico daquele século, e mais ainda no
Ceará da segunda metade do século XIX. Era um Ceará que vinha sofrendo uma
profunda reforma eclesiástica, a chamada romanização do catolicismo brasileiro.
E Padre Cícero foi, no meu entender, e em certa
medida, um sacerdote romanizado, um padre que tinha muitas das qualidades que
os lÍderes do processo de romanização – membros do episcopado – esperavam de um
sacerdote que estava posicionado nas linhas de frente desse empreendimento
eclesiástico.
Um sacerdote romanizado em
litígio com o poder eclesiástico
É paradoxal
que esse Padre
Cícero, que aponto como um caso bem-sucedido de sacerdote
romanizado, tenha morrido com suas ordens sacerdotais suspensas e em litígio com
o poder eclesiástico local. De sacerdote virtuoso ele passou a ser um problema
para esse poder, especificamente no Nordeste brasileiro. Então fica a pergunta:
como isso é possível?
Defendo, como Ralph Della Cava e alguns outros autores, que a vida de Padre Cícero mudou a partir de um milagre ocorrido
em Juazeiro do Norte, no Ceará, em 1889. Foi o chamado Milagre da Hóstia,
protagonizado por uma jovem beata, negra e pobre, chamada Maria de Araujo.
Padre Cícero fora o coprotagonista desse milagre, que teve profundas
consequências para sua vida, a da beata e do próprio Juazeiro. E é a partir
deste evento – porque eu o vejo como paradigmático para sua vida - que procuro
apresentar, ou melhor, compreender Padre Cícero, analisando o processo que o
tornou um dos maiores santos de devoção popular no Brasil. Daí por que falo
numa antropologia de um santo. E o caso de Padre Cícero traz muitos privilégios
enquanto objeto de estudo. O principal é que ele se tornou um santo para seus
devotos não necessariamente através ou a partir dos altares. O processo através
do qual ele vai se convertendo em santo para muitos de seus devotos ocorreu
principalmente durante sua vida, logo após o milagre. Temos aí a oportunidade
de compreender como vai se dando o processo através do qual um indivíduo vai se
tornando uma importante liderança, notadamente religiosa, a ponto de, já em
vida, ganhar status de santo para muitos. No entanto, é também importante
frisar que para os devotos do Padre
Cícero –
denominados romeiros – ele é, antes de tudo, o “Padrinho Cícero”.
Eles não costumam falar em Santo Cícero.
IHU On-Line - Como entender
tamanha devoção popular no Brasil por Padre Cícero?
Antônio Braga – Posso apontar alguns aspectos que dão ao caso do Padre Cícero tamanha força e – em certa medida –
especificidade. Um deles é o fato de que os seus devotos são como que
coprotagonistas de sua história de santidade. São sujeitos e agentes. Sem seus
romeiros, Padre
Cícero não teria
se tornado santo. E sem eles a devoção não teria se mantido nem se desenvolvido
após sua morte, em 1934. E essa é uma devoção que passa de mãe para filho, de
pai para filho, de avó e avô para netos. E nessa história tem sempre um avô,
bisavó, e assim por diante, que conheceu o Padre
Cícero em vida,
que era romeiro do Padrinho Cícero enquanto ele ainda era vivo.
Então, os devotos estão falando e vivenciando uma devoção que também tem
relação com suas próprias histórias, com a história de todo um vasto grupo de
indivíduos que se encontram em torno da força identitária de serem afilhados do
Padrinho Cícero. Agora, como todo o santo que se preze, ele é santo porque –
para seus devotos – também faz milagres e intervém junto a Deus. Em suma, como
todo santo de devoção popular, ele é uma força atuante, presente na vida
daquele que crê e que – em sua perspectiva – se faz presente quando chamado a
ajudar.
IHU On-Line - Quais são os
principais debates provocados pela figura dele dentro da Igreja Católica e no
meio acadêmico brasileiro?
Antônio Braga - No meio acadêmico, Padre
Cícero e o
fenômeno religioso do Juazeiro já foram objeto de um número respeitável de
estudos, muitos de grande qualidade. Agora, dentro da Igreja Católica, em um
catolicismo mais oficial e eclesiástico, ele suscita muitas polêmicas. Se bem
que é possível perceber que estamos diante de um claro processo de superação de
muitas delas. E afirmo isto porque percebo que cada vez mais a devoção ao Padre Cícero é aceita por agentes de um catolicismo
mais oficial, por um número cada vez maior de padres e bispos. Talvez de um
santo popular outsider, cuja devoção se dava de forma um tanto quanto marginal
em relação a um catolicismo mais oficial, o santo Padre Cícero esteja pouco a
pouco se aproximando dos cânones através do qual a Igreja Católica reconhece
oficialmente seus santos. Pensar num processo de canonização do Padre Cícero tornou-se algo possível.
A questão da obediência
De certa
forma, todos os debates em torno do Padre
Cícero, dentro da Igreja, tem alguma relação com o problema da
obediência. Todos os debates internos e que dizem respeito ao Padre Cícero – Ele era ou não um sacerdote
virtuoso? Era ou não um homem santo? Era ou não demasiadamente um homem da
política? – tendem e tenderão a serem relativizados quando esta questão da
obediência for mais bem compreendida e equacionada. Agora, se tudo isto está
acontecendo, é mérito, em uma grande medida, dos devotos do Padre Cícero,
de seus romeiros. Foram eles e ainda são, mesmo com todas as objeções e
desconfianças em relação a esta sua fé, que mantiveram e mantêm a devoção ao Padre Cícero como um dos maiores e mais relevante
casos de devoção popular no Brasil.
IHU On-Line - Quais as
características dos romeiros de Padrinho Cícero?
Antônio Braga - Se fôssemos definir a maioria dos romeiros do Padre Cícero em três palavras seria: nordestinos,
pobres, perseverantes. Padre
Cícero é, dentre
outras coisas, um santo dos nordestinos pobres. É impressionante como são
muitos, até milhares, o número de nordestinos pertencentes às camadas sociais
mais pobres do Nordeste que se identificam com o Padrinho Cícero.
Uma boa questão é procurarmos entender por que alguém como Padre Cícero foi capaz de atrair tantas pessoas
pertencentes aos segmentos mais pobres e marginalizados da sociedade em torno
de si, ou de que forma ele se converteu num santo para essas pessoas.
IHU On-Line - Que elementos
fizeram de Pe. Cícero um fenômeno social, político e religioso?
Antônio Braga - Boa parte desses elementos estão dispersos nas várias
décadas através das quais Padre Cícero, ainda em vida, foi construindo um
determinado tipo de relacionamento com os romeiros. Um relacionamento
sustentado numa perspectiva religiosa, mas que abrangia também relações do tipo
social, econômica e política. Padre
Cícero, por exemplo, exercia uma autoridade religiosa sobre os
romeiros. Mas também era um provedor nos casos de necessidades materiais e
políticas. Em contrapartida, eram os próprios romeiros que legitimavam a
autoridade religiosa e moral do Padre
Cícero. Eram eles os sustentáculos da autoridade política,
social e econômica do sacerdote. Se estabeleceu entre Padre Cícero e seus romeiros um vínculo, uma
relação de dom e contra-dom que nem a morte doPadrinho Cícero foi capaz de romper.
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br
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