Estamos em 1998. Decorreram
trinta anos desde o dia que encerrei as minhas anotações feitas durante
a Conferência de Medellín. Relendo as 42 páginas do "diário", percebo
as suas limitações. A atenção se voltava mais para os atores da Conferência que
para as correntes teológicas e pastorais nela presentes, embora estas não
deixem de aparecer.
Terminei minhas observações e
comentários de maneira meio abrupta, sem
conclusão. Não me lembro mais se naquela época eu intencionava prosseguir, no mesmo caderno, as minhas reflexões.
Certo é que reflexões posteriores não
faltaram por ocasião de encontros, cursos. Ainda no início dos anos 70 fui
convidado por Dom Hermínio Malzone Hugo a falar sobre Medellín para os padres
da Diocese de Governador Valadares. Nessas ocasiões ficava surpreso com o
desconhecimento dos ouvintes do significado de Medellín. Ao mesmo tempo, em muitos lugares, reconhecia na prática
pastoral a inspiração da Conferência.
Influência, creio eu, indireta através das Diretrizes da CNBB e da CRB. Fato é
que Medellín é mais questão de espírito
do que documento. Em Medellín , depois de uma longa gestação, nasceu a Igreja latino-americana como latino-americana. Não sei se todos os
presentes naquela "maternidade" gostaram da sua aparência. Certo é
que o parto inspirava preocupação e o choro da recém-nascida incomodava.
Não foi de propósito que encerrei
o "diário" de Medellín com o resultado de uma votação: Placet 50, Non placet 56. Posições contrárias
estão sempre presentes. Determinam o resultado das assembléias de qualquer tipo
que acontecem na Igreja. A própria história da Igreja é tecida de placet e non placet, mudos ou pronunciados. É difícil identificar nesse jogo a ação do
Espírito Santo. A pergunta é: quais as razões que explicam determinadas posições? Existe um leque de respostas mais imediatas:
convicções, conveniências, condicionamentos, visões profundas ou superficiais,
etc. Depois existem as utopias, objetivos que queremos alcançar. Confesso que
não sou muito adepto de utopias. Peço que eu seja mantido na esperança da
grande festa que Deus preparou para todos, mas que não sei descrever. Nas
utopias há uma tendência de reduzir tudo
a uma única unidade racional. Talvez seja por influência da modernidade. Há utopias que geram formas de
totalitarismo. E quando constatada a sua inviabilidade podem provocar
cinismo. Por isto é bom lembrar que
ninguém oferece soluções cabais para uma situação coletiva que exige mudanças.
Mudanças pedem paciência e atenção à fragilidade com que são realizadas. É
verdade que sempre existe o perigo de fazer cair certos problemas reais no
esquecimento. Quem vai dizer que isto não tenha acontecido depois de Medellín?
Os placet e non placet,
mesmo quando inspirados por visão utópica, negam na realidade a viabilidade da
utopia. Nem na Igreja existe um só
projeto harmonioso que coloca todas as
idéias em sintonia. O que existe são idéias fortes que provocam outras idéias
em oposição. Quando há uma insistência na teologia da criação, surge no outro
prato da balança a idéia da fé na necessidade da redenção. A idéia da
libertação provocou a idéia da reconciliação. Em ambas deve ser reconhecível o
absoluto do amor e do respeito à pessoa humana. As descobertas das exigências
cristãs ou simplesmente éticas são feitas a partir desse dado básico, mas podem
variar nas suas traduções concretas. No entanto, neste processo de descobertas
e crescimento sempre se vislumbra algo
que escapa às nossas realizações políticas concretas. Vamos chamá-lo de sagrado,
de gratuito. Pode acontecer que ele se anuncie no silêncio de gente simples
diante dos nossos discursos. Silêncio que muitas vezes é qualificado como
indolência.
Na gratuidade existe sempre algo
de paradoxal. Incomoda e faz explodir as nossas categorias. Quem perde de vista
a precariedade dos nossos consensos e realizações, dificilmente poderá aceitar o mistério da
encarnação. Lembro ter lido em algum livro, anos atrás, que Jesus anunciava a
utopia do Reino de Deus. Mas este Reino não é uma utopia. Jesus afirmava que o
Reino estava no meio de nós, como um grão
de mostarda. E manifestava a presença desse Reino, não através de um
plano social global, mas nos seus próprios gestos. Ele dava sinais que pediam,
sem dúvida, atitudes e medidas concretas.
Há outros, tantos outros que
foram e são sinais desse Reino. Penso em Teresa de Lisieux cujo centenário da
morte acabamos de celebrar. Sua vida tornou-se cada vez mais sinal do Reino à
medida que desapareceu como utopia. Penso em
Teresa de Calcutá cuja vida foi uma parábola do Reino dos Céus. Penso no
bispo Romero que à sua maneira foi sinal do Reino. Lembro-me com gratidão do
acontecimento Medellín. Com seus placet
e non placet foi outro tipo de sinal
da presença do Reino.
*Dom Frei Vital
Wilderink, O Carm, foi vítima de um acidente de automóvel quando retornava para
o Eremitério, “Fonte de Elias”, no alto do Rio das Pedras, nas montanhas de
Lídice, distrito do município de Rio Claro, no estado do Rio de Janeiro. O
acidente ocorreu no dia 11 de junho de 2014. O sepultamento foi na cidade de
Itaguaí/RJ, no dia 12, na Catedral de São Francisco Xavier, Diocese esta onde
ele foi o primeiro Bispo.
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