*Dom Frei Vital Wilderink, O. Carm. In Memoriam
As interpretações do que é
dogma e do que é mística variam e nem
sempre acertam.
I. Para interpretar o dogma
podemos referir-nos à carta de Paulo aos romanos (10, 9 ss): “Se confessares com tua boca que Jesus é
Senhor e creres em teu coração que Deus o ressuscitou dentro os mortos, serás
salvo. Pois quem crê de coração obtém a justiça, e quem confessa com a boca, a
salvação”. O Apóstolo está persuadido que fé e confissão estão essencialmente
unidas. A resposta da fé na obra salvífica de Deus engaja o homem todo, coração
e boca, corpo e alma, pensamento e ação. O que se recebeu de Deus destina-se à transmissão do crente aos seus
próximos. Não são poucos os escolhidos, mas
todos devem ser salvos. Por isto o
crente deve a Deus e aos homens sua confissão de fé sintetizada em dois artigos
dogmáticos: “Jesus é o Senhor” e “Deus o ressuscitou dos mortos”. Dois artigos que são expressão dos dogmas
cristológicos que estão na base dos
dogmas que no correr dos tempos foram proclamados. Não são artigos doutrinais
de um sistema teorético, mas são princípios de vida da comunidade que se afirma
em relação a Jesus Cristo, o Senhor. Surgidos da fé são destinados a serem
comunicados para firmar os outros na fé ou transmitir a fé aos que ainda não
creem. O sujeito dos artigos da fé é a comunidade de fé, mesmo quando
individualmente são proclamados. Ligados reciprocamente une também os crentes e
visa inclusive a relação com os não-crentes. São abertos para cada pessoa.
O que tem a ver com a mística? A
pergunta o que é mística é mais fácil fazê-la do que responder-lhe. Na realidade a respeito dela existem muitas
teorias e práticas. Anselmo Stolz falava de um campo de batalha. Outros preferem
aplicar-lhe características mais pacíficas e falam de alturas ensolaradas que
no entanto desparecem numa densa neblina. É objeto de aspirações, de gozo da
alma e de enganos. Pelo fato de que fenômenos místicos se encontram em todas as religiões, pergunta-se se há para
todos eles um denominador comum. Talvez
exista: Mística é uma experiência intensiva do transcendente, uma vivência
qualificada da situação humana fundamental. Pode-se assim dizer que mística é
uma interiorização transcendental
existencial extraordinária.
Extraordinária porque a
experiência mística não acontece a todo mundo embora possamos supor que ela diz
respeito a cada um. Até pode se afirmar que aqueles para os quais as portas de
acesso à experiência mística estão abertas nem sempre passam por elas. Há
também outros que se queixam quando o acesso à experiência lhe é
temporariamente negado.
O termo “existencial” dá a
entender que a mística não é um fenômeno marginal que não tem significado
especial para a vida humana. Pelo contrário, trata-se de algo que diz respeito
incondicional à existência humana. A mística leva a um engajamento
existencial. Podemos ter na nossa vida
habilidade para determinadas atividades, adquirida por treinamento ou estudo;
conhecimento místico, porém, atinge o ser humano todo. Isto vale também quando
em casos concretos de experiência mística dominam determinadas mediações:
visões, audições, experiências afetivas ou intelectuais. O que vale para todas essas várias
acentuações da experiência mística é que
elas apontam para a interiorização do que é experimentado. O místico é atingido
no fundo do íntimo do seu ser.
Mas o que é experimentado?
Fala-se do transcendente. O que significa o transcendente? É uma realidade
com que nos confrontamos, mesmo se o
sabemos no nosso interior. Permanecendo numa ideia geral de mística, esse transcendente pode ser entendido como
pessoal ou apessoal. Para o cristão trata-se do Deus uno e trino que nessa
interiorização existencial extraordinária se dá a perceber em comunhão .
Considerando tudo isso com os
olhos da fé cristã podemos dizer que o elemento fundamental desse acontecer
extraordinário é a graça divina. A interiorização mística é um dom da graça que
vem do Pai pelo Filho no Espírito Santo.
Esse dom é imerecido e indisponível. Mesmo os atos que o preparam dependem
da graça de Deus. O que significa que não é possível provocar a experiência
mística por forças próprias através de determinadas práticas. Nem podemos possuí-la
como uma qualidade nossa ou bem nosso. A interiorização mística só é possível
através da ajuda de Deus. Desde o início até a realização Deus acompanha cada
passo.
Os atos da fé, da esperança e
caridade atingem a existência no ponto mais profundo. É neles que a
interiorização existencial tem as suas raízes e para eles é orientada, é neles
que é realizada. As palavras de Jesus, citadas no evangelho de João
nos abrem um horizonte nesse sentido: “”Se alguém me ama, guardará minha
palavra e meu Pai o amará e a ele viremos e nele estabeleceremos morada” (Jo
14, 23). É nisto que consiste a glória de que Jesus fala dirigindo-se ao Pai:
“Eu lhes dei a glória que tu me deste para que sejam um, como nós somos um: Eu
neles e tu em mim, para que sejam perfeitos
na unidade e para que o mundo reconheça que me enviaste e os amaste como
amaste a mim” (Jo 17, 22-23).
Na fé cristã não se trata de uma
transcendência abstrata mas do Deus trino-e-um transcendente. Ele transcende
nosso pensar e querer, nossas experiências e nossos desejos, ele transcendente
todas as nossas declarações, ele transcende o mundo todo. Por isto pode ser ao
mesmo tempo imanente. Ele que criou tudo, vive e opera em tudo. A presença dele
em tudo um panteísta nem pode imaginar. De outra parte a ‘divindade’ como
natureza nos é tão estranha e distante que um agnóstico de jeito algum pode
imaginar pelo fato de que ele não conhece o que há de cognoscível em Deus.
Considerando esse mistério chegamos à conclusão de que a oração é mais realista
do que uma teorização. Faz dar sentido à oração de Al-Halladsch, um místico
islâmico:
Quando me dirijo para o alto
Tu estás mais alto que aí
Quando me dirijo para baixo,
Tu estás aqui acima
de tudo.
Tu és quem dá lugar a todos,
Mas Tu não és o lugar deles.
Tu és em tudo o todo,
Mas não perecível como nós.
II. O que distingue dogma
de mística. Dá a impressão que são dois mundos totalmente distintos. Há quem
acrescenta: não só distintos mas também opostos. E mesmo se há uma espécie de
relação amigável, chegam talvez a uma trégua em que cada um se obriga a
respeitar a realidade de cada um.
O dogma está na perspectiva da proclamação, a mística na perspectiva
da experiência. O dogma se manifesta na palavra, a mística vai além da palavra.
Amor cria e faz crescer a comunidade, mas o dogma faz a comunidade da fé. O
dogma supõe o testemunho comum. Suas definições
marcam fronteiras para
salvaguardar a comunidade e em vista do testemunho comum que permanece uma
exigência sempre renovada. Na mística a prioridade é dada ao indivíduo
agraciado. Muitos são convictos que a interiorização existencial extraordinária
não é transferível.
Teologicamente falando trata-se de uma forma de revelação privada.
Esta palavra não significa uma
desvalorização; trata-se de uma informação de um acontecer que diz
respeito a pessoas particulares. Para
estas pessoas a revelação particular pode trazer deveres; para outras não,
mesmo se é aconselhado de levar a sério
o testemunho da revelação recebida. Seus argumentos são os seguintes: ‘novas
situações exigem novas ações da Igreja de acordo com o mesmo e permanente
Evangelho. Isto precisa de um discernimento que não pode ser deduzido
somente deste Evangelho como elemento objetivo.
O impulso carismático para o reto discernimento pertence como função à
revelação privada, seja essa função apresentada
como explícita ou não’. No entanto o
dogma não se apoia em experiências místicas e revelações privadas por uteis que
possam ser.O dogma está a serviço de toda verdade revelada que está em jogo e
que tem caráter obrigatório. No caso de um discernimento a fazer, trata-se mais
de uma prioridade que de uma
exclusividade. Isto mostra que dogma e mística, com toda a distinção que existe
entre ambos, têm muito em comum.
III. Dogma e mística têm a ver com dados no sentido profundo da palavra.
Ambos vivem daquilo que recebem. O dogma não é um pensamento livremente formado através de determinados conceitos.
Não é o dado de uma maneira de pensar
que partindo de capacidades humanas é oferecido
numa sistemática determinada que qualquer um em qualquer tempo pode
reelaborar. O conteúdo íntimo do dogma é o indecifrável e inconjugável agir de
Deus. A mística por sua vez aponta para
essa marca de gratuidade. A mística não adquire por força própria seus
conhecimentos , por mais que certos métodos lhe possam oferecer uma ajuda. O
místico recebe o que ele mesmo não pode produzir. Ele é persuadido que ele não tem a ver com os
frutos do seu querer e pensar, mas com dons que ultrapassam seu querer e seu
pensar e ao mesmo tempo lhe exigem. Origem de todos os dons é a gratuidade
absoluta, o mistério divino. Se se entende o místico como o mystikõs, como
alguém que está ligado aos mistérios, então pode-se dizer analogicamente em
relação ao dogma: Também este tem a sua origem no mysterium de Deus; o mesmo
deve ser dito em relação a cada um dos mistérios que nos foram revelados.
A interpretação dele pode ser vista como
exegese mistagógica.
Ambos, dogma e mística só atingem o mistério de maneira incompleta;
ambos não estão em condições de atingi-lo totalmente. Mesmo o fragmento captado
só é atingido de maneira limitada. “Trazemos, porém, este tesouro em vasos de
argila, para que esse incomparável poder seja de Deus e não de nós” (2 Cor 4,
7). A explicação do dogma é ameaçada por um dogmatismo exagerado, como a
mística por um subjetivismo absolutista. A limitação do dogma e da mística abre
frequentemente a porta para erros nas tentativas de interpretação. Neste
sentido devemos manter não só a sua
aceitação obrigatória mas também saber que os dogmas são fórmulas abertas,
fórmulas que abrem para um mistério ilimitado.
Não que sejam falsos, mas precisamente enquanto elas são verdadeiras elas
apontam para além de si mesmas. Quanto à mística para ser verdadeira elas se
abre para outros testemunhos, especialmente para o primeiro e último Mistério
de tudo que é. Uma verdadeira experiência mística abre-se sempre de braços
estendidos para o Mistério-Fonte. “Deus é amor” (1 Jo 4,8.16). Ambos, dogma e
mística o interpretam, cada um na sua maneira característica.
IV. O que dogma e mística
podem significar reciprocamente.
Não faltam testemunhas que podem responder afirmando, pelo menos na prática, a
significação que o dogma tem para a mística e vice-versa. A lista dessas
testemunhas, mestres na doutrina e na vida espiritual, é longa. Nós os encontramos ao longo da
história da Igreja. O tema volta cada vez nos seus escritos. Basta citar
alguns: Basílio, Atanásio, Gregório de Nissa, Agostinho, Pseudo-Dionísio
Areopagita, Tomás de Aquino, Boaventura, Mestre Eckhart,, Johannes Ruusbroec,
João da Cruz, Inácio de Loyola, Francisco de Sales, e não deixemos de citar
para a nossa época Karl Rahner, Hans Urs von Balthasar e sua dirigida Adriana
Von Speyr, Tito Brandsma, Chiara Lubich.
São testemunhas de doutrina e de vivência.
Todos sabemos que lendo os textos de conhecidos ou desconhecidos que
têm sua hermenêutica que nós procuramos
integrar na nossa maneira de entender as coisas. Assim podemos interpretar o
que nos é apresentado no terreno da mística a partir do dogma e o diferente no
campo dogmático a partir da mística.
O ponto de partida é a convicção de que afirmações dogmáticas e
místicas necessitam de uma interpretação. Quem se ocupa dos dogmas sabe que
parcialmente foram formulados há muitos séculos. O que pede que sejam
explicados para os nossos contemporâneos. Vale também para experiências
místicas que nem sempre facilmente vão ser entendidas. Muitas vezes nem sempre
todos entendem o que experimentam porque ultrapassa as possibilidades que têm
para entender e para expressar. Neste caso o dogma pode ajudar para esclarecer
os fenômenos místicos a partir de sua origem e de sua conexão íntima. Aqui é
bom citar o decreto sobre o Ecumenismo do Vaticano II (n. 11): “O modo e o
método de exprimir a fé católica não devem, de forma nenhuma. transformar-se em
obstáculo para o diálogo com os irmãos.[Deve-se evitar o falso irenismo] Ao
mesmo tempo a fé católica deve ser explicada mais profunda e corretamente, de
tal modo e com tais termos que possa de fato ser compreendida também pelos
irmãos separados....Comparando as doutrinas lembrem-se que existe uma ordem ou
“hierarquia” de verdades na doutrina católica, já que o nexo delas com o
fundamento da fé cristã é diverso. Assim se abrirá o caminho pelo qual,
mediante esta fraterna emulação, todos se sintam incitados a um conhecimento
mais profundo e manifestação mais clara das investigáveis riquezas de Cristo” .
A ação de Deus não tira o véu do mistério e o que estava escondido
antes, ela não apresenta agora mais ao nosso alcance. Deus não desfaz o
mistério, ele o oferece como tal ao nosso olhar. O Deus que se revela não dá a
solução de um enigma, ele se dá a conhecer a si mesmo, ele se dá a si mesmo.
Aquilo que se reconhece está naquele que reconhece, não do jeito daquilo que é reconhecido,
mas do jeito de quem reconhece. A alma
que têm uma experiência mística da presença de Deus, capta essa presença não do
jeito que Deus é, mas do jeito humano, na sua medida, de acordo com a condição do seu estado de alma. É o que podemos ver no sentido místico
presente nos salmos, tanto da parte de quem
é o autor dos salmos como da parte de quem os lê ou recita. A
experiência mística não ultrapassa o alcance da fé, mas penetra mais
profundamente nele. Não deixa o conteúdo da fé para lá mas aponta para o que ele tem de mais profundo
promovendo um melhor conhecimento dele. A experiência mística é algo existencial e por
isso faz perceber que os dogmas não proclamam verdades abstratas mas fazem
descobrir o que o Senhor quer dizer e
dar aos homens e fazem glorificar a Deus. Uma santa religiosa Ir.Maria Julitta
Ritz aconselhou a um sacerdote atitude pastoral o seguinte: “Nosso objetivo é a
glorificação em tudo. Tudo deve servir a ele. Para isto conduz a cruz. Por isso
para frente com coragem! – Deus é presença!” Sempre é o “só Deus” da mística um
impulso para valorizar o caráter doxológico dos dogmas e sua interpretação tão
frequentemente ignorados. A experiência
mística é um instrumento do Senhor para
semear mais profundamente no campo do mundo a sua verdade e fazer produzir
frutos mais abundantes.
Além de ser uma ajuda para poder entender a mística, é um incentivo
para fortalecer a fé. O que é sempre favorece o campo dos dogmas. Afinal ninguém pode abrir-se à proclamação do
Evangelho que é necessário para alcançar a salvação sem a iluminação e
inspiração do Espírito Santo que a todos dá a alegria para abrir-se à verdade e
crer. Na autentica experiência mística essa ajuda do Espírito Santo que é necessária em todo ato de fé, é dada num
modo específico. O que torna a fé mais profunda e mais sólida. Tudo isso
fortalece por sua vez o místico porque pode oferecer a ele uma autocompreensão
realista que uma errada interpretação do acontecimento místico impede. Extraordinárias experiências existenciais do transcendente
podem às vezes fazer perder o chão debaixo dos pés e por isto o contacto com os próximos. Isto pode atingir os dons
recebidos no seu núcleo e fazer perder os seus frutos. Essa ajuda é essencial
quando faz perceber que tudo é gratuito,
que tudo é graça. O que faz reconhecer que o homem de si mesmo não é nada e não
pode nada. Os dons místicos não mudam a situação fundamental do homem no
sentido que o agraciado por assim dizer se afasta do seu nada e se apoia cada
vez mais na sua própria força. Afinal, a experiência mística faz excluir uma
coisa: que eu considere a minha
existência como uma coisa óbvia, devida, necessária. O místico no seu
íntimo vem compenetrado pela consciência que nada daquilo que eu sou e que me vem doado me é devido. (H.U.von
Balthasar). Isto já vale quando no plano natural alguém chega à consciência de
que no princípio da sua existência há uma iniciativa, um Alguém que me deu a
mim mesmo. Quanto mais amplo deve acontecer numa experiência mística.
É importante que se entendamos bem a reciprocidade entre dogma e
mística.
O que impede que nos contentamos com conclusões teoréticas que
certamente não nos despertam para orando agradecer a Deus o dom recebido. Basta
deixar-se inspirar pela carta aos efésios
em que Paulo escreve que “fomos feitos a herança de Cristo a fim de
servirmos para o seu louvor e glória” (Ef 1,12). O que pode inspirar-nos a
oração que Paulo faz na mesma carta aos efésios:
“Por essa razão dobro os joelhos diante do Pai de que toma o nome toda
a família no céu e na terra, para pedir-lhe que conceda, segundo a riqueza da
sua glória, que vós sejais fortalecidos em poder pelo Espírito Santo no homem
interior, que Cristo habite pela fé em vossos corações e que sejais arraigados
e fundados no amor. Assim tereis condições para compreender com todos os santos
qual é a largura e o comprimento e a altura e a profundidade, e conhecer o amor
de Cristo que excede todo o conhecimento, para que sejais plenificados com toda
a plenitude de Deus” (Ef 3, 14-19).
É uma oração que é um exemplo concreto que dogma e mística pertencem a
esta família cristã de que Paulo fala. “Àquele, cujo poder agindo em nós, é
capaz de fazer muito além, infinitamente além de tudo o que nós podemos pedir
ou conceber, a ele seja a glória na Igreja e em Cristo Jesus, por todas as
gerações dos séculos dos séculos! Amém.
* Dom Frei Vital Wilderink, O Carm, foi vítima de um acidente
de automóvel quando retornava para o Eremitério, “Fonte de Elias”, no alto do
Rio das Pedras, nas montanhas de Lídice, distrito do município de Rio Claro, no
estado do Rio de Janeiro. O acidente ocorreu no dia 11 de junho de 2014. O
sepultamento foi na cidade de Itaguaí/RJ, no dia 12, na Catedral de São
Francisco Xavier, Diocese esta onde ele foi o primeiro Bispo.
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