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quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Dogma e Mística.

*Dom Frei Vital Wilderink, O. Carm. In Memoriam

As interpretações  do que é dogma e do que é mística  variam e nem sempre acertam.

I.   Para interpretar o dogma podemos referir-nos à carta de Paulo aos romanos (10, 9 ss):  “Se confessares com tua boca que Jesus é Senhor e creres em teu coração que Deus o ressuscitou dentro os mortos, serás salvo. Pois quem crê de coração obtém a justiça, e quem confessa com a boca, a salvação”. O Apóstolo está persuadido que fé e confissão estão essencialmente unidas. A resposta da fé na obra salvífica de Deus engaja o homem todo, coração e boca, corpo e alma, pensamento e ação. O que se recebeu de Deus  destina-se à transmissão do crente aos seus próximos.  Não são poucos os escolhidos, mas todos devem ser salvos.  Por isto o crente deve a Deus e aos homens sua confissão de fé sintetizada em dois artigos dogmáticos: “Jesus é o Senhor” e “Deus o ressuscitou dos mortos”.  Dois artigos que são expressão dos dogmas cristológicos  que estão na base dos dogmas que no correr dos tempos foram proclamados. Não são artigos doutrinais de um sistema teorético, mas são princípios de vida da comunidade que se afirma em relação a Jesus Cristo, o Senhor. Surgidos da fé são destinados a serem comunicados para firmar os outros na fé ou transmitir a fé aos que ainda não creem. O sujeito dos artigos da fé é a comunidade de fé, mesmo quando individualmente são proclamados. Ligados reciprocamente une também os crentes e visa inclusive a relação com os não-crentes. São abertos para cada pessoa.
O que tem a ver com a mística? A pergunta o que é mística é mais fácil fazê-la do que responder-lhe. Na  realidade a respeito dela existem muitas teorias e práticas. Anselmo Stolz falava de um campo de batalha. Outros preferem aplicar-lhe características mais pacíficas e falam de alturas ensolaradas que no entanto desparecem numa densa neblina. É objeto de aspirações, de gozo da alma e de enganos. Pelo fato de que fenômenos místicos se encontram  em todas as religiões, pergunta-se se há para todos eles um denominador comum.  Talvez exista: Mística é uma experiência intensiva do transcendente, uma vivência qualificada da situação humana fundamental. Pode-se assim dizer que mística é uma interiorização transcendental  existencial extraordinária.
Extraordinária porque a experiência mística não acontece a todo mundo embora possamos supor que ela diz respeito a cada um. Até pode se afirmar que aqueles para os quais as portas de acesso à experiência mística estão abertas nem sempre passam por elas. Há também outros que se queixam quando o acesso à experiência lhe é temporariamente negado.
O termo “existencial” dá a entender que a mística não é um fenômeno marginal que não tem significado especial para a vida humana. Pelo contrário, trata-se de algo que diz respeito incondicional à existência humana. A mística leva a um engajamento existencial.  Podemos ter na nossa vida habilidade para determinadas atividades, adquirida por treinamento ou estudo; conhecimento místico, porém, atinge o ser humano todo. Isto vale também quando em casos concretos de experiência mística dominam determinadas mediações: visões, audições, experiências afetivas ou intelectuais.  O que vale para todas essas várias acentuações  da experiência mística é que elas apontam para a interiorização do que é experimentado. O místico é atingido no fundo do íntimo do seu ser.
Mas o que é experimentado? Fala-se do transcendente. O que significa o transcendente? É uma realidade com  que nos confrontamos, mesmo se o sabemos no nosso interior. Permanecendo numa ideia geral de mística,  esse transcendente pode ser entendido como pessoal ou apessoal. Para o cristão trata-se do Deus uno e trino que nessa interiorização existencial extraordinária se dá a perceber em comunhão .
Considerando tudo isso com os olhos da fé cristã podemos dizer que o elemento fundamental desse acontecer extraordinário é a graça divina. A interiorização mística é um dom da graça que vem do Pai pelo Filho no Espírito Santo.  Esse dom é imerecido e indisponível. Mesmo os atos que o preparam dependem da graça de Deus. O que significa que não é possível provocar a experiência mística por forças próprias através de determinadas práticas. Nem podemos possuí-la como uma qualidade nossa ou bem nosso. A interiorização mística só é possível através da ajuda de Deus. Desde o início até a realização Deus acompanha cada passo.
Os atos da fé, da esperança e caridade atingem a existência no ponto mais profundo. É neles que a interiorização existencial tem as suas raízes e para eles é orientada, é neles que é realizada. As palavras de Jesus, citadas no evangelho   de João nos abrem um horizonte nesse sentido: “”Se alguém me ama, guardará minha palavra e meu Pai o amará e a ele viremos e nele estabeleceremos morada” (Jo 14, 23). É nisto que consiste a glória de que Jesus fala dirigindo-se ao Pai: “Eu lhes dei a glória que tu me deste para que sejam um, como nós somos um: Eu neles e tu em mim, para que sejam perfeitos  na unidade e para que o mundo reconheça que me enviaste e os amaste como amaste a mim” (Jo 17, 22-23).
Na fé cristã não se trata de uma transcendência abstrata mas do Deus trino-e-um transcendente. Ele transcende nosso pensar e querer, nossas experiências e nossos desejos, ele transcendente todas as nossas declarações, ele transcende o mundo todo. Por isto pode ser ao mesmo tempo imanente. Ele que criou tudo, vive e opera em tudo. A presença dele em tudo um panteísta nem pode imaginar. De outra parte a ‘divindade’ como natureza nos é tão estranha e distante que um agnóstico de jeito algum pode imaginar pelo fato de que ele não conhece o que há de cognoscível em Deus. Considerando esse mistério chegamos à conclusão de que a oração é mais realista do que uma teorização. Faz dar sentido à oração de Al-Halladsch, um místico islâmico:
Quando me dirijo para o alto
Tu estás mais alto que aí
Quando me dirijo para baixo,
Tu  estás aqui acima de  tudo.
Tu és quem dá lugar a todos,
Mas Tu não és o lugar deles.
Tu és em tudo o todo,
Mas não perecível como nós.

II. O que distingue dogma de mística. Dá a impressão que são dois mundos totalmente distintos. Há quem acrescenta: não só distintos mas também opostos. E mesmo se há uma espécie de relação amigável, chegam talvez a uma trégua em que cada um se obriga a respeitar a realidade de cada um.
O dogma está na perspectiva da proclamação, a mística na perspectiva da experiência. O dogma se manifesta na palavra, a mística vai além da palavra. Amor cria e faz crescer a comunidade, mas o dogma faz a comunidade da fé. O dogma supõe o testemunho comum. Suas definições  marcam  fronteiras para salvaguardar a comunidade e em vista do testemunho comum que permanece uma exigência sempre renovada. Na mística a prioridade é dada ao indivíduo agraciado. Muitos são convictos que a interiorização existencial extraordinária não é transferível.
Teologicamente falando trata-se de uma forma de revelação privada. Esta palavra não significa uma  desvalorização; trata-se de uma informação de um acontecer que diz respeito a pessoas particulares.  Para estas pessoas a revelação particular pode trazer deveres; para outras não, mesmo se é aconselhado de levar  a sério o testemunho da revelação recebida. Seus argumentos são os seguintes: ‘novas situações exigem novas ações da Igreja de acordo com o mesmo e permanente Evangelho. Isto precisa de um discernimento que não pode ser deduzido somente  deste Evangelho como elemento objetivo. O impulso carismático para o reto discernimento pertence como função à revelação privada, seja  essa função apresentada como explícita ou não’.  No entanto o dogma não se apoia em experiências místicas e revelações privadas por uteis que possam ser.O dogma está a serviço de toda verdade revelada que está em jogo e que tem caráter obrigatório. No caso de um discernimento a fazer, trata-se mais de uma prioridade que de  uma exclusividade. Isto mostra que dogma e mística, com toda a distinção que existe entre ambos, têm muito em comum.

III.  Dogma e mística têm a ver com dados no sentido profundo da palavra. Ambos vivem daquilo que recebem. O dogma não é um pensamento livremente   formado através de determinados conceitos. Não é  o dado de uma maneira de pensar que partindo de capacidades humanas é oferecido  numa sistemática determinada que qualquer um em qualquer tempo pode reelaborar. O conteúdo íntimo do dogma é o indecifrável e inconjugável agir de Deus. A mística por  sua vez aponta para essa marca de gratuidade. A mística não adquire por força própria seus conhecimentos , por mais que certos métodos lhe possam oferecer uma ajuda. O místico recebe o que ele mesmo não pode produzir.  Ele é persuadido que ele não tem a ver com os frutos do seu querer e pensar, mas com dons que ultrapassam seu querer e seu pensar e ao mesmo tempo lhe exigem. Origem de todos os dons é a gratuidade absoluta, o mistério divino. Se se entende o místico como o mystikõs, como alguém que está ligado aos mistérios, então pode-se dizer analogicamente em relação ao dogma: Também este tem a sua origem no mysterium de Deus; o mesmo deve ser dito em relação a cada um dos mistérios que nos foram revelados. A  interpretação dele pode ser vista como exegese mistagógica.
Ambos, dogma e mística só atingem o mistério de maneira incompleta; ambos não estão em condições de atingi-lo totalmente. Mesmo o fragmento captado só é atingido de maneira limitada.  “Trazemos, porém, este tesouro em vasos de argila, para que esse incomparável poder seja de Deus e não de nós” (2 Cor 4, 7). A explicação do dogma é ameaçada por um dogmatismo exagerado, como a mística por um subjetivismo absolutista. A limitação do dogma e da mística abre frequentemente a porta para erros nas tentativas de interpretação. Neste sentido devemos manter  não só a sua aceitação obrigatória mas também saber que os dogmas são fórmulas abertas, fórmulas que abrem para um mistério ilimitado.  Não que sejam falsos, mas precisamente enquanto elas são verdadeiras elas apontam para além de si mesmas. Quanto à mística para ser verdadeira elas se abre para outros testemunhos, especialmente para o primeiro e último Mistério de tudo que é. Uma verdadeira experiência mística abre-se sempre de braços estendidos para o Mistério-Fonte. “Deus é amor” (1 Jo 4,8.16). Ambos, dogma e mística o interpretam, cada um na sua maneira característica.

IV. O que dogma e mística podem significar reciprocamente.
Não faltam testemunhas que podem responder  afirmando, pelo menos na prática, a significação que o dogma tem para a mística e vice-versa. A lista dessas testemunhas, mestres na doutrina e na vida espiritual,  é longa. Nós os encontramos ao longo da história da Igreja. O tema volta cada vez nos seus escritos. Basta citar alguns: Basílio, Atanásio, Gregório de Nissa, Agostinho, Pseudo-Dionísio Areopagita, Tomás de Aquino, Boaventura, Mestre Eckhart,, Johannes Ruusbroec, João da Cruz, Inácio de Loyola, Francisco de Sales, e não deixemos de citar para a nossa época Karl Rahner, Hans Urs von Balthasar e sua dirigida Adriana Von Speyr, Tito Brandsma, Chiara Lubich.
São testemunhas de doutrina e de vivência.
Todos sabemos que lendo os textos de conhecidos ou desconhecidos que têm sua hermenêutica  que nós procuramos integrar na nossa maneira de entender as coisas. Assim podemos interpretar o que nos é apresentado no terreno da mística a partir do dogma e o diferente no campo dogmático a partir da mística.
O ponto de partida é a convicção de que afirmações dogmáticas e místicas necessitam de uma interpretação. Quem se ocupa dos dogmas sabe que parcialmente foram formulados há muitos séculos. O que pede que sejam explicados para os nossos contemporâneos. Vale também para experiências místicas que nem sempre facilmente vão ser entendidas. Muitas vezes nem sempre todos entendem o que experimentam porque ultrapassa as possibilidades que têm para entender e para expressar. Neste caso o dogma pode ajudar para esclarecer os fenômenos místicos a partir de sua origem e de sua conexão íntima. Aqui é bom citar o decreto sobre o Ecumenismo do Vaticano II (n. 11): “O modo e o método de exprimir a fé católica não devem, de forma nenhuma. transformar-se em obstáculo para o diálogo com os irmãos.[Deve-se evitar o falso irenismo] Ao mesmo tempo a fé católica deve ser explicada mais profunda e corretamente, de tal modo e com tais termos que possa de fato ser compreendida também pelos irmãos separados....Comparando as doutrinas lembrem-se que existe uma ordem ou “hierarquia” de verdades na doutrina católica, já que o nexo delas com o fundamento da fé cristã é diverso. Assim se abrirá o caminho pelo qual, mediante esta fraterna emulação, todos se sintam incitados a um conhecimento mais profundo e manifestação mais clara das investigáveis riquezas de Cristo” .
A ação de Deus não tira o véu do mistério e o que estava escondido antes, ela não apresenta agora mais ao nosso alcance. Deus não desfaz o mistério, ele o oferece como tal ao nosso olhar. O Deus que se revela não dá a solução de um enigma, ele se dá a conhecer a si mesmo, ele se dá a si mesmo. Aquilo que se reconhece está naquele que reconhece,  não do jeito daquilo que é reconhecido, mas  do jeito de quem reconhece. A alma que têm uma experiência mística da presença de Deus, capta essa presença não do jeito que Deus é, mas do jeito humano, na sua medida, de acordo com a  condição do seu estado de  alma. É o que podemos ver no sentido místico presente nos salmos, tanto da parte de quem  é o autor dos salmos como da parte de quem os lê ou recita. A experiência mística não ultrapassa o alcance da fé, mas penetra mais profundamente nele. Não deixa o conteúdo da fé para lá  mas aponta para o que ele tem de mais profundo    promovendo um melhor conhecimento dele.  A experiência mística é algo existencial e por isso faz perceber que os dogmas não proclamam verdades abstratas mas fazem descobrir o  que o Senhor quer dizer e dar aos homens e fazem glorificar a Deus. Uma santa religiosa Ir.Maria Julitta Ritz aconselhou a um sacerdote atitude pastoral o seguinte: “Nosso objetivo é a glorificação em tudo. Tudo deve servir a ele. Para isto conduz a cruz. Por isso para frente com coragem! – Deus é presença!” Sempre é o “só Deus” da mística um impulso para valorizar o caráter doxológico dos dogmas e sua interpretação tão frequentemente  ignorados. A experiência mística  é um instrumento do Senhor para semear mais profundamente no campo do mundo a sua verdade e fazer produzir frutos mais abundantes.
Além de ser uma ajuda para poder entender a mística, é um incentivo para fortalecer a fé. O que é sempre favorece o campo dos dogmas.  Afinal ninguém pode abrir-se à proclamação do Evangelho que é necessário para alcançar a salvação sem a iluminação e inspiração do Espírito Santo que a todos dá a alegria para abrir-se à verdade e crer. Na autentica experiência mística essa ajuda do Espírito Santo que  é necessária em todo ato de fé, é dada num modo específico. O que torna a fé mais profunda e mais sólida. Tudo isso fortalece por sua vez o místico porque pode oferecer a ele uma autocompreensão realista que uma errada interpretação do acontecimento místico impede.  Extraordinárias  experiências existenciais do transcendente podem às vezes fazer perder o chão debaixo dos pés e por isto o contacto  com os próximos. Isto pode atingir os dons recebidos no seu núcleo e fazer perder os seus frutos. Essa ajuda é essencial quando faz perceber que tudo  é gratuito, que tudo é graça. O que faz reconhecer que o homem de si mesmo não é nada e não pode nada. Os dons místicos não mudam a situação fundamental do homem no sentido que o agraciado por assim dizer se afasta do seu nada e se apoia cada vez mais na sua própria força. Afinal, a experiência mística faz excluir uma coisa: que eu considere a minha existência como uma coisa óbvia, devida, necessária. O místico no seu íntimo vem compenetrado pela consciência que nada daquilo que eu sou e que me vem doado me é devido. (H.U.von Balthasar). Isto já vale quando no plano natural alguém chega à consciência de que no princípio da sua existência há uma iniciativa, um Alguém que me deu a mim mesmo. Quanto mais amplo deve acontecer numa experiência mística.
É importante que se entendamos bem a reciprocidade entre dogma e mística.
O que impede que nos contentamos com conclusões teoréticas que certamente não nos despertam para orando agradecer a Deus o dom recebido. Basta deixar-se inspirar pela carta aos efésios  em que Paulo escreve que “fomos feitos a herança de Cristo a fim de servirmos para o seu louvor e glória” (Ef 1,12). O que pode inspirar-nos a oração que Paulo faz na mesma carta aos efésios:
“Por essa razão dobro os joelhos diante do Pai de que toma o nome toda a família no céu e na terra, para pedir-lhe que conceda, segundo a riqueza da sua glória, que vós sejais fortalecidos em poder pelo Espírito Santo no homem interior, que Cristo habite pela fé em vossos corações e que sejais arraigados e fundados no amor. Assim tereis condições para compreender com todos os santos qual é a largura e o comprimento e a altura e a profundidade, e conhecer o amor de Cristo que excede todo o conhecimento, para que sejais plenificados com toda a plenitude de Deus” (Ef 3, 14-19).
É uma oração que é um exemplo concreto que dogma e mística pertencem a esta família cristã de que Paulo fala. “Àquele, cujo poder agindo em nós, é capaz de fazer muito além, infinitamente além de tudo o que nós podemos pedir ou conceber, a ele seja a glória na Igreja e em Cristo Jesus, por todas as gerações dos séculos dos séculos! Amém.

* Dom Frei Vital Wilderink, O Carm, foi vítima de um acidente de automóvel quando retornava para o Eremitério, “Fonte de Elias”, no alto do Rio das Pedras, nas montanhas de Lídice, distrito do município de Rio Claro, no estado do Rio de Janeiro. O acidente ocorreu no dia 11 de junho de 2014. O sepultamento foi na cidade de Itaguaí/RJ, no dia 12, na Catedral de São Francisco Xavier, Diocese esta onde ele foi o primeiro Bispo.

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