Frei Cláudio van Balen, O. Carm. Convento do Carmo, Belo
Horizonte-MG.
Terrível foi o sofrimento, antes, durante e depois dessa
“caça às bruxas”. De depoimentos de sobreviventes,constou a experiência do
estranho consolo lembrado nas palavras de Jeremias: “Assim como visitei esse povo com tão imensa calamidade, também sobre
ele estenderei todo o bem que lhe reservo”. (Jer.32,42) Animados por uma fé
milenar, muitos puderam viver o que sente alguém que, confiante no futuro,
lavra seu testamento, sereno e de olhos abertos. Privados de tudo e até do
último restinho a que se apegavam, puderam sentir-se liberados de toda
preocupação para enfrentar a noite da vida. Se, na dura realidade, não havia
voz que se pronunciasse, sempre havia, em dimensão de fé, um abraço amigo que
por eles esperava. Até no limiar da morte, existia a possibilidade de
enxergar um rosto a emitir um sorriso. A
lava, jogada pela montanha em erupção, contém e burila cristais de variado e
riquíssimo valor.
Na vida de sofrimento extremo, há pontos de esmagadora
depressão, mas esses abrem também espaço para momentos de elevado enlevo, em
que sempre há quem, agarrado ao divino, permita que a realidade solte um milagre. Em meio ao caos, banhado por
lágrimas de perda e dor, surgiam anjos de guarda que criavam, misteriosamente,
condições de vida perpassada por tênues fios de esperança. Se despedidas faziam
o coração sangrar, havia encontros que fragilmente anunciavam o sentido do
todo, malgrado tantos fragmentos a espelhar o absurdo de particularidades. Mas,
em tais circunstâncias, Deus não existe de graça; ele é gerado pela correnteza
da tradição, da qual se bebe; ele não é acolhido na solidão de indivíduos
amargurados, mas na pertença a todo um povo que nele aposta, assim como o
pulmão se abre ao ar. Deus pode aflorar melhor no coração daqueles que viram
seu rosto na face sofrida de irmãos.
Os que se relacionavam com Deus, o que sintetiza o que há
de mais nobre em si mesmos, conquistavam certa liberdade na mais cruel
subjugação e superavam a morte na maior tragicidade; na descontinuidade, teciam
o futuro pelo fio do passado que os envolvia com a força da compaixão, a ponto
de conseguirem dançar sem pernas. Havia também os que, sem prática religiosa,
eram confrontados com Deus que, mergulhado no silêncio, parecia não lhes
estender a mão, manchada por inútil
onipotência. Antes tivessem de carregar sozinhos a cruz, pois a suposta
presença de um poder insensível machucava mais que tudo. Esses encontravam
defesa em uma artificial indiferença, como arma cruel que os defendia, até
mesmo frente à morte de parentes próximos. Porém, uma pergunta, com sentimento
de culpa, passou a persegui-los: por que sobreviveram e outros não? Também aqui
haveria uma injustiça em ação?
O que, em relação a Deus e aos outros, irritou um bom
número entre os sobreviventes foi a falta de ação, a omissão, a indiferença.
Essa parece a crueldade máxima revestida de normalidade. “Não tenho nada a
ver”; “ah, deixe para lá”; “eu não sabia de nada, nem desconfiava”, “só fiz o
que me ordenavam”. Essa ausência de cidadania se mostrou berço da mais cruel
ignomínia que desfigura, séculos a fio, nossa pobre humanidade. É preciso não
se acomodar, elevar a voz, reagir contra
tudo o que ameaça a vida e desumaniza a convivência. Só esta solidariedade
encoraja os humilhados para não deixar de lutar por seus direitos, sua
dignidade. A percepção da ausência de Deus, na vida dos sobreviventes, tornou sua
experiência mais amarga. Em sua tristeza, ficou mais difícil localizar sinais
de solidariedade. E a pergunta se faz qual porta fechada: “Por que eu e outros
não?” Esta pergunta os acompanhou em forma de tortura. É como se segurassem
Deus pelo manto, a fim de que ele lhes respondesse. Seu silêncio os fez
inconformados até o fim. Será que também, através dessa atitude, se aproximou
mais um pouco o tempo messiânico da paz?
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