VOCAÇÃO À SANTIDADE
*Dom Frei Vital Wilderink, O. Carm. In Memoriam.
Recentemente
recebi carta de uma pessoa amiga. Fiquei matutando sobre uma frase que nela
estava escrita: “Descobri que eu não tenho vocação para ser santo”. Se tivesse
dito: “Sinto que não tenho vocação para o ministério sacerdotal ou para a vida
religiosa”, eu até poderia concordar porque se trata de vocações especiais a
serviço da santidade da Igreja. Mas a vocação à santidade é universal, como o
Concílio Vaticano II nos ensina com muita insistência, dedicando um capítulo
inteiro a essa temática no documento sobre a Igreja (Lumen gentium). Além
disso, parece que o nosso amigo tem uma idéia, não digo completamente errada,
mas pelo menos insuficiente, do que a vem a ser santidade. Aliás, é uma idéia
bastante difundida entre os cristãos que vêem a santidade como conquista nossa,
fruto extraordinário de esforços humanos, até heróicos, impossíveis para a maioria
dos cristãos. É verdade que o exercício heróico das virtudes, é sinal de
santidade e por isso é um ponto obrigatório nos processos de beatificação e
canonização que a Igreja exige para declarar que uma pessoa cristã já falecida
pode ser considerada e invocada como santa.
É importante que a Igreja nos
apresente oficialmente modelos de santidade de várias origens, raças, culturas,
estados de vida e contextos históricos para conscientizar-nos da nossa própria
vocação à santidade. Neste sentido santa Teresinha se manifesta uma mestra. No
seu terceiro manuscrito autobiográfico, a jovem carmelita escreve que sempre
desejou ser santa, mas que, comparando-se com os grandes santos, constatou que
lhe era impossível chegar a tais alturas. Mas não desanimou, dizendo a si
mesma: “Deus não poderia inspirar desejos irrealizáveis, portanto posso, apesar
da minha pequenez, aspirar à santidade”. Daí, lembrando-se do elevador
elétrico, invenção nova na época dela, Teresinha faz uma comparação: “Eu também
quisera encontrar um elevador para me elevar até Jesus, pois sou demasiado
pequena para subir a íngreme escada da perfeição”. Na Bíblia (Is 66,12) ela
encontra uma passagem que justifica a comparação: Sereis levados ao colo, sobre
os joelhos sereis acariciados. Assim ela chega a formar a sua maneira de ser
santa: “O elevador que deve me elevar até o céu, são vossos braços, ó Jesus!
Para isso, eu não preciso crescer, pelo contrário, preciso que eu fique
pequena, que eu me torne pequena cada vez mais”. A linguagem da Teresinha, a
gosto do ambiente religioso da sua época, talvez não agrade à nossa mentalidade
moderna, mas não deixa de colocar o segredo da sua pequena via numa perspectiva
teológica muito sólida e profunda: Deus mesmo é a fonte da nossa vocação à
santidade.
Santidade
não é mérito, mas é dom.
Em última
análise, só Deus é santo. É uma afirmação paradoxal para quem quer refletir
sobre a nossa vocação à santidade. Mas é isto mesmo que a liturgia da missa na
aclamação ao final do prefácio insiste em dizer: Santo, Santo, Santo, Deus do
universo! Como dizer uma palavra sensata sobre a santidade de Deus, se Ele
“habita em luz inacessível” como reza o prefácio da oração eucarística IV?
Todos os nossos conceitos e categorias para definir uma realidade são humanos,
forjados pela nossa inteligência a partir das nossas experiências sempre
fragmentadas no tempo e no espaço. O conhecimento adquirido pela razão pode ser
profundo e abrangente, mas nunca é exaustivo, não consegue penetrar até o fundo
daquilo que existe e é. Como criaturas estamos sempre em caminho, inclusive na
procura e no crescimento da nossa identidade mais profunda. Balbuciando uma
possível descrição da santidade de Deus, podemos dizer que Deus é santo porque,
em todo o seu ser e fazer, é perfeitamente idêntico a si mesmo, à sua
majestade, à sua justiça e à sua bondade.
Se não temos
acesso a Deus e à santidade dele, como podemos nos dirigir a Ele chamando-o de
Pai que estais no céu? Subir até a sua
glória nas alturas, nem pensar! E como, Ele mesmo viria até nós sem descer? Não
há nenhuma maneira de representar-se um relacionamento entre Deus e o ser
humano que seja tão paradoxal e fora do alcance da nossa razão, que a
Encarnação. No entanto, também não há maneira mais concreta de pensar essa
descida impossível. Toda a liturgia do tempo de Natal fala deste admirável
intercâmbio entre o céu e a terra pelo qual o Criador da humanidade, feito
homem, nos doou sua própria divindade. Podemos agora falar de Deus-Trindade
falando da história, e falar da história falando da Trindade. São Paulo fala
disto na sua carta a Tito, cristão convertido do paganismo e companheiro dele:
“Quando se manifestou a bondade de Deus,
nosso Salvador, e o seu amor pela humanidade, ele nos salvou, não por causa dos
atos de justiça que tivéssemos praticado, mas por sua misericórdia, mediante o
banho da regeneração e renovação do Espírito Santo. Este Espírito, ele o
derramou copiosamente sobre nós por Jesus Cristo nosso Salvador” (Tt 3, 4-6).
Creio
na Igreja santa católica.
Deus convocou
por meio de seu Filho, feito carne e história humana, um novo povo. A santidade
da Igreja não tem sua origem na própria Igreja, mas nessa iniciativa de Deus:
“Cristo amou a Igreja e se entregou por ela, a fim de santificar pela palavra
aquela que ele purifica pelo banho da água” (Ef 5,25-26). Por isto, a santidade
da Igreja também não é fruto da santidade dos seus membros. A pergunta que se
faz aos catecúmenos: você quer ser batizado? equivale a: você quer fazer-se
santo? Isto faz entender melhor por que
Paulo ao escrever uma carta à comunidade dos cristãos em Corinto, se dirige
“aos que foram santificados no Cristo Jesus, chamados a ser santos” (1Cr 1,2).
A santidade da
Igreja não é um toque de espiritualidade ou um enfeite, mas é uma dinâmica que
lhe é intrínseca e qualificativa. Por isto a Igreja não seria ela mesma se não
fizesse da vocação universal à santidade uma urgência da sua pastoral
permanente. Na sua carta programática para o terceiro milênio, o Papa João
Paulo II escreve: “Em primeiro lugar, não hesito em dizer que o horizonte para
que deve tender todo o caminho pastoral é a santidade”.
Mas, também é
bom reconhecer que a história da Igreja, inserida na história dos homens, não é
sempre, sob muitos aspectos, uma narração gloriosa. Já no século III falava-se
da Igreja como um corpo misturado de santos e pecadores. São Cipriano, bispo e
mártir, dizia que para a Igreja a santidade é um dom, para seus membros uma
tarefa. Por isso a santidade doada por Cristo à sua Igreja, não é anulada,
embora não deixe de ser turvada pela infidelidade à vocação à santidade por
parte de seus membros.
Restaurar
todas as coisas em Cristo.
A santidade
encontra sua origem em Deus: “Só vós sois o santo” como diz hino de louvor no
início da missa dominical. Deus revelou a sua santidade no Filho que assumiu a
nossa humanidade. A nossa santidade consiste na nossa união com Cristo. É um
dom que nos foi feito através do batismo. Mas, o dom gera, por sua vez, uma
tarefa, um dever: “Esta é a vontade de Deus: a vossa santificação” (1Ts 4,3). A
união com Cristo em que consiste a santidade incide no nosso ser para
transformá-lo. É muito significativo o gesto do sacerdote na hora do ofertório
quando derrama um pouco de água no cálice com vinho enquanto reza baixinho:
“Pelo mistério desta água e deste vinho possamos participar da divindade do
vosso Filho, que se dignou assumir a nossa humanidade” A transformação do nosso
ser deve envolver também o nosso agir, isto é a santidade deve atingir a
dimensão moral da nossa vida. É o terreno em que atuam a nossa consciência e a
nossa liberdade. Neste campo da moral não podemos dizer-nos: a minha união com
Deus ou seja a minha vocação à santidade vai até certo ponto. É na vida de cada
dia que a santidade vai se apropriando, num dinamismo contínuo, do nosso agir
com todas as características pessoais de cada um. A união com Cristo não
acontece em pessoas que vivem numa redoma, num espaço esterilizado, mas em
pessoas reais inseridas em histórias concretas. Em última análise, na sua
vocação à santidade elas refletem o movimento mesmo da encarnação.
Isto nos faz
entender que a vocação à santidade é um chamado para “ajudar” Deus a restaurar
todas as coisas em Cristo. A obra da redenção não visa apenas cada pessoa como
indivíduo, “O que esperamos, de acordo com sua promessa, são novos céus e uma
nova terra”. (2 Pd 3,13). A santidade tem tudo a ver com isto. A vocação à
santidade não passa por cima dos problemas, múltiplos e intrincados, que
afligem o mundo de hoje, repercutindo fortemente na sociedade, nas famílias e
na vida de cada pessoa. São Paulo diria:
“Toda a criação espera ansiosamente a revelação dos filhos de Deus ... e não
somente ela, mas também nós, que temos as primícias do Espírito” (Rm 8,19.23).
Não existe nenhuma fórmula mágica para solucionar os problemas que envolvem a
humanidade.. Aliás, formulas mágicas (apresentadas também por certas
ideologias) jamais podem revelar ao ser humano quem ele é. Não será uma fórmula
a salvar-nos, mas Alguém que nos infunde uma certeza: Eu estarei convosco!
O
Carmelo e a vocação à santidade
A Ordem do Carmo nasceu de um grupo
de homens, provavelmente leigos na sua maioria, que queriam “viver em obséquio
de Jesus Cristo e servi-lo fielmente com coração puro e reta consciência”. É
assim que se encaixavam na Igreja cuja missão é refletir a luz de Cristo. Para
realizar esse imperativo da sua vocação, foram estabelecer-se na Terra Santa no
Monte Carmelo. Mas para viver em obséquio de Jesus Cristo era preciso que se tornassem
contemplativos do seu rosto, a fim de que a luz desse rosto pudesse refletir na
vida deles. A Regra de Alberto, patriarca de Jerusalém, ofereceu-lhes
orientações básicas para realizar o objetivo que tinham em mente. A Regra
apresenta uma pedagogia de santidade em
que a oração ocupa um lugar de destaque. Esta tradição carmelitana, como
carisma suscitado pelo Espírito Santo, é uma das expressões da santidade da
Igreja. Através dos tempos houve sempre pessoas e grupos de pessoas,
freqüentemente reunidas em forma de instituições, que descobriram na tradição
do Carmelo um espaço acolhedor para a sua aspiração a um encontro com Deus,
experimentando que a Graça dele nos precede para realizar a vocação à
santidade. Também o carmelita secular deve ser alguém que busca a Deus, pisando
com os dois pés neste mundo de criaturas humanas, vulneráveis e vulneradas, com
as quais vive e celebra, movido a partir de dentro pela Misericórdia com que
Deus o envolve.
Eremitério
Fonte de Elias, 13.01.2006.
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