*Dom Frei Vital Wilderink, O. Carm. In Memoriam.
A nova Ratio da Ordem que trata da
formação no Carmelo descrevendo-a como um processo de transformação, coloca a
contemplação no coração do carisma carmelitano. É precisamente o segredo da
viagem que continua, pois ninguém se põe em caminho se o objetivo final da
caminhada não estivesse de alguma maneira presente desde os primeiros passos.
A viagem é feita dentro da história em
que nos encontramos inseridos, no meio do povo. A própria viagem toma-se
missão. A dificuldade que muitos sentem é como ligar este cerne do carisma que
é a contemplação ou experiência de Deus com os desafios dessa história, no
nosso caso, com a realidade da América Latina. Continua persistente, também
entre nós, um certo dualismo. Mesmo fazendo uma leitura sócio-pastoral da
Igreja tropeçamos em fenômenos que fazem perceber a dificuldade de ligar fé e
vida, revelação e experiência humana, Esta dificuldade provém em grande parte
da imagem de Deus que não passa pelo filtro do nosso tempo. É preciso reconhecer
que muita coisa de positivo foi feito para desfazer essa mentalidade dualista,
principalmente através da pastoral bíblica (círculos bíblicos), pela teologia
de libertação, na prática das comunidades de base, para mostrar que não se pode
separar a revelação de Deus da caminhada do povo. O povo de Israel descobriu a
presença de Deus na libertação da escravidão do Egito. E os profetas sempre
insistem nessa manifestação de Yahweh quando o povo se torna infiel a essa
aliança estabelecida com Ele.
"Como nós carmelitas deveríamos
situar-nos frente à realidade que nos envolve na América Latina?" Faço
minha esta pergunta feita na carta de quem me convidou para participar deste
encontro. A resposta pode parecer simplista ou até um círculo vicioso: fazer
com que a questão de Deus permaneça central na nossa existência. Não se trata
em primeiro lugar da questão sobre um Ser supremo. A questão de Deus está
ligada à questão da realidade. Se a questão de Deus deixa de ser central, ela
será substituída pela problemática que nos envolve. A questão que se coloca é
do sentido da vida, do destino da terra, da necessidade ou não de um
fundamento. Perguntamos simplesmente qual é para cada um de nós a última
questão, ou por que esta questão não é colocada. Mas para poder admitir a
questão e refletir sobre ela, há necessidade de um silêncio interior, ou como
diz a Regra de uma pureza de coração. Sem esse preliminar nem se percebe de que
se trata. Já na Idade Média falava-se da necessidade do olho da fé É o órgão da
faculdade que nos dá acesso a uma
dimensão que transcende, sem negar o que captam o olho dos sentidos e o olho da
inteligência.
O discurso sobre Deus é radicalmente
diferente de outros discursos, pois Deus não é um objeto. Do contrário ele
seria um ídolo. Nenhum instrumento pode localizar Deus, nem a teologia
acadêmica. Pode haver especialistas em teologia ou mesmo, em espiritualidade e
mística. Não há, porém, cursos de especialização em Deus. A única mediação
somos nós mesmos. Santo Tomás já dizia: "A criatura é a mediação entre
Deus e o nada". Jamais podemos colocar Deus do nosso lado contra os
outros. Talvez um texto de São Bernardo possa ilustrar o que acabamos de
afirmar. Num sermão sobre o Cântico dos Cânticos ele confessa que recebeu com
certa freqüência a visita do Verbo, mas que não soube explicar como Ele entrou.
Por onde entrou? Ou será que Ele não
entrou, visto que não vem de fora? Pois Ele não é nenhuma das coisas que estão
fora de nós. Também é certo que não veio de dentro de mim, porque Ele é
bondade, e bem sei que em mim não existe nada de bom. Daí eu me elevei acima de
mim mesmo, mas o Verbo está mais além. Intrigado, sondei o que está abaixo de
mim, mas Ele está em maior profundidade. Olhando para fora de mim, concluí que
está além de tudo o que do lado de fora fica o mais longe de mim. E olhando
para dentro de mim, que a sua presença é mais interior que o meu íntimo. E
assim compreendi a verdade daquilo que eu tinha lido: "Nele vivemos, nos
movemos e somos" (At 17,28).
Não é possível falar de um Deus puramente
transcendente. Seria inclusive uma coisa supérflua, e mesmo, contraditória. Por
isso o deísmo, herança recebida do Iluminismo, não nega a existência de Deus
como Ser supremo, mas não admite a sua revelação porque é o próprio homem que
determina o lugar que Deus pode ocupar. Aos poucos Deus vai se tornando uma
hipótese inútil.
Mas Deus se revelou e, portanto, se
engajou na história dos homens. A revelação é essencialmente Deus que se doa a
nós. É o acontecer de um encontro. E neste encontro não atingimos algo de Deus,
um aspecto ou um segmento do seu mistério. O que Deus revela é o seu
"coração". Ao mesmo tempo, porém, Deus permanece sempre maior do que
o nosso coração, Ele será sempre um Deus escondido, Ele é mais do que a sua
revelação. Esse mais não deve ser pensado em termos quantitativos, mas
significa que Deus não se torna objeto da revelação. Deus permanece o sujeito
da revelação e como tal transcende a sua revelação, é anterior a ela. Deus é o
mistério maior que não se esgota na sua relação reveladora. Além disso, não
podemos aduzir nenhuma razão que explica ou justifica a revelação de Deus. É o
seu "desígnio secreto" (Ef 1,9). "Ele nos amou primeiro" (1
Jo 4,10). A gratuidade do amor de Deus deixaria de ser gratuidade se pudéssemos
explicá-la. Vale aqui a declaração de P. Evdokimov, teólogo ortodoxo: "Não
é o conhecimento que ilumina o mistério, é o Mistério que ilumina o
conhecimento".
Nenhuma linguagem humana é capaz de
descrever o mistério de Deus. O que faz entender porque a Regra fala em dois parágrafos
sobre o silêncio, não só como exercício ascético para chegar à pureza do
coração, mas também como matriz de toda palavra autêntica. O que faz pensar no
que escreveu santo Ireneu: "Do silêncio primordial surgiu o logos".
No silêncio se entrelaçam o tempo e a eternidade. Uma vida de silêncio não é a
mesma coisa que o Silêncio da Vida. O mesmo santo Ireneu escreve sobre essa
Vida: "A glória de Deus é a Vida do homem, e a vida do homem é conhecer a
Deus". A primeira parte deste texto foi muito citada em ambientes de
pastoral social: a glória de Deus é a vida do homem. Omitindo a segunda parte
surge de novo um certo dualismo entre fé e vida, entre revelação de Deus e
caminhada do povo. Neste caso a opção pelos pobres, aos excluídos corre o
perigo de ser reduzida a uma mera obrigação ética. "Tudo o que vocês
fizerem ao menor de meus irmãos, e a mim que o fizestes". É uma afirmação
ontológica da presença de Cristo no outro. Jesus manifesta nessa tomada de
posição parcial, a universalidade do desígnio de Deus. Cristo não é símbolo
para a realidade, mas da realidade. A evangélica opção preferencial se situa no
nível do que Raimon Panikkar chama de cristofania. Por Cristo, com ele e nele,
todas as dimensões da realidade se juntam: "Tudo foi feito por meio dele e
sem ele nada foi feito de tudo o que existe" (10 1,2). O universo inteiro
é chamado a participar da vida trinitária em Cristo e por Cristo. O que dá uma
perspectiva profunda ao "viver em obséquio de Jesus Cristo" da Regra.
. Volta aqui a contemplação como cerne do nosso carisma. Penso que sem esse
cerne não encontramos uma resposta à pergunta que me foi feita na carta
mencionada: "Como nós carmelitas deveríamos situar-nos frente à realidade
que nos envolve na América Latina?"
A questão de uma vida de silêncio e do
Silêncio da Vida pode parecer uma espécie de fuga do mundo, um viver no
abstrato. Neste sentido ouve-se freqüentemente a crítica: basta de belas
teorias, precisamos da prática. Cabe fazer aqui uma distinção entre o que é
urgente e o que é importante. O urgente com suas características de imediato
desvia a nossa atenção daquilo que é importante. Se o urgente não é importante
nós nos lançamos numa prática contraproducente. Se o importante não é urgente
mergulhamos numa teoria errônea: o importante será uma simples abstração. No
urgente destacamos o fator do tempo, no importante acentuamos o fator do peso.
A sabedoria conste em combinar o urgente com o importante. É a arte de fazer
calar as atividades da vida que não são a Vida. Não são as atividades que
produzem o ativismo, mas a falta de silêncio interior. Ativismo é como a
gravidez psicológica: seus efeitos visam o presente. A gravidez real se dá no
presente mas, não para o presente. Freqüentemente agimos a partir de atributos
que configuram a nossa personalidade: sou professor, diretora de um colégio,
empresário, operário, pároco, superior, etc. É assim que somos identificados, é
assim que os olhos dos outros se fixam em nós. Quem se identifica
exclusivamente a partir dessas atribuições, estas freqüentemente começam a
sufocar-lhe a identidade profunda. De certa maneira deveria haver um
despojamento do conjunto dessas atribuições para poder chegar ao Silêncio da
Vida. Enfocando o relacionamento que deve existir entre o prior e os irmãos,
Alberto ofereceu aos eremitas do Monte Carmelo uma pista para chegar a esse
despojamento.
Tu, irmão B. e seja quem for indicado
Prior depois de ti, tenhais sempre em mente e cumpram na prática o que o Senhor
diz no evangelho: Todo aquele que entre vós quiser tornar-se o maior, seja o
vosso servidor, e quem quiser ser o primeiro, seja o vosso empregado.
E vós, os demais irmãos, honrai
humildemente o vosso Prior, pensando, mais do que nele, em Cristo que o colocou
acima de vós, e que diz aos que estão à frente das igrejas: Quem vos ouve, é a
mim que ouve; quem vos despreza, é a mim que despreza, a fim de que não sejais
julgados como réus por menosprezo, mas possais merecer por obediência a
recompensa da vida eterna.
Seria empobrecer o conteúdo do texto
citado fosse reduzi-lo a uma exortação piedosa ou moral. Como em toda a Regra
do Carmelo, também aqui aparece a tensão que existe entre o urgente e o
importante, entre prática e teoria. Já no primeiro parágrafo da sua exposição,
em que fala da eleição do Prior, Alberto insiste na obediência que cada um dos
irmãos deve prometer ao que tiver sido eleito, e no empenho de cumprir na
verdade da prática o que prometeu. É claro que na prática podem surgir abusos e
comportamentos imaturos de ambas as partes. O que, porém, não invalida a
perspectiva cristocêntrica que a Regra abre também para o relacionamento mútuo
entre o Prior e os demais irmãos. O essencial é a obediência ao que ressoa além
do meu horizonte. Trata-se da "salvação no Senhor" que Alberto deseja
aos carmelitas já no início da sua carta. Salvação é "participar da
natureza divina"(2 Pd 1,4) por Cristo. É precisamente nisto que consiste o
mistério envolvido em silêncio desde sempre, mas agora revelado em Jesus (Rm
16,25) que veio para que todos tenham Vida, e a tenham plenamente (Jo 10,10).
Muitas vezes identificamos a Vida com as
atividades da vida e nos alienamos da nossa própria fonte estabelecendo uma
dicotomia entre o fundamental ou essencial e o relativo. O essencial não seria
essencial se não o descobríssemos a partir do relativo. O fato de vivermos no
tempo, a nossa vida se desenvolve ao longo de uma linha temporal. A própria
consciência que temos das coisas é marcada pelo tempo. Além disto, pelo fato de
vivermos no espaço a nossa consciência é atingida pelo parcial e pelo distante
que supõe o caráter material da realidade. Isto faz com que tudo em nós tenda
para algo mais que não se estenda pelo tempo e pelo espaço. Surgem assim as
interrogações fundamentais: de onde viemos e aonde vamos? São questões que
sempre permanecem abertas, pois nenhuma resposta nossa é capaz de exauri-Ias. O
desconhecido permanece e não se deixa manipular. E ao inverso, o relativo só
pode ser relativo porque existe uma relação a partir do essencial. Teresa de
Ávila o diz às suas filhas: Deus se faz encontrar também na cozinha no meio das
panelas. E outro escritor que compara o homem e a mulher casados às duas
margens de um mesmo rio. Não se trata, portanto de negar a importância das
atividades e ocupações da vida. Não podemos viver sem sentir, sem amar, sem comer,
sem trabalhar. Os parágrafos que a Regra dedica à refeição e ao trabalho, não
são apenas de natureza disciplinar: apontam para o essencial. Agora sem o
silêncio dos sentidos e do intelecto, o olho dá fé fica atrofiado e não
conseguimos nos abrir à Vida que é anterior às suas expressões nas nossas
diversas atividades. Lembro-me aqui de Tito Brandsma que sabia combinar o
urgente com o importante e abrir-se ao Silêncio da Vida. Era um homem que se
situava junto à Fonte. Sabia unificar-se por dentro e por isso estava
inteirinho na sua cela, no atendimento aos humildes, aos estudantes, aos
jornalistas, aos nazistas que o interrogavam e o maltratavam.
*Dom Frei Vital Wilderink, O Carm, foi
vítima de um acidente de automóvel quando retornava para o Eremitério, “Fonte
de Elias”, no alto do Rio das Pedras- nas montanhas de Lídice- distrito do
município de Rio Claro, Rio de Janeiro. O acidente ocorreu no dia 11 de junho
de 2014. O sepultamento foi na cidade de Itaguaí/RJ, no dia 12, na Catedral de
São Francisco Xavier, Diocese esta onde ele foi o primeiro Bispo.
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