Aos
86 anos, dom Pedro Casaldáliga segue enfrentando ameaças, o sistema político, o
agronegócio, os impérios. Em nome da esperança, se apresenta como soldado de
uma causa invencível. A reportagem é de
Sônia Oddi e Celso Maldos e publicada pela Rede Brasil Atual – RBA, 21-06-2014.
São
Félix do Araguaia, nordeste mato-grossense, 10 de maio de 2014. Numa pequena
capela, no fundo do quintal, uma oração inaugura o dia na casa do bispo emérito
de São Félix, dom Pedro Casaldáliga. A simplicidade da arquitetura ganha força
com o significado dos objetos ali dispostos.
No
altar, uma toalha com grafismos indígenas. Na parede, um relevo do mapa da
África Crucificada, um Cristo rústico no crucifixo, uma cerâmica de mãe que
protege seu filho com um braço e carrega um pote no outro. No chão de cimento,
bancos feitos de toras de madeira, que lembram aqueles de buriti, usados pelos
Xavante, em uma competição tradicional, em que duas equipes se enfrentam numa
corrida de revezamento, carregando as toras nos ombros, demonstração de
resistência e força, qualidades de um povo conhecido por suas habilidades
guerreiras. Cercada de plantas, a luz entra por todas as faces das tímidas e
incompletas paredes. Nesse ambiente orgânico, assim como tem sido a vida de
Pedro, os amigos se aninham para tomar parte da oração.
José
Maria Concepción, companheiro de Pedro de longa data, e recém-chegado da
Espanha, inicia a leitura:
“1795:
José Leonardo Chirino, mestiço, lidera a insurreição de Coro, Venezuela, com
índios e negros lutando pela liberdade dos escravos e a eliminação de impostos.
1985:
Irne García e Gustavo Chamorro, mártires da justiça. Guanabanal, Colômbia.
1986:
Josimo Morais Tavares, padre, assassinado pelo latifúndio. Imperatriz,
Maranhão, Brasil”
Os
martírios lembrados referem-se àquela data, 10 de maio. Inúmeros outros, centenas
deles, são e serão lembrados ao longo de todo o ano, de acordo com a Agenda
Latino-Americana. E continua: “2013: Ríos Montt, ex-ditador guatemalteco,
condenado a 80 anos de prisão por genocídio e crimes contra a humanidade. A
Comissão da Verdade calcula que ele cometeu 800 assassinatos por mês, nos 17
meses em que governou, depois de um golpe de Estado.”
O
jovem padre Felipe Cruz, agostiniano, de origem pernambucana, conduz um canto,
a reza do pai-nosso e a leitura de uma passagem da edição pastoral da Bíblia. O
encerramento se dá com a Oração da Irmandade dos Mártires da Caminhada
Latino-Americana, escrita por dom Pedro, onde na última linha pode-se ler
“Amém, Axé, Awere, Aleluia!”, em respeito à diversidade de crenças do povo
brasileiro.
Em
nome desse respeito, dom Pedro nunca celebrou uma missa na Terra Indígena
Marãiwatsédé, dos Xavante, comunidade que desde sempre contou com o seu apoio
na luta pela retomada da terra, de onde haviam sido deportados em 1968 e para
onde começaram a retornar em 2004. “Se o bispo está aqui celebrando a missa,
significa que nós estamos em pleno direito aqui. E, por orientação do Cimi
(Conselho Indigenista Missionário) e da igreja da Prelazia, ele, pessoalmente,
não fez nenhuma celebração na reserva”, testemunha José Maria.
Por
apoiar a luta quase cinquentenária dos povos originários daquela região de Mato
Grosso, Pedro foi ameaçado de morte algumas vezes. Na última, no final de 2012,
quando o processo de desintrusão (medida legal para efetivar a posse) dos
fazendeiros e posseiros da TI (terra indígena) Marãiwatsédé avançava e se
efetivava, decorrente da determinação da Justiça e do governo federal, ele teve
de se ausentar de São Félix.
Perseguições,
ameaças de morte e processos de expulsão do país têm marcado a trajetória de
Pedro, que chegou à longínqua região do Araguaia, como missionário claretiano,
em 1968, aos 40 anos. De origem catalã, ele nasceu em 1928 – e aos 8 anos teve
sua primeira experiência com o martírio, quando um irmão de sua mãe, padre, foi
assassinado quando a Espanha estava mergulhada em uma sangrenta guerra civil.
A
Prelazia de São Félix, uma divisão geográfica da Igreja Católica, foi criada em
1969 e abrange 15 municípios: Santa Cruz do Xingu, São José do Xingu, Vila
Rica, Santa Terezinha, Luciara, Novo Santo Antônio, Bom Jesus do Araguaia,
Confresa, Porto Alegre do Norte, Canabrava do Norte, Serra Nova Dourada, Alto
Boa Vista, Ribeirão Cascalheira, Querência e São Félix do Araguaia. Atualmente,
conta com uma população estimada em 135 mil habitantes, uma área aproximada de
102 mil quilômetros quadrados e 22 chamadas paróquias.
Pedro,
em meio às distâncias, encontrou um povo carente, sofrido, abandonado, à mercê
das ameaças dos grandes proprietários criadores de gado. Os pobres do
Evangelho, a quem havia escolhido dedicar a sua vida, estavam ali.
Em
1971, pelas mãos de dom Tomás Balduíno (que morreu em maio último, aos 91 anos)
foi sagrado bispo da prelazia. A partir de 2005, quando renunciou, recebeu o
título de bispo emérito.
Um
dos fundadores da Teologia da Libertação, o seu engajamento nas lutas dos
ribeirinhos, indígenas e camponeses incomodou os latifundiários e a ditadura.
Ainda hoje, incomoda os homens ricos e poderosos do Centro-Oeste brasileiro.
A
política dos incentivos fiscais, levada a cabo pelos militares, por meio da
Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), foi o berço do
agronegócio. E também dos conflitos advindos da expropriação da terra das
populações originárias, da exploração da mão de obra, do trabalho escravo e
toda sorte de violências, que indignou o missionário Pedro e o fez escolher do
lado de quem estaria.
“O
direito dos povos indígenas são interesses que contestam a política oficial”,
diz dom Pedro. “São culturas contrárias ao capitalismo neoliberal e às
exigências das empresas de mineração,
das madeireiras. Os povos indígenas reivindicam uma atuação respeitosa e
ecológica.”
Em
plena ditadura, nos anos 1970, fundou, junto com dom Tomás Balduíno, o Cimi e a
Comissão Pastoral da Terra (CPT), como resposta à grave situação dos
trabalhadores rurais, indígenas, posseiros e peões, sobretudo na Amazônia.
Ainda nesse período, em 1976, presenciou o assassinato do padre João Bosco
Burnier, baleado na nuca quando ambos defendiam duas mulheres que eram
torturadas em uma delegacia de Ribeirão Cascalheira (MT).
Pedro
faz seções de fisioterapia algumas vezes na semana. Aos 86 anos, e com o
Parkinson diagnosticado há cerca de 30, esse cuidado se faz necessário para
minimizar os avanços do mal que provoca atrofia muscular e tremores. Ele segue
disciplinadamente uma dieta alimentar, o que de certa maneira retardou, mas não
cessou, segundo seu médico, o avanço da doença.
A
disciplina se repete na leitura diária de e-mails, notícias, artigos,
acompanhado mais frequentemente por frei Paulo, agostiniano, que assim como dom Pedro tem sempre as portas
abertas para moradores da comunidade e viajantes. Durante a visita da Revista
do Brasil, por exemplo, há uma pausa para acolher Raimundo, homem alto, pardo,
magro que, aflito, emocionado, de joelhos, pedia a sua bênção.
A
casa é simples, de tijolos aparentes, sem acabamento nas paredes. Porém, tal
como a capela no fundo do quintal, é plena de significados e ícones que atestam
o compromisso com as causas humanas, de quem vive sob aquele teto.
Che, Jesus, Milton
No
quarto, na salinha, na cozinha, no alpendre dos fundos, no escritório, um
devaneio para os olhos e para o coração. Imagens de significados diversos: Che
Guevara, Jesus Cristo, Milton Nascimento, padre João Bosco Burnier, dom Hélder
Câmara, monsenhor Romero, Pablo Neruda. Textos de Martín Fierro, São Francisco
de Assis, Joan Maragall, Exodus. Pôsteres da Missa dos Quilombos, da Romaria
dos Mártires da Caminhada, da Semana da Terra Padre Josimo. Calendários da
Guerra de Canudos, de operários no 1º de Maio. E ainda fotos, pequenas
lembranças e artefatos populares, em meio a estatuetas de prêmios recebidos.
O
seu compromisso com as causas populares extrapola as fronteiras do país. Em
1994, dom Pedro apoiou a revolta de Chiapas, no México, afirmando que quando o
povo pega em armas deve ser respeitado e compreendido. Em 1999, publicou a
Declaração de Amor à Revolução Total de Cuba. Fala com convicção da importância
da unidade latino-americana, idealizada por Simon Bolívar (1783-1830) e
defendida pelo ex-presidente da Venezuela Hugo Chávez (1954-2013).
“Eu
dizia que o Brasil era pouco latino-americano, a língua comum dos povos
castelhanos fez com que o Brasil se sentisse um pouco à parte do resto”, diz
dom Pedro. “Por outro lado, o Brasil tem umas condições de hegemonia que
provocava nos outros povos uma atitude de desconfiança. Hugo Chávez fez uma
proposta otimista, militante, apelando para o espírito de Bolívar, com isso se
conseguiu vitórias interessantes, como impedir a vitória da Alca.”
Ele
recorda de um encontro com o ex-presidente brasileiro. “Quando Lula esteve na
assembleia da CNBB, estávamos nos despedindo, ele se aproximou de mim e me deu
um abraço. E eu falei, vou te pedir três coisas. Primeiro, que não nos deixe
cair na Alca, segunda, que não nos deixe cair na Alca, terceira, que não nos
deixe cair na Alca. Só te peço isso”, conta, em referência a Área de Livre
Comércio das Américas, ícone do neoliberalismo.
“E
realmente não entramos na Alca. Porque a América Latina tem de se salvar
continentalmente, temos histórias comuns, os mesmos povos, as mesmas lutas, os
mesmos carrascos. Os mesmos impérios sujeitando-nos, uma tradição de
oligarquias vendidas. Tem sido sempre assim. Começavam com o império, o que
submetia as oligarquias locais. Os exércitos e as forças de segurança garantiam
uma segurança interesseira. Melhorou, inclusive os Estados Unidos não têm hoje
o poder que tinham com respeito ao controle da América Latina. Somos menos
americanos, para ser mais americanos.”
Esperança e diálogo
É
preciso de todo jeito salvar a esperança, defende dom Pedro. “Insistir nas
lutas locais, frente à globalização. Se somar as reivindicações, sentir como
próprios, as lutas que estão acontecendo nos vários países da América Latina.
El Salvador, Uruguai, Bolívia, Equador... Claramente são países muito próximos
nas lutas sociais.”
Há
tempos dom Pedro Casaldáliga não concede entrevistas pela dificuldade que tem
encontrado em conciliar a agilidade do raciocínio com o tempo possível da
articulação das palavras. A ajuda de José Maria, seu amigo e conterrâneo, foi
fundamental para a compreensão das pausadas e esforçadas falas, enquanto
discorria sobre assuntos por ele escolhidos.
Otimista
com a atuação do papa Francisco, ressalta que “ele fez gestos emblemáticos,
muito significativos”. “A Teologia da Libertação se sentiu respaldada por ele.
Tem valorizado as Comunidades Eclesiais de Base, com o objetivo de uma Igreja
pobre para os pobres. Estimulou o diálogo com outras igrejas... Chama a atenção
nele o diálogo com o mundo muçulmano e com o mundo judeu, e agora essa visita a
Israel... Muito significativa. Desmantelou todo o aparato eclesiástico, seus
colaboradores tiveram de se adaptar.”
Ele
reconhece as limitações que o sistema político impõe à atuação do governo, que
segundo dom Pedro tem “um pecado original”: as alianças. “Quando há alianças,
há concessões e claudicações. Enquanto esses governos todos se submeterem ao
capitalismo neoliberal teremos essas falhas graves. A política será sempre uma
política condicionada. Tanto o Lula como a Dilma gostariam de governar a
serviço do povo mesmo, mas as alianças fizeram com que os governos populares
estivessem sempre condicionados”. Para ele, deve haver uma “atitude firme,
quase revolucionária”, em relação a temas como saúde, educação e comunicação.
Morto
em março do ano passado, o ex-presidente da Venezuela Hugo Chávez é lembrado
com determinação pelo religioso. “Ele tentou romper, rompeu o esquema. Por
isso, a direita faz questão de queimar, queimar mesmo, a Venezuela. Nos diários
e noticiários, a cada dia tem de aparecer alguma coisa negativa da Venezuela”.
Direitos indígenas x ruralistas
Ele
aponta a “atualidade” da causa indígena, e as ameaças que não cessam. “Nunca
como agora, se tem atacado tanto. Tem várias propostas para transformar a
política que seria oficial, pela Constituição de 1988, que reconhece o direito
dos povos indígenas de um modo muito explícito. Começam a surgir propostas para
que seja o Congresso quem defina as demarcações das terras indígenas, sendo
assim já sabemos como será a definição. A bancada ruralista é muito grande...”,
observa dom Pedro.
Por
outro lado, prossegue, nunca os povos indígenas se organizaram como agora. E o
país criou uma “espécie de consciência” em relação a essa causa. “Se querem
impedir que haja uma estrutura oficial com respeito à política indígena, tentam
suprimir organismos que estão a serviço
dessas causas. Isso afeta os povos indígenas e o mundo rural . Tudo isso é afetado
pelo agronegócio, o agronegócio é o que manda. E manda globalmente. Não é só um
problema do Mato Grosso, é um problema do país e do mundo todo. As
multinacionais condicionam e impõem.
“A
retomada da TI Marãiwatsédé é bonita e emblemática. Os Xavante foram constantes
em defender os seus direitos. Quando foram expulsos, deportados – esta é a
palavra, eles foram deportados –, seguiram vinculados a esse terreno, vinham
todos os anos recolher pati, uma palmeira para fazer os enfeites. E
reivindicavam sempre a terra onde estão enterrados nossos velhos. E foram
sempre presentes”, testemunha. “Aqui, nós sempre recordamos que essa terra é
dos Xavante, que esta terra é dos Xavante. Os moradores jovens, meninos, outro
dia diziam – nossos vovôs contam que essa terra é dos índios, nossos papais
contam que essa terra é dos índios.”
A
essa altura, dom Pedro lembra de “momentos difíceis” em que o Cimi se vê
obrigado a contestar certas ações do governo. “Quando se diz que não há vontade
política pelas causas indígenas, eu digo que há uma vontade contrária ao
direito dos povos indígenas, isso é sistemático. A Dilma, eu não sei se se
sentisse um pouco mais livre, respaldaria as causas indígenas. Alguns pensam
que ela pessoalmente não sintoniza com a causa indígena. Tem sido criticada
porque nunca recebeu os índios. Faz pouco foi o primeiro encontro com um grupo.
Todos
esses projetos de Belo Monte, as hidrelétricas. Se ela tem uma política
desenvolvimentista, ela tem de desrespeitar o que a causa indígena exige: em
primeiro lugar seria terra, território, demarcação, desintrusar os invasores.
Seria também estimular as culturas indígenas e quilombolas”, diz, sem
meio-termo. “Se você está a favor dos índios, você está contra o sistema. Não
adianta colocar panos quentes aí.”
Dom
Pedro defende a presença de sindicatos, mas critica o movimento. “Eles são a
voz dessas reivindicações todas dos povos indígenas, do mundo operário. Na
América Latina, estiveram muito bem os sindicatos, ultimamente vêm falhando
bastante. Foram cooptados. Quando se vê um líder sindicalista transformado em
deputado, senador, ele se despede”, afirma, vendo a Via Campesina como uma
alternativa, por meio de alianças de grupos populares em vários países.
“Daí
voltamos à memória de Hugo Chávez, que estimulou essa participação”, observa.
“De ordinário acontece que antes as únicas vozes que os operários tinham eram o
sindicato e o partido. Nos últimos anos, tanto o partido como o sindicato
perderam representatividade. Em parte foram substituídos por associações,
alguns movimentos. Mas continuam sendo válidos. Os sindicatos e partidos são
instrumentos conaturais a essas causas do povo operário, camponês.”
Para
fazer campanha eleitoral, todo candidato operário a deputado, senador, tem de
“claudicar” em algum aspecto, acredita dom Pedro. “Por isso, é melhor que não se candidate. Por
outra parte, não se pode negar completamente a função dos partidos e dos
sindicatos. Não é realista, ainda continuam sendo espaços que se deve
preencher.”
Lúcido,
Pedro conclui a conversa lembrando a frase de um soldado que lutava contra a
ditadura franquista na Guerra Civil Espanhola: “Somos soldados derrotados de
uma causa invencível”.
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br
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