Alípio de Sousa Filho
Não
há dúvida que o preconceito anti-homossexual é um dos mais fortes na nossa sociedade.
E também não há dúvida que a educação familiar é uma das que mais contribui
para a produção e a reprodução desse preconceito. Poderíamos dizer que boa
parte da educação familiar se orienta no sentido de “evitar a
homossexualidade”. Em geral, os pais temem que seus filhos sejam “gays” e suas
filhas sejam “lésbicas”, e assim, desde cedo, os pais e demais membros adultos
da família, consciente e/ou inconscientemente, adotam estratégias que visam
reforçar o padrão sexual instituído e legitimado, a heterossexualidade, espécie
de cuidado para evitar a “queda no homossexualismo”: estratégias que vão desde
as brincadeiras sobre “namorado(a)s” com crianças com menos de cinco anos a
cobranças de “casamentos” para jovens em idade inferior a vinte e cinco anos.
Ainda, nas famílias, os adultos são vigilantes quanto a “sinais” que indiquem
“homossexualismo” nas crianças.
Vigilância
que tem tornado crianças e jovens objetos de todo tipo de controle dos adultos,
casos até mesmo em que são encaminhados para psicólogos, psiquiatras, etc., com
a “esperança” de evitar um “problema” (uma “mancha”, uma “vergonha”) na
família.
Essa é a linguagem do preconceito. De fato,
essencialmente, o que temos aí, no temor da homossexualidade, é a manifestação
do preconceito na forma de uma de suas modulações visíveis ou invisíveis. O
princípio da educação que se orienta pela idéia de “evitar o homossexualismo na
família” traduz o mais amplo preconceito social existente na nossa sociedade: o
preconceito contra homossexuais e contra a homossexualidade. Vivendo a crença
segundo a qual a sexualidade humana é biológica, e, por conseguinte, deixando
de saber que a sexualidade humana é produto de construções culturais, sociais e
históricas, isto é, resultado de convenções humanas, as famílias tornam-se
nichos de circulação e reprodução dos
preconceitos
(e da desinformação) que envolvem a sexualidade.
Note-se que, dede muito cedo, no microcosmo
familiar, adultos cercam crianças e
adolescentes
de perguntas e gracejos a propósito de aspectos que concernem ao exercício
futuro da sexualidade como se se tratasse apenas de momentos de descontração e
em que a linguagem fosse puro canal de comunicação desinteressada, mas quando
se sabe que, através dessa mesma linguagem e das idéias que ela é capaz de
fazer circular, são difundidas as concepções, valores, normas, etc. que
conformam as convenções sociais instituídas e dominantes. Estamos aqui tratando
daquilo que a antropologia, a sociologia, a psicologia e a psicanálise chamam
de socialização, endoculturação, formação do sujeito humano. Tudo que se é como
humano se aprende da cultura, na cultura, pela cultura, com a cultura. Ainda,
toda cultura, constituída toda ela como uma Ordem Social, opera na perspectiva
de se reproduzir, de se perpetuar. Esta é a razão pela qual os padrões sociais
– incluindo-se aí também os padrões da sexualidade – são apresentados como
naturais, universais, eternos, imutáveis e até mesmo sagrados. A família,
agente dessa cultura, ao mesmo tempo em que é também seu produto, é instância
reprodutora dessa representação dos padrões sociais. Representação que tem
muita força junto a todos porque é capaz de esconder que os padrões são
criações humanas e como tais são convenções sociais, particulares, históricas,
transformáveis.
Podemos
crer que uma educação sem preconceitos poderá lidar com essa compreensão do
caráter convencional das instituições humanas e dentre elas a sexualidade.
Assim, notocante à sexualidade, uma educação sem preconceitos implicará uma
educação para a qual as convenções dos padrões sexuais de uma determinada
sociedade e época serão tratadas comotais, podendo ser questionadas, alteradas
e substituídas. Sem preconceitos, a educação pode relativizar a força dos
padrões e das convenções, ao mesmo tempo em que pode contribuir com o alívio do
sofrimento das pessoas pela crença de que estes mesmos padrões e convenções são
produtos intransformáveis, divinos, etc. No caso de homossexuais, sabemos que é
muito alto o custo psíquico da ruptura com os padrões sexuais dominantes
justamente pelo fato dessa ruptura ocorrer em primeiro lugar na família. A
ruptura com pais, irmãos, etc., ou mesmo a convivência harmônica, mas em que
nada se verbaliza a propósito da homossexualidade (vive-se tudo “em segredo”),
envolvendo a afetividade, os laços de parentesco, etc., tornam a família lugar
de tensões, conflitos e sofrimentos que somente uma educação sem preconceitos
poderá vir a superar.
Atualmente, pais e filhos são vítimas de uma
educação conservadora, orientada para a reprodução da Ordem Social, em que a
sexualidade é também orientada no sentido de não variar do estabelecido,
funcionando como metáfora do esforço global da Ordem no sentido dela própria
não variar. Pais e filhos sofrem sem saber pelo que estão sofrendo: vítimas de
uma Ordem que necessita de preconceitos para se perpetuar, brigam, se insultam,
se machucam, sofrem, adoecem, morrem pela sujeição a convenções que se fixam e
se legitimam, dentre outras formas, também pela via do preconceito. Pais e
filhos poderão ser felizes experimentando uma educação sem preconceitos: uma
educação que entenderá a sexualidade – e a homossexualidade como uma de suas
expressões – como uma construção em que cada um toma parte como sujeito ativo e
não como puro objeto de forças biológicas
predefinidas
ou objeto submetido a vontades divinas. É o ser humano que produz a si mesmo no
processo de sua constituição como humano, a sexuação humana é parte desse
processo.
Uma
educação sem preconceitos deverá saber compreender isso e, desse modo, terá as
condições de livrar a todos da idéia de padrões sexuais fixos, únicos,
invariáveis, sagrados, evitando assim sofrimentos inúteis, desesperos e a
solidão de pais e filhos tomados pela angústia de não poder “falar/contar”
sobre o que se é como homem ou como mulher em razão unicamente de preconceitos
sociais.
*Publicado em SOUSA FILHO, A. . Educação sem
preconceito: a família e a homossexualidade. Boca da Noite, Natal/RN, v. 3, p.
4 - 4, 30 dez. 2001.
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