Quando falamos aqui de ‘Terceira Ordem’
referimo-nos a pessoas que vivem o carisma carmelitano exatamente na sua
condição de leigo ou leiga. Globalmente podemos distinguir três fases
evolutivas. Antes de descrevê-las convém dizer que o assunto é um tanto
complexo, pelo fato de serem as datas às vezes confusas, imprecisas e
localmente situadas. Corremos, assim, o risco de introduzir generalizações que,
na realidade, se referem a fatos de um determinado tempo ou área geográfica
específica.
Já nos inícios da história carmelitana,
encontramos os chamados oblatos, leigos que, de uma ou outra forma, fazem parte
da família do Carmo. Em certos casos chegam a fazer uma verdadeira profissão
religiosa, ‘doando-se’ — se et sua (a si
mesmo com seus bens) — à Ordem, representada pelo seu legítimo superior. Em
tese podem ser tanto homens quanto mulheres, mas, na realidade, predominam
largamente as leigas. Normalmente vivem
em casas separadas e vestem um hábito semelhante a dos frades, daí a
denominação manteladas. Outros nomes dizem respeito a casos mais ou menos
idênticos: oblatas, conversas, beatas, pinzocheras, beguínas, terciárias. Todas
dependiam de um determinado convento e não formam grupos homogêneas.
Em maio de 1452, reuniu-se, na cidade de
Colônia, o Capítulo Provincial da Alemanha Inferior, sob a presidência do Geral
da Ordem, Frei João Soreth (1451-1471). Poucos meses antes, o Legado do Papa
para a Alemanha e regiões vizinhas, Nicolau Krebs ou Nicolau de Cusa
(1401-1564), apaixonado defensor da unidade da Igreja, exatamente numa época de
muitas divisões, decorrentes do Cisma Ocidental (1378-1417), decretara que
comunidades de mulheres consagradas, não dotadas de uma Regra aprovada pela
Santa Sé, deveriam obtê-la ou unir-se a alguma Ordem Religiosa já existente.
Caso não obedecessem seriam extintas!
Nesse contexto devemos situar o pedido
das beguinas de Geldre, na Diocese de Colônia, apresentado no mencionado
Capítulo Provincial. Na realidade, essas mulheres piedosas já mantinham
contatos com os Freis Carmelitas desde que chegaram à freguesia onde se
localizava a sua casa, em princípios do século XIV. Certo é que estavam sob a
direção dos Carmelitas a partir de 1360, sem que seguissem uma Regra
específica.
A solicitação das beguínas foi acolhida
favoravelmente pelo Prior geral (10-5-1452), que encarregou o superior do
convento de Geldre para efetuar a incorporação do grupo com a profissão
religiosa, a fim de que vivessem regulariter como verdadeiras Carmelitas.
Na realidade, o ato de Soreth precedeu a
Bula Cum Nulla (7-10-1452), de Nicolau V, com cinco meses! Numa carta às
ex-beguínas de Geldre (14-10-1453), agora ‘monjas carmelitas’, o Geral
ratificou sua decisão de maio do ano anterior, apoiando-se na Bula mencionada,
transcrevendo, inclusive, o próprio texto daquele documento pontifício.
Foi o mesmo Prior geral que, após ter
aceito as beguínas de Geldre, providenciou a incorporação de outras comunidades
de ‘mulheres devotas’, como as de Nieukerk (Holanda), Dinant (Bélgica) e,
provavelmente, ainda outras.
Nessa mesma época houve na Itália também
aproximações de algumas comunidades de
pinzocheras à Ordem do Carmo. O caso de Florença é típico e daria origem ao
célebre mosteiro de Santa Maria dos Anjos, onde viveu Santa Madalena de Pazzi
(1566-1607), dotada com extraordinárias experiências místicas.
Os estudiosos não estão concordes quanto
à origem da Bula Cum Nulla. A final de contas quem é que a pediu ao Papa? Há os
que defendem a tese que a iniciativa partiu das ‘agregadas’ italianas,
particularmente as de Florença. Muitas delas viviam nas suas próprias
residências ‘como se fossem carmelitas’! Por volta de 1450 surgiu em Florença à
ideia de acolher essas mulheres piedosas numa casa ‘de vida em comum’. O
projeto da construção desse convento ficou pronto em 1452. É nessas alturas que
teriam enviado a Roma uma representação para ‘garantir’ seus direitos como
religiosas, o que resultaria na Bula Cum Nulla.
A questão continua em aberto. Frei Vital
Wilderink, na sua tese de doutorado, aborda essa temática e chega às conclusões
que resumimos em seguida.
Deixando de lado aspetos mais
diretamente jurídicas e organizativas, é indiscutível que os conventos
femininos fundados por Soreth se distinguem notoriamente dos cenóbios
encontrados na Itália e na Espanha. Efetivamente, as fundações localizadas na
Alemanha, nos Países Baixos (Holanda e Bélgica de hoje) e na França,
constituíam uma unidade, formando uma verdadeira Família com uma mesma
orientação e idêntico programa de vida.
Sabemos que, desde que sua eleição como
Geral, João Soreth se empenhara na obra de reforma da sua Ordem, toda ela
centrada na ‘observância regular’. A criação de conventos femininos está nesta
mesma linha de ação. É bem possível que o caso das beguínas de Geldre ofereceu
a Soreth a oportunidade para ampliar sua
visão no sentido de dar início a um verdadeiro ‘ramo feminino’ da Ordem do
Carmo. É fato comprovado que o Geral colocou essas iniciativas sob sua direta
jurisdição ou as confiou a Carmelitas ‘já reformados’. Os mosteiros de ‘monjas
carmelitas’ tornaram-se logo centros de irradiação espiritual e laboratórios da
reforma desejada por Soreth. A vida em comum, o Ofício coral, a estrita
observância com a clausura rígida dão prova disso. Podemos até dizer que as
‘carmelitas de Soreth’ anteciparam em um século as reformas introduzidas pelo
Concílio de Trento (1545-1563) e suas aplicações concretas no pontificado de
São Pio V (1566-1572).
Frei João Soreth — afirma Dom Vital
Wilderink (23) — pode ser reconhecido como o ‘fundador’ das Carmelitas na
medida em que tenha sido o ‘reformador’ da Ordem do Carmo. O fato de sua obra
reformadora ter tido pouca penetração nas regiões ao sul dos Alpes d e dos
Pireneus, fez com que se dedicasse inteiramente às fundações nórdicas. Graças a
seu empenho e santa teimosia, o ramo feminino do Carmo — a ‘Segunda Ordem’ —
pode nascer e consolidar-se, pois foi ele que o concebeu, inspirou e organizou,
inclusive com o indispensável embasamento jurídico que, mais tarde, seria
adotado também em outras regiões antes avessas à sua reforma.
O Prior-geral Soreth gostava de dizer
que a primeira preocupação das monjas carmelitas é honrar fielmente a Mãe de
Deus, considerando-se como verdadeiras ‘Filhas de Nossa Senhora’ a quem têm por
Prioresa de seus mosteiros. Maria é vista como guia de perfeição mística e
modelo de pureza. Na vida espiritual é ela que conduz a monja ao seu divino
Filho e à própria Santíssima Trindade (ver os ensinamentos de Santa Maria
Madalena de Pazzi).
Enquanto lentamente se vai afirmando o
que constituirá a “Segunda Ordem” ou Sancti Moniales (monjas de estrita
clausura), as pinzocheras ‘de profissão solene’ continuaram a ser bastante
numerosas na Itália e na Espanha sem, no entanto, levarem uma vida comum.
Ocupam, de fato, o terceiro lugar na hierarquia da Ordem, após os religiosos e
as monjas. Por este motivo foram chamadas, em alguns lugares, de terciárias
mas, na realidade, eram ‘verdadeiras religiosas’, agregadas — pelos seus ‘votos
solenes’ — a um convento masculino ou mosteiro feminino da Ordem. Pio V,
querendo clarificar certas confusões reinantes, declarou que a Igreja doravante
negaria o ‘caráter solene’ aos votos de pinzocheras que não vivessem em
clausura. Acontece que, segundo as leis em vigor naquele tempo, só as
terciárias ‘continentes’, portanto com voto de virgindade — o que excluía
expressamente os laços matrimoniais — possuíam plenamente os privilégios da
Ordem terceira. As não-continentes (as casadas) foram relegadas a um plano inferior,
semelhante a das coirmãs da Ordem, ou seja aquelas que não tinham feita
profissão religiosa e, por isso, consideradas ‘seculares’, não obstante certos
compromissos espirituais as ligassem à Ordem. Essas últimas tornaram-se a
variante feminina dos confrades ‘de capa branca’ com regras próprias que, na
Espanha, ao que tudo indica, eram conhecidos também por “terceiros’.
Em suma, “quanto à origem da Ordem
Terceira, podemos aceitar como um fato histórico, que a Ordem Terceira do
Carmo. No seu sentido geral como é conhecida hoje, não existia antes de 1476.
Os Carmelitas, embora tivessem a direção espiritual de numerosos grupos de
pessoas desejosas de uma vida mais perfeita, não possuíam o direto de agregar
tais grupos à Ordem.
A Bula Cum Nulla, de 1452, conferiu
apenas a licença de unir à Ordem mulheres que vivessem em castidade. Não se
tratava, pois, de uma permissão de fundar Ordens Terceiras em geral, que
incluíssem homens e mulheres casados. Essa faculdade só veio na Bula Dum
Attenta (1476), quando a licença de agregação foi estendida a quaisquer grupos
de pessoas, casadas ou não, homens ou mulheres. Esta Bula significa
verdadeiramente o início da Ordem Terceira Carmelita, ao menos em teoria. Pois,
há em tudo isto a considerar uma circunstância particular: as outras Ordens
Terceiras foram confirmadas depois de já existirem. A Ordem Terceira do Carmo,
porém, teve a sua licença jurídica antes de ser organizada! Na prática, ela
continuou durante mais de cem anos restrita a mulheres com o voto expresso de castidade
perfeita.” (24)
Em fins do século XVI, constatamos na
Ordem a existência de quatro grupos distintos: os frades, as monjas, mulheres
continentes com voto explícito de castidade (impropriamente chamadas de
‘terceiras’), coirmãs e confrades da Ordem, a quem pode ser conferida, com
razão, a qualificação de ‘terceiros’. Além desses grupos havia, desde o século
XIV, um outro tipo de agregação: as ‘Confrarias da Madonna’. Algumas se limitam
a viver na sombra das igrejas dos Carmelitas, outras assumem o escapulário como
distintivo da Ordem, particularmente após as supostas visões de São Simão Stock
de que falaremos em seguida.
No decorrer do tempo esvaem-se
características específicas entre os vários grupos, gerando não poucas
confusões. O Prior-geral Teodoro Straccio (1632-1642) procurou resolver a
questão com uma dupla intervenção: agregou, em 1637, à Ordem terceira todos os
confrades e coirmãs com votos de obediência e de castidade ‘segundo o próprio
estado’, colocando, em 1540, todos os outros na Confraria do Escapulário.
Finalmente, no decurso do século XVIII,
surge uma nova modalidade de agregação: Irmãs Terceiras, reunidas em
verdadeiras Congregações de Terceiras Regulares de vida apostólica e
missionária. Estas famílias religiosas tiveram grande florescimento, unindo
formas específicas de serviço eclesial ao carisma e à espiritualidade do Carmo.
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