*Dom Frei Vital
Wilderink, o. carm
Ao
receber o convite para dar uma contribuição neste encontro, levei um susto.
Achava o tema vasto demais: iluminar a realidade da América Latina a partir da
tradição do Carmelo. Em primeiro lugar, porque dar uma visão de conjunto dessa
realidade, levando em consideração os seus múltiplos aspectos e dimensões,
pareceu-me uma tarefa muito difícil, senão impossível. Os instrumentos de
análise, por necessários e pertinentes que sejam, não conseguem abranger o todo
dessa realidade. Trata-se de um jogo de quebra-cabeça em que se tenta combinar
peças baralhadas para formar uma figura, mas sempre faltam ou sobram peças. É
que a evolução da realidade não tem uma lógica, principalmente nos tempos
atuais em que o processo da mundialização produz seus efeitos em toda parte. E
freqüentemente os frutos bons e os frutos imprestáveis chegam misturados no
mesmo transporte.
Mas
o que se espera da minha contribuição não será, penso eu, uma leitura crítica
da realidade. Os trabalhos feitos neste encontro na fase do ver, com a ajuda
competente de um assessor, poderão oferecer valiosos elementos para esclarecer
a situação em que nós, como carmelitas, devemos encontrar o nosso caminho. Esse
conhecimento é importante e indispensável para tomarmos consciência de que
"a viagem continua". Na vida, enquanto viagem e busca, há momentos em
que você encontra algo que abre perspectivas. São momentos em que se tem a
impressão de que tudo de repente se torna um pouco mais compreensível, momentos
em que se consegue combinar algumas peças do jogo de quebra-cabeça que
configuram já alguma parte da paisagem onde você quer inserir-se como
carmelita. Isto dá uma alegria, uma força de libertação, dá perspectivas à
vida. É que a partir do parcial você se liga com o total, do relativo você
passa para o essencial que é mais do que o resultado atingido pelo trabalho
feito até agora. É neste ponto que começa a contribuição que me foi pedido, e
que, em carta recebida, foi formulado da seguinte maneira: "Exponha simplesmente
o seu pensamento como carmelita que vive aqui na América Latina".
A
luz da tradição do Carmelo
Talvez
seja bom esclarecer um pouco a noção de tradição. Digo de propósito noção e
não conceito porque, a meu ver, o termo noção sugere mais uma abertura
para descobertas existenciais. Nesta perspectiva eu diria que "tradição é
uma certa qualidade de vida que, na livre escolha feita em base da situação
concreta, inspira a maneira na qual será organizado um dado perenemente
novo". O lema do último capítulo geral "A viagem continua" é
muito sugestivo para traduzir em que consiste a tradição do Carmelo. Tradição é
uma viagem. E quem não viaja acaba com a tradição. Não sei se sou um expoente
da tradição carmelitana. Sei que a recebi de outros, em primeiro lugar daqueles
cristãos leigos que peregrinaram para a Terra Santa, considerada patrimônio de
Jesus Cristo, e que se estabeleceram no Monte Carmelo. Como tantos outros eles
queriam "viver em obséquio de Jesus Cristo e servi-lo fielmente com
coração puro e consciência serena". Eles deviam ter na cabeça e no coração
os referenciais daquele movimento difuso dos "Pobres de Cristo" que,
já no século XII, foi nascendo, não sem conotações de protesto contra situações
políticas e sócio-econômicas. do contexto histórico daquela época. Alberto,
patriarca de Jerusalém, deu a eles uma sóbria fórmula de vida, um quadro de
referências para viver de acordo com a opção deles. Na mensagem final aos
irmãos e irmãs da Família Carmelitana, os participantes do Capítulo Geral de
setembro do ano passado afirmam que, refletindo sobre o momento importante da
história atual e repassando brevemente na memória o caminho que o Carmelo
percorreu no passado, perceberam a vitalidade da Regra ao longo da história
para inspirar, responder aos desafios, animar e fazer surgir novas formas de
vida. Para continuar a viagem é preciso saber de onde se vem. Quem não sabe de
onde vem, também não sabe para onde ir.
Se
a tradição é uma viagem que continua, é evidente que o "filtro do
tempo" desempenha um papel importante na sua vivência interpretativa.
Seria interessante aprofundar as reformas pelas quais a Ordem passou ao longo
dos séculos, enquanto re-interpretações do significado fundamental do Carmelo.
Se a cada um de nós se fizesse a pergunta: o que é fundamental, o que é
essencial ao Carmelo, provavelmente iríamos concordar com muitas respostas.
Mas, ao mesmo tempo, cada resposta nos deixaria insatisfeitos. Por sinal, essa
insatisfação revela o fundamental do Carmelo. Penso que Alberto apresenta essa
insatisfação como conclusão da sua carta aos eremitas do Monte Carmelo.
É isso que, com brevidade, vos escrevemos, determinando a forma de
conduta segundo a qual devereis viver. Se alguém fizer mais, o Senhor mesmo lhe
retribuirá quando voltar. Use, porém, de discernimento que é moderador das
virtudes.
Pergunto
o que os primeiros carmelitas podiam fazer mais, além do que Alberto escreveu
na forma vitae? A própria Regra já aponta em praticamente todos os seus
parágrafos para um mais na conduta dos carmelitas. Ela não predefine
limites para a caminhada. Apesar de ter um valor jurídico, a Regra não é, no
sentido estrito, um documento jurídico. Na conclusão a carta de Alberto faz uma
alusão à parábola do Bom Samaritano, modificando-a em alguns pontos. O
evangelho de Lucas o Bom Samaritano dá dois denários ao dono da hospedaria, e
diz: "Cuida do homem ferido, e o que gastares a mais, eu, quando voltar,
te pagarei" (Lc 1 0,35). O texto da Regra: "Se alguém fizer mais, o
Senhor mesmo lhe retribuirá quando voltar". O conteúdo pragmático de Lucas
(o que falta aos dois denários) é transformado em engajamento da pessoa. Se
alguém der mais, se der mais da sua pessoa, ou melhor, se alguém se entregar a
si mesmo, o Senhor mesmo lhe retribuirá quando voltar. Mas também isto já está
na Regra quando diz que deve viver em obséquio de Jesus Cristo e servi-lo de
coração puro e consciência serena. Afinal, trata-se de amar Deus e o próximo de
todo o seu coração, de todo o seu espírito e de todas as suas forças. É um
engajamento pessoal que não tem fim. Ou seja, é um convite para entrar num
espaço que não pode ser descrito, que não pode ser objeto de uma fórmula de
vida, de uma Regra. O que falta aos dois denários pode ser contabilizado, mas a
fé como confiança é um pulo no desconhecido. A fé-confiança constrói sobre a
fidelidade do Outro, fidelidade que eu não posso modelar (noite da fé). E o
amor é um deserto onde não há caminho já traçado. Um verdadeiro dom é por sua
natureza indefinido e escondido, pois a mão direita não sabe mais o que faz a
mão esquerda. Recentemente, durante um retiro para carmelitas de clausura,
emprestaram-me uma bíblia da biblioteca do mosteiro. Nela encontrei um
papelzinho em que uma pessoa anônima (talvez uma irmã já falecida) tinha
escrito: "Eu gostaria de amar como Deus se ama a si mesmo". E neste
caminho vai também a esperança, aquela menina pequena que anda de mãos dadas
com a fé e o amor (Charles Péguy), enquanto seus cabelos são tocados pelo vento
que sopra do horizonte desconhecido. A parábola com que Kees Waaijman comenta o
parágrafo final da Regra, merece ser transcrita:
Numa tarde já avançada, enquanto os hóspedes
conversavam do lado de fora, alguém se aproximou vindo do deserto. No seu
animal ele trazia um homem gravemente ferido. Ele foi mal tratado por
assaltantes. O viajante estava visivelmente emocionado. Dirigiu-se ao dono do
albergo: "Tenha a bondade, cuide bem dele. Aqui você tem um adiantamento,
o resto eu pagarei quando voltar”. Depois comeu um pedaço de pão, tomou um copo
de vinho, beijou o ferido e desapareceu na noite.
"Bela generosidade!" murmuravam os hóspedes. "O sujeito nos
deixa os gemidos e ele mesmo escapa". O dono do albergo ficou calado,
cuidou das feridas do homem assaltado, deu-lhe de comer e beber e o deitou na
cama. A quantia já recebida não seria suficiente para as despesas, mas não
pensou numa indenização. Será que o homem do cavalo voltaria? Mas também não se
preocupou com isso. Fez tudo o que lhe foi pedido.
Depois que o homem ferido pegou finalmente no sono, o
hospedeiro saiu um pouco. Silencioso, perscrutava o deserto. E ficou ali até
que o sol se levantou.
O
carmelita na América Latina.
A
nova Ratio da Ordem que trata da formação no Carmelo descrevendo-a como
um processo de transformação, coloca a contemplação no coração do carisma
carmelitano. É precisamente o segredo da viagem que continua, pois ninguém se
põe em caminho se o objetivo final da caminhada não estivesse de alguma maneira
presente desde os primeiros passos.
A viagem é feita dentro da
história em que nos encontramos inseridos, no meio do povo. A própria viagem
toma-se missão. A dificuldade que muitos sentem é como ligar este cerne do
carisma que é a contemplação ou experiência de Deus com os desafios dessa
história, no nosso caso, com a realidade da América Latina. Continua
persistente, também entre nós, um certo dualismo. Mesmo fazendo uma leitura
sócio-pastoral da Igreja tropeçamos em fenômenos que fazem perceber a
dificuldade de ligar fé e vida, revelação e experiência humana, Esta
dificuldade provém em grande parte da imagem de Deus que não passa pelo filtro
do nosso tempo. É preciso reconhecer que muita coisa de positivo foi feito para
desfazer essa mentalidade dualista, principalmente através da pastoral bíblica
(círculos bíblicos), pela teologia de libertação, na prática das comunidades de
base, para mostrar que não se pode separar a revelação de Deus da caminhada do
povo. O povo de Israel descobriu a presença de Deus na libertação da escravidão
do Egito. E os profetas sempre insistem nessa manifestação de Yahweh quando o
povo se torna infiel a essa aliança estabelecida com Ele.
"Como
nós carmelitas deveríamos situar-nos frente à realidade que nos envolve na América
Latina?" Faço minha esta pergunta feita na carta de quem me convidou para
participar deste encontro. A resposta pode parecer simplista ou até um círculo
vicioso: fazer com que a questão de Deus permaneça central na nossa existência.
Não se trata em primeiro lugar da questão sobre um Ser supremo. A
questão de Deus está ligada à questão da realidade. Se a questão de Deus deixa
de ser central, ela será substituída pela problemática que nos envolve. A
questão que se coloca é do sentido da vida, do destino da terra, da necessidade
ou não de um fundamento. Perguntamos simplesmente qual é para cada um de nós a
última questão, ou por que esta questão não é colocada. Mas para poder admitir
a questão e refletir sobre ela, há necessidade de um silêncio interior, ou como
diz a Regra de uma pureza de coração. Sem esse preliminar nem se percebe de que
se trata. Já na Idade Média falava-se da necessidade do olho da fé É o órgão da
faculdade
que nos dá acesso a uma dimensão que transcende, sem negar o que captam o olho dos
sentidos e o olho da inteligência.
O
discurso sobre Deus é radicalmente diferente de outros discursos, pois Deus não
é um objeto. Do contrário ele seria um ídolo. Nenhum instrumento pode localizar
Deus, nem a teologia acadêmica. Pode haver especialistas em teologia ou mesmo,
em espiritualidade e mística. Não há, porém, cursos de especialização em Deus.
A única mediação somos nós mesmos. Santo Tomás já dizia: "A criatura é a
mediação entre Deus e o nada". Jamais podemos colocar Deus do nosso lado
contra os outros. Talvez um texto de São Bernardo possa ilustrar o que acabamos
de afirmar. Num sermão sobre o Cântico dos Cânticos ele confessa que recebeu
com certa freqüência a visita do Verbo, mas que não soube explicar como Ele
entrou.
Por onde entrou? Ou será que Ele não entrou, visto que não vem de fora?
Pois Ele não é nenhuma das coisas que estão fora de nós. Também é certo que não
veio de dentro de mim, porque Ele é bondade, e bem sei que em mim não existe
nada de bom. Daí eu me elevei acima de mim mesmo, mas o Verbo está mais além.
Intrigado, sondei o que está abaixo de mim, mas Ele está em maior profundidade.
Olhando para fora de mim, concluí que está além de tudo o que do lado de fora
fica o mais longe de mim. E olhando para dentro de mim, que a sua presença é
mais interior que o meu íntimo. E assim compreendi a verdade daquilo que eu
tinha lido: "Nele vivemos, nos movemos e somos" (At 17,28).
Não
é possível falar de um Deus puramente transcendente. Seria inclusive uma coisa
supérflua, e mesmo, contraditória. Por isso o deísmo, herança recebida do
Iluminismo, não nega a existência de Deus como Ser supremo, mas não admite a
sua revelação porque é o próprio homem que determina o lugar que Deus pode
ocupar. Aos poucos Deus vai se tornando uma hipótese inútil.
Mas
Deus se revelou e, portanto, se engajou na história dos homens. A revelação é
essencialmente Deus que se doa a nós. É o acontecer de um encontro. E neste
encontro não atingimos algo de Deus, um aspecto ou um segmento do seu mistério.
O que Deus revela é o seu "coração". Ao mesmo tempo, porém, Deus
permanece sempre maior do que o nosso coração, Ele será sempre um Deus
escondido, Ele é mais do que a sua revelação. Esse mais não deve ser
pensado em termos quantitativos, mas significa que Deus não se torna objeto
da revelação. Deus permanece o sujeito da revelação e como tal
transcende a sua revelação, é anterior a ela. Deus é o mistério maior que não
se esgota na sua relação reveladora. Além disso, não podemos aduzir nenhuma
razão que explica ou justifica a revelação de Deus. É o seu "desígnio
secreto" (Ef 1,9). "Ele nos amou primeiro" (1 Jo 4,10). A
gratuidade do amor de Deus deixaria de ser gratuidade se pudéssemos explicá-la.
Vale aqui a declaração de P. Evdokimov, teólogo ortodoxo: "Não é o conhecimento
que ilumina o mistério, é o Mistério que ilumina o conhecimento".
Nenhuma
linguagem humana é capaz de descrever o mistério de Deus. O que faz entender
porque a Regra fala em dois parágrafos sobre o silêncio, não só como exercício
ascético para chegar à pureza do coração, mas também como matriz de toda
palavra autêntica. O que faz pensar no que escreveu santo Irineu: "Do
silêncio primordial surgiu o logos". No silêncio se entrelaçam o
tempo e a eternidade. Uma vida de silêncio não é a mesma coisa que o Silêncio
da Vida. O mesmo santo Irineu escreve sobre essa Vida: "A glória de Deus é
a Vida do homem, e a vida do homem é conhecer a Deus". A primeira parte
deste texto foi muito citada em ambientes de pastoral social: a glória de Deus
é a vida do homem. Omitindo a segunda parte surge de novo um certo dualismo
entre fé e vida, entre revelação de Deus e caminhada do povo. Neste caso a
opção pelos pobres, aos excluídos corre o perigo de ser reduzida a uma mera
obrigação ética. "Tudo o que vocês fizerem ao menor de meus irmãos, e a
mim que o fizestes". É uma afirmação ontológica da presença de Cristo no
outro. Jesus manifesta nessa tomada de posição parcial, a universalidade do
desígnio de Deus. Cristo não é símbolo para a realidade, mas da realidade.
A evangélica opção preferencial se situa no nível do que Raimon Panikkar chama
de cristofania. Por Cristo, com Ele e n’Ele, todas as dimensões da realidade se
juntam: "Tudo foi feito por meio d’Ele e sem Ele nada foi feito de tudo o
que existe" (10 1,2). O universo inteiro é chamado a participar da vida
trinitária em Cristo e por Cristo. O que dá uma perspectiva profunda ao
"viver em obséquio de Jesus Cristo" da Regra. . Volta aqui à
contemplação como cerne do nosso carisma. Penso que sem esse cerne não encontramos
uma resposta à pergunta que me foi feita na carta mencionada: "Como nós
carmelitas deveríamos situar-nos frente à realidade que nos envolve na América
Latina?"
A
questão de uma vida de silêncio e do Silêncio da Vida pode parecer uma espécie
de fuga do mundo, um viver no abstrato. Neste sentido ouve-se freqüentemente a
crítica: basta de belas teorias, precisamos da prática. Cabe fazer aqui uma
distinção entre o que é urgente e o que é importante. O urgente com suas
características de imediato desvia a nossa atenção daquilo que é importante. Se
o urgente não é importante nós nos lançamos numa prática contraproducente. Se o
importante não é urgente mergulhamos numa teoria errônea: o importante será uma
simples abstração. No urgente destacamos o fator do tempo, no importante
acentuamos o fator do peso. A sabedoria conste em combinar o urgente com o
importante. É a arte de fazer calar as atividades da vida que não são a Vida.
Não são as atividades que produzem o ativismo, mas a falta de silêncio
interior. Ativismo é como a gravidez psicológica: seus efeitos visam o
presente. A gravidez real se dá no presente mas, não para o presente.
Freqüentemente agimos a partir de atributos que configuram a nossa
personalidade: sou professor, diretora de um colégio, empresário, operário,
pároco, superior, etc. É assim que somos identificados, é assim que os olhos
dos outros se fixam em nós. Quem se identifica exclusivamente a partir dessas
atribuições, sem dúvida reais, estas freqüentemente começam a sufocar-lhe a
identidade profunda. No dia do seu
aniversário (29.07.1959), Dag Hammarskjöld, secretário geral da ONU, escrevia
no seu diário espiritual:
A humildade é o contrário tanto da humilhação quanto
da exaltação de si mesmo. A humildade consiste em não se comparar.
Repousando na sua realidade, o eu não é melhor nem pior, nem maior nem menor
que outra coisa ou outra pessoa. Ele é – nada, mas, ao mesmo tempo, um
com tudo. Neste sentido, humildade significa: apagamento sem reservas de si
mesmo. Ser nada no apagamento de si, na humildade, e, mesmo assim,
encarnar, em virtude da sua missão, todo o seu peso e autoridade: é a
atitude de quem tem uma vocação.
De certa maneira trata-se de um despojamento do conjunto dessas atribuições
para poder chegar ao Silêncio da Vida.*
Enfocando o relacionamento que deve
existir entre o prior e os irmãos, Alberto ofereceu aos eremitas do Monte
Carmelo uma pista para chegar a esse despojamento.
Tu, irmão B. e seja quem for indicado Prior depois de
ti, tenhais sempre em mente e cumpram na prática o que o Senhor diz no
evangelho: Todo aquele que entre vós quiser tornar-se o maior, seja o vosso
servidor, e quem quiser ser o primeiro, seja o vosso empregado.
E vós, os demais irmãos, honrai humildemente o vosso Prior, pensando,
mais do que nele, em Cristo que o colocou acima de vós, e que diz aos que estão
à frente das igrejas: Quem vos ouve, é a mim que ouve; quem vos despreza, é a
mim que despreza, a fim de que não sejais julgados como réus por menosprezo,
mas possais merecer por obediência a recompensa da vida eterna.
Seria
empobrecer o conteúdo do texto citado se fosse reduzido a uma exortação piedosa
ou moral. Como em toda a Regra do Carmelo, também aqui aparece a tensão que
existe entre o urgente e o importante, entre prática e teoria. Já no primeiro
parágrafo da sua exposição, em que fala da eleição do Prior, Alberto insiste na
obediência que cada um dos irmãos deve prometer ao que tiver sido eleito, e no
empenho de cumprir na verdade da prática o que prometeu. É claro que na
prática podem surgir abusos e comportamentos imaturos de ambas as partes. O
que, porém, não invalida a perspectiva cristocêntrica que a Regra abre também
para o relacionamento mútuo entre o Prior e os demais irmãos. O essencial é a
obediência ao que ressoa além do meu horizonte. Trata-se da "salvação no
Senhor" que Alberto deseja aos carmelitas já no início da sua carta.
Salvação é "participar da natureza divina"(2 Pd 1,4) por Cristo. É
precisamente nisto que consiste o mistério envolvido em silêncio desde sempre,
mas agora revelado em Jesus (Rm 16,25) que veio para que todos tenham Vida, e a
tenham plenamente (Jo 10,10).
Muitas
vezes identificamos a Vida com as atividades da vida e nos alienamos da nossa
própria fonte, estabelecendo uma dicotomia entre o fundamental ou essencial e o
relativo. O essencial não seria essencial se não o descobríssemos a partir do
relativo. O fato de vivermos no tempo, a nossa vida se desenvolve ao longo de
uma linha temporal. A própria consciência que temos das coisas é marcada pelo
tempo. Além disto, pelo fato de vivermos no espaço a nossa consciência é
atingida pelo parcial e pelo distante que supõe o caráter material da
realidade. Isto faz com que tudo em nós tenda para algo mais que não se estenda
pelo tempo e pelo espaço. Surgem assim as interrogações fundamentais: de onde
viemos e aonde vamos? São questões que sempre permanecem abertas, pois nenhuma
resposta nossa é capaz de exauri-las. O desconhecido permanece e não se deixa
manipular. E ao inverso, o relativo só pode ser relativo porque existe uma
relação a partir do essencial. Teresa de Ávila o diz às suas filhas: Deus se
faz encontrar também na cozinha no meio das panelas. E outro escritor que
compara o homem e a mulher casados às duas margens de um mesmo rio. Não se
trata, portanto de negar a importância das atividades e ocupações da vida. Não
podemos viver sem sentir, sem amar, sem comer, sem trabalhar. Os parágrafos que
a Regra dedica à refeição e ao trabalho, não são apenas de natureza
disciplinar: apontam para o essencial. Agora sem o silêncio dos sentidos e do
intelecto, o olho dá fé fica atrofiado e não conseguimos nos abrir à Vida que é
anterior às suas expressões nas nossas diversas atividades. Lembro-me aqui de
Tito Brandsma que sabia combinar o urgente com o importante e abrir-se ao
Silêncio da Vida. Era um homem que se situava junto à Fonte. Sabia unificar-se
por dentro e por isso estava inteirinho na sua cela, no atendimento aos
humildes, aos estudantes, aos jornalistas, aos nazistas que o interrogavam e o
maltratavam.
Os
“lugares” da contemplação
Deus
está em toda parte e ele é simples, não tem partes. Assim já nos ensinava a
teologia escolástica. Teresa de Ávila o sabia por "experiência".
Direis, porém: como viu ou entendeu que era o Senhor, se nada viu nem
entendeu? Não digo que tenha visto. Depois é que vê claramente. Não a modo de
visão, mas pela certeza que lhe fica na alma e que só Deus pode infundir.
Conheço uma pessoa [a própria Teresa] que sabia que Deus está em todos os seres
por presença, por potência e por essência. Tendo recebido uma dessas mercês do
Senhor, compreendeu-o com tal firmeza que não deu ouvido a um dos semiteólogos
a quem consultou. ... Mas como pode deixar-nos tão grande certeza algo que não
vemos? Não sei - são obras de Deus. Só sei que digo a verdade (Moradas, 5,
1,10-11).
Não
há "lugar" onde a experiência de Deus não possa não acontecer. Mesmo
assim podemos falar de lugares privilegiados da experiência de Deus. Quais
poderiam ser os lugares aqui na América Latina? Não compete a nós descrever os
lugares da experiência de Deus e como acontece essa experiência. Não dá para
organizar e programar a experiência de Deus. Uma coisa é certa: a experiência
de Deus, seja na alegria, como no
sofrimento, é sempre acompanhada da experiência da própria contingência. Embora
a experiência de Deus ressoe de alguma maneira na estrutura psíquica do
indivíduo, ela não pode ser reduzida a um fenômeno psicológico como certas tendências
psicologizantes fazem crer. Não se pode banalizar a experiência de Deus. Não se
trata de um maravilhamento estético, de uma alegria biológica, de um
sofrimento, de uma admiração entusiasta diante da natureza, de um encanto e
atração suscitados por uma pessoa carismática. Não que esses fatores são
excluídos como possibilidade, mas é importante fazer as devidas distinções. A
mesma hesitação devo admitir quando se fala do self. É verdade que a
experiência de Deus faz descobrir a própria identidade mais profunda, mas não é
permanecendo no nível profundo do próprio eu que podemos falar de experiência
de Deus. A águia pode voar em grande altura, mas não pode voar acima de si
mesma (Ruusbroec). Posso fazer a experiência de Deus, fazendo a experiência de
mim mesmo como de um tu de Deus, descobrindo-me como seu. Santa Teresa de Ávila
diria: "Procura-me em ti, procura-te em mim". Deus não se coloca nas
mãos de especialistas: "Dou-te graças, Pai, Senhor do céu e da terra!
Porque, ocultando estas coisas aos entendidos, tu as revelaste aos
ignorantes" (Lc 11, 25).
O
amor será sempre o núcleo fundamental da experiência cristã. O amor-ágape é o
princípio do cristianismo: Deus é amor, Ele nos amou primeiro. Para quem
ignorar o amor humano, será difícil experienciar o amor de Deus. Mas também
será difícil perseverar no amor humano se não se descobre nele uma alma divina.
Quem diz que ama a Deus e não ama seu irmão é um mentiroso (1 Jo 4,20).
Sem
esquecer-nos da alegria como lugar da experiência de Deus, é importante lembrar
o sofrimento. Aliás, existe uma alegria que é compatível com o sofrimento. Tito
Brandsma escreveu na cela da prisão:
Ainda que a descoberta
exija Na
minha dor me rejubilo;
coragem, faz-me bem a dor:
já não a julgo
sofrimento,
por ela me assemelho a ti,
mas sim
predestinada escolha,
que ela é o caminho
redentor. que me une
a ti neste momento.
O
que faz sofrer é a dor, a injustiça, a humilhação, o castigo, a fome, a
privação de um bem, a angústia gerada por um futuro ameaçado ou incerto. Se o
sofrimento pode purificar, amadurecer, também pode provocar o desespero. Quem é
apaixonado pela justiça também sofre ao ver a atuação do mal, a inércia dos
responsáveis e mesmo da própria história. Este sofrimento tem a ver com
solidariedade que pode ser expressão do Silêncio da Vida. A reação ao
sofrimento depende também da idéia que se tem de Deus. Se Deus é um Deus
onipotente, a reação pode ser de protesto e de blasfêmia.
Se esse Deus é um ser simplesmente transcendente - Ele lá nos céus e nós aqui
na terra - a solidariedade humana não aparece, e as situações injustas são
vistas e tratadas como fazendo parte de uma dinâmica política e econômica em
que o fim justifica os meios. O sofrimento nos confronta com o irracional, nos
desloca, faz afundar os nossos planos, nossas seguranças. Pode abrir caminho
para a experiência de Deus, como pode provocar o contrário. Quando se trata do
sofrimento dos nossos irmãos, a experiência de Deus é mais comunhão do que
consolação. Mas é sempre graça porque se toca no mistério. Pode abrir para o
transcendente, mas também pode ser uma revelação da "imanência" de
Deus. Parece que o homem sente mais suas ligações com a realidade quando se
apresentam aspectos negativos. É como a pessoa se lembra mais do seu fígado quando
este começa a doer.
Existe
também o mal, o pecado, o mistério da iniqüidade. Existem diversas elucubrações
metafísicas que tentam explicar o mal no mundo. Em todo caso o problema do mal
é um fato. Será que o mal pode ser um lugar da experiência de Deus? Não vamos
entrar na questão. Só quero lembrar que ela se apresenta como uma questão
religiosa que na prática é freqüentemente interpretada e manipulada de maneira
nada religiosa. Permanecendo na tradição crista, basta citar as palavras de
Paulo: "Aquele que não conheceu pecado, Deus o fez pecado por nós, para
que nele nos tomemos justiça de Deus" (2 Cr 5,21). E é conhecida a
expressão da Vigília pascal, cantada em tom de júbilo: "Ó pecado de Adão,
indispensável, pois o Cristo o dissolve em seu amor; ó culpa tão feliz que há
merecido a graça de um tão grande Redentor!". Tudo isso faz pensar num
parágrafo da nossa Regra: "Nos domingos ou em outros dias, caso houver
necessidade, vocês devem tratar, todos juntos, da observância da vida comum e
da salvação das almas. Na mesma ocasião sejam também corrigidos os excessos (=
transgressões) e as culpas dos irmãos se em alguém forem encontradas, estando a
caridade sempre no centro". Não creio que este parágrafo retrate o
capítulo de culpas que, nos meus anos de jovem carmelita, se realizava na
comunidade sob a presidência do prior. As faltas acusadas eram estereotipadas:
quebrei um copo, olhei para o século, subi a escada correndo, etc. Podia ser um
exercício de humildade, mas Alberto fala da salvação das almas, do desígnio
de Deus realizado em Cristo. A comunidade é símbolo da comunhão dos santos, mas
também da comunhão dos pecadores. A Regra diz que na correção fraterna a
caridade, ou seja, a salvação deve ser o
ponto de referência. Ora, sem a dor causada pelo mal o amor torna-se
impossível.
Conclusão
"No
silêncio e na esperança estará a vossa força" É a citação que a Regra faz
da Vulgata. E ainda "O silêncio é o cultivo da justiça", isto é, conduz ao Silêncio da Vida, pois a justiça de
Deus protege a verdade do ser humano. Dag Hammarskjõld, homem político e de
ação, poucos dias depois da sua segunda eleição como secretário geral das
Nações Unidas, em setembro de 1957: transcreveu no seu diário espiritual um
pensamento de Mestre Eckhart: "O melhor e o mais maravilhoso que se possa
atingir nesta vida, é silenciar e deixar Deus agir e falar".
No
dia 10 de abril de 1958 ele escreve:
Graças à fé que é
união de Deus com a alma, você é um em Deus e Deus é totalmente em você,
como para você ele é todo inteiro naquilo que você encontra.
Graças a essa fé, você
desce na oração no fundo de você para encontrar o Outro, na obediência e na luz
da União,
Você vê todos, todos
os outros como você, sós diante de Deus.
E toda ação é um ato
criador que continua, de modo consciente porque você tem a responsabilidade de
um homem, sendo guiado por essa força além da consciência que o homem criou.
Você é independente
das coisas, mais você as percebe numa sensação que tem a pureza libertadora e a
agudeza penetrante da revelação.
Graças à fé que é
união de Deus com a alma, tudo tem um sentido.
Viver assim, utilizar
assim o que foi confiado a você...
*
Não se conhecem as motivações que levaram o Prior Geral Teodoro Straccio a
mandar frei Luís da Purificação (de Mértola), ex-mestre de noviços em Lisboa,
para o Brasil como seu comissário e visitador geral. Depois de percorrer os
conventos no Brasil, ele escreve, em março de 1644, uma carta de avaliação
dirigida aos confrades em que ele critica “o pouco interesse deles pelas coisas
que conduzem à perfeição” e aponta entre outros defeitos o relaxamento na
pobreza religiosa e a ambição por
cargos; ambição esta que ele
considerava a causa de todos os males.
*Dom
Frei Vital Wilderink, O Carm, foi vítima de um acidente de automóvel quando
retornava para o Eremitério, “Fonte de Elias”, no alto do Rio das Pedras- nas
montanhas de Lídice- distrito do município de Rio Claro, Rio de Janeiro. O
acidente ocorreu no dia 11 de junho de 2014. O sepultamento foi na cidade de
Itaguaí/RJ, no dia 12, na Catedral de São Francisco Xavier, Diocese esta onde
ele foi o primeiro Bispo.
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