Os Carmelitas e o Concílio de Trento
O Concílio de
Trento (1545-63)[i] foi uma tentativa de estabilizar e de
regulamentar a vida dos fiéis depois dos efeitos devastadores da Reforma
Protestante. Tendo isto em mente, todos os textos litúrgicos questionáveis, até
mesmo as festas, foram eliminados do calendário. Desse modo, a festa das Três
Marias foi proibida aos carmelitas. Todas as festas, com seus textos
litúrgicos, tiveram que receber aprovação individual da Santa Sé, antes de
serem incluídas no ritual de uma Ordem religiosa ou de uma diocese.[ii] De forma semelhante, a música tinha que se
ajustar às normas estabelecidas pela Santa Sé.
Na época do
Concílio de Trento, a Ordem Carmelita estava bem estabelecida e contava com um
número de santos próprios em suas fileiras. Na reformulação da liturgia
carmelitana, a herança que receberam da Terra Santa tornou-se cada vez mais
remota, mas o ritual revisado permitiu que eles celebrassem liturgicamente seus
confrades que alcançaram a santidade.
Novas festas carmelitanas
Eliseu e Elias
Por causa do
relacionamento próximo entre Elias e Eliseu, as duas festas são consideradas
como uma só. O relacionamento dos carmelitas com estas duas figuras
proeminentes do Antigo Testamento já estava bem estabelecida espiritualmente,
muito antes de ser celebrada liturgicamente. Uma afirmação, um tanto comovente,
das Constituições do Capítulo de Londres de 1281, demonstra a importância de
Elias e de Eliseu dentro da auto-compreensão carmelitana. Apresentamos a seguir
uma tradução de Joachim Smet daquelas Constituições:
Foram estes mesmos sucessores que Alberto, o
patriarca de Jerusalém no tempo de Inocêncio III, uniu numa comunidade,
escrevendo uma regra para eles que o papa Honório, o sucessor do mesmo
Inocêncio, e muitos de seus sucessores, aprovando esta ordem, confirmaram-na
devotamente por seus decretos. Na profissão desta regra, nós, seus seguidores,
servimos o Senhor em várias partes do mundo até hoje.[iii]
Esta afirmação
demonstra que os carmelitas medievais viam a continuidade entre o povo do
Antigo e o do Novo Testamento, os que habitavam à sombra da presença de Elias
no Monte Carmelo, os primeiros eremitas reunidos pelo patriarca Alberto, e eles
mesmos, em várias partes do mundo. O lugar do Monte Carmelo, a imagem do
profeta Elias e a jurisdição de Alberto ajudaram a incutir nos carmelitas, ao
longo dos séculos, a santidade de suas vidas e a importância de seu trabalho
como religiosos. Além da identificação com a tradição de Elias, tanto Santo
Antão quanto São Jerônimo fazem uma associação explícita entre Elias e aqueles
que seguem o modo de vida eremítico.[iv]
Apesar da
importância de Elias e de Eliseu na auto-compreensão carmelitana, sua
celebração litúrgica é um fenômeno posterior. Elias é claramente a mais
proeminente das duas figuras, apresentado como um modelo potencial. O fato de
Elias ter ido para o céu sem morrer, significava que como ele não tinha um dies natalis, ou data de morte, ele não
poderia ser venerado como um santo.[v] Assim, o carmelita John Bale escreveu um
ofício para a Assunção de Elias.[vi] Este é certamente um ofício único, de um
indivíduo empreendedor, em vez de uma festa carmelitana medieval padronizada.
Posteriormente a festa foi aceita, apesar da ausência de uma data de morte ou dies natalis. A evidência mais antiga da
festa de Elias é a Missa votiva dos missais do século XVI (1551 e 1574),
contemporânea do Concílio de Trento.[vii] Embora a veneração de Eliseu não tenha
envolvido os mesmos problemas, seu ofício e missa também são um fenômeno
medieval tardio ou mesmo pós-tridentino.
De qualquer modo, não temos nenhum indício substancial da veneração, tanto de
Elias quanto de Eliseu, que tenha sobrevivido do período anterior ao Concílio
de Trento.
A mais antiga
evidência Tridentina da festa de Santo Elias é encontrada num suplemento
carmelitano Florentino, com a antífona compilada por Fr. Archangelus Paulius,
prior de Carmine, no ano de 1627,[viii] assim como em antigos manuscritos do século
XVIII de São Martino ai Monti e de Santa Maria em Transpontina. Também nos
manuscritos mais recentes que estão guardados no Colégio Sant’Alberto em Roma.
Um processionário de 1593 do convento da Encarnação, em Ávila, contém vários
cantos para Santo Elias onde ele é chamado tanto de nuestro Santisimo Padre Elias quanto de nuestro Glorioso Padre Elias.
Apesar da veneração
de Elias como santo ser bem conhecida nas liturgias do rito oriental, tal
observância no ocidente é inteiramente peculiar aos carmelitas. As festas de
Elias e de Eliseu deram aos carmelitas a oportunidade de recontar a história
dos dois homens cujas vidas modelaram as suas. Como o próprio Monte Carmelo
tornou-se cada vez mais distante da experiência de vida carmelitana, a
celebração da festa das duas proeminentes figuras do Antigo Testamento permitia
aos carmelitas refletir pessoalmente sobre sua herança e a moldar suas próprias
vidas no exemplo corajoso de seus antepassados no Monte Carmelo. A celebração
destas festas equiparava-se à celebração de uma liturgia para um fundador em
outras tradições, já que permitia aos carmelitas explorar as raízes de sua
espiritualidade de uma forma litúrgica.
A primeira
antífona das primeiras Vésperas para o ofício de Santo Elias é Zelo zelatus sum pro domino deo exercituum,
[O zelo pelo Senhor, o Deus dos exércitos, me consome] de 1Reis 19,10 e
repetido em 1Reis 19,14, palavras que são fundamentais na auto-compreensão de
cada carmelita. O zelo por Deus caracteriza a vida e o ministério do profeta,
assim como do carmelita, exercido sem compromissos. A primeira antífona para as
Laudes, uma reconstrução do texto das Escrituras, afirma: Elias dum zelat zelum legis receptus est in celum [Elias, enquanto
estava consumido pelo zelo, foi recebido no céu], insistindo no zelo por Deus
que caracteriza a vida do profeta. Ele manteve este zelo por toda sua vida
associando-o à sua assunção ao céu. A antífona do Benedictus cita a carta de
Tiago que recorda Elias: Elias homo erat
similis nobis passibilis et oratione oravit ut non plueret super terram et non
pluit annos tres et menses sex et rursum oravit et celum dedit pluvium et terra
dedit fructum suum [Elias era homem fraco como nós. No entanto, ele rezou
bastante para que não chovesse e não choveu sobre a terra durante três anos e
meio. Depois ele rezou de novo e o céu mandou chuva e a terra produziu seu
fruto].
É importante
enfatizar a semelhança entre Elias e todos aqueles que escolhem a vida de
oração. A oração de Elias é poderosa. Deus a escuta e, assim, intensifica a
força da oração de cada um dos carmelitas. O responsório das primeiras Vésperas
lembra Elias caminhando “quarenta dias e quarenta noites para o Horeb, o monte
de Deus” enfatizando a importância da jornada carmelitana pela vida, em direção
ao monte sagrado, para experimentar a presença de Deus. Elias brigou com os
profetas de Baal, devolveu a vida da viúva de Sarepta e rezou por chuva em meio
à seca. Pela profundidade de sua oração, sua vida foi preservada no Monte
Carmelo e, em seus últimos dias, ele foi aceito na vida eterna de Deus. A
escolha de Elias como modelo de vida, na antiga liturgia medieval, se compara à
ênfase na dimensão masculina da oração na regra. A falta de um fundador no
início da Ordem a ser imitado, permitiu que os carmelitas escolhessem um, num
estágio posterior de desenvolvimento. A escolha de Elias como modelo de oração
sugere que a própria oração, se for seguida tanto por homens quanto por
mulheres carmelitas, é uma ocupação ativa, vibrante e poderosa. Os carmelitas
não precisam se preocupar com a eficácia da oração, já que o exemplo de Elias
demonstra claramente seu poder e ligação direta entre a oração do pedinte e a
ação de Deus. Como a própria palavra poderosa de Deus, a oração pode levar Deus
a agir em favor de Seu povo. Portanto, os carmelitas estão seguros do
significado, da força e do valor da vida de oração que abraçaram em sua
vocação.
Nossa Senhora do Monte Carmelo
Ainda que
possam ocorrer referências à festa da Solene Celebração de Nossa Senhora do
Monte Carmelo nas fontes medievais, a liturgia tridentina deu plena expressão à
sua celebração. Como se poderia esperar, as cinco primeiras antífonas das
Vésperas características de todas as festas marianas medievais, também foram
usadas aqui. Numa das leituras para as Matinas recorda-se a história de Maria
aparecendo ao papa Honório, inspirando-o a permitir o estabelecimento da Ordem
Carmelitana.[ix] Isto é muito significativo, já que as
primeiras batalhas da Ordem visando sua aceitação passaram a ser claramente
situadas dentro da estrutura da intercessão de Maria. Ela não é apenas
celebrada como a padroeira da Ordem, mas é lembrada na sua intervenção direta
possível a fundação da Ordem. Mediante esta festa os carmelitas veneram Maria
como aquela que abençoa a Ordem e os esforços individuais de seus membros. A
festa dava plena expressão à união perpétua entre a Virgem Maria e a Ordem. O
relacionamento dos carmelitas com ela era visto tanto na perspectiva da Ordem
quanto individualmente, onde cada frade busca forças para viver a vida
carmelitana contando com sua intercessão na oração.
São Simão Stock
Apesar da
figura um tanto evasiva de São Simão Stock ter sido de grande importância na
adaptação dos carmelitas à vida no Ocidente, sua festa surge apenas no tempo do
Concílio de Trento. Neste caso, os textos para o ofício vêm de sua vita em vez da Escritura e a música se
adapta à pauta imposta pelo Concílio de Trento. Os textos do ofício oferecem
uma reflexão sobre a santidade de São Simão Stock como religioso e sobre seus
dons para a Ordem. Assim, uma das antífonas das Matinas diz que Desiderium cordis eius tribuit ei Dominus
cum Carmelitarum institutum vidit in Europa propagatum alleluia [Deus deu a
ele o desejo de seu coração quando ele viu o instituto dos Carmelitas espalhado
pela Europa] e realmente ele é geralmente associado com a adaptação da Ordem na
sociedade ocidental. Os textos da Missa são tirados de cantos comuns tais como
os iusti meditabitur sapientiam [A
boca do justo fala com sabedoria (Sl 37,30)] e o verso do Aleluia, Justus germinabit sicut lilium [O justo
“florescerá como o lírio” (Os 14,6)]. Simão é o homem justo e o carmelita leal
que serve de modelo de vida religiosa para todos que celebram sua festa.
Liturgicamente a festa visava renovar nos participantes o zelo pelos caminhos
do Carmelo.
Santa Teresa d’Ávila
A grande
reformadora da Ordem Carmelita, Santa Teresa d’Ávila, morreu dentro da Ordem
dos Carmelitas em Alba de Tormes, perto de Salamanca, em 1582. Os textos para
sua liturgia referem-se a seu zelo por Deus e à sua sede pela sabedoria,
enfatizando apropriadamente suas qualidades místicas e intelectuais. A antífona
de abertura para seu ofício, Zelo zelata
sum pro honore sponsi mei Jesu Christi [Com zelo sou dedicada à honra de
meu esposo, Jesus Cristo] é um complemento feminino ao texto para o ofício de
Santo Elias: “sou muito dedicado ao Senhor, o Deus dos exércitos”, indicando
que, para os carmelitas, Teresa exemplificou o ideal de Elias na sua sede
apaixonada por Deus. Outra antífona fala de seu coração sendo perfurado pela
lança ardente do amor de Deus (que posteriormente levaria à uma festa separada,
a da Transverberação ou perfuração do coração de Santa Teresa). Outra ainda se
refere a ela recebendo sabedoria e prudência. Os textos litúrgicos enfocam os
atributos significativos de Santa Teresa e constituem uma meditação sobre suas
notáveis virtudes. Recitá-los é rever as qualidades essenciais de sua vida e
ser renovado por elas. As virtudes que a liturgia recomenda foram vividas de
modo extraordinário por Santa Teresa d’Ávila, e servem como um modelo de
imitação por todo carmelita.
Santo Alberto da Sicília
O ofício de
Santo Alberto da Sicília é um daqueles raros, onde todas as linhas do texto
rimam. Este é o único ofício rimado que sobreviveu intacto ao Concílio de
Trento. Como o primeiro santo propriamente carmelitano, Alberto goza de
preeminência na veneração litúrgica e o texto rimado para o ofício sugere a
estima com que era considerado. A antífona de abertura O Alberte norma munditie, puritatis et continentie [Ó Alberto,
modelo de integridade, de pureza e de continência] nos lembra que Alberto é o
modelo de integridade de vida e sugere que, para o carmelita, a busca pela
santidade deve predominar sobre tudo mais.
Santo Ângelo
Como o
primeiro mártir carmelitano, Santo Ângelo corresponde ao Bem-aventurado Pedro,
mártir para os dominicanos. O cerne da história de Ângelo ocorre na antífona do
Magnificat: Quinque plagis lethalibus
transfossus Angelus crucifixum deprecabatur ut suis persecutoribus ad
poenitentiam conversis veniam peccatorem concederet et diei obitu sui memoriam
a gentibus optatam omnem gratiam largiretur alleluia [Tendo sido ferido com
cinco feridas mortais, Ângelo implorou pela cruz de modo que seus perseguidores
pudessem receber a graça de ir do pecado à penitência e no dia de sua morte ele
rezou para que a graça pudesse ser dada ao povo que celebrou sua memória,
aleluia].
Santo André Corsini
Santo André Corsini
Santo André Corsini, o
carmelita florentino que se tornou bispo de Fiesole, gozou de forte veneração,
especialmente em Florença. Mas sua festa foi observada liturgicamente por toda
a Ordem. Tanto sua importância como bispo e nobre, assim como sua santidade
pessoal contribuíram para que tivesse um ofício e uma Missa próprios, cujas
evidências mais antigas ocorreram após o Concílio de Trento.
Reflexões sobre a liturgia carmelitana tridentina
O período após
o Concílio de Trento foi para os carmelitas, como para a Igreja em geral, um
tempo de adaptação para estabelecer as novas práticas diante da Reforma. Embora
de algumas forma repressivo, o Concílio de Trento deu aos carmelitas a
oportunidade de venerar seus próprios santos de um modo que não foi possível
durante o período medieval.
Apesar de os
carmelitas continuarem a cultivar suas origens do Santo Sepulcro, agora eles
também podiam venerar alguns carmelitas que foram aprovados pela Igreja como
santos. Cada uma destas figuras ajudou a modelar o ideal carmelitano: Elias e
Eliseu simbolizam a dimensão profética da Ordem, bem como a sede de Deus; Maria
é mais do que nunca a padroeira e a protetora da Ordem; Santo Alberto é o
modelo de pureza e de vida na presença de Deus; Santo André Corsini é o exemplo
do carmelita agindo como um bom religioso e também participando da vida
administrativa da Igreja; São Simão Stock representa a necessidade de manter a
santidade da vida religiosa enquanto concilia as necessidades da Igreja e da
sociedade; e Santa Teresa d’Ávila simboliza a contínua sede pelos caminhos de
Deus, em especial a sabedoria.
A liturgia
carmelitana fala mais e mais da espiritualização do Monte Carmelo. Hoje fala
menos da montanha física e mais do caminho da perfeição espiritual. O crescente
número de santos carmelitanos próprios, cujas virtudes e fidelidade ao modo de
vida carmelitano fez com que merecessem um lugar no Reino, serve agora como
inspiração e exemplo ao carmelita que se empenha em viver sua própria vocação.
Enquanto em outras tradições a forte presença de um fundador em especial foi
sentida através dos séculos e que outros membros da Ordem alcançaram santidade
por se adaptarem a um modelo em particular, na tradição carmelitana a ausência
de um fundador permitiu uma grande flexibilidade na interpretação e na vivência
do ideal carmelitano. A diversidade se reflete nos diversos santos do Carmelo
no período tridentino e em sua tradição litúrgica de alguma forma bastante
eclética.
(Veja na 5º Parte: A liturgia
carmelitana moderna)
[i] Jedin, NCE.
[ii] Caruana (1984) faz uma tentativa preliminar
em discutir a influência do Concílio de Trento na liturgia carmelitana. Ele não
discute o ciclo santoral em seu trabalho e outros trabalhos detalhados precisam
ser feitos nesta área.
[iii] As constituições deste Capítulo estão
publicadas em Saggi (1950); a tradução é de Smet (1988), I:15-16.
[iv] Cf. Smet (1988) Vol. I, pp. 7-8, citando
Athanasius, Vita Antonli, 7; Patrologia Graeca 26, 854 e [Jerônimo] Epistola 58 ad Paulinum; Patrologia Latina, 22, 583.
[v] Kallenberg (1956).
[vi] Os textos neste ofício da Biblioteca da
Universidade de Cambridge, Ms. 7 estão publicados em Zimmerman (1910), pp.
341-345.
[vii] Zimmerman (1910), pp. 346-347.
[viii] O manuscrito é Florence, Carmine, Ms. S. Cf.
meu próximo artigo em Manuscripta
considerando este manuscrito e o trabalho de Fr. Archangelus Paulius, O. Carm.
[ix] De um breviário editado em 1495 em Bamberg,
hoje na biblioteca do Colégio Amherst.
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