Dom Frei Vital João Wilderink, O. Carm.
Perceber a realidade tal como ela é chama-se experiência.
Em qualquer experiência a pessoa se capta em relação com a realidade do mundo,
da natureza, de si mesma, de Deus. Muitas vezes trata-se de contatos
rotineiros, às vezes de uma descoberta de algo novo que atrai e convida, como
acontece com pessoas que vão ver várias vezes o mesmo filme, o mesmo quadro, a
mesma paisagem. A experiência é sempre acompanhada de sentimentos e emoções, de
pensamentos e, mesmo, de ações. O que importa, porém, é a consciência da
relação. Sem ela não se pode falar de experiência pessoal. A experiência trata e carrega, veicula a
realidade tal como dela o homem pode tomar consciência. Consciência que varia
de acordo com o nosso jeito de ser, a nossa personalidade caracterizada por
certos traços psicológicos cuja estruturação depende de diversos fatores,
aspirações, critérios, etc. que ao longo dos anos interiorizamos. O que faz a
pessoa situar-se frente às coisas que a rodeiam. É algo normal e até necessário
para alguém poder tomar posição nos seus relacionamentos.[1]
Em tudo isso, porém, não deixa de haver uma certa ambiguidade
porque a pessoa ao tomar posição, define a realidade que vem ao seu encontro.
Em outras palavras: quem diz “eu” facilmente cria distância e isolamento.
Transferimos o nosso eu para os outros, as coisas, o mundo, etc. O nosso eu
classifica as coisas. Quanto mais trabalhamos com categorias do próprio eu, tanto
menos somos capazes de um verdadeiro encontro. O nosso eu é o melhor vigia da
sua própria prisão. Como acontece ao que se posiciona numa perspectiva
neo-liberal: só é real o que promove o mercado. Aos poucos pode surgir uma
alienação que impede o reconhecimento de outras dimensões importantes da vida
humana. A mística oferece nesta época-do-eu valiosos contra-modelos, como
Francisco de Assis que na sua pobreza se reconcilia com tudo e com todos,
O que dizer da nossa relação com Deus? Por vezes recebo folders de casas de retiro com o convite: venha fazer uma
experiência de Deus! Penso que o êxito de um retiro depende da descoberta de
que só Deus pode se mover para que o homem o encontre, pois se é Mistério,
pertence a Ele estabelecer a modalidade de meu encontro com Ele. É doloroso
descobrir que temos a tendência de reduzir Deus ao nosso tamanho. Mesmo
querendo assumir a nossa condição de “peregrinos do Absoluto” carregamos na
mochila os nossos “ídolos domésticos”, como fez Raquel quando partiu com Jacó,
seu marido, para a Terra prometida a Abraão: “colocou-os na sela do camelo e
sentou-se em cima”(Gn 31,34). O próprio
Jacó, apesar da sua “teologia” mais
ortodoxa que a da sua esposa, lutou com Deus a noite inteira até a aurora. Luta
que deixou uma lembrança: Jacó ficou mancando. Mas não conseguiu que o
“Adversário” lhe revelasse sua identidade (Gn 32,23-33). São imagens que
ilustram o itinerário dos místicos. No século XIV, o autor inglês anônimo do
tratado A nuvem do não-saber, utiliza
uma linguagem que pode estranhar por uma aparente agressividade em relação às
criaturas. Na realidade, o autor visa o eu que se apropria as criaturas e o
próprio Deus, o que impede a verdadeira união com Ele. Só no despojamento do
eu, descobre-se que não existe competição entre Deus e as criaturas.
Não
permita que nada influa em sua mente ou em sua vontade, a não ser Deus. Tente
destruir todo e qualquer conhecimento e experiência de qualquer coisa abaixo de
Deus e reprimir, e arremesse tudo bem abaixo sob a nuvem do esquecimento.
Entenda que neste exercício você deve esquecer não só todas as criaturas fora
de você - e o que elas fazem e o que você faz - mas também deve esquecer você
mesmo, até o que fez por causa de Deus. Porque é próprio do amante perfeito não
apenas amar acima de si mesmo aquilo que ele ama, mas também em certo sentido
detestar a si mesmo por causa daquilo que ele ama. É assim que deve fazer em
relação a si mesmo. Todo objeto que influencie a sua compreensão e a sua
vontade, você deve considerar como abominável e enfadonho... Esta massa
disforme nada mais é do que você mesmo; isto deverá parecer-lhe como uma coisa
única, só e solidificada com a substância do seu ser, como se não houvesse
divisão entre eles. Portanto, você tem que destruir todo conhecimento e
sentimento de todo tipo de criatura, porém muito especialmente de você mesmo.
Pois é do seu próprio conhecimento e experiência que dependem o conhecimento e
a experiência de todas as demais criaturas.[2]
O eu só admite o que lhe é conhecido. É um terreno
cercado, propriedade particular onde o estranho, o desconhecido não entra. O
Outro que é Deus também o deixa constrangido se não se assentar na cadeira que
lhe reservamos. Quando a sua Presença se anuncia, tão diferente das visitas
programadas pelo eu, este não sabe mais o que fazer. Perplexo, perdido, vai
percebendo a sua situação de alienação no relacionamento com Deus. A casa do eu
fica toda desarrumada. Já não se sente à vontade na sua casa “religiosa”, mas
não encontra uma saída porque no vazio que se criou não há indicação do rumo a
seguir. Mas a noite é necessária para encontrar a luz. João da Cruz descreve esta
aventura mística no poema da Noite escura da subida do Monte Carmelo. No
desenho que fez desse itinerário da subida, escreveu numa certa altura: Quanto
mas tenerlo queria, com tanto menos me hallé. Há uma experiência da própria impotência diante do Mistério de
Deus. E no outro flanco da montanha: Quanto menos lo queria, tengolo todo sin
querer. A manifestação do Mistério pertence à iniciativa gratuita do Absoluto.
Descobrir a Realidade última que está por baixo de todas as realidades
visíveis, exige um desentulhamento da casa do eu.
Em
uma noite escura
com
ânsias, em amores inflamada,
ó
ditosa ventura!
saí
sem ser notada,
estando
já minha casa sossegada.
Às
escuras, segura,
pela
secreta escada disfarçada,
ó
ditosa ventura!
em
trevas, às escondidas,
estando
já minha casa sossegada.
Nessa
noite ditosa,
em
segredo, porque ninguém me via,
nem
via eu qualquer coisa,
exceto
a que no coração ardia.
Fiquei-me
e esqueci-me,
o
rosto inclinado sobre o Amado,
cessou
tudo e rendi-me
em
meio de açucenas olvidado.
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